terça-feira, fevereiro 09, 2010

POEMA COM PALAVRAS DE HERTA MULLER (*)

Adaptação de Lázaro Barreto. 

Onde estive? Na minha camisa e junto de você. Com uma mão batia, com a outra acariciava. Chega a hora que mesmo a mais fria das mulheres desabotoa a blusa... Os russos levam nossos cereais e nossa carne (é assim na Romênia ocupada): passar fome e levar surras, isso fica para nós. De vez em quando o marido diz à esposa: você é das que precisam apanhar de vez em quando - mas eu não sei bater. Você conta as cascas do segredo, não o cerne... Invisíveis vermes se arrastam na farinha, daí é que vem os buracos no pão... As pontas do bigode dele moviam-se como asas de andorinhas... Pobre coitado que não sabe tratar da própria infelicidade! A vergonha diminui os olhos, assim ele é e está enrolado num pano onde todos já se limparam: uma faca ficaria linda no pescoço dele? Ah, os olhares dela nos deles, como frutinhas azuis caindo na água parada.... Depois os cães estraçalharam o corpo de Lili que jazia no focinhos deles, vermelha como um canteiro de papoulas... Adeus frutinhas azuis de seu olhar! O mundo se abre e fecha. O mundo se fecha e abre. A viúva dorme com o segundo marido e se cobre com o corpo do finado, ela que tirava o vestido pela cabeça como se fosse um lenço. As árvores cambaleavam à luz da lua. A mulher sem outra alternativa, nas camas converteu-se ao comunismo através do sexo... O amor e as garras do gato no camundongo devorado, que some de vista... O coração do rapazinho raquítico (com as orelhas maiores do que os pés) parece uma pomba assustada. Quem vive se desespera, quem morre se decompõe. A alegria maligna de uma felicidade suja e torta das mulheres que sentem o vento soprar nas pererecas... No bar só as tílias no jarro não estavam bêbadas. Na cabeça daquele sambanga devia haver coisas para se tocar e não só pensamentos para ruminar... Meu coração tem uma neve falsa? O melro bicava a própria sombra. A mulher que entra na própria sombra imagina-se depravada e desejável, dança até ao som de portas guinchando ou de grilos cricrilando... Como toca flauta sua boca musical!... A grávida sem barriga está com o filho enfiado na bunda? Um copo de água tinha mais vida do que ela? Seu finado marido, ah, ele tem sobre o corpo um bando de mariposas como num tecido rendado... Ah, a lua que escolhera tem cara de cabra... A vida está toda cagada, só nos resta dar uma mijada. Ah, os latidos dos cães vagando pelo céu: é mais fácil perdoar por uma briga do que por uma mágoa... Se o menino chorar de mais, mija de menos. No sanitário público cada um levava a porta para, solitário, se aliviar. Ah, naquela sujeira sentia-me como se fosse um pedaço de merda humana... O pobre tornava-se comunista e o rico (que não queria ir para o campo de concentração) também! Ah, só a cópula preserva a lucidez. É preciso preparar para aceitar o dia seguinte. Por que todo idiota se levanta de manhã? Em algumas pessoas o dinheiro cresce como barba, mas eu estou sempre peladinha – diz a pobre mulher. Ah, onde estive o tempo todo? Na minha camisa e junto de você. 

(*) – autora alemã premiada com o Prêmio Nobel de Literatura do ano de 2009. As transcrições aleatórias e sem aspas e não rigorosamente literais são do belo romance “O Compromisso”, tradução de Lya Luft, Editora Globo – são Paulo, SP, 2009.