terça-feira, outubro 16, 2007

MANIAS ESPECIAIS

Um filósofo francês (La Rochefoucald? Vou confirmar depois) disse que o que é bobo demais para ser dito, pode ser cantado. Estava prevendo a enxurrada dos nossos atuais pseudos caipiras e dos sócios-compositores de sambas-enredos do carnaval carioca? Ou prognosticava o modismo desbragado dos tais de tcham, rap e quejandos? Ah sei lá, deixa pra lá. Posso assegurar, no entanto, que na cultura verdadeiramente popular (não na encomendada especialmente pelas agências de turismo) o que era belo demais para ser dito em prosa era cantado em trova da mais lídima pureza. Exemplifiquemos: “Tomais esta chave verde/ para abrir esperança./ Abri e tornai a fechar/ Nosso amor com segurança.”O siri com o carangueijo/ brigaram, fizeram sangue./ O siri foi pra ressaca/ O carangueijo foi pro mangue”. “Lá de casa me mandaram/ um presente num canudo:/ uma velha descascada/ um velho com casaca e tudo”.”Eu plantei a sempre-viva./ A sempre-viva não nasceu./ Tomara que sempre viva/ O meu coração com o seu.” “No enterro da Raimunda/ foi aquela confusão./ Uma parte de seu corpo/ não coube no caixão”. A Trova Que Ilumina a Treva – frase da poeta Clevane Pessoa de Araújo, a quem dedico o rol abaixo em forma prosaica instintivamente versificável, todas populares, ou seja de autorias de representantes do povo brasileiro. Depois do parágrafo. “A bonina é flor da noite, só abre depois da tarde. É pelos olhos que se conhece quem ama com lealdade. Se eu soubesse quem tu eras, ou quem tu chegarias a ser, não te dava minha vida, que hoje vive a morrer. Pombinha, quando tu fores, escreva-me pelos caminhos. Se não achares papel, escreva nas asas dos passarinhos. Amanhã eu vou embora. Que me dão para levar? Se levo só penas e dores, como é que vou voltar? A barata diz que tem uma bela cama de marfim. É mentira da pobrezinha: a cama dela é de capim. Lá vem a lua saindo por cima dos laranjais. Olha bem, não é a lua: é o mapa de Minas Gerais. Cravo branco não me prendas, que não tenho quem me solte. Foste tu, meu cravo branco, que causou a minha morte? Alecrim da beira dágua, mangerona, poço fundo: a moça que quer casar, não namora todo mundo. Ó quê graça da menina que entrou neste salão. Parece uma beija-flor no pezinho de algodão. Menina, berço de rosa, galho de alecrim maduro: sinto que dentro do peito meu coração está seguro. Quem de mim tem raiva boba, que vá pro mato se foder. E que lá uive que nem cachorro, mas que não venha me morder. Eu vi minha mãe rezando aos pés da Virgem Maria. Era uma santa escutando o que a outra santa dizia. Subi no pé da roseira para ver se te avistava: cada rosa que se abria era um suspiro que eu dava. Lá no alto daquela serra tem um carneiro morto. Sabem do que ele morreu? Do coice de um gafanhoto. Minha gente venha ver uma coisa que nunca se viu: o tição brigou com a brasa e a panela de barro caiu. Ela é bonita como a rosa, ela cheira que nem jasmim. Ela é boa como a bondade, mas não tem pena de mim. Esta noite eu tive um sonho, que meu bem tinha morrido. Acordei muito assustado, já com outro bem no sentido. Rio abaixo, rio acima, lá vou na canoa furada, arriscando minha vida pruma coisinha de nada. Cada filho para a mãe é uma nova preocupação: a sorte deles é desigual como os dedos de cada mão. Quê dia negro e sombrio é o dia em que não te vejo. Mas se vens em noite escura, vejo o dia no teu beijo. Fui ao mar buscar laranjas, frutas que o mar não tem. Voltei de lá toda molhada com a onda que vai e vem. Fui ao Rio de Janeiro fazer queixa ao delegado, que o maldito trem de ferro, muita gente tem matado. O tatu é bicho manso, nunca mordeu em ninguém. Mesmo que queira morder, o tatu dente não tem. Um desejo, outro desejo. É sempre assim o viver. A nossa vida é um sonho, o acordar é que é morrer. Sá Mariquinha lá do alto da serrinha: nunca vi pomba de galo nem boceta de galinha. Menina dos olhos negros, que me deu água pra beber: não era sede, não era nada, era só vontade de te ver. Em cima do tronco seco, escrevi o nome teu. É tão lindo o teu nome que o tronco reverdeceu. Dizem que o cantar alivia as mágoas do coração. Eu canto e torno a cantar, mas as mágoas nunca se vão. Dentro do meu peito tem duas rolinhas chocando. Uma voou, foi s’embora, a outra ficou me matando. Sete e sete são quatorze, com mais sete, vinte e um. Todo mundo tem seu amor, só eu não tenho nenhum”. “Os teus dois peitinhos parecem, quando ela está deitada, dois montinhos que amanhecem, sem ter que haver madrugada” (Fernando Pessoa).”São vinte e quatro horas contadas, vinte e quatro horas que o dia tem. Ah, se ele tivesse vinte e sete, seriam mais três para te querer bem. Quando findou nosso noivado, a primavera quase me mata. Os rudes cascos de meu cavalo eram quatro soluços de prata” (Garcia Lorca). “A noite é cálida e longa, a insônia me atormenta. Na espera que se alonga meu desejo mais aumenta” (Amaryllis Schloenbach). A Mania de Ouvir. A voz por assim dizer carnal de Adriana Calcanhoto. A sedução das proeminências: e o indício das bochechas dos músculos das fofuras mamárias das farturas de ancas e coxas e maçãs de rosto – e a voz dando brilho e perfume aos lábios voluptuosos e aos dentes belamente irregulares; e a voz dando mais carnalidade ao espírito, do qual é a origem e a ressonância. É assim que um arranjo sambístico de Lupiscinio fica igual a uma ária de Puccinni. A Mania de Ler. As palavras são feitas posteriormente às coisas que se fazem, mas até que podem ser usadas prematuramente, antecipando os dizeres e os fazeres então apenas intuídos. A musicalidade latente, intacta e implícita nas páginas sempre escorreitas de Machado de Assis e de Henri James, como contas de prata na face do lago, flores de neve despencando da árvore de Natal, como diria Pedro Nava....Mas vamos e venhamos: também nas páginas e alvíssaras do romântico patriotismo de Bilac, Castro Alves, Gonçalves Dias, José de Alencar: nunca mais se repetiu tão sincero fervor, tão convicta disposição de imaculado otimismo. O modernismo de 22 veio enxovalhar? Não, não. Veio reciclar, expor o sentimento do mundo, divulgar a rosa do povo. E bate o bumbo e os pratos da nova (desafinada como a vida) orquestra sinfônica da realidade brasileira. Quem não gosta de ler? Só quem não recolhe suas arestas nem exprime seus afagos, só quem não gosta de si mesmo, quem não sabe primeiro monologar para depois dialogar. Só quem (ególatra, monomaníaco, megalomaníaco) julga saber mais que os outros e assim vive a propagar a própria ignorância. Não gostar de ler e deixar o Balzac e o João Cabral na estante e sair por aí a bebericar a fofocar, a contradizer os princípios de toda salubridade..., ah, essa pessoa vai ou vem com uma estrela na testa ostentando os dizeres do sapo jogado do céu dos animais: “Sai da frente, laje, senão te esborracho!”