segunda-feira, abril 06, 2009

PARTENOGÊNESE (*)

A criação começa numa espécie de cansaço subjetivo. E é assim que nos ouvidos não se cala a luta dos instantes. Os vermelhos da trovoada, os verdes da brisa: um estrondo de lá, um cicio de cá, sons amarrados em cardumes infláveis queixam-se de algo indefinido, gemem diante de irreconhecíveis prenúncios, confinando-me num dinâmico círculo secreto. E logo um abismo se abre aos sussurros, para em seguida fechar-se no vácuo das vozes possessivas, também irreconhecíveis. Acomodo-me na espreita, atencioso, para filtrar e processar o pesado silêncio que se abate sobre a relva crescendo no chão vivo, como a desventura que vem de fora para dentro de mim: do trânsito dos caminhos para o arreio de minhas costas. Coçava a cabeça na impaciência, quando ouvi uma campainha anunciando o cordel das palavras em rimas paralelas, verticais e horizontais... Só então compreendi, venturoso, que os versos, que os versos que se me ditavam, acomodavam-se na alvura do caderno. 

(*) Paráfrase do poema “Criação”, de Anna Akhmátova, traduzido do russo para o português por Lauro Machado Coelho.