sábado, julho 17, 2010

SONHOS REPETITIVOS

Meu primeiro e longo período de sonhos repetitivos foi o das intermináveis e volumosas enchentes de dois rios emendando-se e inundando toda uma região, alagando e até mudando a paisagem de serras e matas, esparsas habitações e plantações roceiras, formando um lago quase marítimo em movimento de corredeiras avassaladoras. Acordava apavorado com o estrépito das águas avançando nas pedras e no arvoredo, derrubando e cobrindo tudo que encontrava na frente e nas beiradas. Atônito ao despertar, demorava a recuperar a tranqüilidade e reconciliar o sono. Lembro-me que só consegui dissipar a neurose muito tempo depois, quando descobri que a significação da enchente seria a representação onírica da destruição definitiva de uma paisagem na qual vivi os anos que deveriam ter sido os melhores de minha vida, apesar do sentimento de exílio (in)voluntário que então me acometia. Passei o que deveria ser a fase áurea de minha juventude (dos 19 aos 24 anos de idade) num acampamento das obras de construção da (na época, década de 50) a maior usina hidrelétrica de Minas Gerais, exercendo as funções de encarregado do laboratório de concretagem, depois a de auxiliar de escritório, depois a de chefe da seção do pessoal, acrescida da de controlador de uma agência de táxis aéreos e, além de tudo, nas horas vagas, jogar futebol (quando aprendi a chutar com o pé esquerdo) e projetar filmes em sessões noturnas ao ar livre das diversas vilas dos trabalhadores das obras. E lia a Bíblia, a História da Civilização de Will Durant, muitos bons autores de poesia e de ficção. E era correspondente do jornal da Empresa e mantinha contato e de certa forma participava do movimento literário de vanguarda da chamada Geração Complemento, de Belo Horizonte. Descrevi em detalhes todo o arrasamento daquela região quando, muitos anos depois, escrevi o romance (ainda inédito) BARRA FUNDA, o que certamente representou uma espécie de purgação da experiência de ter ficado, sem a imensa e demorada paisagem da juventude, quando as barragens em dois grandes rios foram fechadas – e toda a região onde vivi virou a paisagem líquida de uma espécie de mar fluvial. Sei não, mas parece que representava para mim, instintivamente, uma referência como se toda a minha juventude tivesse sido anulada, varrida de meu mapa existencial. Passei a sentir, depois da escritura do texto, um certo alivio mental, uma espécie de limpeza psíquica – e assim a algaravia onírica que me acometia cessou – e voltei a dormir normalmente o sono dos justos e inocentes. Passado muito tempo, outra chusma de sonhos repetitivos voltou a incomodar-me. Começou quando iniciei, já no começo deste século a pesquisar os dados de minha ascendência , um trabalho genealógico que tem começo mas geralmente não tem fim. No decorrer do demorado trabalho passei a sonhar com paisagens completamente desconhecidas de minha extensa e salpicada vivência em lugares e cidades diferentes. As paisagens da região sonhada eram sempre as mesmas, localizadas no meio rural, desbastadas pela mineração e pelo desmatamento, repletas de descuidadas estradas, cercas de arame farpado, valos, águas paradas e correntes, porteiras e tronqueiras, barrancos e erosões em toda parte. Em toda a parte a profusão de gente estranha, feia e mal vestida, com a qual tento informar-me sobre o que procuro, que eu mesmo não sei bem o quê. Tudo muito estranho e desestimulador. Atribulado diante da impossibilidade de identificar e definir as personagens e as paisagens, desanimava-me às vezes sem saber explicar o poder onírico que possuía de, assim, inventar pessoas e lugares. E assim chego ao ponto de invocar a preocupação que sempre tive a respeito de um certo mistério da vida de alguns antepassados, principalmente meu pai, que faleceu quando eu completava seis anos de idade, deixando-me com três irmãs e minha mãe, que tinha sido a terceira esposa dele. Com a primeira teve uma filha, que faleceu há pouco depois de completar cem anos de vida. Com a segunda não teve nenhum filho, mas criou com ela sete órfãos, da infância ao casamento de cada um deles. Soube que levou uma vida movimentada, trabalhosa e criativa (era homeopata e zelador da igreja e lia os livros que deixou, não só em língua portuguesa como em latim e francesa) e, até mesmo romanesca. A mãe dele, minha avó, que cheguei a conhecer e que viveu mais de cem anos, nunca saiu de minha lembrança. A vida dela permanece envolta em lendas e difusas indicações genealógicas. Teria sido encontrada (perdida,na infância) num dos caminhos dos tropeiros do antigo Japão Grande, hoje Carmópolis, recolhida e levada e entregue ao meu bisavô, patrão dos tropeiros que levavam toucinho e carne salgada, rapaduras e cachaça para a cidade portuária de Paraty, estado do Rio, de onde traziam para o antigo Arraial do Desterro (hoje Marilândia), produtos importados (tecidos, remédios, querosene). A menina, Maria Tereza de Jesus, depois de crescida, casou-se com o filho de meu bisavô que a criou e do enlace deles só teve um filho, meu pai. Tentando desvendar a veracidade ou não da origem obscura dela, acabei constatando em dados inventariados em cartórios e livros e informações de outros pesquisadores que ela seria neta de uma das irmãs de Tiradentes, cuja família esparramou-se nos sertões mineiros, fugindo das penalizações que atingiram os inconfidentes e familiares. Como até hoje não consegui elucidar o mistério, fico “viajando”, constantemente, em sonhos pelos caminhos antigos e ignorados, como disse, encontrando pessoas antigas e ignoradas, na esperança de chegar a uma conclusão satisfatória e definitiva, que no próprio sonho não seja qual seja, mas que, lucidamente penso que assim poderei (quem sabe?), esclarecer as nebulosas origens de minha querida e saudosa avó, que já mereceu de minha parte um conto: “A Velha a Fiar”, ainda inédito. Estive pensando se a obra de Freud pode explicar essa prerrogativa onírica de um subconsciente tão ativo assim, com o poder de inventar e projetar estórias com os respectivos cenários e personagens, dando aos sonhos uma espécie de vida fictícia e ao mesmo tempo autônoma. Sei que a atividade onírica tem sua própria funcionalidade, segue uma trajetória de aventuras, lembranças e premonições, independentemente da vontade lúcida do sonhador. Este, quando acorda, lembra as peripécias vividas oniricamente, pode até espantar-se com o realismo do que involuntariamente viveu em sonho, na escuridão do silêncio. Mas qual é o elo que liga a realidade ao sonho? O que ocasiona um sonho e não outro na infinidade de vivências anteriores? Vamos ver se Freud explica. Através de Jean Paul Sartre ele diz no livro “Freud, Além da Alma”, que muitos portadores de neuroses (e quem não é?) “são perturbados por forças psíquicas de que não tem consciência. O inconsciente é real, tirânico, mas é de natureza imperceptível”. Age nos bastidores da vida humana. Todo sonho quer dizer alguma coisa a quem sonha: é uma neurose pequena, segundo Freud. É “uma solução conciliatória entre a vontade de dormir e um desejo profundo que quer se satisfazer”. Assim ele acrescenta no referido texto sartriano. No capítulo “A História do Movimento Psicanalítico (do livro PENSADORES, editora Abril Cultural, 1994, São Paulo, SP), página 118, o próprio Freud explica: “Os sonhos trazem à tona recordações que o sonhador esqueceu, que lhe são inacessíveis quando está acordado(...). Além disso, os sonhos trazem à luz material que não pode ser originado nem da vida de quem sonha nem de sua infância esquecida. Somos obrigados a considerá-lo parte de “herança arcaica” que uma criança traz consigo no mundo, antes de qualquer experiência própria, influenciada pelas experiências de seus antepassados”. Explicação cabal, não? Mas vale continuar pesquisando.