segunda-feira, julho 27, 2009

OBSCURIDADE ONÍRICA

De repente estava vagabundeando numa terra bonita, de gente feia (os carecas psicopatas, os barrigudos corruptos, os barbudos trapaceiros, os vendilhões da moral e dos bons costumes, os bandidos risonhos e toda a cambada de usurpadores do erário público, os matadores biliosos, os capachos histriônicos), sem saber o que fazer dos olhos, das mãos e das pernas. Perdido e mal pago, cocei a cabeça rígida, entrei na viatura do carroceiro desabusado, que fica o tempo todo conversando com o cavalo, em voz alta (o animal seria surdo?). Não sabia para onde me levava, fiquei receoso de nova intromissão em searas abjetas. Assim, mais que depressa, pedi para parar a fim de que descesse da imunda carroça, depois de saldar o estipêndio do maluco carroceiro. Vi-me então num local rebuscado, no alinhamento das vistosas construções de cimento armado e floreado. A vista geral era a de um parque temático de uma ONG de administração terceirizada. A área construída sumia de vista, abrigando ruas e mais ruas engalanadas nas trepadeiras vegetais sobre as colunas e coberturas de cimento armado em ferro e aço. O piso de calçamento paralepipédico religiosamente nivelado. Todos os lados abrindo-se em leques longitudinais de iguais extensões dos quatro lados, geometricamente desenhados em curvas e retas representando aqui, ali e acolá réplicas de ícones da história da civilização: castelos, palácios, estátuas, igrejas, catedrais, chafarizes, arcos e colunas, pirâmides e piscinas, jardins e gangorras – tudo a desenrolar-se na infinita fluência de cada uma das vias dos quadrantes. Não se via, no entanto, uma edificação sequer destinada às funções residenciais, dando a entender que ali não morava ninguém, que as pessoas que andavam de um lado para outro eram turistas boquiabertos, fantasmas da contingência recreativa, autômatos como os rinocerontes de Ionesco, vestidos de seda e algodão, revestidos de basófia e presunção. À certa altura das passarelas ajardinadas, estaquei, apalermado, a perguntar-me a causa e o efeito de tanto farol exibicionista. O diabo é muito fino, pensei. Talvez desconheça o poder dos políticos brasileiros. Ah, sei também que a morte pisa com igual pé na barriga do pobre e do rico – e que o arminho prefere morre a se sujar, o que, igualmente é da natureza das mulheres nas retas e curvas do idealismo romântico. O vidro quebra e não solda, não é mesmo? E no meio da ostentação, logo aparece a confusão dos pagamentos das despesas com dinheiro sujo e frio, as falências e demências, a areia no lugar do açúcar, tudo isso depois dos desafetos e dos desaforos entre os vendedores e compradores das ações em torno dos falsos moedeiros. Deus não é uma padronização, não é onipotente – alguém diz, assoando o nariz. O tapado, que não enxerga um palmo adiante do nariz, é o amante ideal da mulher ciumenta: ele nada vê além dela, em tudo que olha. O insatisfatório e petulante cronista das fanfarras arrivistas não dá um vintém pelas relíquias reais nem pelas réplicas, ali no parque, da estatuária egípcia do tempo de Ramsés II, rei dos reis, que viveu entre os anos de 1289 e 1224 antes de Cristo. Teve oito esposas, entre as quais duas filhas, uma das irmãs e a preferida Nefertari. Naquele tempo a morte não era um fim, mas, sim, um meio, o meio da existência. O corpo humano continha, além das forças físicas e anímicas, a força divina – e toda a prova da vida era preservada pela mumificação do suporte material e o embalçamento das vísceras. Assim estava escrito no ar das adjacências das remotas homenagens a um período luminoso da civilização. Interessante, mas não me interessava, naquele dia aziago. Na canseira das intermitências, desvencilhei-me num átimo e logo estava numa rua paralela, de muros altos e sem edificações habitacionais. As distâncias alongavam-se, desertas, à esquerda e à direita. Na dúvida nem sei qual delas preferi. Comecei andar, sem saber para onde ia e logo deparei-me com pessoas estranhas, ao mesmo tempo aniquiladas e arteiras. Miudei os passos, fechei as feições, disposto a não dar atenção nem travar contato verbal com quem quer que fosse. Mas não conseguia evitar a visão atrapalhada dos homens rombudos e magrelos e das mulheres fugidias e sorridentes. Uma delas andava na minha frente, rebolando. Achei lindo e, ao alcançá-la, constatei, contrafeito, que o rosto dela era outra parte traseira, de nádegas redondas e macias, um implante de rosto com duas faces e a boca, mas sem o nariz e sem os olhos. Na estranheza, senti que estava era delirando oniricamente, quem sabe com a própria morte, ali perto, numa daquelas aléias de um cemitério de pessoas vivas e nuas e silenciosas. Aflito e tentando acordar. Tentando sem conseguir. Dormindo fiquei, dormindo estou. O que vai acontecer, quando acordar?