quinta-feira, dezembro 07, 2006

FIAPOS DA INFÂNCIA

I – O Quintal. A frente do terreno era ocupado por um conjunto de quatro casas, um paiol, um pequeno curral, um pequeno jardim. A casa em que morávamos ficava no meio, dotada de alpendre ao lado do pequeno jardim e de frente para a parte ajardinada da rua. Tinha oito cômodos e um porão e aos fundos, além do terreiro de secar café começava a parte mais frutífera do quintal, logo abaixo do galinheiro, do chiqueiro, das parreiras de uvas e de chuchu. Num dos lados, a casa que mamãe alugava para sediar o Posto de creme recolhido das fazendas regionais, que depois de analisado e classificado era expedido para a fábrica de manteiga em Oliveira. Do lado esquerdo ficava o casarão dos avós paternos – e aqui abro um parêntesis para dizer que o avô poderia ter sido o homem mais rico do arraial, primogênito que era do homem mais rico do Distrito, que era por sua vez o primogênito do homem mais abastado de toda a região, no período de 1820 a 1870. Mas o meu avô não era muito pragmático nem ambicioso: deixou que alguns dos irmãos ficassem com a maior parte do espólio, sabendo que era pai de apenas um filho (meu pai) e que a descendência dos outros irmãos era bem mais numerosa. O casarão impressionava. Minha mãe (já viúva quando eu tinha apenas seis anos de idade), depois do falecimento da sogra (minha avó) costumava alugá-lo nas festas anuais da Semana Santa para até oito famílias de roceiros distanciados do Arraial. Tinha um cômodo de comércio na frente, ao lado de ampla sala de visitas, um corredor escuro ladeando as entradas dos inúmeros quartos, até vazar na ampla sala de refeições , anexando a dispensa e os armários e guarda-louças, tendo ao fundo uma enorme cozinha de fogão à lenha, com suas gamelas, pilões, peneiras e demais instrumentos domésticos e caixas para armazenar cereais e um porão logo abaixo da escada de pedras com toda a amplitude de uma antiga senzala. A quase certeza que tenho é que a casa pertencera ao bisavô, que casou duas vezes e que criou onze filhos. E que quando o trisavô faleceu em 1887, deixando também muitos filhos criados e dispersados, além de dezenas de escravos, meu avô ficou com o casarão do pai e este com o do pai dele, que era muito maior e muito mais burilado. O quintal exuberante era uma beleza, um reino de folgança da meninada (eu, as três irmãs e as dezenas de primas e primos e colegas de escola). Dividido por muros de pedras dos dois lados e de um valo nos fundos, transformado em espessa grota de cipós e árvores, algumas frutíferas (baba de boi, cagaiteira, gabiroba, araçá e até mesmo um estranho pé de azeitonas). Era constituído de duas partes essenciais: a que ia dos limites da rua até à metade do terreno, área essa reservada ao bem cuidado pomar. Na outra metade, que culminava no valo dos fundos, vigorava o descampado para a roça de milho e de outros cereais. A primeira parte era toda sombreada pelo arvoredo com as folhas como que emendando nas grimpas das árvores sistematicamente cultivadas de forma heterogênea: os grandes pés de laranjas (campista, azeda, serra dágua, baia e a chamada “da terra”, além das laranjinhas capetas) distanciavam-se uns dos outros de tal maneira que se a cambada dos predadores atacasse um deles, a doença-e-morte ficava apenas nesse um, pois ela, a manada dos hospedeiros maléficos morreria no percurso antes de chegar ao outro pé da mesma espécie. E assim acontecia com o esparramamento dos pés das outras espécies, menos com as bananeiras e os cajueiros, que só viviam próximas umas das outra. Mas as goiabeiras, limas, limões, cafés, pitangas, jambos, uvas, jabuticabeiras, mangueiras, coqueiros, mexeriqueiras, abacates, marmelos, tinham que ficar eqüidistantes, infensos à contaminação. E nas beiradas do espaço do quintal e em lotes específicos vicejavam as latadas de orapronóbis, de chuchus, de maracujá, os pés de mamonas, de ervas cidreiras, de amor-deixado, alfavacas , e a chamada horta de couve com todo seu repertório comestível. Na parte de baixo (a metade do terreno, mais ou menos) vicejavam nas épocas propícias de todo ano, o milho (inclusive o chamado catete, de pequenas espigas, de pipocas), o feijão das águas e do tempo, a fava verde e seca, as morangas, gilós, quiabos, abóboras verdes e maduras, a cana caiana para chupar em gomos, a mandioca, a batata -doce, tudo enfileirado nas alas em curvas de níveis, cada planta como que ajudando a outra. Mamãe nem precisava comprar esses mantimentos, a não ser o arroz, o sal, a rapadura, o querosene, o macarrão, a carne de boi, os tecidos e calçados. A produtividade caseira, inclusive das aves e capados (suínos de engorda) era farta e por assim dizer, de graça. Além das regalias e satisfações, sobrava espaço para as brincadeiras e estrepolias da infância: as gangorras, os guisados, as casinhas, os reguinhos, os piões e malhas, os cavalinhos de pau, as bonecas de cabaças e de panos. Tudo isso e o céu também, como dizia o título de um famoso filme daquele tempo. 

II – O Jogo de Bola na Rua. A rua do Arraial do Desterro era tão larga que mais parecia uma praça enorme. Era toda gramada nas costas da Igreja, mesmo em frente ao nosso lote de casas. E sendo também plana, propiciava o jogo de bola (de borracha e de capota) da meninada. As partidas, renhidas, para não dizer empolgantes, aconteciam na parte das tardes, depois do horário escolar do curso primário. A meninada se repartia em dois times de nomes influenciados pela irradiação esportiva da Capital Mineira, onde, na época e até hoje predominava a hegemonia da dupla Cruzeiro e Atlético. Cada metade da meninada, mais ou menos, torcia por um e por outro dos times profissionais da Capital e jogava por um ou por outro time de nomes idênticos, nas peladas rueiras do Arraial, repetindo o ardor e a valentia do sangue e da raça na busca da vitória de cada porfia. Sem querer me gabar, assim tão remotamente, mas por possuir algumas credenciais esportivas, eu capitaneava o time do Cruzeiro, influindo na escalação para cada partida e na orientação logística dos companheiros no campo minimizado da rua. A torcida, formada pela meninada que não jogava e pelos adultos vadios, também se repartia, entre os amantes e simpatizantes dos clubes da Capital. As disputas eram taco-a-taco, como se diz, com equilíbrio na qualidade dos jogadores, prevalecendo, quase sempre, a “raça” (o denodo, o esforço desmedido). E nisso quase sempre levávamos vantagem porque, repito que não é por me gabar não, mas além de jogar relativamente bem (errar pouco na defesa e acertar muito no ataque), eu contava com o apoio da turma que reconhecia em mim uma espécie de líder que primeiro suava a camisa antes de exigir isso dos companheiros. De forma que metíamos a mutamba, como se diz, e dos torneios e campeonatos que disputávamos, ganhávamos a maioria. Do lado contrário, eu enfrentava uma pedreira, como se diz na gíria, no menino então parrudo, engerizado e briguento de um dos meus primos maternos (paternos não tive nenhum, infelizmente, já que meu pai era filho único), que cantava no terreiro (e aqui estou novamente a perorar no reles e gostoso coloquialismo) como galo de briga, munido de espora e bico afiados, golpeando a torto e a direito, sem dó nem piedade. E eu que nunca fui de briga, que jamais exercitei o físico nesse sentido, mantinha a calma na zoeira, tentando apaziguar os ânimos, recomeçar o jogo sem aflorar o nervosismo, às vezes até mesmo dando um dos braços a torcer, sabendo que a resposta da desforra viria a seguir com novos gols a nosso favor. Os torcedores gritavam, pedindo garra, ou seja, o feio recurso das unhadas e pescoções, além das trombadas, calços, caneladas e pénabunda a deus-dará. O lado adversário até mesmo criticava a moderação de nosso lado, apelidando-nos de frescos, molóides, medrosos etc. Eu pedia calma, mostrava a bola, os pés e a cabeça – e seguíamos empatando, desempatando e vencendo. Mas um dia (vêm sempre um dia desigual na vida, não é mesmo?) não agüentei a lambança do despautério e do rompante do primo, que tinha o apelido de Cavalo-Pombo porque era um branquelo que, raivoso, envermelhava à toa. Ele me deu um calço por trás e depois uma rasteira e depois uma trombada desproposital. Foi a primeira e única vez na vida (digo assim porque tal atitude nunca tinha acontecido nem jamais veio a repetir-se) que perdi a esportiva e a cabeça – e furioso avancei no provocador, de unhas e dentes, os socos e os pontapés que Deus me deu para uma eventualidade assim tão excepcional. Todo mundo, ali presente, ficou bobo de ver o rigor de minha reação. A raiva acumulada é que é dona de tal gana, não é mesmo? Fui nele, ciclopicamente, com a força e a coragem, e ele, sendo mais forte, revidava da maneira que podia, encolhendo sempre, até empertigar-se já na beirada do muro da casa do Tio Pedro Amaro e de repente socou-me violentamente na cabeça com uma lasca do muro, ensangüentando-me o rosto e a roupa. Vendo-me assim atingido e talvez mutilado, virei um bicho ainda mais feroz, peguei um tijolo do muro, avancei e espatifei-o na cabeça dele, que também se abriu em sangue, na hora. E aí a turma do “deixa-disso” dos adultos torcedores veio apartar, entregando-nos às nossas respectivas mães, que eram irmãs e vizinhas, as quais agarraram-nos pelas orelhas, levando-nos pela rua aos safanões e xingamentos. As pancadas que levei do primo doem até hoje em meu corpo, mas as que dei doem ainda mais. Não sei bem a razão: teriam sido mais contundentes pra ele, naquele momento e na inapagável lembrança? 

III – O Ginasial em Itapecerica. Um tio de minha mãe, que era meu padrinho de batismo, aprovando minha vocação nos estudos, levou-me de Marilândia para viver em sua casa na cidade de Itapecerica, onde eu faria o curso ginasial noturno e, durante o dia, ajudaria seu filho Zé no pequeno armazém localizado na mesma Rua Necésio Tavares, num chalé entre duas belas casas de famílias de duas belas moças, ambas interessadas em namorar o Zé. A moça da direita era um tanto compenetrada e lenta nos movimentos, tinha uns olhos rabiscadores de amáveis palavras que nunca proferia, imbuída, além disso, de uma certa compleição silenciosa e implicitamente carinhosa, que sumia de vista na alongada rua. A moça da esquerda era um tanto ou quanto estrepitosa, para não dizer fogosa e atirada, seus olhos de jabuticabas prometiam mundos e fundos, sua boca de carnudos lábios revirados atraiam até o momentoso interesse dos desatentos. Sem titubear ele optou logo-logo pela mais oferecida nos repetitivos lances afoitos, a dos olhos que pareciam saltar das órbitas. Ele era mesmo um bom partido, jovial, bonitão, escolado, filho único de um senhor presumivelmente rico. Mas o círculo de afeições não ficava só no duplo interesse das vizinhas. Havia ainda a terceira pretendente, essa ao que parece prometida em mutuo acordo do pai dela com o pai dele, amigos de longa data. Essa era o fino da performance. Escorreita e ao mesmo tempo trepidante, sem transbordamento; estudiosa e ao mesmo tempo popular e requestada pela rapaziada itapecericana, oriunda que era de uma cidade maior, a nossa Divinópolis. Morava na mesma casa do padrinho, vinda especialmente para estudar, acatando a fama de Itapecerica ( onde até os pássaros cantavam em latim) de ter a melhor Escola Normal da região. As más línguas da vizinhança cochichavam, no entanto, que ela teria mudado de residência por imposição paterna, para estreitar os laços familiares através de um possível e desejável consórcio matrimonial dos filhos. Ela, na passividade feminina da época, dava a impressão que topava o combinado, mas ele, desconfiado da trama, arrenegava a possibilidade, e mal-mal a cumprimentava dentro de casa. A pobrezinha (tão bonita de suéter de lã colorida, que revezava com o elegante uniforme colegial (azul e branco!), com o qual atravessava boa parte da cidade, arrancando suspiros e versos dos rapazes mais inquietos, despistava o desdém dele, dando-me tanta atenção que ao mesmo tempo feria minha timidez e lustrava meus brios de rapazinho (quem sabe) garboso. O tempo foi passando, eu estava bem feliz nos estudos, no trabalho e nas horas de folga, iniciando-me na cinefilia ( que carrego até hoje) através dos faroestes e dos seriados das matinês domingueiras. No ginásio eu até que fazia sucesso em conseqüência da aplicação no curso primário de minha terra. Dificilmente perdia uma nota em todas as matérias. Um dos professores citava meu nome para criticar a ignorância dos outros alunos, formulando questões e perguntas a todos e ao receber muitas respostas negativas, vinha a mim para inquirir, e como normalmente eu sabia, ele esmurrava a mesa, xingando os outros com as palavras: “Cambada de Cabaças! Ele ali (apontava-me), que veio da roça, sabe mais que vocês da cidade. Uma vergonha!” E eu, em vez de alegrar, baixava a cabeça, sabendo que o professor estava era discriminando-me na classe, causando não admiração, mas antipatia dos outros a meu respeito. E assim passaram-se dois anos, o Zé fechou a Venda, arrumou um bom emprego no Grafite, casou – e eu tive que voltar para minha terra, de onde um ano depois fui para Belo Horizonte. O Zé casou com a moça dos olhos grandes – e as outras casaram-se depois com bons moços da cidade, e devem estar felizes até hoje. Eu é que fiquei chupando os dedos, penalizado de perder, ainda em tenra idade, as oportunidades de auferir os primeiros encômios desta vida, a alvissareira seriedade de uma e a brejeira candidez da outra. Que precocidade a minha, então, heim? Com apenas os verdes doze anos a sonhar com uma e outra, variavelmente. A ponto de às vezes cogitar que a disfunção sentimental poderia acompanhar-me vida afora, e que quando eu crescesse iria sempre gostar de mulheres mais velhas ou viraria o disco e só passaria a preferir as meninas-moças, invertendo o quadro ao trocar as maduras pelas verdes (as maduras bovaris pelas verdes lolitas). . Nada disso aconteceu nem acontecerá. Continuo gostando das frutas maduras, não por mero egoísmo de apenas contentar meu ego, mas sim para louvar e contentar a maturidade em si mesma, em si mesma muito mais amável do que amante. 

IV – Os Pomares Análogos. Sou (um tanto tantã?) antecipadamente retrógrado, tardiamente futurista? Sempre a perder os guardados? Sempre a procurar os perdidos? Não sou apenas eu, mas muitos? E todos que sou amam você! Como abjurar as profundezas do amor, as profundezas do mar e do ar? Se é para longe que você me leva, é de lá que a trago, molhada de carícias e de carinhos sublimados. Como esfriar ou aquecer os presídios de uma ou de outra parte na mesma conjugação do verbo amar? Os presídios são para os ímpios, que não somos nem seremos. As liberdades são para os amigos, que se amam e que são amados, mesmo sob a ventania silenciosa de uma falsa ausência. Como libertar-me do doce anseio, do doce enleio dos pomares entre as pernas entre os lábios entre as nádegas, na formosa nudez de uma secreta praia pensamental, seja ela carioca baiana capixaba? A franquia do amor é a mesma dos amigos dos irmãos que se procuram para se completarem no amor de Deus e de todo Mundo.