quarta-feira, outubro 17, 2007

PALAVRAS! - Conto

No dia do casamento de sua primogênita, o fazendeiro Gonçalo Ferreira estava muito feliz, tinha movimentado as redondezas, reformado a sede da fazenda, pintado as paredes, trocado o forro, limpado o quintal e os regos, o curral e os pastos, enfeitado tudo (até as árvores da beira dos caminhos) com papel colorido amarrado em barbantes nos galhos das árvores e nos esteios das cercas de arame farpado. A casa estava exalando o odor da água de cheiro, bandejas de doces e quitandas, limonadas e cachaças em todas as mesas. O almoço começou às duas da tarde, prolongou-se noite adentro, farto, variado e apetitoso. Os convidados das quinzes bandas esparramaram-se nas partes internas e externas do casarão senhorial, comendo e bebendo aos poucos, interminavelmente. Um dos padrinhos discursou antes da cerimônia, no alpendre, enaltecendo as virtudes dos noivos e de seus respectivos pais. Só não mencionou o motivo da conveniência da união conjugal: as duas famílias eram muito ricas e ficavam, assim, ainda mais ricas. O pagode começou ao escurecer. Levantaram um toldo de folhas verdes de bananeiras e de coqueiros sobre a parte do curral, contígua ao alpendre, cimentaram a pista de dança e o ressalto para os tocadores de sanfona, violão, cavaquinho, pandeiro, bandolim e o jogo de colheres, bem ao lado dos cantadores de modas caipiras, xotes, emboladas e toadas rancheiras. Quando a noiva – que se chamava Joana – estava nos braços do noivo Norberto, depois da cerimônia do enlace, dançando na pista iluminada por dezenas de lampiões, ela sentiu-se um pouco só e sua mente abrigou uns turvos pensamentos: “Nunca mais poderei flertar esses moços bonitos, que agora me olham com tanto pesar. Nunca poderei ir nos lugares sozinha, nem falar bobagens aos montes como gosto de falar toda hora”. O noivo, por sua vez, pensava na promessa de fidelidade que fizera perante o vigário, as testemunhas e os convidados. Nunca mais poderia namorar aquelas moças bonitas que agora mandavam-lhe seus olhares maliciosos e não provocativos, anteriores. Elas se vingam de mim, vendo-me assim, aprisionado? Ele pensava, coçando pensativamente a cabeça. Lá pelas dez da noite cada um deles pilhou o outro em demorados e suspirosos flertes, ela com o rapaz viril e brioso do Arraial, ele com a moça mais faceira das quinzes bandas. Pilhados um pelo outro no flagrante acintoso, a reação foi instantânea e recíproca: dirigiram-se em amuado silêncio para os animais celados e amarrados em árvores do lado de fora do curral – e rumaram para a casa nova da Fazenda do Orvalho, mal respondendo às saudações e os bons votos dos parentes e amigos. Durante a viagem noturna conversaram, teimaram, gritaram, cada qual no seu cavalo trotando nos caminhos da noite escura. Quando chegaram ao curral da sede da fazenda, já brigavam aos gritos e ofensas do descontrole emocional de ambas as partes. Um gato que miava no terreiro ficou até escandalizado e saiu correndo, mesmo sem entender o que as falas zangadas diziam. Ela esbravejava antes de apear-se do cavalo: “NUNCA MAIS FALE COMIGO ASSIM, VIU? O QUE PENSA QUE É? O REI DO SERTÃO? SAIBA QUE O TEMPO DO MANDONISMO JÁ PASSOU!” E ele, descendo do arreio, prontamente deu o troco: “NUNCA MAIS FALAREI COM VOCÊ DE FORMA ALGUMA. MAS VOCÊ TAMBÉM NÃO FALA COMIGO NUNCA MAIS, VIU?!” E aí cada um se virou para desarreiar os cavalos, soltá-los no pasto e guardar a tralha no paiol. Dormiram na mesma cama sem se desejarem boa noite, amanheceram sem se desejarem bom dia. Viveram assim em silêncio um com o outro, anos e anos a fio, amaram-se muito nas longas noites da fazenda, algumas enluaradas, outras escuras, os sapos e grilos produzindo ao longe uma espécie de pano de fundo metafísico-musical para o enorme e silente amor deles. Fizeram modesta vida social nas redondezas rurais, recebendo de vez em quando os parentes e amigos, indo às missas mensais do Arraial, tudo assim sem alarde e efusões, sobretudo sem troca direta de palavras. Quando um tinha extrema necessidade de falar com o outro, falava indiretamente: chamava um dos filhos (tiveram onze nos quinze primeiros anos do casamento) falava indiretamente o que precisava, a outra parte entendia e se tivesse que responder, respondia falando da mesma forma indireta – e essa terceira pessoa podia ser um dos filhos ou das filhas ou até mesmo uma empregada ou empregado ou qualquer animal ou pássaro que estivesse perto na hora. Quando ela morreu de velha , numa tarde maio, depois de jogar milho às galinhas da janela que dava para o terreiro dos fundos, ele se entristeceu tanto e tanto que veio a faleceu três meses depois, depois de tomar uma chuva no mato e contrair pneumonia dupla. Tinha acabado de completar oitenta anos de vida.