sexta-feira, setembro 29, 2006

A PROMOÇÃO DA CIDADANIA

A Televisão, que hoje ocupa os ares e os lares de todo o mundo não veio sozinha como o deus ex-machina do antigo teatro grego. Veio a reboque do surto de inovações técnicas, tecnológicas e eletrônicas do chamado século da velocidade, que foi o século vinte. Veio no vendaval das substituições dos modos de viver numa civilização moderna, pós-moderna, pós-pós(?).... Sentimos, no começo, a falta dos grandes e belos filmes, mas depois passamos ver em reprise esses filmes nela mesma em telas, telinhas e telões. Perdemos a arte do convívio sócio-familiar dos saraus, da contação dos casos, das cantigas de roda, das retretas nas praças, dos salões de bailes, do “fazer avenida” dos inocentes namoros, a literatura oral em todas suas facetas, as serestas das noites estivais e enluaradas. Perdemos uma porção de coisas e bens, mas perder é o destino de todo ser humano. Se não se perde nas cartas de baralho, perde-se nas outras lutas e até nos anos da vida. Os méritos da superposição também são inúmeros. Distribuídos em vários itens: o informativo (telejornalismo) ágil e sintético nas sucessivas edições diárias e na diversidade de canais disponibilizados num átimo pelo controle remoto; o recreativo é às vezes maçante, eivado de pauperismo, mediocridade e matéria-paga, além do narcisismo publicitário do próprio elenco de participantes numa símile vexatória da coruja gabando o toco. No primeiro caso ressaltam os seguros desempenhos de ajuizados e qualificados jornalistas; no segundo, brilham a verve e o talento de alguns humoristas de plantão, realmente impregnados da graça e da veracidade. A ficção novelística é outro destaque da programação, detectado pelos níveis de audiência que acirram a concorrência entre os canais das emissoras, o que é muito bom para o pessoal da mão de obra, melhor ainda para o faturamento publicitário, e discutível (ruim?!, medíocre?) para os expectadores, que deixando-se influenciar pelas balelas de água com açúcar da vida cor de rosa ou pelos dramalhões fajutos, alienam-se, correndo o risco de se igualarem na vulgaridade da correnteza dos comportamentos populares automatizados, São os ossos do ofício – ou a formatação pode ser melhorada através do aguçamento de uma revisão de valores, tendo em vista que o paralelismo e a eqüidistância entre o sonho e a realidade não é bem assim, tem outros contornos e obstáculos? Primeiro é preciso consultar as fontes da verdade e da beleza mediante a pesquisa de campo, cientificamente elaborada; e a pesquisa livresca na obra dos bons autores. Creio que como está, está prestando um danoso desserviço à sociedade, por mistificar as verdadeiras significações do que é realmente belo e veraz. Perdoamos na Televisão a recorrência de atos falhos como chamar de mau tempo quando chove e de bom tempo quando o sol está de rebentar mamonas, uma vez que neste tempo de água minguante em toda parte o bom tempo é o mais chuvoso e não apenas o mais ensolarado. Mas não podemos perdoar, de bom grado, a insistência dos programas de culinária, que sem dúvida concorrem para incrementar a epidemia mundial da obesidade. Tampouco a relevância, quase a glorificação infundada do atual futebol profissional brasileiro, que hoje se nívela ao peladeiro dos times amadores de várzeas dos bairros das grandes cidades e das pequenas cidades interioranas, Os cronistas e locutores endeusam os pernas de paus e quando surge um verdadeiro craque, eles passam a agir como agentes negocistas, festejando as ofertas e compras para os grandes clubes estrangeiros, o que é uma contradição em termos, uma vez que como profissionais do jornalismos deviam ser os mais interessados no reforço e não no desfalque e no pauperismo atual de nossos times e de nosso futebol, que está perdendo o élan, a graça do espetáculo. E assim o que vemos nos estádios é mais a briga das torcidas, cenas deprimentes, para não dizer cruentas, inadmissíveis na esportividade. Mas, apesar dos pesares, tenho plena convicção, a julgar pela excelência de muitos programas,que a Televisão é uma legítima e excelente promotora da cidadania, que assinala uma diretriz ao alcance de todos de uma forma condigna e razoável de viver diante da chusma caótica dos acontecimentos sociais do cotidiano novidadeiro e periculoso. O que mais existia antes na convivência das pessoas era a trindade: escola-colégio-família, como formadora de opinião e mantenedora de consciência. O descontrole político dos novos tempos esvaziou o poder de influenciar as pessoas da referida trindade. As pessoas, sem o ponto de vista de apoio, que agora a televisão de bom padrão de qualidade dá, estariam ainda mais perdidas e cabisbaixas, desguarnecidas da proteção contra os malefícios da insegurança, do desemprego, da incredulidade nas instituições governamentais. Dela, da televisão, é que vem para as pessoas o tipo de informação sensata, crível, honesta, que dá a noção do que é certo e do que é errado nas constantes más-notícias do dia-a-dia. Isso é dar aulas de cidadania e de situar as pessoas em suas circunstâncias, em seus contextos. As mudanças sociais são incessantes, demasiadas. As pessoas sentem a necessidade de uma orientação que venha de cima. E a imagem da TV (digo sem querer fazer gracinha), que vem de cima, é mesmo uma espécie de deus ex-machina de nosso tempo – o desfecho inesperado e feliz de um mecanismo que merece nossas congratulações.

O JUBILEU DE CONGONHAS EM 1950 (*) - Conto

Os caminhos do tempo ferem mais, os morros de Congonhas cansavam, a cidade dos santos divinos e humanos, das igrejas e bitacas, a alegria de cada um é a alegria de todos! O cristianismo é mesmo um helenismo tristonhento? Quem se machucou não está aleijado, ainda não dividiu a personalidade! Os romeiros tinham acorrido de todos os rincões, tinham andado a pé a cavalo de caminhão, assaltados pelos terrores dos velhos pecados... as intenções movem as pernas e os braços... afrontaram as lonjuras os dissabores: os velhos no cerne da madeira de lei, os rapazes estróinas as moças ariscas, as mulheres de cabelos em coque, a trinca de roceiros lá de Saúde: - Modesto de Souza, Vicente Celestino, Sady Cabral: velhos amigos de meu falecido pai...: saudaram-me num dos passos da via-sacra... Não sei tapear os caipiras que me lembram os pios deboches da terra, os barrancos os arbustos as moitas dos caminhos. A seleção argentina tinha Vaca, Salomão e Sobreiro no trio final; a brasileira era constituída de Ari, Domingos e Norival...: o rádio gritava nas ruas de chagas e padiolas a epopéia dos impulsos e das flexões arrebatadoras...: as escapadas de Labruna e Pederneiras no rumo da pequena área as gingas e os petardos de Zizinho e Ademir na entrada da pequena área.... Vendíamos comida cigarros doces e bebidas: uma doméstica local cozinhava na área cimentada, bem rente às grades laterais da cadeia pública, bem nos olhos e nos narizes dos detentos: era assim mesmo que acontecia o desalento, qualquer desgraça acontece muito antes: só o parvo não percebe o aviso-prévio! O que adere e não remete, sucumbe.... No terceiro dia do Jubileu a carne estragou, mas o patrão tacou sal nela à vontade, garantiu que não faria mal a quem tivesse fome: era só servir com um gole de pinga amarga... As janelas fechadas matavam as casas, a sombra autônoma, sem luz, sem refletor...: puta merda! O patrão enrolou os caipiras das quinze bandas: “esse povo da roça come até estanho derretido”, ele disse...: um deles, de bunda baixa, devorou a carne até do prato dos companheiros, teimava com eles que o gosto diferente era a delícia do tempero! Ah esse Modesto de Souza agarrava o cabo da enxada no milharal, a cantar: “um dois três quatro cinco seis sete oito nove, para doze só faltam três”, e aí um dos profetas do Aleijadinho respondia: “Ah minha machadinha, quem te pôs a mão sabendo que és minha?” O comércio estava fraco naquele ano: o ponto do nosso bar espantava os ressabiados... “Prefiro ver um cachorro cagando do que um homem de boné”, dizia lá do canto da parede o esquivo Sady Cabral.... Da cozinha víamos os olhos piedosos dos trancafiados: Libertad Lamarque no meio deles, violentada, chorava a cantar tangos e boleros de cabaré, o delegado Willian Bendix, manquitola cara de lua cheia, avermelhou o rosto dela com um tapa violento que me doeu enquanto lavava os copos usados! No quarto dia tive que sair às ruas e ladeiras, a vender o estoque encalhado dos refrigerantes: quando a boa sorte vai abrir os olhos na minha direção? Assim eu recolhia as suadas moedas dos pobres romeiros... O sopro de vida nas pedras do chão, a mínima elegia dos dias azarados, o heroísmo da segunda sufocado na terça-feira, a terra de ninguém na bandeja abstrata.... Tempos bicudos ( o patrão disse), o jeito é sumir antes que o fiscal retorne com as multas.... Os profetas também eram peregrinos, coçavam os temas instigantes nas peles rugosas, compadeciam das divindades impotentes: e eu? não recebia nenhuma das bênçãos? Humilde e ajoelhado, é assim que se bebe da fonte sagrada? Na casa dos milagres o que é vivo rodeia, ampliando.... A tradição é um repertório de paradigmas, lá diz o medievalista Zunther... A cidade escorregava no sol das vertentes. No quinto dia encaixotamos as coisas, fechamos o cômodo, pegamos o Noturno para Belo Horizonte. O patrão a dizer que a luta para ganhar a vida, educar os filhos e fazer o pé de meia, é a mesma desde a expulsão do paraíso! Estava de novo no balanceio do tem de ferro. Valeu a pena resvalar o cotovelo nos seios de Stela Stevens, bem na sacristia, depois da missa! O conhecimento aprofunda o mistério das coisas, o resvalar na macieza do seio é algo transcendental! Belo Horizonte não era a pérola de feição irregular: era a borboleta das montanhas, o seixo voador do Ribeirão do Carmo, a forma que dissolve e se refaz, o tempo que segue na esteira, mutante, a cerca aérea ventilada de renques, os andares nos vales e nos picos.... Sim!, concordo plenamente: Dóris Day prescinde da rosa cantante da língua, que beija os próprios lábios.... Primeiro a flama, depois a lassidão as estações do amor, íntimas peles os infindáveis vermelhos de dentro -as palavras interromperam-me os passos do pensamento dúbio? Para onde ele foi, sorrateiro: de onde as palavras vieram? Afinal de contas eu estava fazendo meus primeiros dezesseis anos de idade. 

(*) Excerto excluído do romance em versos “POR QUE CHORAS, SAXOFONE?”, ainda inédito.

quinta-feira, setembro 28, 2006

A DÚVIDA DE HAMLET

Geralmente o escritor detalhista é monótono, dispersivo, cansa o leitor, que às vezes até salta páginas inteiras do livro, quando não o encosta de novo na estante. Mas o bom escritor faz de cada detalhe de sua narrativa ou descrição o ponto alto do texto, o primor de sua arte. Bons escritores geralmente fazem assim, alongam o palavreado sem dissipar o fundamento temático, ao contrário, envolvendo-o em auréolas, urdindo um certo magnetismo cromático de tal forma atraente (para não dizer encantador), que o leitor não perde a ponta da meada, assimilando de bom grado as finas tranças da tessitura. Lembro-me, para exemplificar: Cervantes, Machado, Kafka, Joyce, Guimarães Rosa, Lispector, Proust, Thomas Mann,Virginia Wolff, Duras, Yourcenar, Flaubert (e, felizmente, tantos outros!), ao tomar conhecimento de John Updike, lendo ininterruptamente todas as páginas do romance “Gertrudes e Cláudio”(trad. de Paulo Henriques Britto, Cia. das Letras, SP, 2001), onde ele conta a história da mãe de Hamlet – da adolescência até quando começa a tragédia de Shakespeare, ou seja, até quando o príncipe regressa à Dinamarca após a morte do pai e das renúpcias da mãe com o cunhado, tio de Hamlet. Um romance como preâmbulo para a encenação da peça mais famosa do genial teatrólogo. A narrativa de Updike é bem acionada, repleta de lances bem encadeados no enredo – e se assim sobressái é mais pela valorização dada aos detalhes descritivos, que em suas mãos engrandece a ação pela deliberadamente enfatizada situação. Quando uma cena é aparentemente fastidiosa (conversações sem relevos pontuais, explicações técnicas sobre a natureza dos falcões), é nela mesma que o autor capricha nos adendos e afins, nos componentes anteriores e posteriores, acendendo novas cores nas lidas cotidianas dos seres e das coisas, através principalmente de um poético e oportuno tratamento linguístico. Aí o leitor vai pinçando os riscos do bordado da aquarela e do mural: a lua que parecia uma pedra, a noção da cópula como uma solução para o mistério do mundo, “a vela flexível portando a chama pálida” do corpo de Gertrudes: o porte gracioso era uma janela luminosa a abrir-se para um mundo mais puro. É assim mesmo que o autor se esmera em insinuar o indizível. O lodo do ressentimento que se acumula no fundo. O que arde, mesmo longe do fogo. O lábio feminino virado para dentro e para fora. E nos entrementes, a aparição de Ofélia, uma pessoa que seria capaz de curar não só a frieza de Hamlet como a de todo o reino gélido da Dinamarca, onde os carneiros parecem pedras e vice-versa. A concupiscência corporal: as partes mais elevadas são meras serviçais das inferiores, onde se localiza a fruta recôndita da paixão. E depois das imagens, o conceito lapidar: como os homens poderiam ser a medida de todas as coisas se são os únicos animais que cometem erros? Terminado o romance, começa a peça teatral no terraço diante do castelo de Elsenor, onde os sentinelas comentam a aparição de um terrível espectro, ponto de partida do que aconteceu e do que vai acontecer no palco, pelas mãos inigualáveis de Shakespeare. Desde as primeiras cenas as palavras veementes são tão vivas que parecem representar não os fatos em si, mas elas mesmas incorporando os fatos. Nas bocas dos personagens, elas como que se transformam em seres e ações, fundindo a descrição e a narração na economia do tempo e do espaço, revelando o muito no pouco pela lídima expressão da validez mais cabal. Assim é que é prontamente instaurado o estilo shakespereano, ao mesmo tempo expansivo e continuado, taxativo e reticente, prenunciando como que em suspense o que está prestes a ser desencadeado. “...conserva-te na retaguarda de tua afeição, fora do alcance e do perigo do desejo. A mais recata donzela torna-se pródiga demais se desvenda à lua seus encantos” – recomendações de Laertes à irmã Ofélia sobre o relacionamento dela com Hamlet. “Há algo de podre no reino da Dinamarca “, o Oficial da Guarda diz na cena IV do Primeiro Ato, depois de Hamlet seguir na obscuridade o Espectro do pai. Observamos aí que o jogo e o jorro das palavras não retardam nem entopem o curso do fio romanesco, pois como já constatamos, em Shakespeare, a palavra às vezes toma os ares da própria ação. Logo damos fé que Hamlet é em si mesmo o próprio fluir das palavras doridas e cautelosas, tonitruantes e rompedoras, sendo elas em corpo e alma como que o corpo e a alma dele, ele que é não apenas o príncipe da dúvida nos monólogos, mas também o príncipe resoluto dos diálogos. Na famosa altercação consigo mesmo da primeira cena do terceiro ato, ele, incisivo, extravasa e conclama no monólogo antológico (que cito de memória de uma tradução, lida algures): “Ser ou não ser, o que é mais nobre?: sofrer passivamente as setas e balísticas com que a fortuna enfurecida nos alveja ou insurgir-nos contra o mar de provações e em lutas pôr-lhes fim?”. Assim ele tergiversa, sonâmbulo pelas sacadas do castelo, a reprimir e exprimir uma dor sangrenta, projetando-a pensativamente contra o alvo que é a causa dela. Atendido no urgente propósito, ele mascara-se na debilidade para compor e reforçar a decisão de fortalecer-se na redenção da afronta sofrida por ele e por toda a nação dinamarquesa, então atolando-se na podridão da totalitária monarquia. Não lhe ocorreu outras alternativas: fez-se de louco e cumpriu o que sua propensão íntima exigia: ensangüentou o palácio, para lavá-lo da imperiosa sujeira da vida que nele imperava, na vida que era uma espécie de desonrosa morte. Como uma limpeza do ar até então nublado para dar lugar aos raios fúlgidos do sol dos novos dias. E assim a dúvida de Hamlet passou a ser a nossa dúvida. A dúvida que ele esclareceu e superou. E nós, como ficamos?

quarta-feira, setembro 27, 2006

OS CHOQUES DAS GERAÇÕES (*)

O escritor Norman Mailer já dizia em 1968 que a juventude daquele tempo era imprevisível e que a melhor coisa que podia dizer sobre os jovens é que não os entendia: “Não sou vinte anos mais velho que eles, mas cem anos”.Isso ele confessava à Oriana Fallaci, numa entrevista. E agora, trinta e cinco anos depois? A imprevisibilidade continua, a diferença de comportamentos entre as gerações, também. Infelizmente o conceito de remoçamento hoje não é mais uma gratificação. O sadismo, antes apanágio dos malvados e malditos, é hoje uma conspiração vitoriosa na sociedade humana e afeta, impinge e modela o caráter da juventude, principalmente a masculina. Qualquer adulto sente o pé atrás, o preconceito e a má-vontade do jovem em relação a ele. O mundo é mais deles, eles pensam. São maioria, mas uma maioria desprotegida dos pretensos donos da vida, os adultos; uma maioria liberada e entregue ao deus-dará deles mesmos. E o que vemos e sentimos é que eles estão ganhando terreno no confronto. O que vemos e sentimos é que cada adulto dá passagem ao jovem, como pedestre na rua e como motorista, na estrada. Isso porque o adulto, principalmente o idoso, está morrendo de medo não do jovem em si, individualizado em sua suscetibilidade, mas dos jovens armados de insolentes instintos tribais dos grupos bairristas e das gangues etárias. E tudo isso assim sem mais nem menos, gratuitamente? Gratuitamente não, é claro. O sonho, a esperança,o otimismo, tudo o que constituía sua bagagem, pulverizou-se no reiterado niilismo evaporador dos paradigmas ideológicos. O desbotado tecido da vida social esgarça-se na trepidação nebulosa dos sentimentos insatisfeitos, das vocações goradas. E sem a projeção do futuro, que virou uma saraivada de irrespondíveis perguntas, o jovem em si e mesmo em grupo recusa caranguejar, estatelado na voragem de um passado para ele mal-sucedido, que vira e mexe defronta-o na cortina de ferro de um capitalismo mais mafioso do que a própria Máfia. Assim, estatelado, ele sente a falta de uma força que possa escoimar, exorcizar e desintoxicar as excrescências de uma civilização que derrota as essências poéticas da vida neste atual mundo de atribulações e guerras. Não podemos fechar os olhos à verdade dos fatos. Mesmo a imprensa mais oficialista e marrom do País ficou chocada com o que aconteceu em São Paulo, onde cinco jovens agarraram, prenderam, sujigaram, abusaram e assassinaram o casal de namorados, com os requintes de crueldade que nem os piores demônios do inferno seriam capazes de conceber e praticar. Uma atrocidade assim estava acima da previsibilidade mais sombria e pessimista?Sei não, mas parece que há uma máfia mefistofélica por trás de tanta brutalidade, tentando surrupiar a utilidade dos incautos. Tenho em casa um massudo compêndio de indicações de fitas de vídeo produzidas nos EUA, de arrepiar os cabelos: em cada lote de dez fitas, no mínimo sete ou oito são de filmes de ação, endereçados à juventude, nos quais os seres humanos têm em vez de mãos, garras, e nelas toda sorte de armas brancas e de fogo, furiosas e velozes. Temos de reconhecer que a incompatibilidade etária de nosso tempo é talvez a mais aguda de todos os tempos. Os mais novos estão carregados de prevenções contra os mais velhos, e estes não atinam com a razoabilidade das arengas, uma vez que no tempo deles (os mais velhos) a respeitosa admiração (meritória ou não) pelos pais, tios, avós, era um procedimento comum, tácito, consagrado em toda conjuntura social. Se o mundo está assim é porque vocês o fizeram assim, - é o que diz o mais novo para o mais velho. E na verdade, nós, mais velhos, temos mesmo que pôr a mão na consciência. Somos portadores de uma culpa atávica, cada vez mais engrossada e intensificada com os novos erros, inclusive os das promessas eleitorais, a criação de dez milhões de empregos convertida na criação de mais de um milhão de desempregos. Mas vamos ficar por aqui senão a coluna vira uma diatribe de pregador de apocalipse. Vamos, pois, dar uma guinada, e citar o sempre jovial Apollinaire: “A palavra de Cristo é o belo lírio que cada um de nós carrega”. E também relembrar a frase de Giuseppe Verdy, em 1870, que Barthes recunhou em 1980: “voltemo-nos para o passado: será um progresso”. 

(*) Publicado no jornal “Magazine”, semanário de Divinópolis, MG, em 27 de dezembro de 2003.

terça-feira, setembro 26, 2006

WALT WHITMAN - O BARDO CICLÓPICO

“Creio que um grão de areia não é menos que uma ronda de estrelas e que as amoras enfeitam o paraíso” (Walt Whitman). 

Quando nos já tão distantes anos 60, comprei e li FOLHAS DE RELVA, do autor supracitado (um dos três intelectuais que mais influenciaram o século 20, na opinião de André Gide - os outros são Nietzsche e Freud), na tradução de Geir Campos, não me contive diante do poema “Quando Aprofundo a Conquistada Fama” e tentei reescrevê-lo em forma de paráfrase. E agora, para ser justo com os dois poetas (Walt e Geir), publico abaixo as duas versões: 

A Tradução de Geir Campos: 
Quando aprofundo a conquistada fama dos heróis e as vitórias dos grandes generais, não invejo os generais ou o Presidente em sua Presidência ou o ricaço em sua casa enorme; mas quando ouço falar da fraternidade entre dois amantes, do que se passou com eles, de como juntos através da vida, através do perigo, do ódio, sem mudança por longo e longo tempo atravessando a juventude e a meia-idade e a velhice, como sem vacilações como leais e afeiçoados se conservaram, aí fico pensativo – saio de perto afobado com a mais amarga inveja. 

A Minha Tentativa de Paráfrase: 
Quando mergulho na história dos heróis (guerreiros e conquistadores) e na grandeza de suas ações, libertando povos, dominando a natureza - não invejo Alexandre nem Júlio César. Quando estudo a saga dos pensadores (escritores e filósofos) e a beleza de suas obras, criando luzes para extinguir a treva - não invejo Platão nem Shakespeare. Mas quando ouço falar da afeição de dois amantes, da felicidade conjugal deles, de como através de vicissitudes e perigos, de obstáculos e rotinas, ao longo do espinhoso tempo atravessaram juntos a juventude, a maturidade e depois os novos anos da velhice, sempre juntos e leais “sem vacilações e afeiçoados se conservaram” (ao longo do penoso tempo), aí sim, fico perturbado e saio de perto para chorar de inveja.

A REFORMA AGRÁRIA E O MST

A verdadeira reforma agrária visa humanizar o campo, ou seja, compartilhar os bens naturais na sociabilidade humana – algo que tem de ser feito com muito critério, muito cuidado, para não desencadear a destruição desses bens e arruinar ainda mais o meio-ambiente. A falta de critério e de cuidado do homem capitalista com tudo que não resulta em ganho financeiro é notório e inegável. A possibilidade de se fazer uma reforma agrária pacífica no Brasil é quase utópica, se considerarmos a vocação predatória do brasileiro, mais premido pela coerção do estômago do que pela da mentalidade. Mas um pouco de otimismo não faz mal a ninguém, o comportamento desarticulado das pessoas tem que ser corrigido, suas virtudes precisam ser aperfeiçoadas e postas em prática. Os ativistas do MST são questionados em suas reivindicações porque são considerados, de um modo geral por seus críticos e oponentes, como pessoas desprovidas de vocação ruralista, desempregados da cidade que dificilmente se aclimatariam ao penoso trabalho de subsistência no campo. Quando sentirem que suas reduzidas produções agrícolas, mesmo sob o controle de cooperativas, não competirem em valor monetário com as ampliadas produções da agroindústria, essas pessoas vão se desfazer dos minifúndios para refazerem, assim, inadvertidamente, novos latifúndios. A súmula simplista de seus opositores é: os assentados recebem suas nesgas e depois negociam-nas em troca de ninharias financeiras e, voltam à cidade , ou seja, ao seu recomeçado arrocho urbano. Sabemos que não é bem assim, que existem projetos e práticas mais saudáveis. Mas o tal do jeitinho brasileiro de ver e fazer as coisas põe as boas intenções no mesmo balaio de gatos. Os espertalhões e suas vítimas dão, assim, ao MST, a aparência de questionável confiabilidade. E sabemos que por falta dela, da Reforma Agrária, é que acontece todo o êxodo rural instaurando milhares de favelas em toda parte. Mas quem expulsou o homem do campo de suas roças , muito mais que o latifundiário, foi, a agroindústria. A moderna tecnologia do maquinário substituiu a agropecuária de subsistência dos litros e quilos para a agroindústria da produção em toneladas. Onde dezenas de roceiros aravam, plantavam, capinavam e colhiam, um simples jogo de máquinas (trator, plantadeira, capinadeira, colhetedeira) empurrou todos para os aglomerados urbanos de uma vida aparentemente melhor: o trabalho com carteira assinada, assistência médica e educacional, conquistas que deveriam ter alcançado o homem do campo no próprio campo, onde se contextualizava – e que dificilmente acontece quando se tem que mudar de paisagem e de vida. O advento da modernidade tecnológica trocou os povoados de choupanas da roça para os barracões das favelas na cidade, eliminando as pequenas povoações rurais da Tenda, do Narciso, da Volta do Brejo, da Cruz do Pugas, do Capão dos Porcos, da Lavrinha e do Lavapés, na região do antigo Desterro, hoje Marilândia, município de Itapecerica, MG, cada uma delas com dezenas de chácaras e sítios, com suas moitas de bambus, seus quintais com as rocinhas, os regos de água, as hortas de couves. Num átimo tudo foi derrubado e no lugar dos sítios surgiram as modernas casas de campo da pequena burguesia urbana.... O que os ativistas do MST querem é a reimplantação dessas chácaras ao longo dos latifúndios? Se for, as dúvidas sobre o sucesso avolumam. Se as chácaras antigas não deram certo no passado, vão dar agora? A pequena produção de cereais, de hortaliças e de frutas vai competir com as toneladas oferecidas nos CEASAS? E então? O assentado não vai vender sua gleba para quem vai emendá-la com outra e outras até refazer a propriedade maior, para estabelecer ali a aprazível casa de campo do estressado pequeno-burguês urbano? Sei que estou embaralhando um pouco o raciocínio, mas por favor, leitor, não me entenda tão depressa. Alguém alguma vez já elogiou o latifúndio? Não é um absurdo tanta improdutividade diante de uma humanidade desnutrida? É mesmo necessário derrubar as árvores do cerrado e das capoeiras, nivelar tudo ao alcance do trator, triturando de uma vez as espécies e os seres e a gama ainda irrevelada da biodiversidade? Por que não se aproveita devidamente, em vez da hecatombe, a área agriculturável já demarcada e comprometida? Por que avançar na natureza virgem, massacrando bilhões de seres ainda vivos. Não é preferível que o próprio latifúndio improdutivo fique livre da sanha predatória, assim mais no alto das indagações e sob o signo da preservação ambiental que favorece a humanidade como um todo? Não é preferível que o latifúndio improdutivo e a agroindústria das monoculturas sejam aceitas como contradições necessárias, uma a funcionar como reserva de vida, mantendo o potencial e a frutificação dos vegetais, dos minerais e dos animais (e toda a gama intrínseca da biodiversidade, da fotossíntese, do equilíbrio ecológico); enquanto a outra (a agroindústria) continua a funcionar como abastecedora da alimentação humana a preço e quantidade e qualidade compatíveis com a recomendável salubridade? As Sagradas Escrituras afirmam que Deus criou a terra para o desfrute dos seres vivos. Então, erroneamente interpretam que Deus criou a terra para o Homem e que por isso o Homem pode fazer dela o que entender, ao passo que racionalmente sabemos que Deus criou a terra para os seres vivos de todos os tempos e não apenas para os do nosso tempo. Quem se der ao trabalho de analisar a função muitas vezes negativa das modernas tecnologias, facilmente constatará que a agroindústria implantada a partir do século 20 mudou a face do nosso planeta e já começa a deformar a própria estratosfera. Consequentemente a terra está ficando cada vez mais árida, metafórica e literalmente mais árida.

segunda-feira, setembro 25, 2006

GRÃOS DE PÓLEN E PICLES DIETÉTICOS

A imagem sedutoramente irresistível da água mais nova que vem dessedentar-me no anseio mais antigo. E na ilusão de que a sede está perto da água, é que alinho uma anotação de leitura do romance de Marcel Proust, “À Sombra das Raparigas em Flor” (trad. de Mário Quintana): “A linha deliciosa e inacabada, este era o ponto de partida em torno da mulher como o espectro da beleza projetada na treva. A voz dos lábios dela: como as folhagens que a água desloca ao fugir. É no jardim secreto do sono que as flores obscuras exalam seus múltiplos extratos. Aquelas brunidas valvas de rosado nácar. Cada um de seus vestidos era como a projeção de uma das particularidades de sua alma. O amor e o sofrimento, como a embriaguês, tem o poder de diferenciar as coisas para nós.. A verdadeira beleza é tão peculiar, tão nova que não a reconhecemos como beleza. O mar gótico de ondas imobilizadas em vitral. Nada convida tanto aproximar-se de uma criatura como aquilo que dela nos separa”. Proust, Proust, quando o leio sinto como que estivesse escrevendo pensativamente. Ái de mim, quem me dera! Outros autores consideram que a mulher tem a espora mais acicatante que conhecemos, e mesmo assim pode levar-nos, se quiser, ao mais doce paraíso, que ainda não conhecemos. Salman Rushchie, o blasfemo escritor muçulmano, é irreverente também em suas confidências literárias ao revelar as intimidades sexuais com a prima Gail no livro “O Mágico de Oz”, repetindo as palavras dela no momento da penetração: “Em casa, garoto! Em casa, neném...: Você entrou em casa!” Deus é inefável e intangivel relativamente à linguagem humana, assim Jean Claude Bernardet conclui analisando a chamada teologia negativa, a partir de um texto anônimo do séc. V, do qual ele pinça os dizeres: “A Treva” (ou seja, Deus) mais luminosa que o Silêncio, brilha de luz mais esplendorosa no seio da mais negra escuridão...”. Para Cantardo Calligaris, a vagina é um pênis ao avesso (uma luva revirada), virado para dentro, contendo, ainda, um pênis complementar, miniaturizado, o clitóris. Juro que não tinha bebido nem um gole de pinga, juro. Mas depois de apreciar pela janela dos fundos a chuva grossa caindo sobre as árvores do quintal, fui à janela da frente e constatei que a chuva que se despejava sobre as árvores da rua era bem outra, muito mais fina, menos torrencial. Voltei à janela dos fundos e lá fiquei, demoradamente. A tirania de um lado, a subserviência de outro, isso parece sempre aconteceu em todas as partes do mundo. E acontece até no reino dos seres injustamente chamados de irracionais: os cães e os gatos domésticos adulam e readulam seus donos que os castigam, que os castigam, mas que também os alimentam. É a tal contradição nas próprias referências? Se muitos políticos de Brasília estão enfeiando e desvalorizando a política, em compensação muitos escritores da capital federal (Danilo Gomes, Rosângela Vieira Rocha, Ronaldo Cagiano, Napoleão Valadares, Paulo Siqueira, Alaor Barbosa, principalmente) estão embelezando e valorizando a literatura. Suponho que muitos desses bons escritores são funcionários públicos desencantados com a disfunção do maquinismo do poder público e, na medida do possível, tiram de vez em quando uma licença poética e fazem uma necessária limpeza psíquica para continuarem a viver na roda (rodeio?) dos performáticos roedores da nação. Ninguém é de ferro para agüentar diuturnamente o cenário da desmoralização, não é mesmo? Aí, esses talentosos escritores regressam, mentalmente, a outros tempos e outros lugares, ficam munidos materialmente dos elementos criativos para contornarem as defasagens politiqueiras, agora mesmo tão desnudadas pelo crivo de tantos inquéritos vexatórios sobre uma infame organização que está mais para a criminalidade do que para a governabilidade. Triste Brasil.

sábado, setembro 23, 2006

ELOGIO DA INSONÊNCIA

Ainda hoje, longe das vicissitudes dos centros urbanos, encontro no quintal da casa que herdei dos ancestrais o que Kazuo Ushiguro só via longe dos centros urbanos de uma Inglaterra no final dos anos 90 do século20: as folhas das árvores, que brotam como se dissessem alguma coisa, com um verde que exprimissem uma espécie de lamento. Uma vez, absurdamente montado no cavalo alazão, que troteava sob o meu então peso pluma, a pensar absurdamente nas maminhas masculinas, esteticamente necessárias e tristemente desocupadas (principalmente quando na magreza do aldeão pançudo) – advindo-me daí a dúvida que enche o nada de tudo mais de tudo menos, uma luzinha a emitir sinais de alerta na treva, um peixe na flor das águas com saudade dos galhos das árvores, tal como o próprio homem pançudo com saudades das escamas continuamente banhadas no fundo das águas de toda parte: uma vivalma subterrânea que desaparece no ar da manhã estival? O corpo de delito do pecado original? As muitas pessoas numa só pessoa? O mi em cima do si sem dó na pauta do samba do branquelo doido? O pênis penso quando pensa NELA ergue-se, interessado, ao calor do cheiro pela umidade, onde um desejo à vontade vai e vem na dor da bondade. Vai e vem para o resto da vida, a gozar resoluto no absurdo de ficar, se não no ato, pelo menos na lembrança do ato, na lembrança que pensa naquela boca em sentido vertical, a rosa dos lábios de mel, em telhadinhos, - na lembrança que pensa nele eufórico lá onde é benvindo e benquisto até falar que chega.

sexta-feira, setembro 22, 2006

HONTEM E HOJE

Príamo e Hécuba proscritos intramuros: foi assim que o homem ficou só e muito mal acompanhado. E logo depois a violência dos romanos na Judéia cooptou os escribas e fariseus. Depois, na arena viscosa, a multidão dos que não têm onde cair mortos suplicam a esmola dos pães ázimos. E depois que a dignidade foi embora atrás da moralidade chegou a militância do quanto pior, melhor. E agora do rosto ensangüentado na escuridão os olhos tateiam as rugosidades da pasmaceira: são os punhos da morte em vida, assinalando os pontos vulneráveis.

DOSTOIEVSKI, O OLHAR MAGOADO, O CORAÇÃO ABATIDO

A tatear nas almas e nos destinos, como diria Agrippino Grieco, ele socorria os semi-mortos das periferias físicas e mentais da Santa Rússia, como um sopro atordoado dos próprios revezes. E atolado no miolo do azáfama , ele vivia, vivia ao escrever. E assim era o personagem das próprias obras, enquanto seu leitor era também levado a uma vida idêntica ao se enredar ao ler suas obras. Assim em dias seguidos, meses e anos, eu lia suas obras completas, sem assinalar este ou aquele trecho, uma vez que todo o livro era o sinal, a ferida de minha própria contemporização, de minha própria destinação. Na verdade diria o Otto Maria Carpeaux, quem suportaria “o hálito fogoso do cavalo apocalíptico”, ao ser por ele pisoteado ou estando nele montado, na súbita e constante iminência de cair? Ah!, só ele mesmo para discernir um amor em segundo plano, um segundo amor inesquecível, nas noites brancas do jardim solitário de Nastenka, a moça que guarda no bolso a maçã de um pomar alheio.... Só mesmo ele a andar sozinho, sentindo que não é de ninguém e que é, ao mesmo tempo, “de toda Petersburgo”. Dostoievski poderia ter se tornado um chorão depois da chegada da velhice com suas cãs e rugas? Não, ele não tinha tempo para isso, não tinha. Mas nós, seus leitores, sim: é abrir e fechar cada página para que mais uma lágrima desça, quente e luminosa, dos olhos ao coração. O que fazer agora se o próprio caminho fugiu de nossa frente? Ele perguntava, com Puchkin, ao começar a contar a história dos demônios humanos. Sempre reconhece (como reconheceu seu leitor-crítico Roberto Alvim Corrêa) que a alma coletiva de um povo tem muito de uma alma particular. “Os Demônios” (ou “Os Possessos”) é um livro de idéias, no qual se prevê a militância dos deserdados exigindo a herança dos abastados, herança que uma vez obtida pelos guerrilheiros vira logo num ferrão nas mãos dos próprios guerrilheiros – e aí novo despotismo se apronta e nova crueldade carcome e nova estaca zero é fincada nos umbrais da desesperada, carcomida esperança.... E ele, genial e “epiléptico, histérico, anormal, carregado de taras e de vícios”, como quer Rafael Canzinos Assens, talvez volte a ser o que talvez nunca foi: um professor do cristianismo? Seria “Crime e Castigo”, um romance de amor? O ser desamado é desvalido, ele diz. E foi o amor de Sonia, a iluminação do afeto de Sonia, como lá diz o Brito Broca, que fez Raskólnikov arrepender-se do crime que cometeu, resignando-se ao castigo e só assim poder esperar a reintegração à vida social dos semelhantes. Sonia, mocinha enfermiça e sofredora, que se derretia em lágrimas ao se prostituir para fazer caridade, ou seja, vender o próprio corpo para alimentar os mendigos. “Ela é feia”, ele diz. “Não sei porque me prendi a ela. Mas se ela além de feia fosse capenga ou corcunda, meu amor por ela seria ainda maior”, assim ele dizia à mãe e à irmã, estupefatas na estranheza de reencontrá-lo assim obviamente alienado. Ele, Raskólnilov, agora não é nem de longe o mesmo. Errando uma vez por querer, acaba errando mais duas vezes sem querer – e agora se comprimia no medo das outras pessoas e até de si mesmo, sem saber se todas as pessoas estavam doidas ou se o doido seria ele mesmo, socado naquele mundo possuido de toda aquela miserabilidade. E por que cargas d’águas, ele pensava, pessoas tão puras e boas como a mãe e a irmã vieram parar aqui no meio de tanta impureza e de tanta maldade? E ele, traído por si mesmo? Quem, dentro dele, incutiu-lhe a maluca idéia do latrocínio? Será que mesmo na lucidez ele não “regulava”, tomado por assim dizer, de uma espécie de racional demência? Agora estava mais perdido do que cego em tiroteio: se saia um pouco de si para viver um pouco fora de si, só encontrava feições iracundas a acusá-lo; se ficava em si, ensimesmado a mentalizar, só conseguia recolher medonhas imagens inquisitivas, cerceadoras, punitivas. Se abstraia um pouco, a sonhar fora de si, logo via o dedo em riste apontando-o na rua, ou o dente afiado da fera e toda a hediondez na superfície das águas correntes ou a monstruosidade no fundo dos olhares dos seres e das coisas ou as palavras pesadas das aves e dos pássaros, tudo ciclopicamente a bater, a sufocar, a engasgar, a martirizar sua impenitente situação do flagelado que não tem para onde ir. Precipitação e impotência, crime e castigo. Quem deve, tem que pagar!

quarta-feira, setembro 20, 2006

O QUE É A NATUREZA II

Do seio da terra ao limiar do céu as ramificações internas da haste resultam na entrefechada maçã na entreaberta rosa (paradisíacas) encanto e perfume na conciliação das diferenças na interpenetração do Amor. Assim é o frêmito criativo no âmbito do prazer inicial que se adentra e irrompe em desafogo a haste é da rosa, a rosa é da haste em delírio momentâneo e definitivo. Assim é o aroma do ar que respiramos o sol e a lua se revezando a fotossíntese das sombras e claridades na feitura da polpa e das pétalas nas entranhas úmidas e nas epidermes de infinitas feições. Assim o inventário genético percorre as gerações das esmeraldas das perobas dos bichos nas infinitas variedades dos modos de ser e de agir da vida perfeita no mundo perfeito de um tempo imperfeito.

O QUE É A NATUREZA

Às vezes fico bobo de ver nos sertões (lá longe ou mesmo ali) a fartura e a qualidade de mãos dadas o bom gosto e o prazer da sensualidade as bizarrias sobejando os resmungos escasseando assim tanto na beira do rio e do precipício quanto nos alagados e nas pedreiras às vezes um ramo ganha as feições de outro ramo e vai pelas veredas a enganar os predadores e lá nos desníveis da serra negra do desterro um potrinho se enamora da novilha e a persegue nos pastos de cima e de baixo na manada dos currais barrentos no descampado dos jatobás altaneiros aí a juriti passa a falar em outra língua (será que ela quer esnobar o nhambu?) no aquinhoado rego do quintal que vai que vai saltitando (para afogar-se no rio tempestuoso?) que vai saltitando alienado até falar que chega e desaparecer como que por encanto na virada da capoeira de antigos castelos de fadas e deidades.

domingo, setembro 17, 2006

NOTAS DE UM LEITOR

1 – EVERTON MACHADO. É doutorando em literatura comparada na Universidade de Paris IV – Sorbone, poeta, jornalista e professor de português e cultura do Brasil. Bolsista em 2006 da Biblioteca Nacional de Portugal e da Fundação Calouste Gulbenkian para pesquisar em Lisboa as relações luso-indianas e o romantismo nas ex-colônias. Correspondente da revista Cronópios em Paris. E-mail: evermachado@gmail.com. Além de aprender e ensinar, Everton exerce o jornalismo, escrevendo textos literários, entrevistas e resenhas para publicações brasileiras e francesas, alternadamente. No texto “Os Lados do Conto” ele insere uma entrevista com o contista Amílcar Bettega Barbosa, entrevista que é ao mesmo tempo jornalística e literária, objetiva e subjetiva, informacional e criacional, ou seja, nela o autor é explícito (para chegar ao leitor) e implícito (para levar o leitor ao autor), graças ao manejo da técnica de abordar o complexo com as ferramentas da simplicidade. Em outro texto, “Lembrança de Rachel”, a gente capta logo os proveitosos instantâneos oportunamente pilhados de uma escritora idosa (Rachel de Queiroz) por um jovem autor ainda mourejando na fase de acurada aprendizagem. Ele mineiro conterrâneo de Drummond, de Murilo Rubião, Cyro dos Anjos, Adélia Prado; e ela nordestina, conterrânea de Graciliano, Jorge Amado, Lins do Rego, Jorge de Lima. Salta aos olhos, nesse seu trabalho o tema do cruzamento das faixas etárias e das circunscrições geográficas, a correlação dos diferentes sotaques, humanizados na raiz e na floração dos frutos resultantes. Já em Cantos do Norte, ele apresenta um grupo de poemas dos mais recentes, dos quais selecionamos dois bem exemplares de sua poética enviesada no claro-escuro da rotatividade existencial impingida por nosso tempo: 1 – COMO CHAMA Não há nada de mais no ser feliz agora, o verso que pedi aflora, e como chama morre.  
2 – ARTE NOVA Quase canto sei. Que sou como ninguém cantor. Que sei como ninguém ter fé. Que canto faço como sou: se palavras meço, medo não é. (A fé ensina a cantar como poucos). 2 – YEDA PRATES BERNIS. O livro VIANDANTE é um álbum de recordações ardentemente vivenciadas, um capa-dura luxuoso repleto de folhas e flores macias, evanescentes, fulgurantes na limpidez elegíaca de uma autora módica e silenciosa e ao mesmo tempo certeira e melódica na visão de um vazio a ser preenchido pela lúdica recriação das venturas inestimáveis. Poeta mineira da mesma estirpe de Henriqueta Lisboa, Laís Corrêa de Araújo, Maria Esther Maciel, Lacyr Schettino, Adriana Versiani, ela sabe viver a poesia antes de escrevê-la, domina o ímpeto das inflamações e dos sobrevôos, contendo-se nos instantes e lugares certos e pairando nos incertos, movendo-se naturalmente nas intercessões, colhendo as espigas de primeiríssima qualidade em cada página de sua viagem em busca da recuperação do que pressupõe que vai perder. E que não perde porque está ainda tão impregnada do que se foi, que pode-se dizer que o que se foi, não foi nem talvez irá. Um bem de vida que ficou com ela, graças a seu apego. VIANDANTE é um livro de tanta precisão poética que mesmo as páginas em branco não dão a impressão de estarem em branco, mas sim intumescidas de colorações de tépida serenidade, como convém a controvertida elegia da aceitação e do pesar. Uma das melhores publicações poéticas em Minas, neste ano, sem dúvida. 

3 – LUÍS DA CÃMARA CASCUDO Autor de 144 livros sobre a cultura popular brasileira em todos seus aspectos (antropológicos, etnológicos, sociológicos, históricos, folclóricos etc),eis como ele se apresenta ao leitor: “Padeci todas as enfermidades folclóricas: espinhela caída, cobreiro, dormir com os olhos abertos (como os coelhos), mijo de maitaca, dentada de caranguejeira, frieira por ter pisado em cururu, verrugas por apontar estrelas...”. A mesma vivência de nós, mineiros, nascidos e criados no meio rural de décadas passadas. Eis o que para ele pertence ao folclore (termo um tanto desmoralizado hoje pela indústria de turismo, que prefiro substituir por cultura popular): malandro é filho de escravo na cidade. Fazer ginástica para não trabalhar. Cuscuz é árabe. A cuíca também. O rebolado de nossas donas é produto de importação da África, o gesto de dar banana é europeu, o índio não beijava nem fazia serenata, o beijo veio da Ásia, o cigarro só apareceu depois da Guerra do Paraguai. O sertanejo brasileiro não bebia leite – o índio não dava pra ser vaqueiro. O leite de coco veio da Índia. O cheiro, carícia olfativa nas crianças, é chinês. A jangada indígena não tinha vela nem bolina. O beliscão foi trazido por Dom João VI. Dar adeus não tem idade. 

4 – MEU PEQUENO MAR DE CITAÇÕES. “A felicidade capaz de suscitar nossos anseios está inteira no ar que respiramos. (....) Pois não somos tomados de vez em quando por um sopro no ar que respiramos antes? Não existem nas vozes que escutamos, ecos daquelas que emudeceram?” – (Walter Benjamim). “Pela primeira vez as mulheres têm controle sobre o próprio corpo, sobre a maternidade. Podem escolher e, no limite, prescindir do sexo oposto. ( ) Os movimentos feministas facilitaram seu acesso ao mundo do trabalho – só faltando sua admissão às esferas do poder político – mas isso já começou. ( ) elas são menos agressivas, mais pacíficas do que os homens. Têm mais respeito pela vida – que elas dão. É preciso dar ao mundo uma nova chance.” (Michele Sarde). - Machado de Assis, mestre na criação de personagens femininas. Sobre a Clara, de um de seus contos: Ela “torna a cravar os olhos nas pedras da rua. As pedras é que não podem querer-lhe mal, porque os olhos são lindos, e o que está escondido dentro, como dizia Salomão, não parece menos lindo” E depois o romancista fala do homem “desejoso de tirar aquela mulher diante de si e não querendo senão fixá-la diante de si por toda a eternidade. Parece enigmático, e não há nada mais límpido”. “As fêmeas humanas não têm um ou vários períodos de cio. À diferença dos animais, elas não sinalizam para os machos, por meio de alterações cromáticas ou emissões de odores, seus períodos de ovulação, propícios à fecundação e à gestação – e também não se recusam durante os outros períodos. De todos os mamíferos, pois, o ser humano é o único que pode fazer amor em qualquer estação.” (Claude Lévi-Strausss). - Registro aqui, com muito pesar, o grande descrédito para o nosso tempo, responsável pelo extermínio do Rio Itapecerica, que hoje não passa de um risquinho na paisagem, de barro e excremento e toda espécie de lixo. Imaginem: um rio que até já teve portos de atracagem de barcos e hoje não passa de uma cloaca, um viveiro de ferozes pernilongos. Lázaro Barreto. - A arte de fazer rir, de Torelly, o Barão de Itararé: “Com dinheiro à vista, toda gente é benquista. Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mais vivos. Os homens nascem iguais, mas no dia seguinte já são diferentes. O casamento é uma tragédia em dois atos: civil e religioso. O tambor faz muito barulho – mas é vazio por dentro. Banco é a empresa especializada em emprestar dinheiro a quem provar que não precisa de dinheiro.

sábado, setembro 16, 2006

O TEMA DA P0SSESSÃO

Constrangidos e equivalentes no limiar da decadência estão, de caras lambidas, os que compram e os que vendem consciências e almas, os primeiros já imersos na danação, e os outros, a caminho. A história mal-contada vem de longe, desde que o mundo é mundo e que Eva cooptou Adão, Caim matou Abel, David seduziu Betzabá, Labão enganou Jacob – e Judas Iscariotes amealhou as trinta moedas. Depois vieram os ciclos centenários e milenários, as figuras míticas das eras e das regiões, até que no folclore alemão ressurgiu, pelas mãos de Goethe e de Thomas Mann, o vulto envolvido de realismo mágico do Doutor Fausto, primeiramente atraído por Mefistófeles em troca da cândida Margarida, e depois na pele do músico Adrian Leverkul (um arremedo de Wagner, de Schônberg, de Nietzsche?), que coçava a cabeça, indeciso entre dois acordes de suas composições, já propenso a introduzir na modernidade um novo solfejo, um novo ouvido e uma nova batuta na história da musicalidade universal. Ambos, Fausto e Adrian, se danaram, irremediavelmente. E a palavra “danou” em linguagem comum quer dizer perdeu, e a palavra “danado” quer dizer pessoa sagaz, invencível. No Brasil um rosário de penas voa desde o descobrimento e podemos citar, de passagem, a própria carta-tentação de Pero Vaz Caminha, e também a lenda do ludibrio de Caramuru aos índios. Virando as páginas dos séculos encontramos o infame trio Silvério-Pamplona-Malheiros oferecendo-se aos algozes da colonização para delatar os sonhadores da libertação. Depois, o Doutor Francisco Campos a entregar a pinga e a rapadura aos ditadores de 30 e de 64, o Jorge Amado e o Chico Buarque e o Lula a trocaram a fé na luta pelo socialismo por apartamentos de luxo em Paris e pelas propaladas inconseqüências governamentais, advindo então toda uma esquerda fantasiada de petista a trocar as mãos pelos pés no tratamento dos bens públicos, favorecendo o valor infame, demoníaco, chamado crime organizado, que começa nos altos escalões da república e compartilha a liderança com os mafiosos dos presídios de insegurança máxima. Assim fica evidenciado que a pérfida Tentação das Profundas move as pernas e braços de seus cúmplices agraciados dos quinhões do Patrimônio Nacional, estrategicamente loteado de acordo com a conveniência da Cambada. E é assim que, para usar uma imagem de Nabacov “as listas azuis da ternura se partem em mil pedaços”, e o que surge em seu lugar é o Medonho, é o Demonho – e em conseqüência a pior das perdas do ser humano, a perda da dignidade (individual e nacional). E quando isso acontece em termos públicos, abertamente impune e até alardeado, a desmoralização e a indignidade é mesmo coletiva, é do povo, é da nacionalidade. E o que então nos resta? Só nos resta, obviamente, indignarmo-nos. Isso não resolve, mas é uma forma de ajuizar uma opinião, a de não compartilhar da tramóia que nos massacra moralmente. O mau exemplo que vem de cima e que alertava os revolucionários franceses como brado da revolta bem que podia ecoar em nosso despreendimento, em termos similares: os corruptos (eufemismo de ladrões) são poderosos porque suas vítimas estão caídas. Que se levantem, pois!

OS PRIMÓRDIOS DIVINOPOLITANOS

Para os índios da época da colonização as chamadas pedras preciosas não eram diferentes das pedras comuns. É por isso que quanto mais aurífera a região, mais deserta era, uma vez que a infertilidade do solo pedregoso não propiciava uma rotina indígena de colheitas naturais de frutos e caças. Em nossa região o ouro brotava da terra e das águas do Ribeirão Vermelho, do Boa Vista,do Itapecerica, da Cachoeira do Caixão, do São João Acima e do Pará – e os índios ficavam de longe, ressabiados e ocultos, assistindo, impassíveis, em suas caiçaras e ocas no fundo das matas e barrancos dos rios. Machadinhas de pedra foram encontradas na Barragem do 48, na Serra do Cristal, na Baixada da Charqueada e no Quilombo do Morro Grande (entre o Gafanhoto e a Vila Romana), e urnas funerárias e outros fósseis foram recolhidos nas fazendas de Pedro Emídio e de Antônio Máximo, nas regiões dos Costas e do Inhame. Reza uma citação do século 19 que “a primeira coisa que seduz o homem livre é economizar para comprar um escravo”. E para exemplificar a pobreza, fala na pessoa que não tem ninguém para lhe buscar um balde de água, um feixe de lenha do mato, e dar sumiço dos excrementos nos urinóis caseiros. No Arraial do Espírito Santo (antigo nome de nossa querida e bela Divinópolis) era comum vender e comprar partes de um escravo, ou seja: alguém vendia uma quinta parte e ficava com as outras quatro partes, que podiam ser negociadas, de tal maneira que um escravo podia ter cinco donos, e o pobre se via obrigado a trabalhar tantas horas diárias para cada um, de forma a satisfazer todos. Em 02/01/1849 os cinco donos do escravo Manuel Bengela passaram no Cartório do Arraial (que na época era Distrito da Vila de São Bento do Tamanduá, hoje Itapecerica) a escritura de compra e venda de cinco partes de um escravo a José Soares Siqueira. Os mais antigos posseiros e moradores do território foram os Sesmeiros, pessoas ricas e donas de escravos, que recebiam do governo as Cartas de Posse com a condição de cultivar e povoar os sertões. Consegui cópias das cartas referentes à ocupação do território regional no Arquivo Público Mineiro, que hoje estão no Arquivo Público de Divinópolis, das quais extrai os seguintes dados: a sesmaria de FRANCISCO DIAS DOS REIS, na Paragem do Quilombo, em 1740; outra dos sócios MANOEL LOPES RIBEIRO e FLORÊNCIO FERREIRA, na Paragem da Cachoeira Grande do Rio Pará (Gafanhoto), em 1754; outra do Sargento-Mór GABRIEL DA SILVA PEREIRA na Cachoeira Pequena do Rio Pará (Ferrador), também em 1754; outra de BENTO DA COSTA OLIVEIRA, na Cachoeira do Macuco (Distrito Industrial) em 1759; outra de ANTONIO MENDES, cujas terras confrontavam com as de MANUEL FERNANDES TEIXEIRA, autor do belo e grandioso gesto de fundar nossa cidade de Divinópolis, construindo a Capela do Divino Espírito Santo e São Francisco de Paula, e doando à mesma 40 alqueires de terra – tenho em mãos cópia da escritura que descreve o terreno hoje ocupado pelo Centro da Cidade e o Bairro Sidil. As terras do Manuel (que ele comprou de sesmeiros) partiam da Ponta da Serra Negra (hoje no município de São Sebastião do Oeste e que naquela época pertenciam ao Distrito de Nossa Senhora do Desterro, hoje Marilândia) e despontavam no Corgo do Tejuco, antigo nome do hoje chamado Córrego do Barro, no Bairro Afonso Pena. Outra Sesmaria na região é a de ANNA MARIA JOAQUINA ROSA, na Paragem da Serra Negra, na direção do poente, de 1771; na mesma data e no mesmo livro foi registrada também a sesmaria concedida ao marido de Anna Maria Joaquina Rosa, o Guarda-Mór ANTÔNIO JOSÉ DE CASTRO (ela era irmã de Rosa Angélica da Luz e ele era irmão de Faustino José de Castro, pentavós paternos do autor destas Notas), que partia da mesma Serra Negra na direção paralela à da sesmaria anterior, despontando nas regiões dos Branquinhos e do Córrego Falso. Em 1789 foi registrada a de MANOEL GASPAR PEREIRA, no Campo Alegre, hoje região do Aquiles Lobo; e no mesmo ano foi registrada também a de THOMÉ VIEIRA DE BRITO, e em 1799 a de JACYNTO JOSÉ BORBA e em 1801 a de JOAQUIM PEREIRA DE CASTRO, em terras devolutas da Paragem do Espírito Santo das Itapecericas (um dos outros nomes de nossa Divinópolis). Muita coisa mudou desde então em todos os quadrantes e círculos regionais. Mas que fique aqui registrada a saga do ímpeto desbravador dos pioneiros que viveram num tempo hoje injustamente esquecido. Que tal uma homenagem póstuma a eles, heim, senhores vereadores da Câmara Municipal? Tantas ruas ainda sem nomes e tantas com nomes até mesmo aberrantes – e os heróicos nomes dos pioneiros meramente luzindo sob a escuridão dos alfarrábios manuscritos que o olvido das novas gerações soterra.... Mais informações a respeito, consultar o livro do autor destas Notas: MEMORIAL DE DIVINÓPOLIS, na biblioteca pública municipal e nas bibliotecas das escolas do Município.

quarta-feira, setembro 06, 2006

PATOS E PARENTES

Este texto, não incluído no da conferência sob o título “O Mergulho e o Vôo em Pedro Nava”, apresentado no congresso Universitário FUNEDI-UEMG em 22/11/03, não menciona as páginas e os volumes da obra do Nava porque tem aqui o caráter mais elástico de pesquisa informal (mas as partes aspeadas são transcrições diretas). 

Eis alguns dados sobre os nefandos e os venerandos parentes do Pedro, que aliás são como os parentes de todo mundo. - O sogro que não gostava do genro. Mandou fabricar dois mil grandes penicos, cada um tendo ao fundo o retrato do genro em vestes talares de verde, negro e ouro. Os quais foram distribuídos à população. - A avó Maria Luiza foi uma mãe admirável, sogra execrável, sinhá odiosa para as escravas e crias, amiga perfeita de poucas pessoas, inimiga não menos perfeita de muitas e corajosa como um homem. Era de boca insolente e de bofetada fácil. Te quebro a boca, negra. E quebrava. Os genros rebelados iam para o index dela, despótico e feroz. “O que aborreço dessa avó é a lembrança nunca apagada de tê-la visto espancando a escrava Deolinda e esfregando suas costas aleijadas com uma vara de marmelo”. - O tio que gostava de fazer o sobrinho rolar escadas, só para se divertir. Quando cresceu e botou corpo é que pôde reagir e ameaçou de morte aquele demônio que já lhe quebrara duas vezes o braço. Só assim cessaram os calça-pés e tombos degraus abaixo. - O primo nefando: “pegava duma galinha, enfiava a torneira do tanque pelo traseiro da mesma, e saboreava, num instante, a aflição aérea do bicho engastalhado. Logo abria o poderoso jato. Ou a penosa estava bem empalada e nesse caso estourava por dentro, ou estava mal segura e era projetada pelo esguicho, num fundo de cimento”. - “Os forrobodós de minha família tinham isso de simpático: era como se fossem partidas de truco – bem gritadas e bem xingadas. Quando se esperava bala e morte, vinham só estouros de festim”, “Nunca minha mãe abriu o bico, jamais fez a menor censura às omissões e passagens para trás que sofrera dos pais e das irmãs”. - “A Cotinha namoradeira dava bola para todo homem que para ela era sempre lindo. Era a pilhéria dos sobrinhos e desesperava a Tia Eugênia...( ) Suas últimas palavras, quando acabava de ser administrada (a extrema unção) por sacerdote moço e bonito, não foram de contrição. Olhou longamente o reverendo, virou-se para as Fragoso e declarou num fio de voz que com padre lindo assim ia até para o inferno. Disse e expirou”. - Reprovado em Química no primeiro ano do Curso de Medicina, a família recebeu a visita da Tia Mariquinhas, que mal falou com ele e foi direta ao assunto com a mãe dele. Disse que ela não podia se sacrificar daquele modo, “que devia me tirar da Faculdade e que tinha de me botar no Comércio”. - Mas no meio de tantas primas cândidas e dóceis e doces, tantos primos matreiros e venais, tantos tios direitos e tortos, tias condoídas e invejosas, no meio de tanta ruindade, ingratidão e desfaçatez, pontificava a magnânima, a Santa Dona e Mãe Diva, primeira funcionária pública do Governo de Minas, que “para tudo era a competência personificada. Tratava as doenças dos filhos como se fosse médico-enfermeira, e tricotava, fazia crochê, frivolité, bordado e costurava como se fosse profissional em cada uma dessas prendas”. Era da cozinha à sala e aí fazia nascer as graças da antiga Sinhá Pequena da Rua Direita de Juiz de Fora (quando eram ricos), tocando velhas cavatinas no bandolim, pontinhas de clássico ao piano, o tango argentino e todo o Ernesto Nazaré e o repertório romântico das serenatas mineiras à lua cheia. “E cantava e cantava. E tinha a vasta sabedoria dos anexins, ditos, rifões, provérbios, brocardos e frases-feitas. E contava os casos, descrevendo e narrando e falava de panos e roupas, de seus tempos de menina, de escravidão, de assombração, dos piqueniques, das enchentes, de todas as neves de antanho...”. A mãe por excelência, no reconhecimento do próprio filho. A leitura da obra completa dele não só vale a pena, como é uma imensa gratificação. Uma verdadeira reconquista do tempo perdido à moda de Proust, em outro tempo e em outro cenário.