POETAS DIVINOPOLITANOS
Adélia, Três Vezes Adélia. Três constantes temáticas atravessam, como linhas circulares, o mundo poético de Adélia Prado: a cidade natal, a sensualidade vital e a divindade. São as linhas principais de um mapeamento multifacetado de imagens e conceitos não obrigatoriamente coniventes.Estou a ler o número nove dos Cadernos de Literatura Brasileira, dedicado à poeta, que estampa na contracapa o poema da cidade de Divinópolis, que ela já tinha cantado meigamente na adolescência em tom laudatório, enaltecendo as fábricas, os prédios, as oficinas, os trabalhadores braçais, alavancas do progresso que a cidade começava a conhecer. O novo poema é de um amor menos ostensivo, que responde em toda sua obra pelas menções afetivas das coisas e seres da terra: a beira da linha e seus moradores, a faina ferroviária de toda a vizinhança, a freqüência litúrgica nos templos católicos, as festas populares nas ruas e praças, os pungentes relacionamentos dos amigos e parentes, entre os quais avulta, luminosa, a figura do pai da poeta (autor metafórico, por assim dizer, de muitos de seus mais belos versos, que ela enfaticamente cita na sucessão de suas publicações). Divinópolis é, para ela, a dona de uma luz que nasce da verdadeira luz eterna. A sensualidade que sobressai de seus versos é a do princípio vital da natureza e da humanidade, sem a qual as aparências não teriam intensidade, as ações não teriam graça, os sonhos não seriam lembrados nem antes nem depois do sono. “Se me tocar, desencandeio as chusmas”, ela diz num verso e noutro, falando do sexo, de modo doce diz que ele é sapiente e tem o modo realmente doce “pleno de si, mas com fome”. A poesia é Eros, ela conclui, com toda razão, espalhando em seus versos a essência mais perfumosa da libido em todo o curso da natureza: a cor e o som, intensos no viveiro das folhas aéreas e rasteiras e em todo voar e cantar dos pássaros e no álacre existir das coisas e seres, glorificando o princípio do prazer em sua finalidade, em sua felicidade humana, esfericamente planetária. E Deus? O Deus dela é talvez mais belo no Velho Testamento e mais verdadeiro no Novo Testamento? Interessante notar que Ele é onisciente, onipresente, onímodo, oniparente, mas nunca chega a ser o onipotente tantas vezes apregoado nos catecismos católicos. Ele também vacila de vez em quando, diante de alguns estrepes misteriosos, por mal do resguardo de alguns dos pecados? Seria esse um traço dostoievscano de nossa querida Adélia? “A uns Deus quer doentes, a outros quer escrevendo”, ela diz num verso que prenuncia o outro “Deus quer falar e me usa”. Pois que fazer Poesia para ela é fazer o Pão de Deus. E esta é a mais bela forma de orar, afirma Frei Beto, a respeito do trabalho dela. Uma atmosfera de conflitos evanescentes, de machucados revigorantes. Quantas vezes, muitos caminhos, quantas fontes. O Outro Nome da Poesia. A mais recente publicação de Osvaldo André de Melo, a plaqueta intitulada “Meditação da Carne” (Orbital Poesia, BH 97), é obra e madura, o transe andante nas vertentes da sutileza, lépido nas articulações e belamente revestido do lirismo mais humanista. Cada palavra é a pedra, o barro, a madeira, o formão, a talhadeira, todas as ferramentas e materiais de construção das catedrais ao mesmo tempo cotidianas e seculares. Um nome, outro nome, todas as palavras que procuram dizer o outro nome da carne:quem sabe o enredo e o coração do sonho? o dobre de vivências infinitas? Sei não. Osvaldo André de Melo nunca teve pressa de partir nem de chegar. Nunca atropelou os embargos dos caminhos. Foi sempre o que é; é o que sempre foi: o poeta da bipolaridade da prudência e da ousadia, da ousadia e da prudência na alternância das dietas e das canções, das atrações e expansões dos momentâneos da permanência. Cônscio da própria luz, não precisa de lanternas alheias para cumprir sigilosamente sua escalada orbital, indo e vindo no mesmo endereço da infância-adolescência-juventude-maturidade, sem ferir ninguém a não ser com os gumes da afabilidade, da auto-estima, do amor-próprio de toda a humanidade. É por isso, e por muito mais, que estamos diante de um livro que engrandece toda a poesia de nosso tempo – não só pela carga lírica (quer dizer que o amor continua sendo a melhor coisa do mundo), como pela validez da palavra (os muitos nomes, as muitas coisas de cada uma delas): a poesia tornada ramo de oliveira que a pomba de Noé trouxe para a arca nos dias posteriores ao dilúvio. Sursum corda, é o que temos a dizer, antes e depois de ler os poemas de “Meditação da Carne”.