quarta-feira, maio 30, 2007

MÚSICA E LITERATURA

O teólogo Karl Barth lamenta que a “REFORMA nos tirou tudo, e cruelmente deixou-nos apenas a Bíblia”. “Não seria muita audácia do homem fazer o papel de mediador entre o céu e a terra? Pergunta Schleirmacher, que vê na música uma alternativa no intercâmbio entre o divino e o humano. Federico Sopeña complementa: “a música pode ser quase um sacramento destinado a ser mais do que a própria palavra, união de silêncio e de significado”. A de Mozart, ele diz, é a vida em sua dualidade, mas no fundo sobressai a cortina da criação, e sua música “orienta-se das sombras para a luz e não inversamente”. Do Diário de Paul Klee, o pintor-músico: “As três coisas que mais existem: a concepção objetiva de orientação à terra, de gravitação arquitetônica, da antiguidade greco-romana; um cristianismo de concepção subjetiva de orientação ao além e de gravitação musical; e a condição humana de ser modesto, ignorante auto-didata, um minúsculo eu”. E acrescenta: “São ilimitados os meios de expressão do músico Pablo Casals: tanto pra o exterior, partindo da profundidade, quanto para o interior; na própria profundidade o céu parece abrir-se”. O lirismo é que predomina na pintura de Klee. Coisas e espaços resolvidos em música, redimindo a pobreza espiritual da às vezes pançuda prosperidade material, é o que diz Sopeña, no livro “Música e Literatura”, onde afirma também que a música sempre nos repete o sonho da juventude. Os sonhos monstruosos contados por Freud e Schonberg e pasteurizados pelos românticos. - Quem pára de aprender, morre antes de morrer. Bernardino Leers, ofm. - Monocultura: fábrica de moedas e de pragas. (?). - Felicidade afetiva pra mim, diz qualquer mulher sensata, não é apenas o preenchimento dos vazios sexuais, mas sobretudo aquele bom e refinado calorzinho no coração (?). - A música, assim como os jardins, criam a paisagem do amor, o sentimento da beleza, do sofrimento e da felicidade (?). - Um rosto invisível me olhava, o eco de um nome desconhecido me perseguia, era assim que um tal de Jollivet sentia ao ouvir a música wagneriana Do citado livro de Sopeña: “O prazer às vezes mata no homem a faculdade de amar, dando a ele um coração de eunuco. O amor ultrapassa o desejo, mesmo sem correr pelas ruas, diz Julien Green. As feras rugem surdamente à noite na música de Bela Bartok. Se o vento pudesse compor música, a música seria de Debussy. A abertura dos “Mestres Cantores”, de Wagner é como o sol ao sair das nuvens, lança raios por todos os lados. “Uma bela voz é um belo corpo”, volta a dizer Julien Green, que acrescenta: “eu não seria o mesmo se Schuman ou Debussy não tivessem composto certas músicas que compuseram”; e acrescenta: “não sei porque a religião é procurada em outra parte e não em Brahms. A música de Mozarat prolonga a infância indefinidamente”. As letras de músicas são vermelhas, são azuis. João Ribeiro afirmava que a beleza é erótica, e que as coisas belas são afrodisíacas. O mundo é feito de lugares e de caminhos e quase todos estão repletos de vespas, buracos e espinhos. As palavras são feitas posteriormente à coisa feita, mas podem ser usadas prematuramente, antecipando dizeres e fazeres. A musicalidade latente, escorreita, intacta, implícita na página escorreita de Henry James, de Fernando Pessoa, como contas de prata na face do lago, flores de neve despencando da árvore de Natal, como diria Pedro Nava.... De minha parte tenho a dizer que outro dia, ao ouvir um barulhinho detrás da máquina de lavar roupa, no porão da casa, vi a gata amamentar os três gatinhos recém-nascidos. Pobrezinha, pensei. É uma gata de rua, e só passava em casa uma vez ou outra, sempre assustada, temerosa de represálias. Eu mesmo a afugentei várias vezes, pois ela negaceava os pardais que eu alimentava no quintal. Ela agora me olhava do esconderijo, com o olhar implorador. “Não me expulse daqui agora. Não vê que estou com os filhotinhos que dependem de mim?” É claro que eu agora a queria mais que aos pássaros que eu dava água e fubá grosso todo dia. Trouxe logo uma caneca de leite e pedacinhos de pães embebidos nele. Os gatinhos lambiam, olhando-me, agradecidos, mas não aceitavam minha aproximação deles, corriam para o fundo do esconderijo. Já a mãe deles, não corria mais de mim, reconhecendo-me como amigo e nutriz auxilir de sua pequena ninhada. Ah, meu Deus, quê família mais abençoada. São uns anjos, apesar das unhas e dentes afiados, já na primeira infância. Por que não sabem cantar como os pássaros, como os galos das alvoradas? Quem sabe conseguirei domesticá-los? Como proceder: entoando cantigas infantis?

LEITURAS INQUIETANTES II

Como ia dizendo outro dia, a mania de ler não me faz diferente: apenas me naturaliza no contexto, para o qual sou uma fração de segundo e outra fração de átomo (que jamais pode desintegrar). Uma vez vou de ônibus lendo a ficção e a poesia e os ensaios de Edgar Allan Poe; outra vez volto de trem de ferro lendo a paisagem das palmeiras ao vento, das plantações no sol e chuva das estações do amor de Deus. Mas de vez em quando o supra-sumo da preciosidade fica bobo e desprezível? Onde foi parar o gume do livro e do caderno? A auréola? O solavanco? O arrebalde das emoções?: As páginas em branco, uma pergunta atrás da outra em viva voz: só o que se lê é que muda de lugar? Cada palavra na sentença escorrega e cai. E agora, quê frase vem lá com aquela pessoa? É preciso ler nas entrelinhas, avançar no dicionário e nas expressões, tirar o sumo da casca, a essência da flor, e não ficar bobamente por aí repisando a trouxa de roupa suja dos reles verbetes “ta legal”, “é jóia”, “falou”. Meu Deus do Céu, os próprios monossílabos carregam epígrafes e epílogos na polissemia do virtuoso linguajar. Os livros e cantos de Ezra Pound vinham nos ventos quentes dos pantanais, nos frios mortais das montanhas, mas o ódio, esse ele jamais concebeu. Os olhos de luz dos dragões da noite, assim é o amor de Shakespeare: a fome na fartura: um ator que representa o Luar e outro que faz o papel do Muro. A Odisséia de Homero ao lado da do Ulisses de Joyce: os homens de hoje são as almas penadas dos deuses de ontem? À frente de seus errantes pés, Deus fez o mundo, como diria W. B. Yeats, onde o prazer da alma não fere o corpo. Ler e escrever são modos aproximadores e complementares de ver e tocar, de ir e ficar no transitório do imperdível; assim a leitura desfolha o calhamaço pós-moderno, os olhos são os lábios da volúpia, e de surrealismo a surrealismo você sente o dia desdobrando como uma toalha de banho no rosto, e Louis Aragon pergunta a uma das árvores do campo de futebol, onde tinha escondido suas fitas vermelhas. E André Breton vem dizer das tardes que partejam uma porção de cadáveres delicados.... Por que lê tanto assim, rapaz? Uma vez alguém me perguntou, julgando que lendo eu me desenturmava dos semelhantes. Ah, respondi, leio para tentar entender as pessoas e a mim mesmo, para aproximar as coisas remotas e distanciar as inoportunas e recalcitrantes. Mas, o que estou a dizer? Ah, isso mesmo: foi lendo uma vez Virginia Wolff que senti que andava pelos campos com uma mulher muito bela, pela primeira vez na minha vida: sim, com estrelas nos olhos e a brisa nos cabelos. E você, o que tem a dizer sobre o assunto? Ainda não sabe quem escreveu sobre sua vida? Experimente ler Alberto Moravia, Stendhal, Graciliano Ramos, Balzac, Machado de Assis, Flaubert, Pedro Nava, Franz Kafka, Murilo Rubião, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Adélia Prado. Você deve estar lá, inteirinho ou mesmo fragmentado, nas páginas de seus livros imortais. É só vendo e sentindo , ou seja, lendo o sofrimento dos outros é que entendemos o nosso sofrimento, a mais certeira, inflexível, inescapável de todas as constantes da humana vivência nossa de cada dia. Ana Hatherly. Já em1965 ela explorava a potencialidade lúdica das palavras, e seu poema “Quando a Lua Vier Tocar-me o Rosto” é uma prodigalidade de domínio da veia poética desatada. É um poema eternamente novo e creio que daqui a mil anos um poeta que souber das coisas como ela sabe, vai reescrevê-lo e o “coração do tempo”adornará as horas da casa e dirá que a sombra da lua no rosto é constante e nunca extinguirá.

LEITURAS INQUIETANTES I

Quando o tempo permite, vamos às quinze bandas: mas se chove demais é a lama, é o buraco se chove de menos é a poeira, é o buraco Eu cabeceava no fundo do carro, a pensar que é preciso controlar a licenciosidade: um pecado de vez em quando conduz à estabilidade da virtude. O livro “ULISSES”, de Joyce, contém 260.430 palavras, das quais 15.000 foram usadas uma única vez. Elas, no livro, imitam sons e ruídos, reflexos de luzes, fluxos de livres associações. Os monólogos sem sintaxe, sem sinais de pontuação. Stephan Dedalus é Joyce e Telêmaco, Leopold Bloom é Odisseu e o Judeu, Molly Bloom é Penélope, com seus vários amantes. Cada capítulo do romance oferece uma linguagem complexa e diferente. Nada da subjetividade de Dostoievski, Henry James e Faulkner. Uma sonata: tema, contra- tema, encontro, desenvolvimento, final. O “Grande Sertão: Veredas”, de nosso Guimarães Rosa, é o “Ulisses” que deu certo, ou seja, que encontrou muitos e muitos leitores. (ilações da leitura, em 1967, do livro e de comentários de autoria não lembrada). D. H. Lawrence vê o casamento, no romance “Mulheres Apaixonadas”, com o mesmo olhar de Bernard Shaw e de Ingmar Bergman, como uma forma desagradável de conviver (até problemática, para não dizer doentia). O celibato para ambos os sexos seria, talvez, mais feliz se se escoimasse dele a pecha de pessoa esquisita e intratável, que o meio social pespega? Ir por ele afora (o casal Rupert e Úrsula quer dizer) é como seguir uma ideologia, ou seja, andar em roda, dentro de uma gaiola. Os parceiros se tornam, um ao outro, intoleráveis, dentro de pouco tempo, observa Gudrun, irmã de Úrsula, sobre os cônjuges. Não aceitamos o mundo tal qual é, mas ele é só este e é assim mesmo, conclui, desalentado, um dos personagens. Será que a vida conjugal é assim tão difícil e penosa? A pergunta exprime toda a impressão que a obra de Lawrence nos dá. Já o amor entre as flores, ele descreve com outras mãos e olhos: “o pequenino estigma pontiagudo e vermelho da flor feminina e a antera amarela e máscula oscilante, e o pólen dourado que voa de uma para o outro...”. “O amor não é um desiderato, mas uma emoção passageira, como outra qualquer? Ah, a humanidade, para ele é uma árvore seca, coberta de folhas secas, que somos nós. Sem nós, ele acrescenta, o mundo seria limpo e encantador, com as árvores, os pássaros, as lebres e serpentes, os seres invisíveis (anjos em toda parte).... O ser humano apodrece na crisálida, é um deficiente que jamais adquire asas”. O amor está nos ramos, e não na raiz, por isso acaba logo, arremata um dos personagens, ao amarrar no pescoço uma pedra de terríveis recordações. Pequeno fragmento não aproveitado em meu romance inédito “Por Que Choras, Saxofone?”: “Acomodei-me entre sacos e engradados, na carroceria...: fazia frio e ventava no caminhão contra a montanhosa distância. No dia seguinte já estava em comunhão com as pessoas de Deus (lá no Jubileu de Congonhas de Campos): Zacarias, Isabel, João, José, Jesus e Maria! Com as pessoas simples do povo sofredor, perdidas em casinholas nas montanhas espinhosas...”. - É difícil distinguir no burburinho da praça os rapazes da TFP (tradição, família, propriedade), os pupilos de Hitler e de Mussolini, os inocentes úteis de Stalin. -Aquele cara de vilão de faroeste, êmulo de Jack Palance. - A mulher em Renata Pallotini, que descrevia o amante que vinha na onda, primeiro sobre ela e depois dentro dela, até chegar na mulher deitada na areia da praia, que via o amante primeiro sobre ela, depois dentro dela. - Quando o raio fendeu o azul do céu, trouxe para o meu campo de visão as Musas do Parnaso, assim digo, lembrando-me de um conto de Myriam Campello, de quem pinço outras cintilações. -“ Os cavalos ainda pingavam o sal do último naufrágio. - O desejo dói e assusta, oh, Senhor! - Os orgasmos tremulam no corpo como os carrilhões na catedral”. - Os olhos do corpo dela eram chispas do mais puro sol, eu, ainda myriancampellizado, arrisco a dizer. E terminar o parágrafo.

terça-feira, maio 29, 2007

ENGORDO, LOGO COMO

O título deste texto aproveita o mote do livro de Yara Ferreira Etto (Mazza Edições, 2003, Belo Horizonte), portador de guloseimas intelectuais repletas de um humorismo sério e ao mesmo tempo divertido e instrutivo, perfeitamente contextualizado na realidade cotidiana, graças à habilidade talentosa da estreante (e já madura) autora de flores e frutos (já também) maduros. É necessário que a crítica (e não eu, que não passo de um reles resenhista) dê um close na obra dela, revelando-a publicamente no cenário de nossas belas letras como uma nova Adélia Prado, agora poeticamente na prosa, e neste ponto diferente da autora de “Bagagem”, que brilha mais poeticamente em verso mesmo. O tema da obesidade como uma quase-doença, despertou-me, principalmente, numa recente viagem à Europa (França, Alemanha, Áustria e Itália), de 18 dias, nos quais não avistei pessoas obesas, a não ser turistas originários das duas Américas. Evidencia-se, assim, que nas partes centrais da civilização moderna, as pessoas aplicam-se mais às boas normas da educação até no comer: comem para viver e não vivem para comer, como dizem acontecer nos países subdesenvolvidos. Depois que regressei, andando nas ruas de nossa cidade, fico impressionado com a quantidade de pessoas volumosas que defronto. Instintivamente vou anotando as características e fico ainda mais abismado. Só numa calçada de um quarteirão do Centro deparei com 15 pessoas com dificuldades até para andar, dez das quais eram mulheres que, a julgar pelas aparências, pertencem à chamada classe social pobre. Depois constatei nos outros quarteirões que em cada grupo de dez pessoas uma é obesa, outra é tendenciosa e outra já está chegando no limite. Entro aqui com estas observações porque, participando, outro dia, de um encontro dos aposentados da CEMIG em Porto Seguro, não vi mais do que duas ou três pessoas gordas num conjunto de quase seiscentas, de ambos os sexos. A razão estava no cuidado com a saúde, através do favorecimento de um plano conveniado idôneo, que sabe muito bem o valor da correta prevenção, pois quanto menos gasta com a doença, mais se pode gastar com a saúde dos associados. E aí uma dúvida se levanta: Por que toda grande empresa não tem seu exclusivo Plano de Saúde? E por que o Governo não transforma o SUS num plano de saúde? Respostas para a redação. Bem, voltemos ao livro, que é o tema despertador de toda celeuma. A autora começa logo ironizando que a gordura não era problema para Mona Lisa, nem pra Fornarina, nem para a Maja Desnuda. E que Dêsdemona não teria sido assassinada por Otelo, se fosse gorda. Pois, como uma gorda pode ser infiel? Quem a quer? E as ironias humorísticas continuam: - O bebezinho gordo parece um capadinho (os admiradores elogiam, sem sarcasmo). - “Jane Russel usava mamá grande, usava, passado mais que imperfeito”. - “A alma do gordo não cabe no corpo magro”. - Toda mulher que é gorducha/ tem um segredo só seu:/ ao vestir-se, grita: puxa!/ como este troço encolheu!” Lembro-me, a propósito, que a afirmação “como você engordou e está mais bonito!”, é sempre dita com alegria, como um inusitado elogio. E a batelada de recomendações e receitas, todas longamente ineficazes? É um livro de quase 100 páginas, que você lê de uma sentada. Igual a um prato engordatício: você come de uma sentada. É bom ler assim depressa, porque depois a gente relê como se fosse outro, sendo o mesmo livro. A autora fala das prescrições e dos paliativos: caminhadas, ginásticas, pedalagem, academias, SPAS, regimes, drogas, simpatias, remédios de farmácia e de curandeiros, ah, mas, ela acentua que uma iniciativa alimenta a outra, e outra a outra, todas desagradáveis e depois vem a óbvia conclusão: bom mesmo é engordar, é deixar a rama da abóbora lastrar! Fora da boa vida, nada dá certo – e se você se livra de uma tentação é porque ela não era suficientemente forte, já dizia o André Gide. E por isso não se pode dizer que sua força de vontade prevaleceu. E a toda hora a narradora, às voltas com a balança e com o espelho, sai de uma para enfrentar o outro, que é uma espécie de seu próprio altar-ego. E, a toda hora, ouve dele as reprimendas precedidas dos dizeres “Minha Ama e Senhora”, como na estória infantil da madrasta implacável, censurando-a pela incontinência dos hábitos e costumes obesedíçios, até perder a paciência e sentenciar (na página 73): “O que a senhora não tem é vergonha mesmo!” E para completar a rapsódia, vem a estória da amiga que foi ao psiquiatra com a desculpa de que sua obesidade era psicológica, e ouviu dele, a contragosto, a sentença: “Quem não estaria deprimido, sendo oprimido por 112 quilos de banha?” Ai então a persistente amiga optou por outras alternativas: lipoaspiração, cirurgia do estômago, o diabo a quatro. E aí, depois, o que acabou acontecendo? Teve que hospitalizar-se às pressas, por estar entalada ao comer uma saudosa, lauta refeição.

sábado, maio 26, 2007

AS ORQUÍDEAS NUNCA MORREM

É uma leitura emocionante, a desse livro de Yara Ferreira Etto (Mazza Edições, Belo Horizonte, 2007). Vivendo placidamente num belo e espaçoso sítio ecologicamente correto e poeticamente inspirador, a autora evoca na lembrança do resenhista aquelas romancistas inglesas de tempos já remotos, só faltando debruçar-se sobre as páginas em branco e escrever, também, uma coleção de belos e legíveis romances. Se pode suscitar alheias emoções (intensas e prolongadas) em relatos verídicos, como os desse livro, poderá fazê-lo, também, em relatos fictícios. Assim mesmo: reviver o que passou, como se não tivesse passado, mesmo que sejam frações de pó numa urna de bronze, como diz o poeta Tennyson na epígrafe do Capítulo II. No trabalho dela ressaltam a feliz e audaz conjunção da afetuosa e caseira faina familiar, e do grave e agudo exercício medicinal e da poderosa e fluente argúcia da expressão de todas essas partes e de muitas outras distribuídas pela vida dela no caleidoscópio dos dias passados, presentes e futuros. Argúcia intelectual e equilíbrio emocional: tudo vale a pena quando a alma não é pequena, como lá diz o Fernando Pessoa. O ânimo otimista acima das vicissitudes deprimentes: como consegue tanta força luminosa, mesmo sem, confessadamente, acreditar em Deus (em Deus como no-lo ensinam os atuais catequistas)? Por obra e efeito de um dom que lhe foi outorgado a ele por um Deus ainda não de todo esclarecido a nós, que professamos uma religiosidade nebulosa? A palavra escritor define a plêiade de romancistas, contistas, poetas, cronistas, articulistas, ensaístas etc. Refere-se a quem consegue exprimir uma idéia e/ou uma imagem com palavras em verso ou em prosa. Exprimir, no caso, é revelar, instaurar através do vocabulário um ser e/ou um estar, algo que pulsa e surge, nitidamente (ou mesmo nebulosamente) nos sentidos do leitor atencioso. Então, por essas virtudes é que persisto na propensão dela de suscitar idéias e emoções escrevendo, o que não só credencia como exige dela uma resposta através da escritura de contos, romances e poemas que, embutidos nela aspiram, exigem exteriorização. “É difícil viver depois que a gente morrer”, esta frase de uma doente mental, que dá título ao Cap. XIII, assentaria no título de um romance capitoso que um bom surrealista (o melhor é o cineasta Bunnuel) ou mesmo Kafka ou Murilo Rubião escrevessem, para o gáudio de nós, inveterados leitores dos bons autores. A sadia convicção de que é dona de si mesma, que bem sabe o que é, onde está e o que quer, é o que transparece na página 95, onde afirma, com outras palavras (mais literárias) que existir é bom algumas vezes, e em outras é muito doloroso: aproveite o que é bom, respeite o outro, e procure, se pode, interferir para melhorar, mas não faça isso em busca de recompensas, que elas não existem nem antes nem depois da morte. O poder ajudar já é, em si, a recompensa: e não há mérito nem demérito nisso, como na omissão. Há, sim, as mentes perversas: mas como não haverá recompensa para os bons, não pode haver castigo para os maus – e, assim, tanto o mal como o bem são, apenas, uma questão social. Bem pensado e dito, heim? Com Deus tudo é suportável, mas..., sem ele, indaga, pesarosa, a cabeleireira. A mãe (da autora) que faleceu aos 99 anos, não queria que ninguém a visse morta – tinha medo de acordar, sufocada, depois de dada como falecida. Exigiu da filha que uma substância mortal fosse injetada em suas veias , para assim dirimir qualquer dúvida. A especialidade do marido (médico de renome em Divinópolis) era cuidar dos indigentes. Ele, vítima de um derrame cerebral, sofreu a paralisia de algumas partes do corpo durante 23 anos. E não foi por pena que ela o amou durante todo o tempo, ela diz. Desenganado da cura de uma doença, a pessoa descarrega nas outras seu desespero e revolta (ela constata, ao longo de seu desvelo de esposa-quase-mãe e de enfermeira-muito-médica) – e é aí que as más qualidades da pessoa desenganada, até então ocultas, vem à tona, e as boas não se manifestam mais, infelizmente. O que essa pessoa mais pensa e sente é que foi invadida por um alienígena que a devora, algo inexplicável e inescapável (assim ela diz na página 108). A especialidade do marido eram os indigentes. E a dela? Cuidar da família (pai, mãe, marido, irmã, filhos, netos) diuturnamente – e também de todos os seus semelhantes, na medida do tempo e do espaço restante. E o cuidar de si mesma? Se cumpria o que julgava ser suas obrigações, ela considera, já estava cuidando de si mesma, de boa vontade, sem lamúrias. Uma verdadeira filha de Deus, de um Deus um tanto diferente do que é ensinado no catecismo (indefinível pelas contradições e, por isso, um tanto ou quanto socialmente incognoscível?).

sexta-feira, maio 25, 2007

O ENCONTRÃO DOS APOSENTADOS

Os conceitos de senilidade e de jovialidade bem que merecem uma acurada revisão de vez em quando, para não serem facilmente antagonizados. As pessoas, do nascimento ao falecimento, desfrutam dos mesmos impulsos e impasses, sofrem das mesmas dificuldades e desfrutam dos mesmos benefícios das condições existenciais de, afinal de contas, serem como são e estarem como estão. E não raro encontramos muitos jovens que são, em muitos aspectos comportamentais, notoriamente envelhecidos, e muitos velhos que até mesmo remoçam com o passar dos anos. 

Participando agora, pela primeira vez, do belo espetáculo do chamado ENCONTRÃO DA AEA, entre centenas de colegas aposentados da CEMIG, não me senti em nenhum momento uma pessoa saudosista nem defasada, mas sim uma pessoa em plena posse de seus dons e predicados físicos e mentais, enturmado na espontânea e feliz convivência de sempre. E mais uma vez tive o prazer de constatar que o chamado e nunca assas louvado “Padrão CEMIG” de comportamento funcional (e existencial) deixou realmente em cada um dos colegas uma ressonância de dignidade arraigada que substabelece a que está em permanente formação no perfil psicológico de cada personalidade humana. O que aprendemos uns com os outros ao longo dos anos de coleguismo transparece nas conversações dos encontrinhos, como o adorno recíproco da amizade mais cordial e respeitosa, e ainda mais nos tão propiciatórios ENCONTRÕES brilhantemente promovidos pela AEA. 

 Notamos nas praias magníficas e nas amplas áreas dos hotéis de Porto Seguro esse traço coletivo do somatório das individualidades: além da notória ausência da obesidade (a indicar a boa manutenção da saúde de cada um, virtude herdada do vínculo empregatício cemiguiano) e entre muitas outras indicações positivas do aposentado: a tônica da familiaridade e da identificação afetuosa de uma convivência trabalhista sem arranhões e estigmas. E aqui abro um parêntesis para elogiar a benéfica influência funcional e moral de administradores que instauraram e consagraram a salutar disciplina de trabalhar e de viver. 

Cito aqui os nomes que me ocorrem naturalmente: Paulo Veiga Salles, Arquimedes Violla, Joaquim Soares Ramos (do tempo em que trabalhei na construção da Usina de Salto Grande), José Francisco Lemos Filho, Valter Chaves, José Pedro Rodrigues de Oliveira, Uilton Rocha, Haroldo Velloso, José Petrônio de Oliveira Campos (do tempo que trabalhei em Divinópolis, na Distribuição), e tantos outros igualmente influenciadores da reconhecida moralidade profissional, artífices da boa exemplaridade em termos da competência e do respeito que bem merecem o serviço público, um serviço nobre e sagrado no princípio, no meio e no fim de suas etapas. 

O parêntesis foi longo, desculpem. Mas falar do ENCONTRÃO, em si, é reportar, mesmo, à tradição cemiguiana do bom desempenho dos diretores e funcionários da AEA, inspirados e condicionados dentro do mesmo espírito de solidariedade, salubridade moral e física de todos os participantes. Que a promoção não esbarre em obstáculos de continuidade.

domingo, maio 20, 2007

MIRELA ENTREVISTA LÁZARO BARRETO

Conte algum fato ou acontecimento que tenha marcado a história da cidade: 
- A chegada dos frades franciscanos na década de 20 do século 20. Encontraram uma cidade no fervor e no marasmo do crescimento material: a população aumentando, a área construída ampliando, tudo assim sem planejamento, sem uma boa administração. As pessoas de diferentes regiões, portadoras de culturas também diferenciadas, tudo isso e a sede de progresso criavam a dificuldade da convivência, que se tornava caótica socialmente. Os franciscanos conseguiram conciliar as diferenças, formalizar os comportamentos, criar o clima religioso da cristandade – e assim a paz social foi estabelecida. 

De que maneira ele é relembrado pelos moradores da cidade? 
 - Com o sentimento de gratidão. As pessoas mais idosas lembram da convulsão social que a disputa religiosa em termos políticos causava, afligindo os habitantes na incerteza de uma melhoria futura. Lembram muito bem que as boas normas de conduta dos indivíduos no panorama social ordeiro e pacífico foi conseguido através da pregação evangélica dos franciscanos, que ainda hoje mourejam na mesma finalidade de perpetuação de uma maneira digna de viver ao alcance de todas as pessoas, indistintamente. 

Por que você considera esse fato ou acontecimento importante para a cidade? 
- Pelo bem que causou a todos os segmentos municipais. Os franciscanos são cristãos no melhor sentido: pregam a igualdade, a fraternidade, a harmonia entre os seres humanos. E isso só se consegue com o sentimento do amor repartido entre todos, para o bem de todos. E eles, os franciscanos, dão o melhor exemplo, na própria forma em que vivem, não só na prática do amor ao próximo como também no amor e no respeito à obra divina, ou seja, o amor à natureza em toda a sua extensão animal, mineral e vegetal.

Em 19/05/07. 

sexta-feira, maio 18, 2007

DOCE MEMÓRIA (*)

Dizem que o Aleijadinho tinha três escravos em casa, que eram, afinal de contas, os modelos dos anjos de suas obras. Todos temos, mais modestamente, um, dois, três anjos na escorreita, na estreita glória de viver, não é mesmo? Uma lua na felicidade, uma escuridão na desventura, ia pensando Joamir, tarde da noite, na volta do arraial para a casa do arrebalde da Água Fria. Sou, afinal, um pornógrafo platônico, que desabotoa a braguilha, mas não sai da moita? No curso das folganças é que se intrometem os revezes, as desditas? Assim vou acabar como um narcisista às avessas, a cuspir na própria imagem? Ele lembrava muito bem. Antes de desfrutar e amargar o amor de Mirafélia, senti uns intercalados pendores por outras moças, entre as quais uma professorinha de Rei João, que fazia um estágio na escola do Desterro. Que rumo ela terá levado? Será que lembra bem de mim como bem me lembro dela? Ah mas foi o que foi e que nunca mais será. De uma outra professora ((anômala, anônima), lembro-me de quando voltávamos de um pagode na Estiva: no retorno pela estrada propícia, sob a penumbra de infinitas estrelas e o sombreado de um velho luar complacente, ah! Não posso dizer, ou posso? Éramos muitos pares caminhando na estrada da volta ao arraial, todos propositalmente isolados na certa distância propícia aos afagos e suspiros, ah, como beijávamos!: nos lábios, na maçã do rosto, no nariz, no pescoço, onde mais?, no onde mais da interdição implícita,? ora essa, é claro que éramos todos decentes, socialmente. Voltávamos a pé, sem pressa, todos os pares enlaçados, beijando a cada sombra de uma árvore ou de um barranco, no silêncio da noite aprofundada. E quem, no meio das estrelas e das matas marginais aplaudia ou reprovava? Os ávidos corações nas bocas e nas mãos, a sexualidade escondida arrebitava a tanga? Escurecia a trilha dos carros de bois? Abreviava qualquer adiamento? Era ainda um sonho ou a realidade é que virava sonho a cada curva do noturno cenário de nosso refestelado caminhar? E quando chegássemos ao arraial, cada abraço desenlaçando, o que de afortunado ou de pesar levaríamos para casa? Ninguém queria chegar: estávamos onde queríamos. E aquele estado de poema nunca vai acabar, nunca vai acabar na mais doce das memórias.

(*) Fragmento do romance “Monólogo e Pranto.

quarta-feira, maio 16, 2007

DEUS, ANIMAIS, FAMÍLIA

Klaus Mann encerra o livro de sua biografia de André Gide, com as palavras do próprio escritor francês: “nunca aceite a vida como um fato consumado. Nunca deixe de acreditar que ela possa ser mais rica e mais bela – a sua vida e a vida de seus semelhantes. Não aceite nada por definição! Investigue tudo! Exija provas para cada teoria! Ajude a melhorar todos os males! Algum dia compreenderá que é o homem – e não Deus – que devemos censurar pela confusão dos nossos negócios terrenos. A partir desse dia você não concordará mais com o mal. Ó luz tão clara. Penetra nos meus olhos. Tua verdade, Senhor, até o coração me feriu”. Meu Deus! Como a árvore às vezes parece uma pessoa. É como muitas vezes uma pessoa tem os ares de uma galinha da angola ou de um cachorrinho vira-latas. Uma combinação de elementos genéticos de enzimas e cromossomos se plasmaram na justaposição dos condimentos e se abraçaram na mistura das afinidades – e daí veio a flor de uma moça chamada Mirafélia e a beleza de cabra chamada Matilde? A MEL, nossa cachorra afegã, que tem o porte de uma majestade e um semblante de uma poeta-musa contemplativa, ficava amuada depois do cio, como se tivesse sido emprenhada, mesmo sem cruzar com o macho. Apresentava os sintomas da gravidez, abria o apetite, deitava à sombra nas folhas da mangueira, e se estirava, momenta, ciente de que esperava o alentado parto. A clonagem acenada pelos cientistas enfada a esperança de melhores dias no reino animal. Já pensaram na canseira visual das fisionomias repetitivas? Ah, não foi à toa que na Fazenda Serra Negra, do Ceniro Marcolino, uma ovelha apaixonou-se pela novilha malhada, que retribuiu o amor com a mesma intensidade. Não havia cerca de arame ou de tijolo que as separassem..., de tal maneira que quando o dono vendeu uma teve que vender a outra para o mesmo comprador, para assim impedir que ambas morressem de tristeza. O amor delas era ou não era uma fuga às semelhanças, uma afetiva busca da diversidade? Missa do Dia das Mães na Igreja de Nossa Senhora de Fátima (bairro Poro Velho, Divinópolis, MG). Os atos litúrgicos repercutiam nos corações afinados na contrição e na penitência e nas aleluias evangélicas: as orações, os cantos, os salmos, as leituras bíblicas, as oferendas e a comunhão cristã do povo de Deus. Tudo muito sublime como em toda primavera da alma humana diante do santo sacrifício da Missa. Depois que uma criança declara que o dia das mães é todo dia e o padre observa que cada uma (das mães) é uma auxiliar direta de Deus, pois está sempre recriando a vida no mundo, todas as mães presentes são reunidas num recinto do altar para receberem a homenagem coletiva dos fiéis. Aí uma catequista (que depois descobri ser minha prima) passou a ler um texto de palavras quentes e luminosas, que penetraram nos corações, enternecendo e comovendo. Aos poucos as palavras, as frases e os períodos já derretiam os corações - e as pessoas começavam a enxugar as lágrimas da emoção mais profunda. A própria catequista lia e soluçava, soluçava e lia, num duro exercício de estoicismo e de fina piedade. Abro aqui um parêntese para observar que o tema do amor materno sempre foi (e será) muito comovente, sempre a lembrar-nos os passos de nossa própria vida, iluminados pelo olhar de nossa mãe. E é assim, instintivamente, que a auto-confissão aflora, com a certeza que vem do fundo da consciência, que nenhum de nós neste mundo foi suficientemente bom e justo com a própria mãe, e que podíamos ter sido mais atenciosos e amáveis com ela. É assim mesmo, leitor, ou estou falando apenas por mim ? Aqui fecho o parêntesis para felicitar a catequista, que mesmo soluçando, concluiu a leitura, de forma clara, bonita, cheia de amor e até de um certo heroísmo. Rara primavera em pleno outono friorento. Glória a Deus nas alturas e felicidade na terra às pessoas de boa vontade.

NA INFÂNCIA

O quintal densamente arborizado: jabuticabeiras permeando o espaço com os ipês e jacarandás, as bananeiras com as bilosqueiras, as laranjeiras com os pés de coités e de articunzinhos, as mangueiras enormes e robustas, os mamoeiros dóceis e frágeis, os esgalhados pés de urucuns e de café, os cajueiros e as mexeriqueiras dispersas, um córrego que se repartia, enfolhado e enflorado no chão úmido e fértil. Mas, de um dia para o outro, a verticalíssima árvore de jambos secou, do tronco às pontas dos galhos, rachando o chão na área das raízes, mostrando nas fendas os indícios de algo insólito e assombroso. Um bicho do outro mundo? Um dragão, um dinossauro? Uma tarântula gigante? Vi aquilo movendo-se sob a tênue camada do solo rachado e fiquei bobo de ver. Apavorei-me na repentina solidão. Que diabo seria aquilo? Que loucura do outro mundo seria aquela? Mais que depressa busquei a lata de querosene e quando ia entornar o líquido para tacar fogo, acordei com minha mãe dizendo que estava na hora de ir para a escola. Fiz o sinal da santa cruz e dei graças a Deus.

UM LEITOR, SIMPLESMENTE

Meu amigo, que era eu mesmo, perdia-se na opacidade da luz e já nem sabia volver ou seguir - seu coração bombeava sangue frio? Meu amigo, estúpido asceta do amor, apagou deus no quadro negro da escola, danou a pintar o diabo a quatro nas senis aquarelas do exílio juvenil - e a moça que o cativou, por mal dos pecados, era por assim dizer, o anjo diabólico mais puro possível. Quando entrar no amor, ele dizia “(tomara que isto jamais aconteça)”: “quero ser amado”. “Não há melhor modo de viver”, escrevia Machado de Assis, “que nutrir o amor próprio dos outros com pedaços do nosso” amor. Não varre a casa de noite, minha filha (a mãe dela dizia). Não varre as almas para fora de vocês (a mãe dizia aos filhos). Seja como for o batido da lata, ninguém pode subestimar o nunca assas louvado desejo feminino dos personagens do encantador e encantado poeta Guimarães Rosa pois até seus bandidos sertanejos são amáveis.

domingo, maio 13, 2007

PREFÁCIO AOS CONTOS DO APOCALIPSE CLUBE

As mentes preocupadas com os desmandos das ações alienadas perscrutam e registram que nos pólos da esfera terrestre o aquecimento global, diante da inclemência climática e do baixo índice pluviométrico (às oito da manhã o sol já é uma brasa a sapecar nossos poros; ao meio-dia já resseca e exaure o líquido, incerto e escasso, de nosso corpo; e cada frente fria anunciada já vem com a traseira queimando) é de tal monta que pressagia a mais nefasta proximidade temporal: as crianças de hoje não passarão, amanhã, de pululantes grãos de cereais no bojo de uma férvida panela de pressão, na qual toda ternura derreterá, todo ruído será um trovão, e todo relâmpago um raio que nos partem em brasas, cinzas e fumaças. Cruz-credo, vira essa boca pra lá, coruja amarga e azeda. Ora essa, chispa daí. O noticiário fatídico então ressalta que os icebergs da Groenlândia e da Antártica soltam-se de suas calotas e o nível dos mares, que aumentava em milímetros, tende a desmesurar. As casas da Sibéria já estão desmoronando porque o chão está afundando? E então, o planeta vai primeiro virar uma bolha e depois um pingo de salsugem na imensidão cósmica? E então, ecologistas de toda parte, não está passando da hora de acirrar uma nova campanha? Um trabalhinho aqui, uma palavrinha ali: oh! que tenham dó e piedade da atmosfera que se descola da sistêmica atividade solar (que então não passará de uma bola de fogo, um cobertor de ferro em brasa que asfixia e derrete todo sinal de vida na descabelada crosta terrestre). E então, ambientalistas de todos os matizes? Não deixem que joguem água fora nem lixo nos rios, não aprovem a monocultura, o desmatamento, o assoreamento, a lixiviação. Ora pois!, não esmurrem a inocência das migalhas, nem risquem o fósforo nas macegas, tenham dó da atmosfera nas planilhas do bem estar social das nuvens no limbo vulnerável, tenham piedade das formigas tontas de tantos seres vivos (que não souberam olhar para cima), condenados à morte prematura. E então, políticos de meia tigela, que não deram conta do recado do povo que lhes outorgou a administração dos bens naturais (vale dizer da vida no mundo): não atirem pedras nas caixas de marimbondos nem esmaguem as minhocas e tanajuras e siriricas em que os seres humanos se transformaram; não manquem de ambas as pernas, como sempre mancaram: ao contrário: cheguem terra úmida e fértil ao pé de milho e de quiabo, voltem a andar a pé nas ruas e estradas, dêem um lenitivo aos próprios olhos (os ossos, as vísceras, as carnes e peles agradecerão); não sujem as fontes das fluências, não esmurrem a dócil fotossíntese, reverenciem a meiga clorofila, apaguem a luz que fere a saúde da treva, desliguem os motores da balbúrdia inconseqüente, respirem o restinho de ar azul do verde ambiental, abençoem a biodiversidade; deixem de ser bobos, ó politiqueiros de uma figa: contemplem os milagres da natureza (e seja um deles), não permitam que cortem a árvore da vida, bem plantada no quintal que ainda resta das casas e nos âmbitos propícios de nossa vivacidade, tão subjugada, mas ainda plantada para salvar o mundo da esturricada, do finalíssimo (que deus nos livre e guarde) apocalipse. E então?

sábado, maio 12, 2007

NA CAPADÓCIA

À filha Ana Paula e ao genro Guilherme. 

A natureza escavou e burilou os maciços rochosos e a população aproveitou o começo da instauração de uma arte ínsita e cinzelou o solo vulcânico, para toda espécie de serventia. O resultado é a maravilha que impressiona o visitante pelo arranjo formal da comunhão de dois esforços, o da natureza e o da mão humana. Na antiguidade a região foi ocupada por populações diversificadas (em incontáveis cidades, hoje soterradas): os hititas, os frígios, os lídios, os macedônios, os romanos e os cristãos. As cidades subterrâneas, construídas sob o tufo vulcânico, são hoje designadas como a oitava maravilha do mundo. Não apresentam decorações, o que dificulta o estudo dos historiadores. Foram escavadas no tufo e atingem até 8 a 9 andares de profundidade, com seus labirintos e túneis, chaminés de ventilação, salas, corredores, casas com oficinas de produção vinícula, dormitórios, refeitórios, igrejas. Mas ainda não se sabe onde foi depositada a terra retirada ao longo das construções – nem o tempo levado de tão articulado empreendimento. Os dias pretéritos e os do porvir esplendem e fenecem ao belo prazer de nossa vontade inconstante e autônoma: vão às gabirobas da infância rural, aos apocalipses da senilidade planetária, com a mesma negligência e argúcia inequívocas no meio da noite e em qualquer parte do dia por assim dizer paranóico? Pouco antes da morte terrena, o súbito vulcão varreu os arredores da Capadócia, erigiu os arcanos de suas atuais cidades subterrâneas. Muito depois da vida assim alquebrada, o território se refez nos tufos resultantes. Mas então: cadê as frutas e os cereais, as bênçãos do céu chuvoso, iluminado e iluminador? Agora aqui só jaz a terra das areias ardentes e não mais a das coivaras acariciantes? Mas então: aos poucos a terra vai rebrotar as sumidas sementes, sob o rompante musical dos grilos do amanhecer de uma nova era? Aqui o Imperador Constantino e sua mãe Helena teriam encontrado a cruz do sacrifício cristão, e também o afresco de São Onofre (que nos sessenta anos de vida no deserto teria até mesmo mudado de sexo). Aqui na abside da Igreja da Maçã vislumbra-se nos titubeios da algaravia: os três hebreus na fornalha, a filha de Jairo a hospitalidade de Hibrahim a Natividade a trindade Jesus-Maria-José o chamamento dos discípulos, o Arcanjo São Miguel a Comunhão e a Transfiguração a descida do túmulo aos limbos a ressurreição de Lázaro a ascensão de Jesus, a glória do pai, do filho e do espírito santo. A aura da espiritualidade.

quinta-feira, maio 10, 2007

DEFENSORIA PÚBLICA

Ivana Maria França de Negri, de Piracicaba, SP, é uma verdadeira ideóloga da piedade, pessoa que pratica a legítima teoria cristã do amor às vítimas da crueldade ateísta dos predadores da natureza reunida em seus elementos animais (aí onde o ser humano se localiza como participante), vegetais e minerais – a santíssima trindade da miraculosa vitalidade planetária. No livro “Meus Contos Prediletos”, que inclui a parte denominada “Minhas Crônicas Preferidas” (Gráfica editora DEGASPARI, Piracicaba, SP, 2006), ela dá a certeira e concisa resposta da fragilidade e da impotência, (ou seja, da piedade contra a violência, da poesia contra a política), visando sensibilizar a dura cerviz prepotente de uma classe dirigente mundial que só dirige a favor de si mesma, doa a quem doer, mate a quem matar. Com doçura e percuciência, ela levanta a voz incisiva e persuasiva a favor dos humilhados e ofendidos de nossos tempos pós-dostoieskieanos, mais humilhantes e ofensivos do que os dos séculos anteriores. É uma luta vã, sem respaldos positivos nos resultados? Com doçura e percuciência, ela vai atraindo adesões, é claro – e isso é que sua palavra escrita em livros e em jornais e na internet visa, e consegue, aos poucos que vão se avolumando, graças à escolha daquela “melhor parte” de que fala os Evangelhos a respeito de Maria, irmã de Marta e de Lázaro. Os contos são plenamente legíveis e agradáveis, a começar na página 3, onde sentimos “o cheiro inconfundível da chuva”, que abre o caminho da luz celestial para lavar “as calçadas, vidraças, parapeitos, catedrais e a alma das pessoas”. Mais adiante, no conto “Agatha”, ela fala da moça “silenciosa” que “caminhava como se estivesse caminhando em felpudos tapetes” e que acordava do “sono levíssimo”, com “olhos de mar” que “se abriam e inundavam o ambiente de torrentes esverdeadas”. Mas a certa altura das atuais balas perdidas e fatalmente encontradas nesta guerra civil que sofremos no dia-a-dia deste inóspito tempo, ela brada, numa interrogação que é uma exclamação: “Até quando, meu Deus? Até quando a violência vai matar os sonhos de nossas crianças?” Além de poeta, cronista e contista, com dezenas de prêmios acumulados por publicações no Brasil e no estrangeiro, ela integra a Sociedade Piracicabana de Proteção aos Animais, há mais de dez anos, empregando o melhor de suas faculdades na luta utópica (inglória e gloriosa ao mesmo tempo) da boa convivência dos seres vivos de nossa terra, que é a única que temos, nossa melhor herança de Deus.