sexta-feira, dezembro 29, 2006

NOSSA SENHORA DO DESTERRO (*)

Quando o ser humano está assim abismado em vigília, sonho ou insônia, pensando ou imaginando coisas do arco da velha, entranhado e absorto numa espécie de transe liso ou rugoso, é porque está em outra dimensão, numa espécie de exílio em si mesmo, reprisando as cenas bucólicas das saudosas campinas da infância ou as dramáticas dos anos de maior densidade nas peripécias da maioridade.Estar desterrado na própria terra natal equivale a estar mórbido em plena lucidez. “Eu não sou daqui”, a pessoa pensa, na vigília meio-sono, meio-sonho, isso quando não se destampa em seu desamparo o cruel pesadelo da irremediabilidade das coisas perdidas. Dizer “sou eu e minha circunstância” é fácil. Difícil é eleger e assimilar uma circunstância sem ao mesmo tempo desejar tantas outras. Onde quer que vá, o homem leva consigo a própria extradição – e está sempre chegando à terra do exílio, como está escrito no altar de Nossa Senhora do Desterro. Os portugueses que vieram colonizar o Brasil, certamente não se alegravam pelo encontro da nova terra. Ao contrário, certamente entristeciam-se por ter deixado a outra terra, a bela e querida Portugal, lá deles. É por isso que quando e onde chegavam e paravam, iam logo batizando o lugar com o nome de Desterro, tendo como orago a santíssima Nossa Senhora do Desterro, que se exilou no Egito para salvar a vida do Filho. Assim as Paragens, Aplicações e Freguesias tiveram depois, quando se tornaram Distritos e Villas, que mudar seus nomes: até mesmo Florianópolis, aparatosa Capital, já se chamou Desterro. E no Oeste de Minas brilhavam nos mapas dos séculos 18, 19 e 20 as Freguesias e Paróquias do Desterro do Tamanduá, do Desemboque e do Entre Rios. O do Tamanduá é o mais antigo (temos suas notícias desde 1744): sua Capella, hoje firme e bem de pé como Santuário, foi construída em 1754 pelo português Manuel Carvalho da Silva (um dos fundadores da Villa de Sabará), nas terras de sua fazenda na Sesmaria do Cláudio, no então chamado Sertão de São Bento do Tamanduá, Villa de São José Del rei (hoje Tiradentes). A sede senhorial , rústico arremedo de um castelo medieval, foi erguida no espigão mais alto do lado esquerdo do Rio da Boa Vista, enquanto a Capella foi erguida por ele no espigão mais alto do outro lado do rio, de tal maneira que do alpendre de seu casarão, ele podia contemplar a capella e do alto dela podia divisar a sede senhorial da fazenda, na rampa do Rio, ao lado da montanha escarpada e de uma floresta entre grutas e pedreiras. O casarão foi violentamente demolido no ano passado (quando se processava legalmente seu tombamento no Patrimônio da Prefeitura de Cláudio), por um desalmado predador e picareta de Belo Horizonte. Mas voltando ao nobre e afetuoso Manuel Carvalho da Silva: amarga e pesada deviam ser a angústia da consciência de seu exílio nos solstícios e plenilúnios da densidade ambiental (os reinos animal, vegetal e mineral ainda não conspurcados, tão salutares e esplêndidos como quando foram criados) circundantes. O que, e como ele devia sofrer toda tarde, quando sentava no alpendre, em seu diuturno solilóquio nostálgico (nem casado ele era – e para constituir o patrimônio da Capella teve que levar moradores de Passa Tempo, a fim de comprovarem seu estado de solteiro, sem dependentes), a contemplar de longe o templo barroco, e mais longe, no infinito horizonte do verde crepúsculo além dos mares, o seu querido e saudoso Portugal, onde viviam seus parentes e amigos mais chegados. A Festa de Nossa Senhora do Desterro acontece todo ano, em julho, em Marilândia (nome que substituiu, aleatoriamente, o de Desterro), a vinte e poucos quilômetros de Divinópolis. Os devotos do lugar capricham nos arranjos e fazeres, aprofundam-se nas rezas e nos cânticos; os romeiros chegam aos milhares de todo Brasil em centenas de veículos automotores, de forma que o lugar fica ainda menor para caber tanta gente. E sempre foi assim, pois Nossa Senhora do Desterro é considerada milagrosa e os romeiros acorrem das quinze bandas, imbuídos de fé e piedade. Nos últimos anos, no entanto, os meliantes e bagunceiros das cidades vizinhas aproveitam o cenário e a ocasião para armar suas contrafações, estrepolias, apostasia, roubos, brigas, pornografias, sacanagens, o diabo a quatro. No ano passado roubaram oito veículos, entre carros e motos, dos romeiros; neste ano o surrupio não foi menor e o pequeno trecho ferroviário ficou ensangüentado com os abalroamentos e capotamentos que resultaram numa morte e várias vítimas de ferimentos. A bagunça foi tanta que a Procissão não pôde dar a volta na rua, toda tomada pelos vândalos bêbados e drogados. Afinal, o que está acontecendo com a juventude de nossos dias? Todo-mundo com a mãe na forca, desesperado? Já chegamos à “última baixeza” da degradação humana? É de clamar aos céus ver uma festa tradicional ameaçada de interrupção porque as pessoas do mal sobrepujam as do bem – e por mal dos pecados o poder público desiste de seu dever de propiciar à população o culto festivo de suas crenças envultadas de fé e piedade. Como pode, assim em poucos anos, o Diabo tomar conta de todo o espaço do arraial, com seus pagodes de mau gosto, suas barracas de quinquilharias e de espetinhos de gatos, o escarcéu dos aparelhos de sons, a lubricidade dos descarados de ambos os sexos em plena luz do dia e a céu aberto, a bebedeira, a intoxicação, a carnavalhice desbragada? Como pode, senhores funcionários públicos, responsáveis pela segurança e pela manutenção da moral e dos bons costumes? “Oh Nossa Senhora do Desterro, oh mãe dos pecadores; desterrai todos os males de nós, compiedade. Oh Nossa Senhora do Desterro, que na volta do Egito este nome recebeste, em companhia de José e de vosso Amado Filho, nesta igreja viemos visitá-la, rogando que desterre nossos males. Tem de nós compiedade” (trecho do hino-oração cantado pelos romeiros na Procissão”. 

 (*) Texto (revisto) publicado no Jornal Magazine (de Divinópolis, MG), em 16 de agosto de 2003.

terça-feira, dezembro 26, 2006

O LEITURISTA PINÇADOR III

1 – “John Cassavetes”, de Thierney Jousse, trad. de Newton Goldman e Tati Moraes – Edt. Nova Fronteira, RJ, 1992. - “Cassavetes procura misturar o irrisório e o sublime. É a primeira característica dostoievskiana de seu cinema. Elaborados a partir de pulsões extravagantes, desmedidas e irreprimíveis, os personagens dos romances de Dostoievski podem ir da mais alta inspiração a mais indigna das baixezas” (pág. 115) -“Cassavetes não é um revolucionário que deseja a morte do sistema, nem um arrivista que tenta tomá-lo e passar a dirigi-lo. (...) Ele tenta sempre atirar o centro em direção às margens através de uma força centrífuga perseverante e assustadora” (págs. 136 e 137). - Ele procura retratar as idas e vindas no tempo na teatralidade do cotidiano através de uma linguagem entre o gesto e o pensamento, mostrando na força, no gesto e no estilo o imprevisto numa espessura táctil, como uma brincadeira de gangorra, sempre recomeçada. Seus personagens em aparições alucinatórias em forma sensível e abstrata, portando o corpo que desafia o mundo, nem revolucionário nem arrivista, e portando, também o sentimento que antecipa a embriaguês, sendo às vezes duplo ou múltiplo, sempre esquisóide (inferência de LB). 2 – Memórias de Hollywood, Org. de Julieta de Godoy Ladeira, Edit. Nobel, SP , 1888. - “Gary Cooper é o único (de sua geração) que não se desumanizou, aquele que manteve, em sua condição de semi-deus, as ligações com o humano” (Osman Lins, pág. 30). - A fabricação dos mitos: “Os mocinhos não morriam nunca e voltavam da guerra como tinham ido: bem humorados e saudáveis de corpo e espírito e as mocinhas estavam sempre esperando por eles, romanticamente sentadas junto à janela cantando deliciosas canções que juravam amor eterno” (Ruth Rocha, pág.43). Outra observação deste leiturista pinçador: apesar de uma fragrante hipocrisia, dos laivos fantasiosos da vida cor de rosa, de outros maneirismos capciosos e da quase sempre deslavada propaganda do americanismo que supostamente oferecia oportunidades a todos e que na verdade o que mais oferecia era a escancarada mediocridade ao alcance de todos, apesar da constatação desses senões, salta aos olhos, também, que a qualidade dos filmes era muito melhor do que os que são hoje produzidos: se hoje de cada dez produzidos, apenas um pode ser considerado de qualidade superior, naquele tempo (décadas de 40 e de 50), a ordem era inversa: de cada dez, nove eram de primeira qualidade. -“Acho que alguns filmes nos ajudaram a ter sonhos, a aspirar uma condição para a qual nós parecíamos não estar destinados, nos ajudaram a ser pretensiosos, a compreender que nós também tínhamos sido feitos para brilhar” (Silvio Fiorani, pág.48). - “Já separada de Miller (...) Marilyn Monroe confessa a um repórter: “Símbolo sexual? Eu? Não sei. Nem tenho com quem sair sábado à noite”. Judy Garland teria? E William Holden? Todos morreram sós, em seus apartamentos” (Julieta de Godoy Ladeira, pág. 69). - “O cinema, de repente, ficou demasiadamente tecnocrata para o meu gosto” – assim dizia Marlene Dietrich, que perpetrou, elegantemente, este poemeto: “Amei-os todos. Os louros, os negros, os morenos. Hoje, amo somente os puros, os belos, os graciosos” (Citações de Edilberto Coutinho, pág. 94). - “Lana Turner (garante um repórter) só atingiu a maturidade sexual por volta dos 40 anos, ao cabo de uma aprendizagem com um total de cerca de 18 homens – o que, ele acrescenta, já parece um número modesto, para os padrões atuais (1988). A conclusão foi tirada, explica, a partir de indicações implícitas, porque o assunto não era abordado diretamente” (Sonia Coutinho, pág. 143). -“ Viviem O’Hara: os negros olhos circunflexos espetavam como lanças, na profundidade de uma noite de dor, as maçãs salientes abrigavam covinhas, os lábios finos inesperadamente se alastravam num sorriso esfuziante e inacessível sob a massa de cabelos vermelhos”(Márcia Denser, pág. 169). -Lá pelos idos de 40 ou 50 (é o romancista Autran Dourado que conta o ocorrido certamente em sua bela e querida Patos de Minas) o rapaz do interior entra sorrateiramente no cinema, à noite, e vê “ a Heddy Lamar do seu coração sair peladinha, meu Deus! da lagoa”. O rapaz que “já era súdito do solitário rei Onã....! (pag. 185). - Também Caio Porfírio Carneiro sofre o mesmo impacto (ver pág. 228) vendo Dorothy Lamour de sarongue: “Um deslumbramento. Aquelas pernas, meu Deus! Elas não me saíram mais da cabeça. Um tormento. Os primeiros sinais da puberdade levaram-me a grandes conflitos interiores”. 3 – “O Cinema da Crueldade”, de André Bazin, trad. de Antônio de Pádua Danesi, edit. Martins Fontes, SP, 1989. - “Devemos a Eric Von Stroheim os únicos filmes de “imaginação” em que o cinema ousou o realismo integral, em que nenhuma censura insidiosa, mesmo subjetiva, veio limitar a invenção e a expressão: filmes verdadeiros como pedras e livres como sonhos” (pág. 12). - “Carl Th. Dreyer é talvez, com Eisenstein, o único cineasta cuja obra iguala a dignidade, a nobreza, a poderosa elegância das obras-primas da pintura “ (pág. 18) - “Hitchcock consegue até a última imagem fazer-nos caminhar sobre uma corda estendida sobre um abismo, empurrando-nos ligeiramente ora para a esquerda, ora para a direita, para nos segurar todas as vezes no momento exato que acreditávamos cair” (pág.102). “O interesse dele é que a forma se torne a própria substância da narração, que não seja apenas uma forma de contar a história, mas uma maneira de visão a priori do universo, uma predestinação do mundo a certas relações dramáticas” (pág. 157). “Um grande criador” (Bazin fala ainda de Hitch: “é como um bom geômetra, em quem a intuição precede e guia o raciocínio. Ele faz a sua construção, deixando aos escoliastas o cuidado de estabelecer o fio ingrato da demonstração” (pág. 168). “Num movimento de extrema ternura e sensualidade, a câmera gira em torno dos dois apaixonados e a tela cintila com essa beleza indescritível cujo segredo Hitchcock foi buscar em Murnau” (pág. 169). “A forma, aqui, não embeleza o conteúdo – ela o cria” (pág, 170). - A profissão de fé de Akira Kurosawa: “Um filme de ação pode ser apenas um filme de ação. Mas que coisa maravilhosa se ele conseguir, ao mesmo tempo, pintar a humanidade!” (pág. 187). 4 – “Saudades do Século 20”, de Ruy Castro – Edit. Companhia das Cetras, SP, 1994. -Segundo o autor, o nome pintado no trenó do menino Kane (ver o filme “Cidadão Kane, de Orson Welles), “Rosebud” (botão de rosa) – “era como William Randolph Hearst” (magnata da imprensa americana, que serviu de base para a criação do personagem Charles Foster Kane) “chamava na intimidade o clitóris de Marion Davis, sua querida amante” (pág. 115). - Outra diva cinematográfica, Greta garbo, costumava visitar a casa de Orson Welles, “para nadar nua em sua piscina”. Um dia Orson jogou um reagente na água para descobrir se Garbo fazia xixi enquanto nadava. Fazia.” (pág. 126). - O diretor de filmes Ernst Lubitsch é comparado por Billy Wilder (outro grande diretor) aos atuais diretores ginecologistas: “ele podia ser mais sensual com uma porta fechada do que esses rapazes com uma braguilha aberta”. E Ruy Castro arremata o elogio, lembrando a morte de Lubitsch”Ele teve uma Coisa durante uma chuveirada, logo depois de transar com uma mulher. Nunca se soube de que ele morreu – se da transa ou da chuveirada”( pág. 144). - Frank Sinata, quando casado com Ava Gardner, ao chegar em, casa encontra-a às gargalhadas com Lana Turner (um ex-caso dele). Sinatra suspeitou que as duas o estavam comparando com Artie Shaw, ex-marido de ambas, “de quem se dizia que tinha um membro do tamanho de seu clarinete. Frank ficou revoltado, disse desaforos, quebrou móveis e sumiu antes da chegada da polícia”.

AS MÚLTIPLAS FACES DA VANGUARDA

A poesia não está morta e nunca estará, pois ninguém conseguirá matá-la, apesar dos bombardeios, tufões, idiossincrasias, quadrilhas de contraventores, escândalos de corrupção (já institucionalizada?) e os seriados homicidas tão sangrentos. Notória fênix dos séculos, a poesia renasce dos destroços, dos constrangimentos, e continua cintilando aqui e ali nas múltiplas faces da Natureza e da Humanidade, constantemente atacadas e até hoje não inteiramente vencidas. Por mais que os dentes da hipocrisia e da crueldade rangem de horizonte a horizonte, sempre-sempre as auroras despontam maciamente nos círculos e quadrantes com os versos, as estrofes, os poemas da contemporização, da réplica e da afirmação. A prova no momento está bem aí na espoucante, pesuasiva juventude mineireira das moças e rapazes do recém-lançado (em três simultâneas edições!) tablóide DEZFACES, através do qual eles afirmam e provam que a Vanguarda (na arte e na cultura) é um fenômeno eternamente procriativo, que só mesmo a ousadia da hediondíssima desintegração do átomo em escala mundial poderá interromper, o que (vade retro satanás) jamais acontecerá, é claro. É próprio de toda manipulação vanguardista a componência hermética, que às vezes assusta e desagrada as pessoas comuns e os cultores empedernidos do conservadorismo árido e insolente. Essas pessoas, atacadas repentinamente de obtusa miopia, não se dão conta da necessidade do autor de vanguarda ser fiel a uma certa (óbvia, exaustiva e expansiva) obscuridade que ao mesmo tempo escurece e clareia as coisas e as vidas deste mundo. E o que geralmente acontece é que muitas vezes o intelectual que pensa que está sendo claro em sua manifestação, está é postergando a elucidação dos eternos enigmas e vacilações das coisas e das pessoas. E a clareza transparente vale pouco mais que nada. É preferível tratar obscuramente a obscuridade e assim penetrar furtivamente em seus escaninhos do que rodeiar, passar por alto ou por baixo, desestimulando o gosto das sempre renovadas incursões. Porque, como sabemos, atrás e na frente de serra tem sempre serra para subir, descer, pesquisar novas tonalidades nas superfícies e profundidades. É algo que não tem fim – e só mesmo a arte de vanguarda é que estimula as aproximações dos neófitos às paisagens naturais e humanas, onde não pára de vicejar a superposição dos elementos que dinamizam o interesse da pesquisa e do usofruto da Verdade e da Beleza, valores que unificam e multiplicam a convivência dos seres vivos que configuram a unicidade e a multiplicidade da Vida e do Mundo.

quinta-feira, dezembro 21, 2006

AS ESTRELAS TÃO HUMANAS (*)

Das estrelas de meu céu particular, as menos glamourosas e mais sensitivas são: Laraine Day -Veronica Lake – Ida Lupino – Gene Tierney – Grace Kelly – Paullette Goddard – Eleanor Parker – Claire Trevor – Ingrid Bergman – Ginger Rogers – Jean Simons – Pier Angeli – Micheline Presle - Alida Valli – Ann Sothern – Audrey Hepburn – Olivia de Havilland – Greta Garbo – Lauraeen Bacall – Susan Hayward – Bárbara Stanwyck, Coleen Gray – Jean Arthur – Deanna Durbin – Patrícia Neal – Teresa Wright, Jane Wiman – Anne Baxter – Janet Leigt, Jenifor Jones – Vivien Leigh – Mauren O’Hara – Merle Oberon – Aracy de Almeida - Leila Diniz – Loretta Young – Ann Sheridan – Carmem Miranda. Às vezes cabisbaixo, quase sempre imponente, meu céu interior continua sedento até hoje na introversão na introversão dos atos algures emborcados na veracidade das algibeiras mais secretas do subconsciente. Quando uma das estrelas relampeia na rua ou na tela do escurinho de um cinema, percebo a fusão miraculosa das lindezas, caio em mim em ligeira estupefação diante do luar e sob um brilho ensolarado, caindo e subindo e planando na noite dos sonhos inconfessáveis. Um cinema rodando fitas dentro de mim, como diria Lya Luft? A cútis mimosa de uma, os sonhadores olhares de outra mirada estrela? Os eflúvios sutis da sempiterna paixão as sedas coleantes nos entrementes corporais os doces porvindouros, os gestos simbólicos os cabelos alvoraçados dos idílios românticos da noite solitária de cada cinéfilo as magnitudes além disso e daquilo as promessas de exílio em edênicas paragens, uma certa robustez anímica? uma inocente delicadeza fisiológica? Das estrelas de meu céu particular, as menos sensitivas e mais glamourosas são: Rita Haywort – Ava Gardner – Jean Seberg – Valentina Cortese – Linda Darnell – Hedy Lamarr – Lana Turner – Ann Todd – Silvano Mangano – Dorothy Lamour – Tônia Carrero – Eva Marie Saint – Vanja Orico – Liv Ullmann – Marilyn Monroe – Cyd Charisse – Elizabeth Tailor – Cecile Aubry – Doris Day – Sophia Loren – Brigite Bardot – Natalie Wood – Joan Fontaine – Judy Garland – Jane Russel – Virginia Mayo – Esther Willians – Maria Antonieta Pons – Maria Felix – Débora Ker – Kim Novak – Sarita Montiel – Debra Paget – Elvira Pagã – Elis Regina – Odete Lara – Romy Schnaider – Emilinha Borba – Jeanne Moureau – Catherine Deneuvre – Jane Fonda. As estrelas diuturnas do céu e da terra, entre nuvens grifadas aqui e ali nos ocasionais relâmpagos (e eu um tanto esquivo nas entrelinhas do poema que envelhece no ineditismo). As estrelas decodificadas em seus renomes ainda agora na ruazinha bairrista e logo depois no Glória no Acaiaca no Odeon, são epifânicas e esbeltas e mitológicas, são alvíssaras e singulares, agora e depois, mesmo escondidas no azul estável do encarnado firmamento de súbitas aspirações, de bruscos sortilégios. São os fulgores perenizando o nosso dia-a-dia. Elas que balbuciam os prenúncios do léxico das invocações que tramitam no sistema nervoso, nas auras anímicas, as exclamações, as reticências de tantos vassalos! Elas inspiram posteriores serestas afloradas na vontade que suprime a consumação. E assim o desejo é a flor que cresce em si mesma na ludibriada porém remediadora fantasia dos cordéis sem arestas, amarrados no céu das semelhanças e das coincidências de tantas estrelas no céu e na terra. Ainda agora uma delas vai, vai pelo ar crivado de raízes, vai levando nas cores móveis o festival de desejos da lúbrica, incontida poética dos cinéfilos. 

(*) Agradecimentos à Margarida Mendes, pelo envio de um e-mail inspirador.

domingo, dezembro 17, 2006

NATIVIDADE (*)

Vi hoje um movimento do corpo Que era da alma. Vi Deus no cocho das cabras e bezerros, Com os olhos de quem ama. Com os olhos de quem ama vejo Os homens próximos dos homens. Milhões de estrelas do céu e do mar São milhões de sinos, vibrando. Quem vela o sono das palavras Que sonham, para publicá-las, nascidas de novo: sem essa pessoa O vermelho não existiria tão puro. Quem ama os detalhes do inverno, Como a infiltração por entre os vegetais De um nítido raio de sol sustenido, Quem recolhe os bemóis da cachoeira, As decantações de perolas e peixes: Esse (o ser humano que deveríamos ser), tem lúcida voz própria, que anuncia: “Silêncio que aí vem Deus!”

(*) Transcrito do livro”Mel e Veneno”, edição do autor, em 1984, Divinópolis, MG.

sábado, dezembro 16, 2006

OS CANTARES DE OUTUBRO II

Toda vez que a criança é espancada pelo adulto a terra treme até ao céu, se há céu e Deus grita de dor, se há Deus. Se uma criança chora de fome ao léu e se outra é espancada debaixo do céu é porque não há mais o Deus justo para castigar os maus e premiar os bons. O que há é o tombo seco o murro na ponta da faca a zoeira na cabeça indormida a cidade que aboliu a infância a casa que virou um inferno o corrupto no legislativo, o cara de pau em toda parte, em toda parte partida entre o barro e o chumbo do poder despudorado. A menina dos olhos do menino é a mãe tornada madrasta é o pai que virou demônio é a casa que virou inferno é a televisão exibindo a feiúra como se fosse a beleza. 

II 
O samburá na cerca de arame contém um bebê chorando enquanto a mãe capina o terreno dos esporões no chão, das pedras no ar. As rugas atacam a pele dos olhos dos adultos adúlteros adulterados. Não havia um caminho começando ali? O que ali jaz é o roceiro pregado na cruz é o cruzeiro da laje que abre os braços enquanto o roceiro cai pela terceira vez. Morrer aos poucos é a nossa vida o pau de espinho é a nossa bandeira. A caneta do chefe dá outros tiros fatais a meningite esguelha outra criança o galo canta no terreiro da cozinha seu pensamento de extrema mudez sua pena das galinhas esgoelhadas. 

III 
Toda família tem sua tristeza? O pai chega em casa bêbado a mãe bate no filho, em si mesma. Toda mulher feia é infeliz Todo homem pobre é feio Toda criança é abandonada. Dorme que o lobo fareja o barraco dorme enquanto o traficante não vem dorme que o político infame vem te pegar. 

IV 
Quem se levanta do nosso lado? “Olhai pro céu, olhai pro chão pro chão” para os aleijados se levantarem. Um cão late dentro da noite horrível é o porta-voz do supremo mandatário da nação? O rio canta, mas ninguém ouve o soluçar da insônia infantil. Apenas a fome apenas a morte lambe as rugas do velho. Somos milhões de cristos na noite de mais uma sexta-feira das paixões. O latido incômodo vibra no ar atravessa a rua, vem trazendo as fezes de Brasília encantoada no mundéu. A criança que contesta Deus grampeia três folhas de papel almaço leva outra surra do pai danado leva outra surra da mãe danada. Quem vai recuperar a vergonha na cara de agora em diante? O que esses sacanas pensam que são? Se olhassem na água pútrida da latrina o que esses crápulas veriam lá dentro? : fidelíssimos espelhos acusadores?

quinta-feira, dezembro 14, 2006

O LEITURISTA PINÇADOR II

1 – “Linguagem e Silêncio”, de George Steiner, trad. de Gilda Stuart e Felipe Rajabally – Companhia das Letras, SP, 1988. - “As ciências enriquecem a linguagem e a capacidade de percepção. Thomas Mann demonstrou em “Felix Hrull”, é da astrofísica e da microbiologia que talvez venhamos a colher nossos futuros mitos, os termos de nossas metáforas. As ciências reformularão nosso meio ambiente e o contexto de lazer ou subsistência no qual a cultura é viável” (pág. 24). - Um crítico não tem acesso a certas generosidades da imaginação às quais um artista tem direito” (pág. 239). - “Agora as sereias tem uma arma ainda mais fatal do que suas canções”, escreveu Kafka nas “Parábolas”, ou seja, o silêncio. E, embora por certo isso também tenha acontecido, ainda assim é possível que alguém tenha escapado do canto das sereias; mas de seu silêncio, certamente, jamais” (pág. 74). - Em Péguy ressalta a lógica da persuasão visceral. Para ele “a prova emerge da veemência da reafirmação, cada insistência desenvolvendo uma espiral de volta a sua premissa. Seus ensaios e livros não são iguais a nenhum outro; feras lentas que trilham a mente” (pág.110). - “Partindo de um mito-chave, bororo, Lévi-Strauss analisa elementos significativos de 187 lendas e contos populares do Amazonas; por meio de complexas matrizes geográficas ,lingüísticas e tópicas, mostra que esses mitos são, em última análise, inter-relacionados e congruentes” (pág. 252). - “O teatro pode subverter as barreiras da alienação que dividem o escritor do público, da comunidade em geral. No teatro, o homem é ao mesmo tempo ele próprio e seu vizinho” (pág. 337). 2 –“ Música e Literatura”, de Federico Sopena, trad. de Cláudia A. Schilling, Edit. Nerman, SP , 1974. - “Não fui o único a notar (nas telas de Delacroix) que os quadros mais apaixonados e mais íntimos ao mesmo tempo, nos quais a cor parecia um grito, tinham comunidade de sentido com Chopin” (pág. 27). - “As coisas evoluem depressa depois que começam. Lord Byron costumava citar o provérbio grego: “o deus cego aproxima-se a pé, porém foge voando” (pág. 55). - “Isto que é o lirismo pictórico de Klee, isto que é o belo silêncio de algumas velhas praças de Berna, isto que Rilke também viu: coisas e espaços resolvidos em música” (pág. 105). - “Em Proust a música desempenha um singular papel de protagonista” (pág. 108). - “Uma voz bela serve à música maravilhosamente porque a transforma em nada mais e nada menos do que num belo corpo” (pág. 112). “Ao ouvir música percebemos outra coisa inexprimível,...,uma correspondência com Deus, uma canção de pecado,...a nona sinfonia (de Beethoven) tem o ar de dominar a história (...). A reforma de Lutero aboliu a Missa. Mas a Música é quase um Sacramento (...), das sombras para a luz: Mozart no céu”(pág.s.120, 121, 128 e 131). - “Só com uma cultura viva, reservando tempo para a solidão, para o silêncio, para a leitura, entre tantas viagens, é possível escrever” como os grandes autores (pág. 152). 3 –“ Arte Poética”, de Aristóteles, trad. de Pietro Nessetti, Edit. Martin Claret, SP, 2004. - Resumidamente entendemos que para Aristóteles a produção de arte é conseguida através da imitação e não propriamente da criação, que seria uma prerrogativa da Natureza, ou seja, da Divindade (pág. 23). A arte da representação, em suas diversas manifestações, tenta exprimir o que há de melhor e o que há de pior no ser humano (págs. 26 e 27). Outras constatações de nossa leitura: a intriga é mais importante que o pensamento (pág.13), a poesia exprime o universal (pág. 14). Diferentemente de Platão, que defendia a inutilidade da arte, Aristóteles vê na obra de arte a catarse, a purificação e a purgação, como valor maior (pág. 16). Para ele os encantos dos cantos corais são despidos de perigos e repletos de bem estar, despertando a salubridade anímica através do impulso às outras atividades (pág.17). Só a beleza contém a magnanimidade e a grandeza (pág. 39). Ao longo do livro ele vai expondo e definindo a beleza, o temor e a compaixão da tragédia (pág. 51), fala na coerência da incoerência, da perversidade gratuita (pág. 57), de Clitemnestra (55), dos coros e dos cantos (68), das metáforas (75) de Homero (82, 84), de quando a poesia reclama os ânimos (64), o verossímil e o irracional (87), de quando o incrível é digno de fé (93), de Édipo (107), dos peripatéticos, do Oriente versus Ocidente (129) e da existência do não-ser (143 e 144). 4 – “A Angústia da Influência”, de Harold Bloom, trad. de Arthur Nestrovski, Imago Editora, Rj, 1973. - “Da religião nascem todas as artes da humanidade”, conf. Vico (pág. 96). - Na visão de Hegel, todo poema não passa de um prelúdio de percepção religiosa, e num poema lírico maduro o espírito já se encontra separado do sensorial, uma vez que a arte está mesmo a ponto de dissolver-se na religião” (pág. 98). - “Todo autor cria seus precursores”, diz Borges, “sua obra modifica nossa concepção do passado, como haverá de modificar o futuro” (pág.12). Chomsky observa que ao se falar uma língua já se sabe, com efeito, de um grande número de coisas das quais jamais tinha tomado conhecimento” (pág. 56). - “Quando duas pessoas se apaixonam”, diz Kierkegaard, “e começam a sentir que foram feitas uma para a outra, então é hora de romper, pois ao prosseguirem não têm nada a ganhar, e tudo a perder” (pág. 64). - Assim diz J.H.van der Berg: “os poetas são hierofantes da inspiração inapreendida; espelhos das sombras gigantescas projetadas pelo futuro sobre o passado” (pág. 73). - Nietzsche se reconheceu herdeiro de Goethe que, como Milton, absorveu outros precursores com um prazer que excluía a angústia da influência que, para Nietzsche, significa revitalização (pág. 84). A maior parte dos homens só ama no outro a sua versão do outro, ou seja, é a si mesmo que ama (...). Tudo o que é grande nos modela, tão logo nos chega à consciência. Assim falava Goethe (págs. 84 e 85). - O livro é imenso, imensamente bom. É melhor lê-lo na íntegra. 5 – “Borges – Nova Antologia Pessoal”, trad. de Maria Julieta Grana e Marly de Oliveira Moreira, Ed. Sabiá, RJ, sem data. - Enquanto dormimos, estamos acordados em outro lado, e assim cada homem é dois homens (pág. 91). - “Então Bioy Casares se lembrou que um dos heresiarcas de Ugbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número de homens”(pág. 82). - “As coisas duplicam-se em Floon; tendem, também, a apagar-se e a perder as particularidades quando são esquecidas.É clássico o exemplo de um umbral que perdurou enquanto foi visitado por um mendigo, e se perdeu de vista quando ele morreu. Às vezes alguns pássaros, um cavalo, salvaram as ruínas de um anfiteatro” (pág. 95). - “Não tenho vocação para iconoclasta. Julgava que a beleza era privilégio de alguns poucos autores. Agora sei que é comum e que nos está espreitando nas páginas casuais do medíocre ou num diálogo de rua” (pág. 238). - “A música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares querem dizer-nos alguma coisa, ou alguma coisa disseram que não deveriam ter perdido, ou estão prestes a dizer-nos alguma coisa. Esta iminência de uma revelação, que não se produz, é, talvez, o fato estético” (pág. 205). - Assim afirma De Quincy: “Até os sons irracionais do globo devem ser outras tantas álgebras e linguagens que de algum modo tenham suas chaves correspondentes, sua severa gramática e sua sintaxe e assim as mínimas coisas do universo podem ser espelhos secretos das maiores “ (pág. 215). - “A literatura começa pela poesia, e a poesia pela épica; é como se, antes de falar, o homem cantasse. Já que a origem da literatura, é oral, esta prioridade bem pode ser atribuída à virtude mnemônica do verso. No Indostão, segundo Wintermit, os códigos estavam redigidos em versos, para que os fixassem na memória” (pág. 230). - “Chesterton define a noite como um monstro feito de olhos. Um epigrama da antologia grega declara: “Quisera ser a noite para olhar-te com milhares de olhos”” (pág. 235).

quarta-feira, dezembro 13, 2006

O LEITURISTA PINÇADOR I (*)

1 – “A Obra em Negro” – de Marguerite Yourcenar, trad. de Ivan Junqueira, Edit. Rio Gráfica Ltda., RJ, 1986. - “A vida enclausura os loucos e rasga uma fenda para os sábios.... Quem seria suficientemente insano para morrer sem pelo menos ter visto a torre de sua prisão?” (pág. 18). - As pedras contam histórias. “Zênon não se cansava de sopesar ou estudar curiosamente as pedras cujos contornos, polidos ou ásperos, e cujos matizes de ferrugem ou musgo contam uma história, dão o testemunho...”(pág. 38). - “Em primeiro lugar, o que se retira dos mortos é o movimento; depois o calor; em seguida, mais ou menos rapidamente, segundo os agentes a que eles estão submetidos, a forma” (pág. 108). - “Anacreonte é bom poeta e Sócrates um homem de indiscutível estatura ética e intelectual, mas não compreendo em absoluto que se renuncie aos tenros e róseos contornos da carne, aos abundantes corpos tão diferentes dos nosso nos quais se penetra como conquistadores numa cidade florida de alegria e para eles engalanada” (pág. 109). - A divisa alquímica: “ir pelo obscuro e o desconhecido por aquilo que é ainda obscuro e desconhecido” (pág. 138). - “O tempo e a eternidade não eram senão uma mesma coisa, como um veio de água negra que sulca as entranhas de uma vasta e imutável superfície” (pág. 154). - “Unus ego et mult: in me”. Um único somos eu e muitos em mim”. Nada alterava aquelas estátuas em seus lugares, postadas para sempre sobre uma superfície imóvel que seria talvez a eternidade” (pág.167). - “Deus nos delega seus poderes. Ele não age senão através de nós, pobres mortais” (pág.177). - “Lutero divulgou uma idolatria do livro bem pior do que certas práticas por ele consideradas superticiosas, e a doutrina da salvação pela fé avilta a dignidade humana” (pág. 195). 2 – “A escrava Isaura” – de Bernardo Guimarães (1825-1884) – Edit. Ática, S, s/data. - “É vã e ridícula toda distinção que provém do nascimento e da riqueza” (pág. 8). - “Os meus braços estão presos, a ninguém posso abraçar, nem meus lábios, nem meus olhos não podem de amor falar; deu-me Deus um coração somente para penar”. (estrofe da “Canção da Escrava”, pg. 11). - “ A desavença entre os dois mancebos era como o choque de duas nuvens que se encontram e continuam a pairar tranquilamente no céu” (pág.25). 3 – “O Lago Sagrado”, de Margaret Atwood, trad. de Caio Fernando Abreu, Edit. Globo, SP, 1972. - Por que cantam os passarinhos? “Eles cantam pelo mesmo motivo que os caminhões buzinam: para marcar seu território” (pág.42) - “O medo produz um cheiro, como o amor” (pág.87). - “Os esquimós têm 52 palavras para a neve, porque é algo importante para eles. Deve haver outras tantas para o amor (pág.120). - “Os predadores mais notórios são as pessoas violentas e nojentas, quando ficam entediadas”(pág. 137). - “As palavras perdiam-se nas sombras, finas como fumaça, evaporando-se” (pág. 139). - Os norte-americanos : “Como nos filmes de ficção científica sobre as criaturas do espaço, invasores de corpos que se injetam nas pessoas, tomando-lhes os cérebros, seus olhos tornando-se cascas brancas de ovos por trás dos óculos escuros. Se você se parece com eles, fala como eles, pensa como eles – então é um deles” (pág. 145). - Somos, sim, os comedores da morte. “Os animais morrem para que possamos viver”. Se Cristo morreu para nos salvar, “os caçadores no outono matando as corças: as corças também são Cristo”. “Mesmo as plantas devem ser Cristo” (pág. 157). - “Anna sorriu tristemente para ele (...). Conhecem tudo um do outro, por isso são tristes” (pág 170). 4 – “Inferno”,de Henri Barbusse, trad. de Eduardo Brandão, edit. Globo, RJ, 1986. - E eu mergulhava na grande noite de seu ser, sob a asa doce, quente e terrível de seu vestido levantado. A calça bordada entreabria-se numa larga fresta escura, cheia de sombra, e meus olhos lançavam-se ali e enlouqueciam. Eles quase a tinham o que queriam, naquela sombra aberta, naquela sombra nua, no centro dela, no centro da fina roupa que, vagarosamente leve e cheirosa, é quase apenas uma nuvem de incenso no meio de seu corpo – naquela sombra que, no fundo, é um fruto” (pág. 32). “É sua verdadeira boca” (pág.45). - “A felicidade está em nós, em cada um de nós, é o desejo do que não temos” (pág. 79). - “Não é com o mal que se alcança a felicidade. Nem com a virtude se chega lá”( Pág. 86). - “O sobrenatural não existe, ou melhor, está em toda parte. Ele e o real são a mesma coisa” (pág. 83). - “Há dentro da terra muito mais mortos do que vivos em sua superfície, e nós temos muito mais morte do que vida...., e mesmo o que ainda não existe também morrerá”(pág.92). -“ Como poderia imaginar minha morte, a não ser saindo de mim mesmo e me considerando como se fosse não eu próprio, mas outro?” (pág. 193). - “O livro de poesia e de verdade é a mais grandiosa descoberta que falta ser feita” (pág.145). 5 – “O Labirinto Negro”, de Lawrence Durrell, trad. de Daniel Gonçalves, Edit. Rio Gráfica Ltda. ,Rj, 1986. - “A verdadeira função da arte é insistir na existência em nós de faculdades não aplicadas para a experiência que o uso embotou” (pág. 44). - “A tarefa do artista consiste em apresentar descobertas concretas sobre o desconhecido que existe dentro de si próprio e nos outros” (pág. 149). - Se considerarmos “a morte como a continuação de um processo que vem de longe, descobriremos que não se trata de um fato tão importante como parece” (pág. 166). - Ela recordava “aquela vez em que Campion lhe havia revelado a existência nela de sua beleza completamente independente do fato de ser bonita” (pág. 239). 6 – “Fragmentos de Uma Poética do Fogo”, de Gaston Bachelard, trad. de Norma Telles, Ed. Brasiliense, Sp, 1990. “O ser humano é uma colméia de seres (...) Não somos nós mesmos num maço mal atado de um milhão de outros tempos? (...) O ser humano nunca é fixo, ele nunca está lá, jamais vivendo no tempo onde os outros o vêem viver, onde ele mesmo diz aos outros viver” (...) Somos seres estagnantes atravessados por redemoinhos..., onde o ser encontra sua verdadeira vida, a vida excessiva? (...) A palavra poética vem consolidar as transcendências (...) Viveríamos em dobro se pudéssemos viver poeticamente e falar, com convicção imediata a linguagem poética (...) Os poetas encontram sua base, elevando-se, segundo Patrice de La tour du Pin. Essa base é o limiar mesmo da sublimação absoluta (...) Já faz muito tempo que se disse que a palavra fora dada ao homem para que ele escondesse seu pensamento..., mas o destino natural das palavras é fluir para novas imagens (...) A imagem é a ambigüidade das profundezas...E tudo o que sobe encerra as forças da profundeza (...) Desobedecer para agir é a divisa do Criador (...) A poesia tem uma felicidade que lhe é própria, qualquer que seja o drama que ela seja elevada a ilustrar..., trata-se de viver o invivido e de se abrir uma abertura da linguagem.” 

(*) O leitor consciente e inveterado não passa apenas os olhos nas páginas, seguindo a facilidade da receita de ver com os olhos e lamber com a testa. Quer mais. Quer assimilar, aprofundando. E para tanto não se contenta em apenas ler, mas também em grifar e anotar palavras, frases e trechos, para demarcar os focos de maior interesse para releituras e pesquisas temáticas. Isso é o que faço, e sempre fiz.

segunda-feira, dezembro 11, 2006

RÉPLICA AO HIPOTÉTICO DESAMOR (*)

Como é triste acompanhar de longe a maciez do barco na água trêmula, como se alguém que estava perto, agora, distanciado, abana as mãos. Como oprime sentir as novas manhãs camufladas em reles fins de tardes, sentir que um de nós perdeu o outro de nós, mesmo sabendo que o destino das afeições esmaecidas é fluir para novas afeições, que revigorem as que não esquecemos, e que estavam conosco desde que nascemos e que conosco estarão até depois que morrermos. Mas como é triste não ter mais para flertar os olhos que vivificavam as naturezas-mortas das obras de arte, os olhos que brilhavam nas palavras que o silêncio dizia, que dizia: como esquecer o que não foi dito e que existia? Como lembrar o que foi meramente pensado? O silêncio a dizer nas gôndolas e barcaças rumando para as distâncias que mais fazem lembrar tudo o que não foi dito. E como agora estender a mão no vazio para quem tem o rosto no luar? Como é triste perceber que um de nós, que era o outro de nós, não é mais toda a humanidade que era, para nós – ou ainda continua a ser? E mesmo que os pombos batem asas, as gaivotas sobrepairem, mesmo assim estamos cansados de saber que o amor não se perde na perda da pessoa iluminada, da pessoa iluminada, que em si resume a humanidade, a humanidade que celebra o sol mesmo debaixo do nevoeiro que o embaça, como talvez dissesse Gaston Bachelard em suas anímicas ruminações. 

(*) Texto escrito depois de ver e ouvir “Que C’este Triste Venise”, no duo de Patrícia Kaaz e Charles Aznavour.

sábado, dezembro 09, 2006

TURISMO RURAL? (*)

O que mais leva as pessoas em geral procurar o lazer regenerador é a beleza da saúde e a saúde da beleza – o mais lídimo usufruto da cultura popular. A beleza da saúde e a saúde da beleza são facilmente encontráveis na Natureza e na Civilização através dos sítios arqueológicos, ecológicos, paisagísticos e históricos. A região centro-oeste mineira, escassa de oferta e de procura turísticas convencionais, é fartamente dotada dessas virtudes antropogeográficas. Os nossos sítios arqueológicos são, no entanto, praticamente desconhecidos, quase virgens em seus refolhos. Quem já procurou e conseguiu descobrir, esmiuçar e divulgar os possíveis tesouros soterrados dos primitivos habitantes da região? As grutas, lapas e furnas estão aí nas encostas e nos grotões, nas cavidades e protuberâncias das rochas e dos terrenos, com suas inscrições parietais, os artefatos líticos e cerâmicos, as urnas funerárias, as ferramentas de lascas de quartzo, outras peças, ossos e sinais, aguardando os esclarecimentos de abalizadas pesquisas. Eu mesmo conservo algumas dessas raridades fósseis, encontradas na área rural de Marilândia. Não seria o caso de cada município mapear e tratar paleontologicamente de suas locas e grutas, de seus valos, muros de pedras, quilombos extintos, ruínas de escavações e de edificações, de seus lugares emblemáticos em geral? Não está na hora de aproveitar o embalo das experiências de outras regiões e levantarmos aqui os lineamentos geográficos das famosas Picadas de Goiás, através das quais a Minas Colonial descobriu o caminho da agricultura e da pecuária, anexando o Triângulo com todas suas boas terras de plantio e de pastagem? Não está passando da hora de os municípios de Itapecerica (a antiga Villa de São Bento do Tamanduá), Pitangui e Paracatu serem oficialmente integrados no chamado Circuito Histórico de Minas Gerais? Os três municípios não fazem parte das dez primeiras (grandes e auríferas) Villas criadas no Estado? Tanto ouro existia no Tamanduá que o rio que banha o lugar adquiriu o nome de Rio Vermelho. Hoje tem a maior jazida de grafite da América do Sul, um Arquivo Judiciário dos melhores de Minas, uma arquitetura que é um verdadeiro mosaico de estilos de épocas. E um de seus Distritos (a já referida Marilândia, que se chamava Desterro até 1930) possui a Igreja mais antiga de toda a região, a de Nossa Senhora do Desterro, fundava em 1754. As três Villas Coloniais emendadas abrangiam quase um terço do Estado. O território da Villa do Tamanduá começava no Sul de Minas e culminava em São Gotardo, nas imediações das planícies triangulinas. O paisagem rural da área possui os mesmos encantos das regiões polarizadas pelo turismo convencional dos dias atuais. A nossa região só falta mesmo é trato (infra-estrutura, principalmente, e vontade política), para melhormente realçar a soberba magnitude das infinitas aquarelas de reverberações e tonalidades magnéticas dos conteúdos e adornos da Natureza. É só sair da cidade e começamos a descortinar o edenismo desdobrado em matizes e figurações circulares, mobilizando os horizontes. E pensar que tudo isso está inscrito no infeliz processo de extinção, que só será retardada se conseguirmos uma solução de vida em vez da sentença pragmática-capitalista de morte da salubridade ambiental A profilática proposta do turismo rural tem também a função reparadora dos atentados contra o equilíbrio ecológico-paisagístico. A infra-estrutura necessária está ao alcance da boa vontade política das lideranças e dos liderados da vida pública. As Pousadas e Hotéis-Fazendas (Itapecerica possui dois dos melhores do Estado), a polícia florestal, os ambientalistas, as populações urbanas carentes do lazer recreativo, todos poderão colaborar no esforço da gestão de recuperar e aperfeiçoar o melhor antídoto do estress e da depressão epidêmicas dos dias que correm. O escritor Norman Mailler disse, certa vez, que a diferença fundamental entre a Europa e as Américas estava no ângulo da estética. Qualquer paisagem da Europa parece uma obra de arte, ele disse. Ele disse porque sabe que, nas Américas, o pragmatismo capitalista arranca os olhos e lambe as órbitas da Natureza. Se Deus, o Esteta da Criação, fez o homem à Sua imagem e semelhança, isso quer dizer que temos de exercitar e propagar nossos hereditários dons estéticos. 

(*) Texto publicado na edição de 27 de setembro de 2003 do jornal Magazine, Divinópolis, MG.

A MINHA AUTOPSICOGRAFIA

O meu mal (que me deixa pesaroso pelos prazeres não aproveitados nem proporcionados) advém do hábito de não ser afoito, de deixar as iniciativas para depois (o passo para ultrapassar o impasse é a tônica de minha inelutável postergação? Por qual motivo ou razão?), de ter sempre em mente dar um tempo ao tempo passageiro, que em suma e no entanto é na verdade o infindável amanhã de nossos dias de hoje. Ora pois, ora essa. O dia de amanhã nunca chega no dia de hoje! Quando chega já é outro dia de outro amanhã. É assim, pois, ora essa, que a vida passa em brancas nuvens na sucessão dos adiamentos e nos intervalos das noites. E quando chega o fatídico dia (até então inacreditável) na rebarba dos outros dias inconclusos e impassíveis, trazendo uma noite despojada de outras manhãs (a eterna noite sombria e vazia), aquém e além da almejada felicidade, que jamais me bafejou, é que me sinto enredado nos enganos de mim mesmo. Mas aí é tarde demais para tentar corrigir o que jamais soubemos se eram ou não erros comportamentais.

quinta-feira, dezembro 07, 2006

FIAPOS DA INFÂNCIA

I – O Quintal. A frente do terreno era ocupado por um conjunto de quatro casas, um paiol, um pequeno curral, um pequeno jardim. A casa em que morávamos ficava no meio, dotada de alpendre ao lado do pequeno jardim e de frente para a parte ajardinada da rua. Tinha oito cômodos e um porão e aos fundos, além do terreiro de secar café começava a parte mais frutífera do quintal, logo abaixo do galinheiro, do chiqueiro, das parreiras de uvas e de chuchu. Num dos lados, a casa que mamãe alugava para sediar o Posto de creme recolhido das fazendas regionais, que depois de analisado e classificado era expedido para a fábrica de manteiga em Oliveira. Do lado esquerdo ficava o casarão dos avós paternos – e aqui abro um parêntesis para dizer que o avô poderia ter sido o homem mais rico do arraial, primogênito que era do homem mais rico do Distrito, que era por sua vez o primogênito do homem mais abastado de toda a região, no período de 1820 a 1870. Mas o meu avô não era muito pragmático nem ambicioso: deixou que alguns dos irmãos ficassem com a maior parte do espólio, sabendo que era pai de apenas um filho (meu pai) e que a descendência dos outros irmãos era bem mais numerosa. O casarão impressionava. Minha mãe (já viúva quando eu tinha apenas seis anos de idade), depois do falecimento da sogra (minha avó) costumava alugá-lo nas festas anuais da Semana Santa para até oito famílias de roceiros distanciados do Arraial. Tinha um cômodo de comércio na frente, ao lado de ampla sala de visitas, um corredor escuro ladeando as entradas dos inúmeros quartos, até vazar na ampla sala de refeições , anexando a dispensa e os armários e guarda-louças, tendo ao fundo uma enorme cozinha de fogão à lenha, com suas gamelas, pilões, peneiras e demais instrumentos domésticos e caixas para armazenar cereais e um porão logo abaixo da escada de pedras com toda a amplitude de uma antiga senzala. A quase certeza que tenho é que a casa pertencera ao bisavô, que casou duas vezes e que criou onze filhos. E que quando o trisavô faleceu em 1887, deixando também muitos filhos criados e dispersados, além de dezenas de escravos, meu avô ficou com o casarão do pai e este com o do pai dele, que era muito maior e muito mais burilado. O quintal exuberante era uma beleza, um reino de folgança da meninada (eu, as três irmãs e as dezenas de primas e primos e colegas de escola). Dividido por muros de pedras dos dois lados e de um valo nos fundos, transformado em espessa grota de cipós e árvores, algumas frutíferas (baba de boi, cagaiteira, gabiroba, araçá e até mesmo um estranho pé de azeitonas). Era constituído de duas partes essenciais: a que ia dos limites da rua até à metade do terreno, área essa reservada ao bem cuidado pomar. Na outra metade, que culminava no valo dos fundos, vigorava o descampado para a roça de milho e de outros cereais. A primeira parte era toda sombreada pelo arvoredo com as folhas como que emendando nas grimpas das árvores sistematicamente cultivadas de forma heterogênea: os grandes pés de laranjas (campista, azeda, serra dágua, baia e a chamada “da terra”, além das laranjinhas capetas) distanciavam-se uns dos outros de tal maneira que se a cambada dos predadores atacasse um deles, a doença-e-morte ficava apenas nesse um, pois ela, a manada dos hospedeiros maléficos morreria no percurso antes de chegar ao outro pé da mesma espécie. E assim acontecia com o esparramamento dos pés das outras espécies, menos com as bananeiras e os cajueiros, que só viviam próximas umas das outra. Mas as goiabeiras, limas, limões, cafés, pitangas, jambos, uvas, jabuticabeiras, mangueiras, coqueiros, mexeriqueiras, abacates, marmelos, tinham que ficar eqüidistantes, infensos à contaminação. E nas beiradas do espaço do quintal e em lotes específicos vicejavam as latadas de orapronóbis, de chuchus, de maracujá, os pés de mamonas, de ervas cidreiras, de amor-deixado, alfavacas , e a chamada horta de couve com todo seu repertório comestível. Na parte de baixo (a metade do terreno, mais ou menos) vicejavam nas épocas propícias de todo ano, o milho (inclusive o chamado catete, de pequenas espigas, de pipocas), o feijão das águas e do tempo, a fava verde e seca, as morangas, gilós, quiabos, abóboras verdes e maduras, a cana caiana para chupar em gomos, a mandioca, a batata -doce, tudo enfileirado nas alas em curvas de níveis, cada planta como que ajudando a outra. Mamãe nem precisava comprar esses mantimentos, a não ser o arroz, o sal, a rapadura, o querosene, o macarrão, a carne de boi, os tecidos e calçados. A produtividade caseira, inclusive das aves e capados (suínos de engorda) era farta e por assim dizer, de graça. Além das regalias e satisfações, sobrava espaço para as brincadeiras e estrepolias da infância: as gangorras, os guisados, as casinhas, os reguinhos, os piões e malhas, os cavalinhos de pau, as bonecas de cabaças e de panos. Tudo isso e o céu também, como dizia o título de um famoso filme daquele tempo. 

II – O Jogo de Bola na Rua. A rua do Arraial do Desterro era tão larga que mais parecia uma praça enorme. Era toda gramada nas costas da Igreja, mesmo em frente ao nosso lote de casas. E sendo também plana, propiciava o jogo de bola (de borracha e de capota) da meninada. As partidas, renhidas, para não dizer empolgantes, aconteciam na parte das tardes, depois do horário escolar do curso primário. A meninada se repartia em dois times de nomes influenciados pela irradiação esportiva da Capital Mineira, onde, na época e até hoje predominava a hegemonia da dupla Cruzeiro e Atlético. Cada metade da meninada, mais ou menos, torcia por um e por outro dos times profissionais da Capital e jogava por um ou por outro time de nomes idênticos, nas peladas rueiras do Arraial, repetindo o ardor e a valentia do sangue e da raça na busca da vitória de cada porfia. Sem querer me gabar, assim tão remotamente, mas por possuir algumas credenciais esportivas, eu capitaneava o time do Cruzeiro, influindo na escalação para cada partida e na orientação logística dos companheiros no campo minimizado da rua. A torcida, formada pela meninada que não jogava e pelos adultos vadios, também se repartia, entre os amantes e simpatizantes dos clubes da Capital. As disputas eram taco-a-taco, como se diz, com equilíbrio na qualidade dos jogadores, prevalecendo, quase sempre, a “raça” (o denodo, o esforço desmedido). E nisso quase sempre levávamos vantagem porque, repito que não é por me gabar não, mas além de jogar relativamente bem (errar pouco na defesa e acertar muito no ataque), eu contava com o apoio da turma que reconhecia em mim uma espécie de líder que primeiro suava a camisa antes de exigir isso dos companheiros. De forma que metíamos a mutamba, como se diz, e dos torneios e campeonatos que disputávamos, ganhávamos a maioria. Do lado contrário, eu enfrentava uma pedreira, como se diz na gíria, no menino então parrudo, engerizado e briguento de um dos meus primos maternos (paternos não tive nenhum, infelizmente, já que meu pai era filho único), que cantava no terreiro (e aqui estou novamente a perorar no reles e gostoso coloquialismo) como galo de briga, munido de espora e bico afiados, golpeando a torto e a direito, sem dó nem piedade. E eu que nunca fui de briga, que jamais exercitei o físico nesse sentido, mantinha a calma na zoeira, tentando apaziguar os ânimos, recomeçar o jogo sem aflorar o nervosismo, às vezes até mesmo dando um dos braços a torcer, sabendo que a resposta da desforra viria a seguir com novos gols a nosso favor. Os torcedores gritavam, pedindo garra, ou seja, o feio recurso das unhadas e pescoções, além das trombadas, calços, caneladas e pénabunda a deus-dará. O lado adversário até mesmo criticava a moderação de nosso lado, apelidando-nos de frescos, molóides, medrosos etc. Eu pedia calma, mostrava a bola, os pés e a cabeça – e seguíamos empatando, desempatando e vencendo. Mas um dia (vêm sempre um dia desigual na vida, não é mesmo?) não agüentei a lambança do despautério e do rompante do primo, que tinha o apelido de Cavalo-Pombo porque era um branquelo que, raivoso, envermelhava à toa. Ele me deu um calço por trás e depois uma rasteira e depois uma trombada desproposital. Foi a primeira e única vez na vida (digo assim porque tal atitude nunca tinha acontecido nem jamais veio a repetir-se) que perdi a esportiva e a cabeça – e furioso avancei no provocador, de unhas e dentes, os socos e os pontapés que Deus me deu para uma eventualidade assim tão excepcional. Todo mundo, ali presente, ficou bobo de ver o rigor de minha reação. A raiva acumulada é que é dona de tal gana, não é mesmo? Fui nele, ciclopicamente, com a força e a coragem, e ele, sendo mais forte, revidava da maneira que podia, encolhendo sempre, até empertigar-se já na beirada do muro da casa do Tio Pedro Amaro e de repente socou-me violentamente na cabeça com uma lasca do muro, ensangüentando-me o rosto e a roupa. Vendo-me assim atingido e talvez mutilado, virei um bicho ainda mais feroz, peguei um tijolo do muro, avancei e espatifei-o na cabeça dele, que também se abriu em sangue, na hora. E aí a turma do “deixa-disso” dos adultos torcedores veio apartar, entregando-nos às nossas respectivas mães, que eram irmãs e vizinhas, as quais agarraram-nos pelas orelhas, levando-nos pela rua aos safanões e xingamentos. As pancadas que levei do primo doem até hoje em meu corpo, mas as que dei doem ainda mais. Não sei bem a razão: teriam sido mais contundentes pra ele, naquele momento e na inapagável lembrança? 

III – O Ginasial em Itapecerica. Um tio de minha mãe, que era meu padrinho de batismo, aprovando minha vocação nos estudos, levou-me de Marilândia para viver em sua casa na cidade de Itapecerica, onde eu faria o curso ginasial noturno e, durante o dia, ajudaria seu filho Zé no pequeno armazém localizado na mesma Rua Necésio Tavares, num chalé entre duas belas casas de famílias de duas belas moças, ambas interessadas em namorar o Zé. A moça da direita era um tanto compenetrada e lenta nos movimentos, tinha uns olhos rabiscadores de amáveis palavras que nunca proferia, imbuída, além disso, de uma certa compleição silenciosa e implicitamente carinhosa, que sumia de vista na alongada rua. A moça da esquerda era um tanto ou quanto estrepitosa, para não dizer fogosa e atirada, seus olhos de jabuticabas prometiam mundos e fundos, sua boca de carnudos lábios revirados atraiam até o momentoso interesse dos desatentos. Sem titubear ele optou logo-logo pela mais oferecida nos repetitivos lances afoitos, a dos olhos que pareciam saltar das órbitas. Ele era mesmo um bom partido, jovial, bonitão, escolado, filho único de um senhor presumivelmente rico. Mas o círculo de afeições não ficava só no duplo interesse das vizinhas. Havia ainda a terceira pretendente, essa ao que parece prometida em mutuo acordo do pai dela com o pai dele, amigos de longa data. Essa era o fino da performance. Escorreita e ao mesmo tempo trepidante, sem transbordamento; estudiosa e ao mesmo tempo popular e requestada pela rapaziada itapecericana, oriunda que era de uma cidade maior, a nossa Divinópolis. Morava na mesma casa do padrinho, vinda especialmente para estudar, acatando a fama de Itapecerica ( onde até os pássaros cantavam em latim) de ter a melhor Escola Normal da região. As más línguas da vizinhança cochichavam, no entanto, que ela teria mudado de residência por imposição paterna, para estreitar os laços familiares através de um possível e desejável consórcio matrimonial dos filhos. Ela, na passividade feminina da época, dava a impressão que topava o combinado, mas ele, desconfiado da trama, arrenegava a possibilidade, e mal-mal a cumprimentava dentro de casa. A pobrezinha (tão bonita de suéter de lã colorida, que revezava com o elegante uniforme colegial (azul e branco!), com o qual atravessava boa parte da cidade, arrancando suspiros e versos dos rapazes mais inquietos, despistava o desdém dele, dando-me tanta atenção que ao mesmo tempo feria minha timidez e lustrava meus brios de rapazinho (quem sabe) garboso. O tempo foi passando, eu estava bem feliz nos estudos, no trabalho e nas horas de folga, iniciando-me na cinefilia ( que carrego até hoje) através dos faroestes e dos seriados das matinês domingueiras. No ginásio eu até que fazia sucesso em conseqüência da aplicação no curso primário de minha terra. Dificilmente perdia uma nota em todas as matérias. Um dos professores citava meu nome para criticar a ignorância dos outros alunos, formulando questões e perguntas a todos e ao receber muitas respostas negativas, vinha a mim para inquirir, e como normalmente eu sabia, ele esmurrava a mesa, xingando os outros com as palavras: “Cambada de Cabaças! Ele ali (apontava-me), que veio da roça, sabe mais que vocês da cidade. Uma vergonha!” E eu, em vez de alegrar, baixava a cabeça, sabendo que o professor estava era discriminando-me na classe, causando não admiração, mas antipatia dos outros a meu respeito. E assim passaram-se dois anos, o Zé fechou a Venda, arrumou um bom emprego no Grafite, casou – e eu tive que voltar para minha terra, de onde um ano depois fui para Belo Horizonte. O Zé casou com a moça dos olhos grandes – e as outras casaram-se depois com bons moços da cidade, e devem estar felizes até hoje. Eu é que fiquei chupando os dedos, penalizado de perder, ainda em tenra idade, as oportunidades de auferir os primeiros encômios desta vida, a alvissareira seriedade de uma e a brejeira candidez da outra. Que precocidade a minha, então, heim? Com apenas os verdes doze anos a sonhar com uma e outra, variavelmente. A ponto de às vezes cogitar que a disfunção sentimental poderia acompanhar-me vida afora, e que quando eu crescesse iria sempre gostar de mulheres mais velhas ou viraria o disco e só passaria a preferir as meninas-moças, invertendo o quadro ao trocar as maduras pelas verdes (as maduras bovaris pelas verdes lolitas). . Nada disso aconteceu nem acontecerá. Continuo gostando das frutas maduras, não por mero egoísmo de apenas contentar meu ego, mas sim para louvar e contentar a maturidade em si mesma, em si mesma muito mais amável do que amante. 

IV – Os Pomares Análogos. Sou (um tanto tantã?) antecipadamente retrógrado, tardiamente futurista? Sempre a perder os guardados? Sempre a procurar os perdidos? Não sou apenas eu, mas muitos? E todos que sou amam você! Como abjurar as profundezas do amor, as profundezas do mar e do ar? Se é para longe que você me leva, é de lá que a trago, molhada de carícias e de carinhos sublimados. Como esfriar ou aquecer os presídios de uma ou de outra parte na mesma conjugação do verbo amar? Os presídios são para os ímpios, que não somos nem seremos. As liberdades são para os amigos, que se amam e que são amados, mesmo sob a ventania silenciosa de uma falsa ausência. Como libertar-me do doce anseio, do doce enleio dos pomares entre as pernas entre os lábios entre as nádegas, na formosa nudez de uma secreta praia pensamental, seja ela carioca baiana capixaba? A franquia do amor é a mesma dos amigos dos irmãos que se procuram para se completarem no amor de Deus e de todo Mundo.

quarta-feira, dezembro 06, 2006

A ARTE DE OLBINSKI (*)

Ele e Ela cavalgam na mesma direção em linhas curvas. Encontrar-se-ão um dia nas águas aéreas e terrenas dos horizontes? O criador e a criatura: uma contradição em termos (as árvores verdes no ar e as secas no chão)? Depois a mulher avulta e o homem míngua aos olhos míopes do neutro observador. O encontro de ambos está marcado nas intercessões, nos gradis e nas costas da viva roupagem da mulher que se afasta, temerosa de novos arranhões. A mão que tampa o olhar é outro olhar, voltado para dentro de si mesmo. A vulva que tampa o olhar é outro olhar, onipresente, através do qual o mundo é a feliz fugacidade, invisível na estupefação. E aí surgem Salomé, Manon Lescaut: é assim que lentamente elas salpicam e dulcificam as curvas de nossa escada de Jacó, rumo à incerta, imprecisa eternidade? O tesão conjugado ao baile das esferas rebenta as cordas da lira que adormecia o rosto feminino da paz mais íntima? As queridas pulsões de Puccini e de Nino Rota passam do bucolismo à sofreguidão do confinamento de uma amplidão minimalista, lá nos confins, onde nossa vista nem alcança. A pungente Aida embevecida de Verdi. As esfinges Electra e Cinderela, trepadas em carruagens e engrenagens, vão na corda bamba dos atraentes abismos das musas e sereias dos musos e ulisses vão sob o impulso da arriscada travessia, onde se dá muito bem, muito bem! a poeta Leila Miccolis, defenestrando a didática do excêntrico e do hermético, pondo em pratos limpos e diáfanos um cardápio mais palatável, dando a entender que a simplicidade não é tão simples que a dificuldade está ao alcance das mãos que a inteligência tem as costas largas que a sensualidade tem os peitos redondos, e afáveis. 

(*) Improviso diante da projeção de um e-mail gentilmente enviado pela poeta Leila Miccolis.

terça-feira, dezembro 05, 2006

O QUÊ É QUE A BAHIA TEM? (*)

Há muito que a filha Ana Paula queria presentear-nos com uma viagem à Europa. Sempre recusamos, agradecidos. Cansada de insistir e talvez pressentindo uma provável xenofobia de nossa parte, ela veio agora no fim do ano de 2003 com as passagens aéreas e a reserva no hotel para o passeio de três semanas na Bahia e em São Paulo, onde ela mora. Convite, assim, irrecusável, como se vê. E foi um barato no sentido ao mesmo tempo literal e metafórico da palavra. A hospedagem no hotel à beira-mar, num apartamento bem alto, que propiciava o descortino da imensidão azul que faz dançar em som gotas de luz (como na célebre canção de Charles Trennet) da orla às ilhas de Itamaracá e do Frade da baia que é um dos melhores estados de espírito da federação brasileira. Dez dias lá, dez dias em São Paulo, no apartamento de Ana, a poucos quarteirões dessa outra espécie de mar (a verdura do solo e do ar) que é o Parque Ibirapuera, cenário da tranqüilidade e da descontração que amenizam os atropelos metropolitanos. De uma e de outra cidade o misticismo e o pragmatismo entrelaçam-se, em dissonância e ressonância. Creio até mesmo que o Rio de Janeiro é uma espécie de herdeiro, uma extensão de toda a baianidade. Mas São Paulo não tem nada a ver. O baiano é místico, o paulista é pragmático. Salvador tem trezentas e tantas igrejas (fomos em muitas, graças a Deus), São Paulo tem trezentos e tantos bancos. Na Bahia a música, a literatura, a arte plástica estão nas pessoas e nos lugares; em São Paulo estão nos teatros, nos museus, nos cinemas. E como tudo é tão farto e maravilhoso, em ambas as cidades! Presenciamos parte da Lavação da Escadaria da Igreja do Senhor do Bonfim e também parte da comemoração dos 450 anos da fundação de São Paulo. As baianas à caráter, os Filhos de Gandhi, o jogo da capoeira, o candomblé, os ritos afro-indígenas, as vozes em surdina de Caymmi, Bethânia, Gal, Tomzé, Caetano, tudo assim gratuitamente a espraiar-se nas amplas, abertas e encantadas áreas dos Faróis e das Barras, do Pelourinho, da Lagoa do Abaeté, do Itapoá, das galerias a céu aberto dos Orixás em altos e imensos relevos.Tivemos a sorte de encontrar os amigos de Ana, o Alberto e Ana Maria e seus filhos Andrea e Gustavo, tanto em Salvador como em São Paulo – e assim o leque das paisagens multiplicou-se, brilhou ainda mais nas indicações e esclarecimentos. Nós, que já conhecíamos a Bahia de Antônio Vieira, Gregório de Matos, Jorge Amado, Dorival Caymmi, Ary Barroso, Novos Baianos e os amigos que publicavam seus textos aqui no tempo de circulação (1968) de nosso jornal AGORA (o Tertuliano Motta, o Ildázio Tavares, o Antônio Brasileiro, o Fernando Batinga, o Carlos Cunha, a Helena Parente Cunha), estávamos agora com outras e novas violas nos bolsos, novas paisagens nos olhos, o gostoso paladar do acarajé, do vatapá, do mugunzá, da casquinha de siri, tudo sendo recolhido para as boas e futuras lembranças. Em São Paulo participamos da Festa dos 450 anos, atônitos diante dos fantásticos jogos florais de luzes e de sons do show de Roberto Carlos (o melhor presente de aniversário para Inês, segundo ela mesma disse, fã de carteirinha que é do cantor), no qual não faltaram as ingratas vaias à Rita Lee (só porque ela andou criticando a cidade pelos jornais da cidade) e a explosão eufórica da multidão diante do auge da festa que foi a apresentação dos Demônios da Garoa, cantando o verdadeiro hino de São Paulo, que é “O Trem das Onze”, de Adoniran Barbosa. Vimos, ainda, a história da cidade em três dimensões no MASP, os belíssimos filmes Dogville, Encontros e Desencontros, o Último Samurai – e a Catedral da Sé remodelada, a ópera A Força do Destino, de Verdi, e ainda por cima almoçamos, mais uma vez, no Bar da Brahma, palco das antológicas canções de Paulo Vanzoli (Ronda) e Caetano Veloso (Sampa), sentindo o que acontece em nosso coração ao cruzar a Ipiranga com a Avenida São João. Conhecer a Europa? Tudo está mesmo aqui no Brasil, sempre a se descobrir na Bahia e nas cidades históricas de Minas. Ir aos EUA? Suas metrópoles panorâmicas, tentaculares e pragmáticas, estão mesmo ali no velho e sempre novo São Paulo, que não pode parar porque, como diz o humorista José Simão, não tem estacionamento. A viagem foi ótima, um banho de poesia, uma gratificação existencial. 

 (*) Texto publicado no jornal Magazine (Divinópolis, MG) em 14/02/04, com o título de “Bahia – São Paulo”.