Uma lua
esfarelava no bambual do Morro da Fonte
outra
esparzia flores brancas nos telhados do casario.
A procissão, que partiu da Matriz, pela rua de cima, começa agora a contornar o Largo do Cemitério e voltar à origem, pela rua de baixo (que é a mesma, em outro plano). Cada acompanhante é um penitente, a carregar o velho feixe das dores, nos lugares sagrados, que estão sempre onde nascemos, vivemos e morremos. Já são algumas horas da noite, as sombras caíram sobre a terra e em certo ponto da rua, alguma pessoa, fora da procissão, toma a forma de árvore e seus olhos enigmáticos analisam as figuras anoitecidas.
O moço da Bemposta quer agradar a moça da Estiva
(o amor é uma cobra de duas cabeças?)
ele na ala masculina, ela na feminina:
os olhos deles conversam, bem entendidos.
Ele queria mandar um recado, uma flor de homenagem? Onde encontrar, no momento, a melhor mensagem? Manda, na boa intenção, uma vela acesa, que o menino vendedor traz de volta, com as palavras: “Ela mandou dizer que ainda não morreu”.
Ele demove os esgueirados impulsos,
pois acaba de perder um novo olhar!
A procissão do enterro do Senhor morto evolui lentamente na noite de sexta-feira da Paixão: de espaços a minutos pára nos passinhos da via-sacra. É quando a moça de cabelos compridos sobre o rosto, em cima do tamborete, desenrola o sudário e sobrepõe ao velado silêncio, a voz de seu epicédio:
a luz que veio da treva, à treva retorna
a moça chamada Verônica canta sozinha
os centuriões protegem o esquife
a tristitia exibe a face judiada
a paixão da alma cai na tristeza
onde está a grandeza que estava aqui?
Aí a Banda entoa outra marcha fúnebre
se fazem isso ao ramo verde, que dirá ao seco?
Dizem que a paixão leva três vezes à queda e apenas uma vez à secessão, que acende a luz do aposento onde esteja e apaga a dos outros cômodos da casa. Por que é assim tão atrabiliária? O Furricoco sopra o berrante, insulta a virtude, desafia a piedade dos cristãos. Os centuriões armados de lanças e espadas, afugentam-no para boa distância no interior das alas, de onde negaceia e enceta a reaproximação. O esquife embala-se nos ombros dos apóstolos, que se revezam no encargo da lenta e pesada caminhada. O silêncio é absoluto em todo o arraial e ninguém diz “essa boca é minha”, até mesmo a tosse persistente do asmático é sufocada. Na retaguarda vem o andor com Nossa Senhora das Dores, carregado pelas Piedosas Mulheres. Mais atrás, a Banda de Música, regida pelo Toneco, sente o peso dos pecados (o pecado é uma linda mulher, de dentes pretos, de nome antigo, a mesma Trisititia?)
O elo
da alma do homem com a alma do mundo
é tênue, porém inquebrável...
os anciões da Banda fazem o Nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo na clave do sol noturno:
rezam na beleza o toque da piedade na dor...
a alma de pluma e flauta está a dizer que a escuridão é uma clareza diferente. Ao lado de cada tocador de instrumentos, um rapazinho segura a vela acesa e a pauta aberta. O espírito enluariza o corpo, por fora e por dentro, o nome da paixão se escreve em vermelho. No alto a lua está cheia de velas votivas, umas de cera e outras de espermacete: assim ela está a chorar, toda trêmula.
A arte, a interação conflitiva da arte, pereniza o quinhão de vida nas coisas. Cada fiel leva a vela acesa como se levasse o tição sagrado: a ala direita formada de homens e meninos; a da esquerda, de mulheres e meninas. Os olhares cruzam-se, frontais e enviesados. O espírito é a segunda dimensão, o segundo nome do corpo, que às vezes não merece alma que tem:
anima pathema, cupiditas!
É pecado namorar diante de Deus?
A íntima identificação dos signos e das cenas -
se as palavras não rimam, as significações rimam.
Algumas mulheres carregam crianças dormindo, outras cumprem promessas (carregam enormes pedras nas cabeças, andam ajoelhadas, a intervalos)l. O estampado das roupas brilham diante das velas e das luas. Os homens, empalitozados e botinizados, de braços pendidos, dão à impressão de que neles o espírito em repouso aceita e afaga (mesmo quando ficam a dois passos do abismo) a custosa luta da subsistência. Na angustura do entrever e do entrevem das partes afins das alas próximas e separadas
os olhares sinceros na fé da sensualidade
cortam os lados
indo e vindo nos remendos da inteireza
às vezes chispa afoita
às vezes um descuido atônito
assim a tentação agride os ferrolhos da sujeição -
não é que um namoro arretado vai começar ali, depois de tanto tempo e de tantos ensaios?! Pois antes era assim: quando ia chegando perto, retrocedia. Mas agora
a intimidade confirma o entendimento
sem alarde
a vontade é do coração.
A verdade sobrepaira como o azeite na água. Toda mulher devota se crê impecável, a arder em súplicas, a suspirar nos pensamentos dos desejos. A Virgem Maria é o perpétuo socorro nas calamidades: ecce mater tua, Ele disse, antes de expirar na cruz.
Os dobrados intercalantes ferem o silêncio: as pencas de culpas desabam no chão, os gemidos sobem ao céu nas frases da clarineta do Zequinha Tavares: “eu te exaltei com grande poder e tu me suspendeste em patíbulo da cruz”! As exéquias do bombardino do Genésio purgavam: a redenção ia pro beleléu? o remorso é a lâmina do coração? Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste na lavoura gorada? o que te fiz, em que te contristei? por que turva minhas idéias e bambeia minhas pernas?
Na mesma lentidão, ao longo e no meio das alas, o sacerdote de estola preta, alva e cíngulo; os profetas do Velho Testamento, ajoelhados nos sentimentos; o afogueado Moisés, com a tábua dos mandamentos; o patriarca Nóe, de barbas brancas quase arrastando na grama da rua, o multissecular sacratíssimo; o mistério pascal; o anjo carregando a árvore da vida, num dos galhos da qual a serpente abocanha a goiaba madura; os ventos enrodilhados no vórtice, repentinamente cessados; as santas chagas que pingam, Adão e Eva (representados por um casal de crianças vestidas com trançados de folhas de café), cumprem o afoito trabalho da terra sazonal: ele com o cacumbu simbolicamente cavando, ela com a espiga de milho, descascada, a fazer de conta que deita as sementes nas hipotéticas covas do chão: assim os símbolos vão e voltam no meio das alas.
A terra cansa minhas pernas,
o céu cansa meus olhos:
são duas horas de silente e caminhante oração -
também nós e não apenas o Finado
estamos entrando na eternidade?
O som da Banda, o canto da Verônica e o silêncio das velas mortiças integram-se na massa das aflições transitivas; o silêncio coletivo abre sanjas de dor nos lugares, a dizer e repetir que ninguém é mau por livre escolha.
O que vem das casas vazias e das vendas fechadas
é a névoa da culpa, o quebranto da expiação
o mundo inteiro fechou as portas, nesta hora:
o mundo inteiro, menos o Beco do Buracão, onde, esquecidos da lei de Deus e dos homens, desobedientes às prescrições de jejum e abstinência, um punhado de impenitentes trai a santidade da Sexta-feira da Paixão, esquecidos da lei de Deus e dos homens. Eles, os excomungados de livre escolha, eles não sabem o que fazem?
Os buracões do alto engolem mais uma estrela chorona
os homens tentados pela gula da carne débil esquecem
os estalos secos da matraca
as inflorescências cimosas da cagaiteira
são os roedores noturnos no dealbar dos malefícios
os caiçaras dos roçados mal queimados
um deles, bobo até falar chega
mora na borda de cima da capoeira da fonte,
perto da ninhada de guarás.
Esses, os homens iníquos, fazem fila na moita de bananeiras, onde jaz, disponível, a rameira que veio da cidade e que ali jaz agora, de pernas abertas, deitada de costas.
O beco é um trapo sujo a envolvê-los
a libido é uma palmatória nas mãos deles?
A realidade é um campo de árvores condenadas?
Uma rua de casas ruídas?
A pedra branca da chuva
bem que podia gotejar!
O que mais avulta nos olhos esganados dos bichos notívagos, de quatro dedos nas quatro mãos
é a cicatriz do paraíso, onde agora viceja o inferno?
A mulher é uma coitada que sofre de gota, de bouba, de erisipela? Estava entre os que atiraram a primeira pedra? ou é mais antiga ou mais moderna? ela sofre do mal de Parkinson? ou é boba assim mesmo? Eles fazem fila no beco pedregoso: quem já viu defunto enjeitar cova? E guarda-me, Senhor, da mão do pecador e dos homens iníquos, livra-me!” Ela aceita a escandecência situacional, esmiuça a penúria de uma estrelinha morta no céu vulgar das noites pífias: se a cabeça é ruim, o corpo padece!
Eles fazem fila no beco pedralhado, que leva escuramente, em outros dias e outras noites ao poço sem fundo do Buracão. A palavra amarga não canta. As lágrimas da Banda chegam às folhas da bilosqueira do milharal. O corpo é a vítima da alma, mas sabe errar sozinho. Ninguém presta atenção no contraponto do beco, na contradição abusiva: as folhas da bilosqueira interceptam os raios do céu pacífico, embebem na penumbra a montoeira, a buraqueira e o mato rasteiro. São dez homens na fila, alguns notoriamente malvados como o Zazá, o Jesué, o Caitá; os outros são tapados de fé e de esperança, não sabem viver: o Dico Ventania, borocochô; o Zecapião, amansador de cavalos; o Pedro Barbaça, veterano da Mantiqueira; outros, coitados: são viúvos e solteirões descabriados, condenados à abstinência de anos a fio. Mas no maio deles ressalta a figura atéia do Murilão, em mais de cem quilos de banha, em mais de trinta anos de pesquisa autodidática e de bobeira dialética. Seu peso afunda as pedrinhas no beco noturno, amassa a relva do quintal. Só agora ele vai conhecer a intimidade feminina: está, pois, afoito e desarvorado. “Não se afobe, Murilo”, os outros aconselham.
O riso é a sinóvia, é a sevícia
umedece a tessitura interna
imprime articulação nas relvas e nos arbustos
dá o tom e a linha
da canção e do desenho das fontes grandes e pequenas -
há fogo nas serras da Catiara, nas pastagens da Forquilha?
quem aí já bebeu a erva má da enchente que vem do sul?
o coral, ditirambo, a tragédia
afecção indistinta na raiz dos joelhos -
quem jogou a pedra na caixa de marimbondos?
e diabo é uma desculpa esfarrapada?
e a solidão? é a desculpa para tirar meleca do nariz?
A lentidão pontuada pelos dobrados da Banda...assim a procissão ganha o retorno da parte baixa da rua: demora mas não cansa. As mães carregam as crianças com firmeza; os homens de chapéus nas mãos dos braços pendidos, estão com os olhares distantes e vivos; os males impensados, uns sobre os outros:
os bichos do mato enrodilham-se em nódoas
quem pode evitar a consumação de sangue?
todos somos irmãos aqui, primos ali:
minha família vem dos longes de tão perto!
A morte tem olhos de cobra e andar de lobo
vem dos becos e carrascais enovelados -
os personagens bíblicos cumprem as devoções, mas o padre não sabe o que fazer da fé concentrada do povo. Passeia no interior das alas, o livro nas mãos -
um sacristão com o turíbulo aromático
o outro a zumbir zoeira da matraca.
Por mal dos pecados, no ninho de ciscos e folhas secas, debaixo das bananeiras, a meretriz agüenta firma a sina devotada, mantém as pernas abertas, o vestido levantado, o rosto torcido, a vagina ardendo: é a sacrílega madalena a dizer “ a mão que afaga é a mesma que apedreja”- a cartilagem bem alimentada de oxigênio, os braços da cruz antes do último suspiro. Come um biscoito de polvilho, de vez em quando, sorve uma golada de café de garrafa escura, apática a receber os homens pecaminosos, sem dizer: “guarda-me, Senhor, da mão do pecador”. Os homens, aliviados, vão deixando o dinheiro na folha do jornal, ao lado dela. Ela espirra, tosse, cospe - agüenta a trituragem do nheconheco, sem reclamar (ela é uma fantasia em carne e osso? eles são morcegos e coriangos nas ações?). Ela arrepende-se de ter nascido? mas a pobreza fala mais alto que o orgulho, alquebra o tino, empalidece a voz, descarna o corpo. Então o que fazer? beber um gole de cachaça ou de amor-deixado? maldizer o agouro da coruja no oco do pau? esmagar nódulos reumáticos, bolsas de tendões?
A extrema unção palmilha a grama da rua
alguém já coloca o cibório no corporal?
o padre chegou ao fundo da epístola?
as mulheres carregam pedras na cabeça
os homens confiam na complacência divina -
a raiz desce, a haste sobe
o avança visível depende da força retrógrada
uma miasma vem do brejo para alojar nos ouvidos?
o urubu de baixo caga no de cima?
nossos medos provém de tuas ameaças e moléstias, ó destino!
os santos, às vezes, são maus?
por que sobrecarregam as feições na boca da noite?
por que retaliações, os castigos dolorosos?
a peste das ramas, nos ares, nas águas?
por que?
os muçulmanos estão chegando?
os idólatras estão voltando?
“as lágrimas se misturam ao que bebo”, reza o breviário -
oremos também pelos pagãos
que agora erram nas moitas de lobeiras, nos covis
e babilônias do Buracão
mesmo ali, descendo o morro de pedras e ervas daninhas.
Quando chega a vez do Murilão, ele, de olhos esbugalhados, o sectário do contra, ele se estorva, não sabe o que fazer. “Uma vez sempre é a primeira” alguém lhe diz (no ouvido ou no pensamento?). Quem já viu o curió cantar nos alecrins da fontinha? Ele pensa e repensa, tentando se encontrar. Exige que todos fiquem longe, não quer nenhuma testemunha. A bunda descomunal brilha no escuro da solidão. A mulher geme debaixo das arroubas, a pensar dele: ruim de carro, pior de arado. Mas qualquer cavaco ou graveto pode acender fogo no terreiro da casa. Ele demora nos inícios, custa a acertar o jeito de enfiar a coisa. Ele baba no rosto dela? A Banda recomeça a elegia, na rua de baixo, da qual desemboca o beco - toca mais um epicédio de cortar o coração, no frio de lua cheia: tenha dó e piedade!, parece dizer nos trinados e gorjeios e ribombos. Mas de repente o Murilão encontra o caminho, começa a debater, espernear e gritar: “ME MATA, GENTE, ME MATA COM A FACA DA COZINHA!” Os outros acodem, pensando que ele está a sofrer um ataque cardíaco ou epiléptico, mas logo estacam: ele está é a descobrir e desfrutar da chamada dor da bondade, do bem-bom da vida, isto sim, é o que está a acontecer com ele! A mulher não ouve os arremates fônicos que Vêm da rua, nem presta atenção nos arroubos dele: recorda-se de fininho, apalermada, da voz da tristinha Aracy de Almeida:
“O pranto para mim não tem valor
não choro quando estou triste
sorrio sempre na dor”,
que vinha através das escâmulas e sussurros de outros sertões, longe dali. Ele se debate em distúrbios e convulsões, a repetir, gritante: “ME MATA, GENTE, ME MATA COM A FACA DA COZINHA!” Era assim que ele atracava e enleava, a esquecer a embirrância em figura de gente, que era até então. Como se nada tivesse acontecido, antes, em sua vida.
Na rua inocentada pela lua cheia das magnólias e bilosqueiras e absolvida na pia litúrgica das afeições populares, a procissão emparelha as duas pontas, na porta central da Matriz, de onde a vanguarda paramentada saíra duas horas antes. Os fiéis que chegam e os que partem não cansam de orar:
até quando, Senhor, vamos chorar a vida?
Somos fiéis à dor de teu olhar, aí
no gólgota do extremo sacrifício.
Salva-nos da dor que te feriu, que nós causamos.
E se não for pedir muito, Senhor, salva-nos de nossa ignorância!
Enquanto a vanguarda adentra o templo, a retaguarda ganha os primeiros espaços da rua. E no meio da solidão popular, o trinado da clarineta do Zequinha avança no sangue da alma: é o corpo que chega á sepultura.
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Identificação do autor: Lázaro Valentim dos Reis Barreto