sexta-feira, outubro 19, 2007

FALSO CORAÇÃO SOLITÁRIO

Estando outro dia, numa pequena hora vaga do fim de semana, tentando ler Baudelaire (sempre tão mal traduzido), senti novamente a proximidade de meu mestre imaginário, que sempre me socorre nos momentos mais dialéticos (e às vezes me procura para questionar suas proprias dúvidas, dialogar seus monólogos). Dois versos do instaurador do modernismo ficaram ressoando, na aceitável tradução de Edmundo Moniz: “Move na cidade a lama que a consome/ como o verme a roubar aquilo que se come”. Com Baudelaire a poesia veio do campo para a cidade. Como toda cidade é um pouco repelente, a poesia está sempre querendo regressar ao campo, que infelizmente agora está a sofrer o processo de decomposição, por escassês de oxigênio. Outros autores tentam retê-la entre os espigões de cimento armado, o asfalto irrespirável e o gás carbônico. O mestre imaginário falava da inutilidade de nosso esforço de levantar uma idéia idônea ou um ato gratúito. Tudo o que defendemos acaba dando meia-volta e quebrando nossa cara. Em sâ consciência não podemos votar em nenhum dos partidos existentes. Todos se nivelaram por baixo no fisiologismo – e todos seus eleitos continuam candidatos em plena e infinda campanha eleitoral. Não sabem fazer outra coisa na vida, os pobres coitados: só mamar nas tetas abundantes da pátria amada. Como chamar fulano ou beltrano de corrupto, nepotista, marajá, se todos (?) são farinha do mesmo saco e por isso o sentido pejorativo se reparte e desvanece na multidão dos políticos maleáveis? Nesse momento encontro o Tarquínio Caporal filando as manchetes do dia na banca de jornais. Ele me assedia com seus impropérios :puta-merda, esse cara é um vagabundo sem-vergonha, um filho da...! Assim chovendo no molhado repetia o segredo que todos sabem, que a vida não presta, não presta, meu Deus! Aí surgiu um cara que não me lembrei em que corpo já tinha visto, propondo a prioridade da chamada cultura do lixo, dizendo: “vocês sabem que as orelhas e o nariz das pessoas não param de crescer nem mesmo depois da morte?” Isso é coisa do Pasquim de muitos anos atrás, o dono da Banca disse.. Sem se dar por achado, o Cara prosseguiu: “Vocês sabem que numa cabana do Pólo Norte a água no ralo da pia gira da esquerda para a direita e não o contrário como a daqui?” E no silêncio da ignorância, ele aproveitou para mais acicatar: “Vocês sabem por que o peixe voador voa?” Essa é boa, alguém exclamou, rindo. “Ele voa porque não consegue peidar. Como não sabe ou não pode peidar, ele explodirá, se não voar”. Horas depois na sala de aula de ciências humanas, a mocinha pediu ao professor para explicar porque o crime organizado funciona muito melhor do que a sociedade organizada. Enquanto o professor pensava para responder, mil telefones de toda parte tocam ao mesmo tempo. Nisso o chato da cultura de lixo vem dizer que os cães zangados não atacam as pessoas nuas. Eu que sempre me considerei um coração solitário, um nota em falso, um problema social ambulante, lembrei-me de ter visto, numa viagem no tanque público de Curitiba a grande estrela de ferro na água límpida. Naquele tempo o monstro que devastava o país simbolizava o reinado nefasto de um monarca tirânico e pervertido. As crianças estão cada vez mais abandonadas, falava o professor, lá longe, e ninguém ouvia. A vida moderna com os seus modismos desarticulou o equilíbrio antropológico e a conceituação dos símbolos. Assim até mesmo o freudismo foi afetado, pois os exemplos que ele usava: a mitologia grega, as sagradas escrituras, perderam a unidade de sua validez cultural. Na verdade, na verdade eu lhes digo: como uma criança criada na creche, esse novo nome do lar, pode plantar e colher em si o tal do Complexo de Édipo?