O MOINHO RIFONEIRO DE AUTRAN DOURADO (*)
No livro “Novelário de Donga Novais” Editora DIFER, 1976 – São Paulo – SP), Autran Dourado retifica a necessidade do equipamento sapiencial do ficcionista como ponto de partida para o trabalho criativo, O poeta, que é, também, ficcionista, mais que o intelectual que apenas examina por etapas as partes de um todo, precisa saber tudo, nem que seja para esquecer quase tudo na hora de escrever. Digo saber tudo pelo menos sob seu exclusivo ponto de vista, que abrange toda a dimensão da temática sobre a qual se debruça. Tem que desconhecer as limitações da ignorância e partir para a descrição de seu pequeno-grande mundo sem embargo de qualquer espécie. Talvez nunca venha escrever sobre as antigas embarcações fenícias nem sobre as figuras parietais das grutas do levante espanhol – mas é bom que saiba tudo isso e até, se possível, algo sobre as fórmulas químicas da cadeia carbônica. Só assim, sabendo ao máximo, pode esquecer o que ignora e, livre no velho mundo sem porteiras, poderá projetar seus abismos e planícies para possíveis exposições públicas. Autran Dourado dá essa impressão, como narrador onisciente, de sapiência abrangente e sem embargos. Em seu último livro (supracitado), além de dominar a descrição do fluxo do tempo e acioná-lo no espaço da ação romanesca, ele não só define e esclarece o comportamento dos personagens, iluminando as sucessivas páginas de riquezas eróticas e vocabulares, como insere as jóias do rifoneiro popular num contexto que não é, nem de longe, deliberadamente folclórico. Só mesmo quem, além de conhecer a cultura do povo, conhece a si mesmo, e que além de conhecer os livros, conhece os leitores, consegue tal proeza. Tenho o prazer de transcrever aqui alguns rifões inseridos com tanta força e espontaneidade no corpo do livro, que mais parecem terem nascido no livro e não na própria sabedoria popular, raiz (penso) de toda a genealogia filosófica, desde a mais primitiva até a mais contemporânea. Eis aí, pois, os picles dietéticos e os favos de mel, saborosos e pitorescos, que andam na boca do povo de todo mundo e nos dedos dos escritores de todos os tempos (especialmente nos de Autran Dourado, patense como os amigos e parentes Elaine Guimarães Coimbra, Donaldo Teixeira, Ricardo Marques e Maria Esther Maciel): - Cavalo, homem e arma: se não se usa, desarma. - Casamento e mortalha, no céu se talha. - Sem indez, galinha não tem vez. - Mulher que bem se arreia, nunca é feia. - Prosa boa e bater pão-de-ló é com um só. - Xexéu e virabosta, cada qual do outro gosta. - Beleza e ciência levam à falência. - Coração não quer certeza, só confirmar o que deseja. - Um rifão mais esconde do que responde. - Na entrelinha é que pia a galinha. - Galho seco pode ser cobra, se obra. - Quem não tem o que fazer, faz colher de pau e enfeita o cabo. - A quem conta, dê desconto; a quem escuta, araruta. - É furando que do outro lado vê o pica-pau. - Na boca do povo todo amarelo é ovo. - Burro não amansa, acostuma. - Mulher casta, uma vez basta. - Moça garrida, ou bem casada, ou bem perdida. - Se o tempo corrói o fuso, que dirá ao coração. - Amar e saber, juntos não podem ser. - Deus só dá nozes a quem não tem dentes. - Passarinha na muda não pia. - Tem hora que a própria vaca estranha a cria. - Corcunda sabe como se deita. - Quem usa a cabeça, não cansa os pés. - Bezerro enjeitado, não escolhe teta. - Solteiro pavão, noivo leão, casado jumento de estimação. - Filho de burro um dia dá coice. - Sombra de pau não mata cobra. - Quem procura e acha, não é desgraça. - Arma e sarna, ao coçar desarma. - Azeite, vinho e amigo: melhor o antigo. - A águia, quando não pode mais voar, vai morar no galinheiro. - Amor regado, amor dobrado. - Quem duvida não se engana, quem tem leque se abana. - Melhor curar goteira do que a casa inteira. - Na mijada da cotia é que o cachorro pega o faro. - Quem não sabe sofrer, não sabe reger. - El’Rei pode mandar marchar, chover não pode mandar.
(*) Do livro inédito “Minha Bela e Querida Divinópolis”, escrito em 1986 e agora em fase de revisão.
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