quinta-feira, setembro 02, 2010

VALSA NEGRA E INFERNO

O campo da literatura é incansavelmente fértil, tanto na reprodução como na criação de novas espécies vivas. Vira e mexe o leitor atento descobre os novos autores de espécies diferenciadas de flores e frutas nessa jardinagem infindável. É o caso da floração das belas e importantes obras de Patrícia Melo, ficcionista brasileira de primeiro mundo. Tenho em mãos, intensamente lidos, os romances VALSA NEGRA e INFERNO, publicados pela Companhia das Letras, SP, em 2003 e 2000, respectivamente. O estilo, em “Valsa Nega”, lembra Philip Roth (ela até o cita na página 37), na desvairada concatenação dos meandros e caminhos da vida contemporânea. Sabem mascar muito a goma antes de saborear e engolir. Ambos circulam airosamente nos circuitos internos das vivências individuais contextualizadas socialmente. O personagem central do livro de Patrícia (um músico do tipo dos sequiosos Vinicius de Moraes e Raul Mascarenhas) sabe que não terá paz depois de casar-se com uma mulher trinta anos mais jovem, comparando-se a um personagem shakespeariano que dedicava cada um em três pensamentos ao seu túmulo. Ávido e truculento ele faz de sua parceira, ao mesmo tempo, uma vítima e uma algoz de sua lubricidade. As cenas eróticas são bem dosadas, devidamente envolvidas do toque feminino refinado e veraz. O parceiro se felicita, sabendo de que nada valeria outras qualidades inerentes como a memória e o talento se o tesão faltasse ou escasseasse. Assim, vivendo às turras entre o prazer e o desgosto. Na luta íntima, sem trégua, de sua individualidade ansiosa, ele merece da amada a dureza de algumas verdades: “você odeia todo mundo. Odeia minha mãe.... Odeia minha avó.... Você de costas para o mundo, o mundo de costas para você....Esse é o seu projeto de vida”. O mal dele é depois diagnosticado pelo psiquiatra: transtorno obsessivo compulsivo, TOC, - interpretando suas arengas amorosas, e citando Freud: “a vida da mulher dele era um inferno”. Um livro de leitura prazerosa, no qual a sexualidade expostas em muitas páginas está muito bem revestida de legitima sensualidade. Na leitura do romance “Inferno” há, também, muita sexualidade, mas pouca sensualidade. O cenário das favelas cariocas é contundente – e os personagens (traficantes e usuários de drogas e suas vítimas) estão mais para o sentido animalesco do que para o humanístico. São violentos, incultos, chefiados por criminosos descarados, convictos da própria vilania. O que me impressiona é que a autora enfrenta a dureza temática com muita naturalidade, notável acuidade e talento. Consegue coesão, perfeita conexão do viés sociológico do quadro realístico com o viés literário do quadro romanesco. O enquadramento das partes é perfeito, a montagem dos pormenores caóticos num conjunto de aceitável credibilidade, é lúcido e cativante. Documento e arte ao mesmo tempo? A autora organiza a bagunça dos dados, emparelha a disparidade, aglutina as aversões, neutraliza o mau gosto da pornografia, atenua as menções nuas e cruas, entende do riscado machista, sabe manter a lisura, a imparcialidade, a desenvoltura de uma narradora de nervos de aço diante do infinito miserê do cenário e dos personagens. É assim mesmo, creio, que deve ser um realismo legível copiado de originais quase ilegíveis. Os personagens evocam a significação do dito popular “dema a dema não tem escolha”: todos são uns putos. Os amigos e companheiros de cada um vão se estranhando porque se vendem a quem der mais – e todos têm seus preços estipulados nas respectivas habilidades operacionais exigidas pelas circunstâncias dos embates entre os bandos e as facções. O dinheiro faz a coragem e o medo dos contendores. Por qualquer “dê cá esta palha”, é tiro e queda – e era uma vez o amigo provisório e ou o traidor de circunstância. Vislumbra-se ao longo da leitura a ineficácia do combate à criminalidade, tendo em vista a comunhão entre os transgressores e os repressores: uma espécie de coabitação ambiental, de reciprocidade não declarada, mas quase espontânea. Toda ação repressora, por mais enérgica que seja, é sempre apenas contingente, nunca definitiva. Quem é preso logo volta da prisão ou, se não volta, fica mexendo com os pauzinhos lá dentro, instruindo e predominando nas ações dos asseclas do lado de fora. Se alguns são banidos (mortos) nas refregas entre os bandos, logo outros, que já ambicionavam e aguardavam, assumem as lacunas. Um personagem que matou outro alega que assim procedeu porque o outro estava de braços dados com o demônio. E a mãe do desalmado José Luís, afirma na página 272 que “o demônio quando vem, vem disfarçado”. Subir ao mundo pavoroso da favela é como descer ao inferno e testemunhar os mínimos detalhes da Crueldade. O final impreciso: “José Luis subiu lentamente o morro, sem saber exatamente o que fazer, os cachorros na frente, latindo”. Calha bem na tessitura do contexto recheado de violências e ações e de situações. Fico pensando como e porque ela escreveu um livro tão escuro e pesado, sendo uma pessoa normal e escolada.... Escreveu porque, como o Dante da divina comédia, é uma pessoa atirada, persuasiva, talentosa, escritora de mão cheia.