quarta-feira, agosto 04, 2010

PARATY E VENEZA

O romance, “Ana em Veneza”, de João Silvério Trevisan (Ed. Record, RJ, SP, 1988), é uma bela tentativa de biografia fictícia do músico e compositor Alberto Nepomuceno, com a mesma extensão e profundidade dos romances-rios de Thomas Mann “Montanha Mágica” e “Doutor Fausto”, mas sem o mesmo equilíbrio de continuidade romanesca, dispersando-se ao longo das 650 páginas em prolongados pormenores fora do clima contextual. Os retratos que traça do músico e da ex-escrava Ana são memoralisticos, o mesmo não acontecendo com os da Júlia, mãe brasileira de Thomas, genial autor, também, de “Morte em Veneza”, que inspirou o belíssimo filme de Luchino Visconti. Em “Doutor Fausto” e “Montanha Mágica”, o que era um mundo e muitas vidas, ficou como herança e assim atravessa o tempo, permanece como um presente, nos dois sentidos: um donativo e uma atualidade. Mas o nosso Trevisan é hábil na utilização do monólogo interior, dando aos fatos históricos as feições legitimamente literárias, aproximando-se, às vezes, da argúcia de James Joyce, em “Ulisses”, obra prima marcante em toda a modernidade literária. Considerando a extensão do trabalho, tive que intercalar a leitura com outros afazeres e outras leituras, o que resultou na descontinuidade de impressões e anotações. Até à página 44 senti o mesmo enfado que o músico diz do público que não aplaudia a execução de suas óperas. Sempre acreditei que encher lingüiça (como se diz) em literatura tem que ser com ouro e não com a moeda comum. Da página 53 à 90 o autor muda o tom e a cor, melhorando a escrita e sua leitura. A vivacidade da paisagem rural e o retrato comportamental das crianças nos arredores da casa grande e da senzala, são de vigorosa vivacidade. A leitura fica mais ágil e conseqüente. A partir da primeira centena das páginas, a leitura parece fluir em painéis e aquarelas em lugares e tempos simultaneamente airosos e problemáticos: a ladainha das moças, o preconceito racial, a vida animal na roça fechada, a defesa da dignidade humana, as críticas acerbas à obra de Carlos Gomes, a menção abolicionista de Joaquim Nabuco, as invectivas de Tobias Barreto, a grandeza de Beethoven – e as regiões ainda inexploradas da linguagem musical, e o quadro assustador completamente desarticulado de nosso eternamente incipiente país. Mas a partir da parte final (página 607) surge a bem amada e castigada Veneza, considerada então a cidade da beleza e do descuido. E também a opinião de um personagem que a obra de Wagner é apenas um ruído, e que o nazismo alemão já estava no ar – e que o nosso país caótico é a indefinição personificada. Depois Veneza e mais Veneza vem redimir a desolação de outras paisagens. E logo surge a opinião transparente de que o moderno não mata o sublime, apesar de uma vanguarda exaurida, que estava parindo um monstro no estômago azedo daquele tempo. Depois surge o milagre de uma verdadeira exclamação: Bach! A morte e a vida representadas numa aristocracia egoísta... Ah! Mas não longe dali pairavam asa licenças poéticas de Mozart... Até o inferno com ele, seria delicioso? O amor é um pássaro rebelde? Chegar em Veneza é como entrar num sonho? Eu, que por amor de meus filhos e de minha esposa já fiz três grandes e belas viagens ao estrangeiro, encontrei em Veneza um elo perdido, a renovação de um velho mundo, a arte luminosa de uma espécie de espelho de enigmas. Pela persistência na leitura e o apontamento de cenas captadas em câmara lenta, nota-se que o livro é bom, que a leitura torrencial recompensa. No conjunto salienta-se a primazia, como presença, da ex-escrava Ana, tanto no começo da vida e do romance em Paraty quanto nas andanças pela Alemanha e no paradeiro e morte em Veneza. Eu, que esperava uma presença ampliada de Júlia Mann, a brasileira, mãe de Thomas Mann, tenho que perdoar o autor pela parcimônia no tratamento de sua importância como mãe de um dos melhores autores de toda a história da literatura. Mas reconheço, sobejamente, que as figuras humanas (de certa forma e sob certo ponto de vista, transcendentes) do compositor Alberto Nepomuceno e da escrava Ana em seu périplo no Brasil, na Alemanha e em Veneza, foram condignamente retratadas.