Assim falava Guimarães Rosa:”O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob uma montanha de cinzas.... escrever é um processo químico; o escritor deve ser um alquimista”.A obra de autores da estatura de Machado de Assis, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral, Adélia Prado e Guimarães Rosa (para citar apenas os brasileiros) é interminável. A gente lê e ao reler percebe que todo o arsenal literário profusamente empregado pelo autor está recomeçando, despertando novas intuições em nosso por assim dizer crivo leiturista. Quando lembro que já li quase toda a obra de todos os citados, fico na dúvida: será que li mesmo? Retomo a leitura como se entrasse pela primeira vez no auspicioso caminho – uma sensação semelhante a sensualidade do ato sexual: estamos sempre a repetir a inesgotável primeira vez. A fonte é a mesma, mas a água cristalina é cada vez mais satisfatória.
Em 1967, respondendo a um questionário de uma estudante, Guimarães Rosa afirma: “Falo português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; entendo alguns dialetos alemães, estudei a gramática do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituano, do polonês, do tupi, do dinamarquês: bisbilhotei um pouco a respeito de outros”. Acreditava que estudando o espírito e o mecanismo das outras línguas podia aprofundar e conhecer melhormente o idioma nacional. As pessoas que notam a felicidade dele em todas as ocupações (médico, diplomata, jornalista, turista, namorador e, principalmente, escritor, podem até concluir que ele nasceu com a bunda para a lua, o que não confere com o esforço e a labuta que empenhava no rol de atividades que fizeram dele um raciocinador em bloco a favor da mais lidima interpretação da vida de seu mundo.
Em alguns momentos da leitura de seus livros, penso estar, concomitantemente, diante dos quadros de Hieromynus Bosch: algo irrompe e suscita a fascinação daquele jardim das delícias no painel realista do grande sertão mineireiro: a reunião dos recantos das apoteoses, às vezes até mesmo contraditórias, da lucidez esotérica e alquímica: a luxuriante miscelânea das figuras em constante transcurso nas escarpas medonhas e nas colinas aprazíveis: um vívido conglomerado de nuvens e luzes, denodadamente esportivas e sensuais. De um lado os vaqueiros tangendo a boiada mundo afora, do outro lado as criaturas bíblicas, praticando as seitas litúrgicas e heréticas (nadando, voando, copulando) nas copiosas paisagens sertanejas e nas ínvias veredas do velho mundo sem porteiras, misturando o consternado com o indefinido, escancarando aos céus a mesma confraternização das espécies, o mesmo harmonioso corpo de baile, as mesmas artimanhas de um dia na rua ou no campo: a estranheza divina ou demoníaca da pessoa dançando no meio do redemoinho. E aí surge a sigilosa afeição entre Riobaldo e Diadorim nas intermitências de um tempo e um lugar espelhando o benquisto céu tão próximo ao temido inferno distanciado. Um e Outro (Rosa e Bosch) escrevem e pintam não na areia movediça (como diria Bandeira), mas, sim, gravam na pedra, para proveito de nosso deleite, de nossa transcendência.
“O canto dos pardais”, ele diz, “repentinamente múltiplo, gaiato e concertado, faz-me sentir que a minha angústia básica é a ânsia de onisciência.... Por que cantam os pardais? Como vivem?” Os coros angelicais dos pássaros e cigarras: uma alma corporificada em cada árvore, em cada nesga de relva, celebrando o triunfo da vida airosa sobre a morte taciturna, reprisando cenas do Apocalipse e do Eclesiastes no espelho das águas de um rio ou no alongado das relvas na várzea retilínea. Sabemos que está além de nosso alcance a hermenêutica silvestre dos pássaros e dos insetos, do silêncio dos peixes e dos olhares das pessoas mudas. Desobrigado da veracidade vernacular, ele associa os timbres, as ressonâncias, as interrelações, para então (em arremedo?) interpretar vocal e graficamente o que antes era estranho e agora é bem natural.
Escritor regionalista? Ele mesmo derruba essa hipótese: “Todos os meus livros são simples tentativas de rodear e devassar um pouquinho o mistério cósmico, esta coisa movente, impossível, perturbador, rebelde a qualquer lógica, que é a realidade..., que é a gente mesmo, o mundo, a vida”. Encontrando em Aracy a pessoa que o entende e ama, ele não se constrangia em ficar amuado horas e horas tergiversando e, ensimesmado, pesquisando e conferindo os “achados” mentais para seguir na desenvoltura narrativa-descritiva do enredo que, nebuloso, relampeava em sua mente aturdida e, não raro, clareada mediante o esforço de “estar sozinho” sem melindrar o apoio e a lealdade que recebia da esposa tanto tempo alijada de sua atenção afetiva. Ela amava o que ele fazia e não apenas o que ele era. A literatura brasileira tem, pois, uma enorme dívida de gratidão com a bela e compreensiva Aracy Moebius de Carvalho, segunda esposa do nosso grande Escritor.
Fontes:
1 – CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA – João Guimarães Rosa – Instituto Moreira Sales, São Paulo, SP, 2006.
2 – MUSEU DO PRADO – MADRI – Coleção Folhas dos Grandes Sucessos do Mundo, texto de Daniela Tarabra – Rio de Janeiro, RJ, 2009.