AS TRÊS MOÇAS DO SABONETE ARAXÁ - Conto
“Que outros, não eu, a pedra cortem Para brutais vos adorarem, Ó brancaranas azedas, Mulatas cor da lua vem saindo cor de prata Ou celestes africanas: Que eu vivo, padeço e morro só pelas três mulheres Do sabonete Araxá! (Manuel Bandeira). Naquele tempo eu freqüentava a agência local do Banco da Lavoura, para verificar o andamento dos financiamentos de eletrificação rural, projetados e orçados no escritório eletricitário em que trabalhava. Lilina, a moça que me atendia no balcão, estremecia minhas articulações, quando levantava da cadeira e andava na espaçosa sala, jogando nas pernas o balanço do corpo repleto de lábios e de olhos sorridentes. Solícita, protocolava a documentação, proferia algumas palavras burocráticas, imbuída de certa neutralidade encantadora e gentil, acrescida do beneplácito das boas maneiras. Eu regressava ao escritório trazendo nos olhos o olhar dela, um fulgor discreto de macia incisão, reprisando nos ares a magnética imagem ereta e curvada, a abrir e fechar pastas de papelada junto aos verdes arquivos de aço. E assim, chegando do impasse, sem me conter, eu tinha que prosear intimamente, versificando mentalmente: Os clientes aflitos debruçam no balcão do reduto burocrático da agência bancária: seguem a faina dos funcionários no manuseio dos papéis que controlam as ações humanas. Lá fora um sol de arrebentar mamonas derrete o tédio dos postes e das calçadas, o suor expele o estado de espírito dos operários, agora vergados nos canteiros de obras públicas. Aqui dentro (onde as roupas são as pessoas?) ouço o tinir inaudível das moedas desvalidas e sinto o cheiro das cédulas novinhas em folha (se a inflação solta os ratos no paiol não há correção monetária que agüente). Assim aos pressurosos zumbidos dos ventiladores, um dos cifrões desaparece na abertura da janela e de repente a máquina de escrever pára de escrever: o quê há?! Os andares de cima, do prédio, pegaram fogo? Os bárbaros invadiram a Europa novamente decrépita? O infarto fulminou o déspota de uma das máfias? Ou foi a moeda que readquiriu seu valor inerente? Nada disso, ó correntista insolvente! O que foi que aconteceu é que a moça mais brilhante, a que batia as teclas dos juros escorchantes, empertigou-se belíssima entre as mesas (a procura de um cadastro, de uma minuta de ofício?), ela mesma, sim, ensismesmada, julgando talvez que ninguém a vê, ela coça a seda mais íntima (o hiato de arco-íris de uma licença poética?), ela coça a parte mais íntima da extrema formosura, sim! Assim ela anda mais um pouco em si mesma, a imprimir novo ritmo ao movimento bancário, a citar, sem lembrar e sem prever, a palavra amor nos mínimos detalhes... Minutos depois ela volta dos verdes armários, como se fosse um luar numa tarde de verão. Olha-me sem querer e sem saber que é a idéia mais feliz de um corpo humano, a imagem que inventa a forma de dizer que a felicidade na terra nada tem a ver com a dinheirama da despesa e da receita. Tempos depois eu freqüentava as aulas noturnas do Colégio Leão XIII, cursando o último ano do Científico. O alunado era dispersivo e heterogêneo, enchia a sala imensa do vozerio, da dissonância e da trapalhada. A gente aprendia pouco, mas divertia muito. De minha parte, o aproveitamento era o melhor possível, pois flertava a moça mais bonita da sala, uma de nome Adelina, que tinha os olhos na privilegiada voltagem do iluminamento refinado. Dava a impressão que se a luz elétrica fosse embora, ninguém na sala ia sentir falta: a luz daquele olhar ali estava para não deixar ninguém no escuro. Era altiva e sensata, de poucas palavras e de muitos olhares. Exercia uma bela liderança moral no pequeno mundo de nosso colégio, um fascínio que me engrandecia na auto-estima dos sentidos inebriados. E sem saber se merecia a especial contemplação, mais uma vez, sem me conter, cometia os pecadinhos da prosódia versátil, escrevendo na lousa de minha fixação: Da terra do Egito chamei teus olhos cintilantes e logo acorreram-me os pássaros do belo prazer, os múltiplos pássaros saltitantes, pousados e voados na relva e no ar das folhagens noturnas das aulas do amor. De qual deles seria o olhar que me namora de escanteio nos confusos enredos de nossos contos? Eu perguntava. : - Do beija-flor, que é o menor de todos e paira, reverente, sobre a carnação perfumada da mais nítida maravilha? : - Do pássaro-lira, que mede um metro, da cauda à ponta do bico? : - da rolinha a cantar o fogo que apagou na palhada? : - Da siriema a desdobrar a invernada em verões e primaveras? : - da juriti (mas ela tem sardas e clitóris?)? : - da tesourinha (a cauda é longa e bifurcada mas não tem os grandes lábios de mel, nem umas pernas de seda e pérola acima do bem e do mal)? : - Serão do melro, do pintassilgo, do canarinho? Sabia que aqueles olhos eram de uma ave da ordem dos passeiformes, que me brindavam, esmirrado na dialética da ontologia. : - Seriam os olhos do pavó, que tem uma nódoa sanguínea no peito? Ou de outro que a ciência e a poesia ainda ignoram, sempre distanciados e só agora aproximados? Assim a aula prolongava, eu revia a saracura de olhar estatelado em seu engravetado ninho de tigela aérea. O que fazer? A noite do desterro voava dentro de minhas ruínas imaturas, mas os olhos dela, de pássara indefinida, abençoavam minha fixidez na outra extremidade, no ponto de vista e de apoio, no ponto e vírgula da mais alentada juventude. Tempos depois eu era enrolado na vida como bobina de condutores elétricos. Tinha uma namorada em cada bairro e outra em cada localidade vizinha, de forma que tinha o tempo todo tomado, o tempo da fogosa e inquieta juventude. Namorar e divertir eram a mesma aventura: chegar como água e sair como vento, praticando juvenilmente a licença poética de Garcia Lorca. Eu era arrimo de família e não podia dar-me ao luxo de assumir compromissos de noivado e de casamento – então me esparramava levianamente. Numa das noites juninas daqueles anos, sem derrapar nas chamadas curvas perigosas do amor, atravessei a linha férrea, entrei no trecho ramificado do terreno baldio, já ouvindo o canto romântico dos caipiras e seresteiros a perfumar a caminhada, com as flores da harmonia simples e o primado melódico do ritmo repensado: “na farinhada lá na casa do Teixeira/ namorei uma morena/ nunca vi tão feiticeira”. Quando vi, ao despetalar os sons da canção brejeira, estava no meio das barracas juninas de uma rua curta, que ia da linha férrea ao rio das itapecericas. Ela (a Cedalina das quenturas arrebatadas), já me esperava, meiga e propensa, morena aveludada em suas perolas e desejos a brilharem nos dentes sequiosos. Queria beijá-la logo, mas não ali no meio das pessoas. Fomos à beira do rio e custamos encontrar um lugar reservado, despovoado de outros pares de namoradores. Mas quando a sugava de tal maneira que quase arrancava suas entranhas pela boca, aí a dupla caipira, Tibaji e Miltinho, cantava: “Deus, meu Deus, traga pra junto de mim/ esse alguém que me faz chorar”, entrelaçando na memória o caudal emotivo do beijo melódico. Quando, minutos depois, Sérgio Reis substituía a dupla caipira no amplificador de som, com as palavras “se você pensa que meu coração é de papel/ não vai pensando porque não é”, sentimos, eu e ela, que do mato vinha um cochicho e um fluido, que nada mais era do que o tremido emocional de uma vara verde, diante de nosso abrasado amor. Quando outra música (“perto de ti me calo/ tudo penso, nada falo”) já se diluía na folhagem que o vento do rio acenava como mãos e lenços de despedida, então, aos beijos e abraços, entramos no círculo verde da solidão propiciatória, na redoma inviolável da fusão acalentada. Nem vimos o bando de rapazes e moças aos risos e aplausos. As gotas de luz escapavam dos dedos dela e de meus olhos. Assim ela escapou-me dos braços e mãos e nunca mais foi encontrada em sua intimidade. Assim perdemos a seqüência do mergulho e do vôo. Mas o sonho aperfeiçoa a beleza que não se esgota. Que ressoa e transborda, profusamente adjetivada.
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