RÉPLICA AO HIPOTÉTICO DESAMOR (*)
Como é triste acompanhar de longe a maciez do barco na água trêmula, como se alguém que estava perto, agora, distanciado, abana as mãos. Como oprime sentir as novas manhãs camufladas em reles fins de tardes, sentir que um de nós perdeu o outro de nós, mesmo sabendo que o destino das afeições esmaecidas é fluir para novas afeições, que revigorem as que não esquecemos, e que estavam conosco desde que nascemos e que conosco estarão até depois que morrermos. Mas como é triste não ter mais para flertar os olhos que vivificavam as naturezas-mortas das obras de arte, os olhos que brilhavam nas palavras que o silêncio dizia, que dizia: como esquecer o que não foi dito e que existia? Como lembrar o que foi meramente pensado? O silêncio a dizer nas gôndolas e barcaças rumando para as distâncias que mais fazem lembrar tudo o que não foi dito. E como agora estender a mão no vazio para quem tem o rosto no luar? Como é triste perceber que um de nós, que era o outro de nós, não é mais toda a humanidade que era, para nós – ou ainda continua a ser? E mesmo que os pombos batem asas, as gaivotas sobrepairem, mesmo assim estamos cansados de saber que o amor não se perde na perda da pessoa iluminada, da pessoa iluminada, que em si resume a humanidade, a humanidade que celebra o sol mesmo debaixo do nevoeiro que o embaça, como talvez dissesse Gaston Bachelard em suas anímicas ruminações.
(*) Texto escrito depois de ver e ouvir “Que C’este Triste Venise”, no duo de Patrícia Kaaz e Charles Aznavour.
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