quinta-feira, julho 12, 2007

SAUDOSA PREMONIÇÃO?

Aqui estou a ler os próprios pensamentos nas ciladas armadas por tantos algozes, sob a mira dos próximos dias e sítios, a escolher entre um passeio à Santa Rússia da ficção realista ou uma necessária endoscopia do esôfago de Barrett. Ninguém consegue fugir do destino, mormente quando ele é ao mesmo tempo pérfido e necessário. Já sei que vai ficar na vontade ver de perto a vida pregressa de onírica insônia: as almas mortas do Gogol irônico (nas copiosas refeições dos filés de esturjões defumados, regados nos “cálices de vodca cor de oliva escura”) (1), os humilhados e ofendidos do Dostoievski compungido (a vida intensa que perfura a cápsula mortal, a angustiosa recordação da casa dos mortos), o apaziguado Tolstoi de outras guerras estúpidas (“que segue lavrando a terra, lá na recurva trilha, onde repontam novas estrelas”) (2), e depois Lenine queria que o comunismo existisse para o ser humano e depois Stálin queria que o ser humano existisse para o comunismo e depois Evtuchenko a exorcizar “o caos sangrento do funeral de Stálin” (3). E aqui estou a ler os próprios pensamentos incapazes de mover-me as pernas. 

(1): Do romance “Almas Mortas”, tradução de Tatiana Belinsky. 
(2) Do poema de Vachel Lindsay, tradução de Oswaldino Marques. 
(3) Da “Autobiografia Precoce de Evtuchenko”, tradução de Yedda Boechat.