segunda-feira, julho 27, 2009

A QUARTA DE FUBÁ – Conto

Norvina, cadê o Zé Juca? – Pergunta o Moinho nas vinte e quatro horas do dia-e-noite do relógio despertador. E o Monjolo responde: - Tá no munho! A audição do diálogo da água com a madeira alcança as vivendas da vizinhança, a lembrar que o sítio do Zé Juca produz fubá, farelo e farinha de milho, a granel, para vender e trocar. O Zé Juca é um sonhador em atividade, nas cercanias do Arraial, que aprecia o bom paladar das coisas, dos alimentos, dos fazeres e das palavras. Não subestima nem estorva a liberdade e a felicidade dos vegetais – e até mesmo costuma perguntar a quem dele discorda: quando que um ramo de alecrim ou mesmo o espinho do esporão salta da moita para barrar o nosso caminho ou agredir-nos nas munhecas? Entretanto, noutros pormenores era intransigente: em se tratando de negócios, com ele é assim: vem à nós tudo; ao vosso reino, nada. Seu compadre lá dos Narcisos vem comprar dele uma quarta de fubá e não desmente, mais uma vez, a fama de chorão e de pechinchador. Depois de afirmar que anda ruim das pernas e da cabeça e que não sabe como consegue tratar de sua família tão grande num terreno tão exíguo como o que tem, lá nos Narcisos. “Será que todos de minha família” – ele se queixa, interpretando a tônica da amargura pessoal - “são sempre os mesmos que, uma vez nascidos, terão que sofrer até morrer, e que assim continuarão até à consumação dos séculos?” - Qual o quê! – Ameniza o Zé Juca, medindo o fubá na enorme vasilha de madeira. “Você está chorando de barriga cheia. Não tem medo de Deus castigar?” Ao ouvir o que o vendedor dizia, o comprador nota a fofura do fubá perfazendo uma quantidade bem menor, se estivesse apesoado. E lá do fundo de sua contumaz astúcia roceira, começa a contar um caso. - Ah, compadre, não digo nada. Preparei uma terra de arroz lá nas Itapecericas, que ficou supimpa, só vendo. Deu muito trabalho para esgotar o pedaço do brejo e destocar o chão, mas agora só vendo a beleza que está: uma gema de cultura numa daquelas vazantes do rio. A terra é úmida, mas fica deslinguenta quando enxuga, fica igualzinho a esse fubá... Vai dar até para plantar feijão solteiro, do tempo, na seca. - Conheço o lugar, - responde o Zé Juca. “A gleba é dos filhos do Isaltino, não é? Está plantando à meia ou à terça?” - A colheita do primeiro ano vai ser só minha, do segundo ano em diante vai ser à meia. - Mas aquele terreno, até nas cabeceiras, não está no rol de demandas dos filhos do Isaltino com o Sô Azevedo? - Está. - Então se o Azevedo ganhar, você perde o trabalho. - Toda demanda leva tempo. Até chegar lá, já terei colhido a produção da roça. - O tal de Azevedo é danado, do olho limpo. Sabe que ele comprou, a preço de banana, o Pasto da Lobeira, com as roças e a capoeira da Fontinha e tudo mais, de porteira fechada, da Dona Braulina? - É compadre, mas sem mudar de assunto, o que eu estava dizendo da terra que destoquei é que apareceu por lá uma baita duma capivara (faz o gesto do braço levantado em relação ao piso do moinho, para exemplificar o tamanho da capivara). - E você tem visto a bitela nas imediações? - Não, mas julgo o tamanho dela pelos rastros que ela deixa na terra afofada. Olha só como são os rastros dela. Aí o roceiro dos Narcisos, chamado Antônio Maria, apóia a palma da mão direita sobre a superfície do fubá afofado e diz: “Julgo que ela deve pesar umas duas arroubas. Julgo pelos rastros dela, que são mais ou menos assim (e assim dizendo, ele calca o fubá no vasilhame, até compactá-lo em toda uma superfície, agora de nível mais abaixado. Mas o Zé Juca, que de bobo não tem nada, percebe a artimanha e dá corda às próprias habilidades arremedadeiras, para replicar). - Uma capivara das baitas, puxa! Não seria uma paca? Tem que ficar de tocaia, com a arma de fogo. Se quiser, empresto a chumbeira, com o trato de depois trazer-me um bom naco do lombo dela. Capivara com feijão mulatinho e farinha de mandiocas e couve rasgada, é de lamber os beiços, não é compadre? Os farrapos de nuvens molham os mandiocais. O cavalo morto já está no papo dos urubus? Valerá a pena comprar o barrote do Sandomir? E buscar nos olhos da Anabela a sombra do amor? Mas o que tem a ver a capivara com a sovinice dos compadres? O Zé Juca continua na dúvida do sobreaviso. Já entendeu aonde o compadre quer chegar com a estória da capivara, que é o ser mais confiado dos terrenos alagadiços. É mais uma de suas arapucas, que ele me arma, o safado. O jeito, pois, é contra-atacar. - Aqui em casa a Norvina cismou de plantar uma horta de couve. A coitada pelejou um bom par de luas, mas a horta até hoje não quer vingar. Ela até que fez tudo direitinho, escolheu uma nesga de terra escura, ao lado esquerdo da casa, onde os filhos, quando eram pequenos, costumavam cagar e mijar. Ela cercou os canteiros com pedras arredondadas, de forma que até ficou bonito. Estercou com bosta seca de gado, curtida, deitou as mudas e sementes, aguou, aguou, mas até hoje nada, nada da horta prosperar. - Não entendo porque, compadre. Se ela fez tudo direitinho... - Só porque ela não misturou o esterco na terra, só por isso. Não misturou nem revolveu uma coisa com a outra até bem fundo antes de plantar. O que ela tinha de fazer era isso (e dizendo lança as mãos no conteúdo da quarta de fubá, e esgaravata da superfície até onde os dedos alcançam, assim afofando inteiramente o produto na medida, até que o mesmo suba ao nível anterior ao calcamento astucioso do compadre). Momentos depois, subindo o Morro do Esbarrancado, com o saco de fubá nas costas e a capanga de laranjas num dos braços, o Antônio Maria sacudia a cabeça, pensando que no sítio do Zé Juca até os mortos devem capinar as roças e bater os pastos, pois que eles não comem nem bebem, nem dão outras despesas. Ele é o compadre que fuma no escuro o cigarro apagado, não dá nem bom dia de graça e não come a banana para não ter que jogar a casca fora. - A coisa é feia! – Alguém grita na rabeira do eito da roça de milho do Zé Camilo. - É feia, mas é boa! – responde quem está capinando na dianteira do sitio. Tem gente que não dá sossego à própria sombra – pensa o comprador de fubá, todo suado no caminho de casa, a procurar um toco ou uma pedra na sombra da estrada para descansar um pouco seu futuro cadáver.