segunda-feira, julho 20, 2009

LENDO, LINDO, LENDO

Deixando de lado o antigo rancor das coisas inanimadas: a feiúra, a empáfia, a vileza e a mentira, o escritor Amós Oz, no delicioso livrinho “Rimas da Vida e da Morte” esbanja poesia na prosa, faz da noite descansativa a renovação de cada dia exaustivo. Entre o homem e a mulher, entre suas perguntas e respostas, brilha fugazmente uma alma extra? As visões disparatadas na multiplicidade dos lugares reconstituem na lembrança da coletividade a seletiva individualidade. Cada pessoa é diferente da outra, cada uma portando seus problemas e soluções, suas vivências e fantasias, suas propensões adesivas e repulsivas. As vidas nunca são iguais, as pessoas são diferentes, os atos e as idéias atropelam-se nas casas e nas ruas – e não há papel que chega para comportar tanta escritura. Cada pessoa carrega mil estórias (vividas e a viver) para contar. E o que a literatura tem a ver com a gente e com os lugares? Piora para melhorar ou melhora para piorar? Ou copia fielmente caindo na área da reportagem jornalística ou na da história científica? Na trama de Amos Oz o homem de meia-idade reparte sua solidão com a solidão da moça esquiva e introvertida que se dá ao trabalho de preencher artificialmente o sutiã. Palavras e olhares, toques físicos mínimos – e logo a eletricidade amorosa acende as tímidas luzes das escadas, corredores e íntimas dependências do edifício residencial das pessoas mais solitárias da cidade. Conversa vai e conversa vem, ela retraída e reticente, ele retraído e reticente, aos poucos se deixam pronunciar as piscadelas eróticas, soterrando na consciência dele as mortes esquecidas e as lembradas de seu lamentável passado. Subitamente o desejo de vê-la fazer xixi de pé toma conta dele – e assim, vagarosamente, a vida e a morte perdem a importância na história que agora se contorce. E assim ele de repente se delicia ao sentir os arrepios em declive das costas dela, as ondas do mar na pele dela, a rigidez e a retração, o tecido mais fino do corpo do que o da camisola de seda dela. A lenta fricção que ia e vinha, todas as cores do arco-íris de seu desejo, as pétalas mais recônditas em volta da cereja dela, com os lábios e o veludo de sua língua, ela ressuscita nele o gosto de chupar o gosto do dia e da noite, recitando, implicitamente o verso “O essencial é viver”, de Carlos Drummond de Andrade. Depois ele se pergunta porque escreve contos e romances e poemas, sem saber responder. E assim está numa das páginas de um de seus livros: “O escritor, na adolescência, costumava se sentar sozinho numa dispensa abandonada e despejar no papel confusos trechos de histórias. Ele os escrevia mais ou menos da mesma maneira que sonhava e da mesma maneira que se masturbava: num torvelinho de coerção e entusiasmo, e desespero e náusea e infelicidade. E também tinha então uma infatigável curiosidade de tentar entender por que as pessoas o tempo todo infligem umas às outras, e a si mesmas, coisas que nunca tiveram a intenção de infligir”. Um “antídoto à opacidade do mundo?”, como afirma Paulo Geiger? Os amantes incautos e ineptos falam e ouvem por frases indiretas e pelas entrelinhas, cujos sentidos emborcam debaixo das palavras. O entendimento do diálogo fica para depois, quando será tarde para aproveitar suas significações. Assim vai perorando – e a certa altura da narrativa o escritor fala do dentista que sabia fazer da anestesia antes de arrancar um dente um objeto de matar o paciente sem ser indiciado como assassínio. Na verdade, na verdade está bem escrito no Taanit: “Deus dispõe de muitos matadores”. Todos saímos da semente de Caim – o autor acrescenta na página cento e cinco. Abel morreu na juventude. Qualquer coisa no mundo, sem exceção, não representa somente a si mesma. Representa sempre a si mesma e mais outra coisa – assim o autor assegura, acrescentando o que disse sobre a preferência de Deus por Caim em vez de Abel. Aquele que escreve o poema e você, a pessoa que sofre, não devem ser a mesma pessoa, mas sim, duas pessoas – assim ele ensinaria ao jovem poeta. De minha parte, na distância da feérica deambulação das publicações, lançamentos, palestras, contatos com celebridades, preocupação com direitos autorais, etc, humildemente recomendo a quem me consulta sobre como escrever poesia, conto, romance, que antes de mais nada é preciso ler os bons autores de poesia, de conto e de romance. Não para escrever igualmente, mas para superar, para escrever melhor, se for possível. A possibilidade é bem remota, mas o desafio é valioso. Uma nova obra literária só vale se for realmente nova e não uma repetição cansativa de inúmeras outras. E acrescento: antes de se dispor a escreve e depois ou enquanto ler é preciso viver, viver sim, manter seus vínculos com a realidade ambiental: prezar os parentes e amigos e conhecidos e desconhecidos, trabalhar e conviver normalmente, comer, dormir, namorar, passear, ou seja: dialogar sempre e monologar só de vez em quando. Se não proceder assim, pode se dar mal e entrar em parafuso, como se diz. E em vez da obra literária vem a frustração, que é um dos piores martírios dos sonhadores e das pessoas bem intencionadas.