domingo, janeiro 10, 2010

DOIS PATINHOS NA LAGOA II - Conto

Procure fazer o bem através do corpo, como ensina a Carta aos Coríntios – assim pensava o cego Nadico, sentado no banco do alpendre contíguo à Venda do Toniquinho, na tarde domingueira do Arraial. Mas o que o corpo pode fazer além de dançar, jogar e trabalhar? Pode ser bonito, ora essa! – Assim ele ia seguindo nos caminhos do pensamento, ele que tinha sido roçador de pasto e sacristão da Matriz. Eta mundo velho sem porteiras! – Ele suspira. Deve estar passando alguma moça bonita lá fora, dá para sentir o perfume dela e ouvir os passos cadenciados e perceber a renovação ambiente de nova sortida de oxigênio. É beleza só, a bondade vem ai. Se a clareza não vier do escuro, de onde virá? Nisso lembra que nem sempre foi assim, que passou de uma infância serelepe a uma mocidade encurtada no casamento – e a cegueira veio depois do murro que levou do tal de Alalaô, conhecido como o Coice de Mula do Arraial. Foi um soco ou uma pedrada bem no meio da testa? Uma facada ou um tiro de garrucha? Caiu desacordado no chão da rua, tão desfalecido que ninguém dava nada por ele, os sentidos já no outro mundo – e quando os recobrou, estava cego e desconjuntado como um traste velho de casa abandonada. Assim ficou com os filhos nas costas, cinco numa escadinha de dois em dois anos, o caçula (o Neguinho) ainda no colo da mãe, a sua Rosalina dos trabalhos dobrados, agora lavadeira de roupas e buscadeira de lenha para os outros moradores das duas ruas do Arraial. Teve que vender o pequeno sítio do Lavapés, mudar para o Beco do Buracão, e espremer a família na exigüidade do casebre de taipa. Depois que a renda do que vendeu exauriu, o jeito foi esmolar na rua, guiar a cada ano por cada um dos filhos, até se fixar nas mãos do mais paciencioso, o Neguinho. Mas o mundo é grande – ele pensa. É grande porque é vivo, e o que é vivo cresce e aparece. O próprio Arraial tem crescido cada vez mais. Olha só como a Venda está cheia – ele se diz, pensativamente. Sei que está cheia por causa da conversação que ouço daqui. E o salão dos fundos da Venda, também rente ao alpendre comprido, está cheio de gente jogando víspora. Ouça só como a Esterlina canta as pedras na capanga: “dois patinhos na lagoa...O peso do João Candinho...Um cagando e outro espiando...Estrada de ferro...Chapéu de Padre...Dois ovos de égua...”. E, além disso, o adro da Igreja do Rosário está repleto de meninos jogando bola de borracha, e de marmanjos desocupados açulando a meninada, os de um time contra os do outro time, como se fossem dois bandos de guerreiros. Ouça um pedaço da zoeira deles: “Mete a bicanca na redonda, Didi! Não sabe cabecear, Remundinho? Só tem cabeça para pôr o gorro de meia? Esse Zezinho aí nem sabe onde passou a bola! Cinco minutos de tourada, Bordoega! O cotovelo na cara, Fiínho! O joelho na barriga, Mané Padiola! O pé na bunda, Zazá! Do peito para baixo tudo é de chutar, Zé do Bento!” Ah, ele torce o nariz, a pensar mais do que a ouvir. Quando o homem se afasta de Deus, é aí nesse momento que Deus chega mais perto dele. O dragão vai mesmo engolir a lua no sertão do Abaeté? Lombinho assado ninguém vem oferecer na porta da gente. O rosto da multidão, lá dentro ou lá fora, é sempre múltiplo. Nem consigo lembrar-me direito das feições do meu Neguinho: passo as mãos no rosto dele, no corpinho magrelo, vejo que é um menino normal, graças a Deus, bem feitinho em tudo, mas... Às vezes implico com esse apelido dele, de Neguinho. Por que será que o ganhou? Será depreciativo na opinião pública ou simplesmente carinhoso? A cor dele estará mais para preta do que para branca? Saiu me puxando, que sou um pouco moreno no rosto e nos braços, já que a mãe dele é branquela como leite dentro de um balde. Ah, deixa pra lá! As neuroses, uma vez contraídas, jamais serão varridas. Sendo cego não posso carregar orgulhos nem preconceitos, não posso sequer pregar os olhos no chão, e se me zango com isso ou com aquilo, arrependo-me logo. Ninguém gosta dos pobres, nem mesmo Deus – e por que Ele fez tantos neste Arraial? Mas ter que pedi esmola é o fim da picada, pois só a cabeça erguida acerta nos atalhos. Ah prefiro ouvir a Maria Chiquinha cantando as pedras do víspora na sala grande do que ficar pensando asneiras: “Pingo no pé, seis é...Bate-estica-puxa-e-rasga... A pedra noventa é a vovozinha...”. E de lá do adro vem a gritaria na rinha de galos que agora virou a pelada do jogo de bola: “Ô Escangelado, leva o pé na bigorna do Nervito! Ô Juizinho ordinário, engoliu o apito?!” Seu silêncio visual rastreia imagens e ações na tarde interminável, seguindo ora de perto, ora de longe, as reverberações pensamentais. A palavra tem a vida da planta, ninguém sabe onde vai parar depois que sai das mãos ou da boca. Ele agora apura os ouvidos para captar os sons vindos do adro da igreja (alguém mencionou o nome de seu filho no xingatório?), ali mesmo em frente, onde os amadores do futebol presenciam a pelada dos meninos da rua de baixo contra os da rua de cima. Ouve, ao mesmo tempo, os outros sons vindos do salão de dentro da casa do Toniquinho, onde as moças e rapazes jogam víspora, cantando as pedras através de símbolos e metáforas comuns a todos: “Bengala de cego – Catarro, farinha e leite – Violão sem braço – Esturricou mas não rachou...”. Ainda por cima ouve as vozes vindas da Venda, uma algaravia às vezes desconexa, da qual apura alguma intelecção inobscurecível das pessoas que batem o papo enquanto saboreiam a caninha do alambique do Liandro e os pitos de fumo de rôlo das outras Vendas do Arraial. Ah, ele pensa: o dom gratuito das efusões populares, o condão que alicia e propaga as reflexões, as seduções orais nos fios da trama, a boca fica sendo o centro da vida: a fala, a pinga e o desejo: é um entra-e-sai que não acaba mais. Mas não há de ser nada, ó maledicência dos importunados! O Neguinho, seu filho está entre os jogadores, enxerta o time dos meninos da rua de cima, que não tinha quem jogasse no gol, a posição mais ingrata do futebol. Encostado à parede, no banco ao fundo do alpendre, cigarrando e cuspindo no canteiro de flores, ele visualiza o quadro vívido e tridimensional do adro, da venda, da sala, a saber: 1) os apelos e apelidos gritados pelos torcedores entusiasmados; 2) o fraseado contextual dos fumadores e bebedores na Venda; 3) a cantação enfática das pedras do víspora, sacolejadas na capanga. Mais ou menos assim: 1) “Mete a mutamba, Mulatinho! Amarra um barbante na bola, pé torto! Perdeu o rumo do gol, Vandinho! Isso, Valdir, finta pra lá e pra cá, quebra a espinha dele!” 2) “Dois patinhos na lagoa... A idade de Cristo ... Sosinho e sem carinho ...Sá Chica e Sá Chiquinha...”. 3) “Quando cheguei diante da porta da casa e chamei “ô de casa!” – Ele já veio com o destampatório, pensando que ia me assustar. Está aí o Pedroca que não me deixa mentir. Desaforo pra casa eu não levo mesmo!” O Bileu da Norica do João Candinho está ganhando uma vez atrás da outra. A todo instante ele diz: “fiz um duque”. E depois: “um terno”. E em seguida: “amarrei!” E depois que todos perguntam: “Já?” Ele diz: “Canta a boa, Deverina, que hoje estou com a corda toda”. É o tal negócio – o Nadico monologa, mais uma vez: “bem dito o ditado que diz que quem é feliz no jogo é infeliz no amor. Todos sabem que no sábado passado, ele perdeu a Leda do Juquita para o Juca do Sebastião Neném, que voltou da guerra com o peito coberto de medalhas.... É assim mesmo: no intervalo que a vara sobe e desce, as costas do pelado folgam. Até eu já fui sortudo, quando era criança (quem diria, naquele tempo, que eu um dia ficaria cego e viraria um pedinte?). Lembro como se fosse hoje: estava na porta do Sô Ziquinha, com meu pai e minha mãe (num domingo depois da missa), quando o Mouzar chegou correndo, a dizer ao meu pai e à minha mãe: “O Nadico tirou o binóculo do Joaquim Tavares!” Eu? Eu tirei o binóculo do dono da padaria? Aquele que ele trouxe de Belo Horizonte na Feira das Exposições? Eu não, pai! Eu não, mãe! Mas o que tinha acontecido era a pura verdade: mamãe tinha comprado o bilhete da rifa em meu nome, sabendo de minha sorte, e ficou bem caladinha até o dia do sorteio. O binóculo era verde e pesado, cheio de caracteres e nomes estrangeiros, era dos bons, dos melhores – e com ele a gente podia ver lá no fim da rua a turma de conversadores na porta da Venda do Totonho: dava pra ver até os olhos e os dentes das pessoas e saber se uma delas estava rindo, xingando ou apenas falando. Se a gente subisse na torre da Igreja Matriz, dava pra ver as quatro lajes que demarcavam a extensão do patrimônio paroquial: a do Quinzinho da Barra, a do Barreto do Bom Sucesso, a do Lavapés e a da Lavrinha. E podia ver de tão longe a brancura no mato das igrejas da Estiva ao sul, da Bocaina ao norte, do São Bento e da Bemposta nas outras extremidades. Mas o Nadico depois que cresceu e casou, perdeu a sorte que tinha, ficou cego de tudo e hoje não passa de um mendigo (muito estimado e respeitado no Arraial, mas mesmo assim, um mendigo). E lembrava do que ganhava no víspora daquele tempo e também na porrinha, no jogo dos pauzinhos de fósforo, nas rifas, nas apostas dos jogos de malha e de bola de capota. E a sorte nas pescarias? Pegava os maiores peixes, encontrava as melhores frutas no mato. De tudo que ganhou, gostou mais foi do livro chamado “Manuscrito”, com a estória “A Última Corrida de Touros em Salvaterra”, uma beleza, uma chave abrideira do mundo, uma vara de condão que o levava, como que por encanto, além dos mares e oceanos para o clima dos vinhedos e das mulheres de seda e pérolas, lá das Europas. Aos poucos, ele agora cabeceia sob o efeito do fumo forte do pito de palha e do gole de pinga que o Didico trouxe da Venda. As vozes vinham assim mais baixas e de vez em quando ele recobrava o ânimo e novamente se inteirava do que acontecia naquele palco tridimensional. Na sala ao lado, a cantação das pedras: “cabeça para baixo, pé para cima”; “barba, cabelo e bigode”; “o que o tonto não faz com as pernas”; “dois machados no pau”... E lá da rua, os gritos da torcida futebolística: “limpa a área, Tiriziu!” “Ô fôrma de fazer capeta!” “Ô bicho de matar com pedra!” “Pede pra sair, Juquinha!” E no cômodo da Venda contam agora a desdita do Dico Ventania, escornado na sacaria de arroz e feijão, do lado de fora do balcão: “Esse aí está num fogo de fazer dó. E vai beber até abotoar o paletó de uma vez por todas”. Põe a mão na testa dele e vê. Tem cinco dias que sua vida é só beber e soltar foguetes. Nunca vi um fogaréu assim na minha vida”. Ele baquiou desde que a mãe morreu. Chorou duas semanas, depois vendeu a chacrinha da Tenda, pagou o que devia e o resto do dinheiro foi todo para comprar foguete e cachaça. Quem já viu uma desgraça maior que esta neste mundo? Se está sem comer há muitos dias, só bebendo, e agora a queimar de febre, ah! É sinal que a coisa não anda boa pro lado dele. Vai acontecer o que aconteceu comigo: ou morre sem ver ou passa a viver na caridade pública (e assim pensando faz o sinal da cruz, erguendo o rosto na direção da Igreja do Rosário). Hoje, quando lembro de certa quadra de minha vida é que vejo como era bobo naquele tempo da cabeça desmiolada. A boa lágrima é a que chega quente da escuridão (ele boceja novamente, depois de abrir os olhos cegos). A lágrima abre ângulos de água no círculo de ferro, aproxima os devotos de novas encarnações... Ás vezes chego perto do sol frio e aliso as arestas de luz... Peço agora as boas graças da Virgem Maria, Mãe de Deus, a favor do pobre Dico Ventania... No adro da igreja as vozes gritam: “asso no dedo se fizer gol, Mulatinho! Ô filhote de cruz credo, ô colchão amarrado, ô cara de broa mal amassada! E olhaí o Neguinho Frangueiro: está cego que nem o pai?!” “Isso não!” O Nadico exclama no alpendre, levantando-se do banco. “Estão xingando meu filho. Se eu não o defender, quem vai defendê-lo?” Apóia-se na manguara, ensaia alguns passos... Mas o que adianta de sua parte estrilar? Senta de novo, a coçar, a pigarrear, a cuspir. Um cachorro late no quintal de uma das casas próximas e outro responde na rua de cima. O Didico bem que podia trazer mais um gole de pinga... Ainda bem não tinha acabado de desejar e lá vinha o rapaz com os dois dedos de pinga no fundo do copo. “Esta foi o Orades que mandou. Ele vai para São Paulo, trabalhar na Usina Junqueira – e está pagando a rodada”. Lá fora de sua pessoa e de seus olhos os três palcos continuam cheios de vida na tarde domingueira do Arraial: “Ô pau de fumo, tição apagado! Vai ser ruim de bola assim não sei aonde, Tué! Destronca o braço ou a perna do Gabiroba, Terinho! Mete o sarrafo no Pustema, Miguelinho!” No víspora chegou a vez da Licinha cantar as pedras, com sua voz de alto sussurro, se assim posso dizer: “Dois patinhos na lagoa...Um que pinta o sete...O dedo e o anel...Orelha de mico...”. “Deu aqui!” A exclamação era novamente do Bileu, beque famoso em toda a redondeza (que morreu solteiro, ainda novo). E lá da Venda as vozes agora mudavam de tom: - Gente do céu!... Olha o que aconteceu com o Dico!... - O quê, Zéprequeté? - Acaba de exalar o último suspiro, ali deitado no saco de feijão. - Está dizendo que... - Que ele bateu as botas, está mortinho da silva. - Nossa Virgem! Está mesmo. Vai, Xandico, chamar o Padre Benjamim! - Nossa Senhora! Está morto mesmo. Já endureceu as juntas, está com os beiços roxos... Como não vimos na hora? - Aqui, na nossa presença...acontecer o desenlace... - Ela veio de repente que nem uma bala silenciosa. Coitadinho dele, era tão boa pessoa.... Morreu que nem um passarinho... - Vamos então soltar os foguetes que estão na capanga dele... - Cala essa boca, bobão! - Foi o último desejo dele... Você não sabe? - Foi mesmo. Ouvi ele falar desde antes de ontem. - Ele reservou três dúzias na capanga para serem rebentados na hora que morresse e mais três para a hora do enterro. Em menos de um minuto os fogos explodiam no ar entristecido da tarde arraialense – e muitas pessoas, ao longo das ruas pensaram que no futebol dos meninos o time da rua de cima tinha ganhado a partida do time dos da rua de baixo. Mas o jogo acabou antes da hora marcada, na falta de graça da morte do Dico, que ainda ontem tinha pagado uma lata cheia de balas para a meninada – e fez galinha gorda das balas ali mesmo no campinho do adro, na maior alegria, enquanto soltava dúzias e dúzias de foguetes de rabo e de tala.