sábado, outubro 20, 2007

CORI-CORÁ

Nos antigos pagodes da velha (e sempre nova) Marilândia, era comum entremear as catiras e xotes com as modas caipiras e os desafios dos cantadores repentistas. Lembro-me de parte de um desafio da linha do tendepá, mais ou menos assim: “olelê, falou menino/ na linha do tendepá/ quero cocê me conta/ o que é cori-corá”. “Olelê, falou menino/ O que é cori-corá?/ É um cacho de banana/ começado a madurar”. “Na linha do tendepá/ quero cocê me conta/ contas pintas tem o gambá”. “Olelê, falou menino/ contas pintas tem o gambá:/ tem uma na ponta do rabo/ outra na volta da pá”. Era assim na nossa bela e querida terra da primeira (eterna!) infância. Os seus vastos quintais, pastos, capoeiras, invernadas, cerrados, fontes, córregos, lagos e rios. As flores e as frutas enxameadas em toda parte, principalmente nos quintais de todas as casas. No lá de casa, que transplantei para o de minha casa em Divinópolis, era um mundo cheio de vida e esplendor, verde e maduro. Vindo para Divinópolis em 1966, comprei uma casa perto do Rio Itapecerica (que naquela época era de água e não de esgoto como é hoje) de um antigo morador de Marilândia, de onde ele tinha trazido a vocação e a habilidade de cultivar o verde e o maduro da clorofila e da fotossíntese. De forma que o quintal bem amplo e úmido já ostentava suas dezenas de árvores decorativas e frutíferas. O que fiz no decorrer de todo esse tempo foi conservar e aumentar as espécies vegetais, propiciando a conservação e o aumento das espécies animais no reduto. À vontade em toda área convivem os gatos, cães, sapos, pererecas, minhocas, besouros, pássaros e mais pássaros (rolinhas, bentivis, sabiás, pardais, pombos): um contínuo festival de cores e sons, como se o próprio arvoredo cantasse e o ar fosse povoado de céleres e graciosos vôos de seres vivíssimos da silva. E tudo de acordo com as exigências e recomendações dos agentes da saúde pública. Mas outro dia uma senhora abordou-me na porta da rua, apavorada: “um bitelo dum gambá saiu aí do seu alpendre, deu uma volta na rua, e tornou a entrar no seu alpendre: quase morri de susto”. E mais assustada ela ficou ao perceber a minha naturalidade ao responder: “ele deve ter ido pro quintal”. “Mas o senhor permite uma coisa dessa?!”, ela perguntou, ainda espantada. E calmamente respondi: “Por que não? Ele é, como nós, um animal filho de Deus”. Aí ela arregalou os olhos, virou-me as costas, saindo. Entrei para dentro de casa, pensando que era o que faltava no quintal povoado de vegetação aérea e rasteira: um gambá! Para se ter uma idéia: o quintal comporta, com direito a sol e chuva e vento, três mangueiras monumentais, cujas grimpas ultrapassam as alturas dos prédios vizinhos, fartando de oxigenação toda a área do quarteirão. Ah o quintal. O quintal é o lado ameno da personalidade do morador, a ilha de copiosas meditações e augúrios equilibrados, a nesga verde, a frescura de um tempo incolor de indócil mormaço. Ao todo contém cerca de 30 árvores de mangas, jabuticabas, mamão, café, laranjas, mexericas, coquinhos, bananeiras de flores, cactus, goiabeiras, acerolas, romãs, buganvilhas, além de um enorme pé de mimo de vênus, outro de begônias, três moitas de cipó imbé, várias de avencas e samambaias, de palmas de Sana Rita, de cipós de São Jerônimo, orquídeas esganchadas em troncos de mangueiras, marias-senvergonha, camarões amarelos e vermelhos, moitas de taioba e a infinidade de capins e outras ramagens rasteiras. Uma suavidade orquestrada pela passarada, que suaviza o desgaste auditivo que vem das ruas barulhentas. Os pingos essenciais das folhas verdes umedecem a secura visual dos dias quentes do ar parado desse paranóico aquecimento global e refrescam e (de certa forma) depuram os ares noturnos tão poluídos pelas siderurgias desumanas e adjacentes. E assim o que brota do chão diuturno é o reflexo fantasioso das antigas noites estreladas marilandenses: vidas que se erguem, satisfatórias, confiadas, reluzentes no vergel multicolorido de um salutar proveito estético. Em suma, o quintal é o repouso infantil e jovial e senil e conjugal das melhores horas de nossa vida: a descontração do lazer, a ilha da vivacidade, o repasto reparador de tantas celeumas urbanas: uma ilha de bonança ao lado de ruas transgressoras da ordem social pela má vontade dos nossos dessemelhantes de má vontade.

1 Comments:

Blogger Clevane Pessoa e Outras pessoas said...

Lázaro:adorei esse texto, e sempre, desde os Anos 60,tudo mais que escreve.Captei para meu blog(http://www.clevanepessoa.net/blog).
Espero um dia poder entrevistá-lo e conhecê-lo.
Mais que artífice da palavra, você é um estilista do verbo.

Um abraço cordial de quem sempre foi sua leitora:
Clevane Pessoa de Araújo Lopes

7:39 PM  

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