sábado, janeiro 30, 2010

O SUPLEMENTO LITERÁRIO

Notas de Lázaro Barreto. 

 Agora sob a direção de Jaime do Prado Gouveia,o tradicional SL do Minas apresenta a edição especial número 1.321 organizada por Júlio Jeha e Lyslei Nascimento, sobre o tema abrangente de “Crimes, Pecados e Monstruosidades” (sob a ótica literária, é claro). Para ler, refletir e guardar cuidadosamente. Uma preciosidade. Abaixo a apreciação de alguns dos textos. 1 – “Faca no Coração”, o texto de Berta Waldman começa com os dizeres: “Dalton Trevisan é um escritor que não faz concessões: não dá entrevista, não se deixa fotografar, não conversa com leitores nem participa de encontro de escritores”. Ou seja, é livre e solitário, solitário e livre para mentalizar e escrever, sem ligar para as possíveis promoções da mídia que, de um modo geral, não deixa de influenciar a metodologia do autor, muitas vezes degenerando-a. O trabalho conjunto do excelente contista resulta numa obra concisa, válida, amplamente aceitável e legível, apesar da estranheza do tratamento peculiar de sua temática. Estranheza que Berta Waldman esclarece com muita lucidez. Dalton Trevisan, um J. D. Salinger sui generis, ou seja, que prima pelo conjunto da obra, que é bem melhor do que a do autor norte-americano. Mas perde para o mesmo autor por não ter escrito nem publicado nenhum livro tão bom como o romance ”O Apanhador no Campo de Centeio”. 2 – O texto de Delzi Laranjeira, arguto, articulado, criteriosamente inovador em termos de exegese bíblica. Extremamente crível, sim! O (mal)dito evangelista, traído em sua boa intenção de livrar o Mestre da fatal condenação, ele, Judas Iscariotes, é que foi traído na contramão de seus atos na infeliz parceria com Nicodemos. E assim o mais culto e experiente, o mais amável e amado Discípulo, vítima de um erro histórico, ficou sendo o portador do pior anátema do Cristianismo, o de ter vendido a vida de Cristo por trinta moedas. A ortodoxia cristã, imposta neste caso sem um julgamento criterioso, bem que merece uma boa revisão à luz da variedade dos depoimentos históricos e não apenas pelo que foi, quem sabe, injustamente condenado, apesar das divergências embutidas aqui e ali – e agora tão bem esclarecidas por Delzi no texto “JUDAS – da Tradição à Traição Como Literatura”. 3 – O texto de Josalba Fabiana dos Santos, “A Menina Morta, de Cornélio Penna: Um Fantasma Tropical”, ressalta a importância do autor na generalidade panorâmica de nossa literatura, avivando com este romance a reminiscência gótica como um filete ainda inspirador e influenciador da literatura de qualquer época em toda parte. A temática da fantasmagoria é, sem dúvida, eterna e universal – e Cornélio, resolutamente aventurou-se em seus escaninhos, na tentativa de imprimir, através da parábola e da paráfrase, um quadro ao mesmo tempo claro e escuro na contemplação de um tempo brasileiro indeciso entre o arcaísmo e a modernidade. “A Menina Morta” é um dos poucos dos bons romances brasileiros que ainda não li. O texto de Josalba despertou-me o interesse. 4 – Na página 20 do Suplemento, Luiz Nazario conta de forma clara e objetiva o castigo sofrido por Oscar Wilde pela ousadia de assumir a homossexualidade na puritana Inglaterra do século dezenove. Foi mais humilhado e ofendido do que um personagem russo de Dostoievski. Mas não se abalou nem se humilhou. Sofreu de peito aberto e cabeça erguida, ostentando a nódoa como se fosse um brilho do amor que então não ousava dizer seu nome. Belo trabalho de dissertação de Luiz Nazario, que ainda teve o mérito de citar um trecho expressivo do famoso “De Profundis” do poeta: “A sociedade que construímos não tem lugar para mim, nem tem lugar para oferecer-me; mas a Natureza, cujas chuvas benfazejas caem tanto sobre o justo quanto sobre o injusto, terá para mim rochedos cujas cavidades vão abrigar-me e valos secretos e silenciosos onde poderei chorar em paz. Ela enxameará a noite de estrelas para que eu possa caminhar pelas trevas sem tropeçar, e o vento virá apagar minhas pegadas, a fim de que ninguém possa seguir meu rastro para ferir-me; ela me purificará com suas imensas águas e me santificará com suas ervas amargas”. 5 - A Doutora em Letras Mariângela de Andrade Paraíso comparece interrogativamente com o texto “Um Crime em Belo Horizonte: Rastros e Registros”, analisando publicações e suposições orais a respeito do famoso Crime do Parque, ocorrido em 1946 e fartamente noticiado, especulado (e nunca esclarecido) até meados da década de 50. Lembro-me que, ainda adolescente, acompanhei o desenrolar do caso que andava de boca em boca na região central da cidade, onde eu morava, trabalhava e estudava. Muito falatório e pouco (nenhum?) resultado. A autora fala na importância social do parque, “imbuído de uma função de higienização..., um purificador de ar da cidade”. Lembro-me da enorme afluência popular, principalmente nos fins de semana. Uma bela vivência poética e nostálgica, mormente para as pessoas oriundas da área rural, como era o meu caso. O que mais chama a atenção em toda a história é a repetição da tradicional impunidade dos criminosos cometimentos perpetrados por indivíduos beneficiados em virtude das “influências de famílias da alta sociedade local e nacional na condução das investigações e sua divulgação”. Até parece que estamos mencionando os dias atuais.... 6 – Raul Antelo, com muita diligência e fôlego, escreve sobre o monstro Febrônio Índio do Brasil, citando inicialmente Georges Bataille, que o leva à leitura de “um livro singular, “As Revelações do Príncipe do Fogo” (1926), redigido pelo mesmo Febrônio – e à citação da transcrição de um trecho do livro “Elogio da Vida Perigosa”, de Blaise Cendrars, no qual o personagem monstruoso estaria numa penitenciária do Rio de Janeiro, “enjaulado (esperando mandá-lo para o manicômio, onde esse perverso está confinado desde 1927), um monstro sádico cujos crimes e cuja loucura vertiginosa tinham apavorado as populações”. Aí a minha dúvida: esse criminoso teria sido levado de Tiradentes? No livro “A Aventura Brasileira de Blaise Cendrars (edições Quiron/MEC, 1978, de Alexandre Eulálio, página 127) consta uma anotação de Mário de Andrade: “(Havia um) preso em São José del Rei (antigo nome de Tiradentes)... Há dois anos, um mês e um dia Que estou preso...Si comi o coração dum homem...Si bebi o seu sangue quente...Que têm os outros com isso?” Depois de um espaço em branco na página vem o acréscimo: “Se o tema do prisioneiro-lobisomem de Tiradentes não foi desenvolvido por Mário, mereceu o lugar de honra num dos textos decisivos de Blaise Cendrars: “O Elogio do Risco da vida”, que ele dataria de Praia Grande (Santos), 15 de março de 1926.”. Na segunda parte do livro (páginas 246 a 301) intitulada “Acaba de Chegar ao Brasil o Bello Poeta Francez Blaise Cendrars”, assinada pelo cineasta e escritor Augusto Calil consta em forma de legendas de fotos, na página 259, além de citações a respeito do assunto o seguinte: “Tiradentes. A estação da estrada de ferro. Geral do prédio da Cadeia. Janela com grade. (L´Homme et som désir). Primeiro narrador (texto de “Elogie de la vie dengerense): escutem agora a história do lobisomen. Eu o encontrei na pequena prisão de Tiradentes. Fazia dezoito anos que ele estava preso. Tinha trabalhado muito tempo na construção da estrada-de-ferro Sul-Mineira; no dia da inauguração da estrada, assim que o trem oficial entrou na estação, saltou sobre a plataforma antes da parada do comboio. Seu rival estava na multidão. Precipita-se sobre ele, o longo punhal pernambucano na mão. Corta-lhe a carótida. Abre-lhe o peito. Arranca-lhe o coração. E antes que a fanfarra tenha terminado o compasso da batida forte do bumbo ele morde o coração palpitante e o engole.. Quando o interrogo sobre os motivos do seu ato, já imaginando alguma fabulosa teoria de atavismo, em que a luxúria, a aventura, o ouro se confundem com insolações, saques e estupros, o homem me disse: não é nada disso. Não se esqueça que sou branco, de origem holandesa. Protestante puro. Não deixe de dizer aos seus amigos poetas que a vida hoje é perigosa: quem age deve ir até as últimas conseqüências do seu ato sem se lamentar”. Muitas outras referências sobre o assunto constam no livro que tem de tudo: ensaio, cenas de filme, cronologia, depoimentos dos participantes da viagem que escritores e artistas paulistas ciceroniaram o poeta francês numa excursão histórica às cidades históricas de Minas. O texto de Raul Antelo é extenso e consistente. Associa à figura medonha do Febrônio às dos doentiamente carismáticos Antonio Conselheiro, na visão de Euclides da Cunha, e Macunaíma, na criação de Mário de Andrade.