quinta-feira, julho 09, 2009

DENTRO DOS HORIZONTES

A cidade “apresenta em seus principais lineamentos topográficos a bela forma de um vasto anfiteatro aberto para o Oriente, como que para receber desde cedo os benéficos raios solares, e, encostando-se ao Sul, a Serra do Curral que a protege contra os ventos frios e úmidos que nessa direção atravessam as serras de Ouro Branco e da Moeda”. - Aarão Reis, em 1893. O belo e eqüidistante horizonte do recital das vozes líricas. O sinuoso curral dos épicos embates na redondidade hospitaleira da vivacidade. As contraditórias estórias das igrejas e cabarés (as mãos postas aqui, os pés serelepes ali). Os dias compridos da Avenida Afonso Pena sob a bênção contemplativa da Igreja São José. As noite curtas da Rua dos Guaicurus (o cabaré Magnífico de um lado, o cabaré Maravilhoso do outro lado): as mulheres substituindo as moças para os moços afoitos. A uberdade sólida de um passado recente. A deformação insólita de um futuro galopante. Foi fácil para o poeta Mário de Andrade ver aqui o céu aberto através dos pincéis de macaúbas. Praça da Estação Ferroviária O chefe do trem recolhia as passagens, a repetir: “Belo! Belo! Belo Horizonte!” Eu sofreava a cogitação, fechava os olhos nas curvas, enquanto as casas passavam, iluminadas: nunca tinha visto tamanho prodígio! As rodas do trem de ferro arrancavam faíscas nos trilhos, rilhavam nas curvas do Calafate e da Gameleira. Eu via os arcos e as flechas de pedras caiadas, as faces dos bichos selvagens da modernidade. A praça da estação ferroviária abarcava agora o estacionamento dos automóveis. Eu via e revia as luzes no chão de vidro negro, o espelho remoto de um céu noturno. Assim a cidade nua estampava num átimo o cenário de um filme policial de Humphrey Bogart, bem ali de repente aos olhos atônitos do menino roceiro que chegava à cidade grande, tecendo em si as novas perplexidades palpitantes dos dias seguintes. Avenida Afonso Pena O transcorrer das pessoas diferenciadas em suas pernas sensuais, em suas cabeças mentais. O corredor das atividades sob a luz diuturna das necessidades. O céu que se abaixa no Horto e que se eleva na Gameleira e no Calafate... A vívida expressão de interesse pelo que der e vier no trânsito dos momentos aproximados. Um caminho repleto de objetivos na mobilidade das pessoas blindadas sob a luz das necessidades, nos pontos obscuros das transigências, como numa tomada panorâmica de um filme de Helvécio Ratton. Praça Sete de Setembro Foi nela que um dia o conterrâneo afobado deixou escapar do carrinho de entregas o lote das galinhas apavoradas. Pobre dele: da dúzia de penosas só recuperou meia-dúzia, e o valor das outras foi descontado de seu salário. A praça continuou perfeita e graciosa, com seus dias de outras eras, de outras terras: sintomática na folgança domingueira, a evocar contos passadistas e futuristas? A explicar os bosques sagrados de tempos remotos? Lembro-me agora de Enéias encalhado nas costas da Líbia, a rever, sim a rever as cenas do filme da refrega greco-troiana.... (por que será, que me vem agora tal lembrança tão fora do contexto? O Pirulito em concreto armado (obra de arte do saudoso Antônio Gonçalves Gravatá) é um ponto de exclamação dentro dos horizontes de um poema hermético? Praça Raul Soares A manhã radiosa e a tarde merencórea. A sutileza dos segredos mantidos nos bolsos corporais dos pares enamorados... As células corporais em evidência, assim como a flora jardineira dos canteiros (reduzidos quintais de uma infância roceira?). A circularidade dos aspectos mais notáveis na aclimatação das circunstâncias e dos semblantes. As sentidas doçuras nubladas nas lembranças. As lonjuras aproximam-se, de repente. Parque Municipal Quem estiver prestes a desistir dos maduros intentos, a sentir o chão espinhoso sob o reles céu cotidiano, a sofrer a falência dos sentidos mais ativos, que dê um pulo ao Parque Municipal, que percorra as alamedas da educação física - e assim defenestre a incoerência momentânea - e assim sinta, apolíneo, narcísico e peripatético o bom sentido da vida a brilhar nas folhas do chão, na brisa do ar, na caminhada a favor das articulações, na límpida toalha do céu propício. Ali é onde e quando o filho mórbido do contratempo encontra o mote da oralidade e do coloquialismo na mesa redonda da redenção metafísica, que nos ensina que se perdermos a libido, perderemos a graça de viver. É assim que o corpo humano empertiga e o mundo recomeça a girar, bem no coração da cidade.... Praça da Liberdade Como se estivesse vendo pela primeira vez, mais uma das muitas vezes, meu sequioso olhar não se contém nos circulares imóveis desdobrados. Sei que as pessoas que procuram a plenitude encontram a esteira de outras luzes: o verde fugindo entre as rosas geométricas (como diria Carlos Drummond de Andrade) sob o renque das palmeiras imperiais. Os Bairros Telúricos Belo Horizonte é a circulação de nomes e de seres alpestres campestres rupestres silvestres: Prado, Calafate e Gameleira; Serra, Barreiro e Mangabeira. Horto, Barroca e Buritis. Pampulha, Floresta e Lagoinha. Belvedere, Cachoeirinha e Caiçara. Cada qual com a sua particularidade fisionômica, seu amor dos moradores, seus arranjos de ruas e casas com flores nas janelas (como os galãs com flores na lapela?). De um lado a sintonia dos monossílabos orais, do outro lado a arrumação das roupas no corpo e na alma. Os acidentes toponímicos, concatenados nas redondezas das captações visuais, têm lá seus brejos e córregos, morros e fontes, nascedouros e cemitérios, tudo para abrigar e aglutinar as etnias, os étimos e as etnologias dos adventícios das outras quinze bandas do velho mundo sem porteiras. Tudo no pólo mais precioso das minas gerais de tantas freguesias e primazias e sesmarias, dentro e diante de tantos belos horizontes “palpita em cada coração o pássaro da liberdade”, como lá diz a nossa bem amada poeta Henriqueta Lisboa.