quinta-feira, julho 10, 2008

ESBOÇOS DO CONTEXTO

Freud e Jung e uma cantora portuguesa viajam comigo no carro voador, rumo ao infinito de nós mesmos. Eles dizem que os sonhos são produtos de conflitos pessoais e que são dotados de uma estrutura de conciliação entre a consciência e o inconsciente. Acrescentam que os sonhos contradizem os ditados da lógica, mas perfazem certa continuidade para trás e para diante, como o belo carro que não me deixa impregnar da angústia do tráfego, pois canta na ida e na volta as belezas da vida ativa. Se a velocidade é superior a do som, ouvimos ao inverso as palavras saídas dos lábios do interlocutor. Se a velocidade é superior à da luz, aí então o tempo muda de significação, a história torna-se retrospectiva: o apóstolo São Paulo aparece na estrada de Damasco antes de Jesus nas montanhas da Galiléia. Ao anoitecer a cantora resolve fazer amor com o automóvel, voa ao lado e ao longo dele, toda elegância e flexibilidade, assim delgada a bailar no ar, rindo na mais pura alegria, suas roupas fluorescentes nas esferas de outras estrelas também bailarinas, amantes e amáveis. Eram muitas horas da noite quando o Tomazinho chegou à casa do Otaviano Caseca. Bateu palmas do lado de fora até acordá-lo. - O que deseja com esse espalhafato no meio da noite? – O Caseca pergunta, com a lamparina acesa na mão e a raiva nos olhos. - Quero que vá à casa do Joaquim Pedro pedir a mão da filha dele em casamento. - Mas numa hora desta? Não pode esperar até amanhã? - Não posso esperar. É hoje, é agora. É hoje, é agora ou nunca! - Como assim? - Se não for hoje, que estou abrasado, amanhã não serve. Amanhã é outro dia, o carneiro perde a lã, vou mudar de assunto e cantar noutra freguesia. Cavalgava na poeira da chuva, lembrando de uma surra sofrida na infância e de uma cena de amor no paiol de milho. A imagem da Francisca (Francisca ou Lucinda? Lucinda ou Constância? Como seria hoje a beleza naquele tempo da juventude da irmã de meu trisavô paterno?) não me saía da cabeça, ela, esguia e consistente, a voltar do Desterro para sua casa nos Magos, a pé na estrada no meio das árvores, atravessando porteiras, quebra-corpos, pinguelas. Ela seguia, flexível e aromática, pelos caminhos da roça, para o céu de si mesma. Levava uma boa imagem de mim? Por que apenas flertamos o tempo todo e não namoramos um minuto sequer? Por que beijamos apenas na vontade e não nos abraços reais? Um bentivi a persegue, voando de árvore em árvore, cantando a melodia cerúlea das magnitudes inefáveis. Ao assim cantar, ele responde aos gritos de dor dos grilhões mais distantes, contemporizando-os? Ela agora pára na curva do caminho e hesita um pouco? Ela agora quer voltar de sua casa nos Magos, encaminhando-se na direção de minha casa no Lavapés? Vem pedir-me em casamento? Ah Francisca moderna, ah Lucinda ou Constância antiga: que pulo ágil de ano em ano através das décadas do século? Tenho que respirar bem fundo, abrir bem os olhos nublados. Ela está vindo e dentro de alguns instantes acenderá as luzes dos horizontes de minha casa perdida nas brenhas do Lavapés, acenderá minha vida com seus olhos apaixonantes. Agora as rodas deslizam em almofadas de ar. O automóvel de câmbio automático e controle eletrônico entra e sai na estratosfera dos países como se transitasse nos conhecidos municípios regionais. Sentimos a terra correr no espaço a 106.000 km. por hora e os átomos na corrente sanguínea a uma velocidade ainda maior. A viagem transige automaticamente de terrestre a sideral. Depois de subir ao altar das montanhas de Minas, de Jaime do Prado Gouveia, e tangenciar os baixadões de São Paulo e do Paraná, encostamos na estrela Aldebarã, onde à noite os olhos das pessoas são luminosos, com variações de claridade e de cor de acordo com as paixões de cada uma. Logo emparelhamos maciamente às estrelas duplas, aos sóis múltiplos, como se voássemos sem asas, como se nadássemos em duas lagoas ao mesmo, movidos pela vontade de chegar ontem ás regiões solenes de luz espiritual da primeira estrela do firmamento, de onde enfim poderemos desfrutar dos renovados paraísos da terra. E a palavra angústia, que acaba de chegar? Veio de onde? Der onde veio a palavra angústia? Da Estiva? Da Bemposta? Do Arraial Novo? Veio de onde não vem resposta? Meio-dia, as estrelas de fora (como os botões na barguilha da calça) velam minotauros na sombra da mangueira. O sal na camisa, o sol a soltar marimbondos no pasto. O regato erra o caminho do córrego, que erra o caminho do rio, que erra o caminho do mar. Tudo vai pro beleléu na região. O nosso é mesmo o pais da impunidade? Todos podem prevaricar? Não é melhor vadiar, então? A borboleta do tamanho de uma águia, a voar sobre as hastes espinhosas. O mundo dá muitas voltas. Numa delas o Destino pode te pegar com a calça nas mãos, desnudo. As mãos sem poros do lenhador são pedras que se atiram a esmo contra os nomes mais bonitos da biodiversidade dos campos e capoeiras. Se não fosse a dor da alma, não estaria chovendo uma chuva só minha: da alma na alma. Ah meu Deus do céu... Quê vontade de sair correndo! Depois de roubarem o milho da roça, os meninos, temerosos do castigo das mães, subiram pelo ar azul numa corda de bacalhau que um colibri levou a ponta, amarrando-a ao tronco de uma árvore lá em cima. As mães subiram atrás deles pela mesma corda, ávidas pelo justiçamento da malvadeza deles. Mas eles, nas grimpas dos páramos, vendo as mães subindo, determinadas no arroubo da represália, desamarraram a ponta da corda – e elas caíram todas numa só revoada aos vários abismos da terra, transformando-se no ato em aves, bichos e pessoas. E Deus lá do céu, presenciando a dupla maldade dos meninos, condenou-os a ficarem estatelados lá em cima, onde estavam, de cabeças para baixo, eternamente, na esfera do teto inferior do lado externo do céu, todos olhando para baixo, obrigados a verem toda a noite a reprodução da maldade que fizeram com suas mães. É assim que uma lenda indígena explica a existência das estrelas. O caminho mais curto das montanhas é o que medeia cimo a cimo, assim falava Zaratustra, de Friedrich Nietzsche. Quê semelhança temos com o cálice da rosa que treme porque oprime uma gota de orvalho? Lá está a pergunta dos deuses do antigo panteão, no livro que foi escrito para ser lido aos poucos, uma página de cada vez, num abrir e fechar respeitoso, religioso. Se assim não for causará comoção, enfarte do miocárdio, derrame cerebral, negligência sensorial. Do outro lado, descendo um pouco a montanha, somos um pouco Mani (maniqueísta, meu deus do céu?!), com o nosso incomparável sósia, o sizísio, o nosso anjo revelador, o altar-ego, uma sombra deteriorada de Jesus, e mesmo assim a iluminar a iluminar a iluminar. Passada mais uma refrega da incrível viagem, vem a bela monotonia que suaviza o rosto perverso. É preciso desancar a catatônica entropia do carisma carola, infligir o azougue na fantasia febril, operística, dos flasbacks compulsivos. Ninguém foge do amor, mas o amor não bafeja os medrosos. A tensão da cidade em cada um de seus impulsos, a boca torcida da loura platinada, que mais parece a cicatriz de uma ferida. Quem aí conseguiria burilar o falso magnetismo das berrantes telenovelas? Entre os mortos e feridos, quem sairá ileso? O que me oprime, dentro, no fundo? A insatisfação depois da saciedade? A culpa de crimes cometidos por outras pessoas? Sou às vezes uma outra pessoa? Quando é que vou me conhecer? Se um dia chegar a ser feliz, como farei para seguir vivendo? Só eu sou um erro na vida ou os outros apenasmente não confessam? Fulano de tal é errado porque é bom ou é bom porque é errado? Assim começa, perguntando, a pedagogia do comportamento, ou seja, a maldade tacitamente aceitada? Neste mundo de maldade e de ilusão (como lá diz o samba de Dorival Caymi), toda vez que alguém fala uma verdade, temos que enxugar a lágrima antes dela borbulhar nos olhos indefesos. Só os insensíveis não sofrem, porque jamais estarão em si mesmos, sozinhos. Porque nada sabem da crueldade e da ganância e da demência. Assim (na sensibilidade) as perguntas afloram nas veredas serpentinas, nas aventuras feéricas, nas jardinagens paisagísticas de Edgar Allan Poe, nos olhos espiritualmente cinzentos das amadas dele, Edgar Allan Poe.