UM ESTADISTA BRASILEIRO
Às vezes a gente lamenta a deficiência de homens públicos que mereçam um pedestal na história de nosso país. De um modo geral, pensando bem, quem se levanta das sombras para o sol da glória patriótica? Vários nomes ocorrem, mas surgem ensombrados de dúvidas e de senões ao lado dos feitos positivos. De relance, instantaneamente e instintivamente, salta-me aos olhos da memória a figura aprumada, límpida e exemplar de Joaquim Nabuco, o verdadeiro (mas não o único, reconheço) estadista brasileiro. Relativamente ao estado de Minas Gerais temos o Teófilo Otoni, o Afonso Arinos, o Milton Campos, o Tancredo Neves, o Itamar Franco – e penso que todos os estados da federação devem ter lá os seus ícones excepcionais, mas a nível nacional o meu voto vai para Joaquim Nabuco, cidadão, intelectual, homem público por excelência, inspirado, lutador e produtivo. Quando li sua obra prima, “Minha Formação” (Editora EDELBRA – Erechim, RS.), cheguei a sentir a epifania patriótica renascer em meu conturbado coração de brasileiro, pisado e repisado de anos e decênios de desilusões e comiserações. No final da leitura, tinha preenchido o branco das últimas páginas com dezenas de incontidas anotações. Isso em fevereiro de 2004, sem nenhuma intenção de aproveitamento em resenha, na época ou depois. Mas lendo agora os originais de um livro de Ruy Barreto sobre as trapalhadas da política brasileira nas transposições da economia açucareira para a cafeeira, marcadas a ferro e fogo na efígie da brasilidade pelo estigma da escravatura que teve início, meio e fim abomináveis, ocorreu-me rever a figura de Joaquim Nabuco, no papel do abolicionista cristão, lúcido, justiceiro e coordenado, uma figura que se contrapõe ao do badalado Rui Barbosa, que na verdade foi um vilão no lamentável episódio. Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo (1849-1910), filho de Ana Benigna de Sá Barreto e de José Tomas Nabuco de Araújo, possui em sua identidade histórica o renome dos primordiais desbravadores e civilizadores das regiões norte e nordeste, além de acumular em seu currículo de vida, títulos e honrarias (advogado, jornalista, escritor, diplomata, deputado, ministro, abolicionista) que obteve por mérito próprio e que exerceu com lealdade, discernimento e tenacidade.Uma diplomacia de amor, inteligência e honestidade. Revendo as anotações, copio as mais interessantes, livremente, sem aspas obrigatórias. O sábio é uma fonte de várias bicas. A raça negra estava órfã de Deus? O frêmito de alegria da natureza transparece nas borboletas vivas no raio interior que temos de fixar como nota íntima e não (nunca) desbaratar. Nenhuma classe dirigente tem o direito de escravizar a classe dirigida. O trabalho escravo é uma vilania. As paisagens cariocas da época eram trechos do planeta em que a humanidade ainda não tinha tomado posse: nesgas paradisíacas anteriores às primeiras lágrimas dos homens. Temos em comum com todas as civilizações da humanidade o mesmo “fundo comum de língua, religião, arte, direito e poesia, os mesmos séculos de civilização acumulada e, portanto, desde que haja um raio de cultura, a mesma imaginação estética e histórica”. Graças à influência que sofri na Europa (ele diz em outra página), voltei consideravelmente menos político do que quando partira. Na página 108 ele cita o Presidente Tilde (dos EUA): “uma grande e nobre nação não separa a sua vida política da sua vida moral”. A temática da Abolição prepondera, em linhas gerais, no livro. Na página 182 ele opina que “se a monarquia pudesse sobreviver à abolição, esta seria o seu apanágio; se sucumbisse, seria o seu testamento”. O que acabou acontecendo, apesar dos pesares. Retrocedendo à página 100, encontro o que ele afirma com todas as letras: “Se a abolição se fez entre nós sem indenização, a responsabilidade não cabe aos abolicionistas, mas ao partido da resistência. Meu projeto era abolição com indenização”. Sobre a corrupção política, ele parece estar falando nos nossos dias: “Desde que a corrupção reina nos dois partidos, que ambos têm as suas chagas conhecidas e as suas ligações comprometedoras, todas as campanhas a favor da pureza administrativa têm muito de insincero, de simulado, de convencional”. Referindo-se ao barão de Tautphceus, seu mestre e amigo, ele patenteia sua veia ecologística: se fosse “ele o descobridor e possuidor da América, o machado nunca teria entrado nela... E o tição? Uma queimada era para ele igual a um auto-de-fé. O incêndio a lamber essas resinas preciosas, essa seiva, esses sucos de vida, esse sem-número de desenhos caprichosos de artistas inexcedíveis cada um no seu gênero, modelos de cor e de sensibilidade, todos eles únicos, parecia consumir com uma dor cruel, vibrante, todas as suas ligações sensíveis com a natureza e a vida universal, os nervos todos de sua periferia intelectual”.