quarta-feira, agosto 27, 2008

MANUELZÃO E MIGUILIM, DE GUIMARÃES ROSA (*)

A linguagem inconvencional, não a exótica ou folclórica com suas escórias de redundâncias e não-concordâncias, a linguagem não-linear, não-acadêmica, a linguagem dos povos excluídos, do sertão, é usada por eles quando querem entender as coisas e contá-las com essa linguagem que não é apenas uma fonte de expressão, mas sobretudo uma fonte de conhecimentos. Quando querem entender um bicho, uma visão ou um som de coisas, eles pensam e falam com as palavras que formam as coisas, que organizam e exprimem as coisas de dentro para fora e, assim, cada punhado de palavras parece ter sido criado na hora da conversa e por isso não pode ser empregada noutro contexto. É a linguagem inusual que exorbita do regionalismo e da época e dificilmente será considerada arcaica, pois é a linguagem da alma dos seres humanos na comunhão das almas dos outros seres da natureza. Tem os contornos livrescos, mas a expansividade é popular, a oralidade dá as mãos ao erudito na comunhão peripatética dos seres humanos indistintos – e assim o caipira de repente é um letrado. E assim ele espelha a amizade entre o menino e o gato, no paiol de milho: “O gato Sossõe, certa hora, entrava. Ele vinha sutil para o paiol, para a tulha, censeando os ratos, entrava com o jeito de que já estivesse se despedindo, sem bulir com o ar. Mas, daí, rodeando como quem não quer, o gato Sossõe principiava a se esfregar em Miguilim, depois deitava perto, se prazia de ser, com aquela ronqueirinha que era a alegria dele, e olhava, olhava, engrossava o ronco, os olhos de um verde tão menos vazio – era uma luz dentro de outra, dentro doutra, dentro doutra, até não ter fim”.(p.39). Por aí se vê. São palavras autônomas no texto, inseparáveis do que dizem. Com elas você faria um memorando, uma notícia de jornal? Aí está a importância literária do autor que não deixa o samba morrer, que mantém o humanismo bem aceso nos umbrais do planeta. Assim Miguilim via o velho Deográcias, curador homeopático e candidato a mestre roceiro: “Todo tão feio, seo Deográcias, aquele tempo se tinha medo que ele envelhecesse em doido”. Não é assim que as crianças de um modo geral ajuízam a figura do velho antipático? Páginas adiante ele depara com a Mãitina, velha do tempo da escravidão, que vivia na casa, estranhamente, com seus modos esquivos, suas falas em idiomas afros, antigos, cabalísticos: “Tanto mesmo Mãitina tinha gostado dele, e vieram, até na porta-da-cozinha, ela segurou na mãozinha dele, aí ela gritou, exclamando os da casa, e garrou a esbravecer, danisca, xingando todos, um cada um, e apontava para ele, Miguilim, dizendo que ele só é que era bonzinho, mas que todos, que ela mais xingava, todos não prestavam. Pensaram que ela tivesse doidado furiosa”. (p.49). Miguilim ´a pureza da infância, a meditação pueril e poética dos mistérios e das realidades, a pequena (infantil) observação das coisas grandes (adultas), como o amor, o desamor, a bondade, a violência, a morte, a vida em estado puro, em toda a sua manifestação: animal, vegetal, mineral e sobrenatural. “Ele Miguilim era quem ia casar com Drelina – mas irmão não podia casar com irmã?” - “Drelina, quando eu crescer você casa comigo? - Caso, Miguilim, demais.” A outra irmã achava que ele não aprendia a dançar porque “nasceu em dia de sexta-feira com os pés no sábado: quando está alegre por dentro é que está triste por fora”. A mutação gráfica e sonora dos vocábulos faz parte do corpo de baile dos campos gerais: curió passa a ser curiol, exaparecendo é desaparecendo. “Mãe olhou Miguilim, prazida. Pai escutou, e o que disse não disse nada”. Os neologismos contextualizados nas frases parecem seculares: “devoava uma alegria”, “abelhas e avespas inçoavam sem assento”, “tinha sofrido um excesso”, “pai padece de escandescência”, o fogo drala bonito”, “bobagens que o coração não consabe”, “as histórias tinham amarugem e docice”, “Dião de dia!”, “tremia as mãos farinhosamente”. No discurso esplendem igualmente os neologismos remetidos de outras parolagens, como na página 214: “Os grandes cochos,entortados, ásperos, guardando as curvas dos troncos das árvores que foram. Ao enquanto,livres, os bois bovejam, os porcos crogem, sotretam os cavalos, as galinhas fuxicam, os cachorros redormem, e as dúzias de angolas se apavoinham selváticas, com seus contrafactos”. Assim rendido aos encantos da verdade e da beleza sertanejas, Guimarães Rosa, versado nos altos saberes das filosofias de todas as épocas, apura os ouvidos na atenção e aprende com os boiadeiros e roceiros o que às vezes escapou à Platão e à Spinosa, como os ditirambos das páginas 74 e 75: “Rosa, quando é que a gente sabe que uma coisa que vai fazer é malfeito? – É quando o diabo está por perto. Quando o diabo está perto, a gente sente cheiro de outras flores...( ). – Mãe, o que a gente faz, se é mal, se é bem, ver quando é que a gente sabe? – Ah, meu filhinho, tudo que a gente acha muito bom mesmo de fazer, se gosta demais, então já pode saber que é malfeito... ( ). – Vaqueiro Jé: malfeito como é que a gente se sabe? – Menino não carece de saber, Miguilim. Menino, o todo quanto faz, tem de ser mesmo é mal feito...( ). O vaqueiro Saluz vinha cantando bonito...( ). A ele Miguilim perguntava. Sei se sei, Miguilim? Nisso nunca imaginei. Acho quando os olhos da gente não tem dispor para encarar os outros, quando se tem medo das sabedorias..., Então, é mal feito. Mas o Dito, de ouvir, já se invocava. – Escuta, Miguilim, esbarra de estar perguntando, vão pensar que você furtou qualquer trem do Pai. – Bestagem. O cão que eu furtei algum! – Olha: pois agora eu sei, Miguilim. Tudo quanto há, antes de se fazer, às vezes é malfeito; mas depois que está feito e a gente fez, aí tudo é bem feito.... Mas o Dito possuía a sabedoria de quem vai morrer muito antes do tempo. Às vezes caçoava, às vezes falava sério, como quando interpreta o sentimento de culpa e o sofrimento das injustiças: “Os outros têm uma espécie de cachorro farejador... Se a gente por dentro da gente está mole, está sujo ou está ruim, ou errado.... As pessoas, mesmas, não sabem. Mas, então, elas ficam assim com uma precisão de judiar com a gente.... A promessa a gente devia de cumprir antes de ser atendido e não depois, o Dito teria dito, depois. Num mundo assim aprazível, tão francamente oferecido ao comportamento popular, a sabedoria dos refrões não podia ausentar: “eh mundão! Quem me mata é Deus, quem me come é o chão!”; “Alegria do pobre é um dia só: uma libra de carne e um mocotó”; “Casar sério lá é triste/ Namorar só é que é gostoso”. E as pessoas que transpiravam as sabenças dos rincões, na melhor magreza das virtudes, encolhidas na modéstia que elas confundem com as ignorâncias. Como está na página 192: “uns, pobres de ser, somenos como o velho Camilo, esses nem tinham o poder de nada, solidão nenhuma. Viviam, porque o ar é de graça, pois”. Mas o Manuelzão, altivo na modéstia da festa que coroava sua vida, pilhado quando negociava assuntos de produção de creme de leite, justifica: “Compadre, veja. Mais antes trabalhar domingo do que furtar segunda-feira. Mesmo digo. Aqui a gente olha a garapa ainda na cana”. – E a vida, seu Chico?, alguém pergunta e ele responde: - “É isto que se sabe: é consolo, é desgosto, é desgosto, é consolo – é da casca, é do miolo”. Na roça eles sabem o nome de tudo. E sabem porque aprenderam ou de nascença? Se não sabem, eles inventam na hora, e assim todos ficam sabendo. Inventam como? Arranjam um nome para a coisa, parecido com a coisa, um neologismo, uma composição que corresponda à visão da coisa, baseada, é claro, no entendimento prévio que se tem das coisas em geral, no comum acordo delas com os respectivos nomes. De sorte que a linguagem se valoriza, a gramática flexibiliza, e a certeza de que o estilo é o homem se confirma. O modo de falar de cada pessoa (o sotaque, o palavreado, incluindo os neologismos) define cada pessoa. Ninguém encontra a linguagem pronta e acabada como a escolarizada dos meios urbanos: lá no sertão cada um tem que se virar para dar seus recados, contar seus casos, comunicar-se com os outros. E sua palavra (a voz e o que ela diz) é sua graça. “Chuva vesprando, cachorro sossega muito”, um dos personagens diz. No rala-rala, no frigir dos vocábulos, agora em nova gramática e nova ortografia, a fonética e a morfologia realinhadas, surgem as imagens dispersas e também as claras: “ele bebia um golinho de velhice”; “os cachorros corriam muito para longe, querendo pegar as bobagens do vento”. Mas, a par de toda bizarria lingüística, Guimarães Rosa sabia armar o enredo e estruturar uma ação dramática: a doença imaginária de Miguilim, a levação do almoço ao Pai na roça servindo de carregação para o drama passional do tio enamorado da mãe – e depois a emboscada dos macacos, que lhe tomaram o almoço do pai. Isso ele fazia, também, como o melhor dos novelistas! Os personagens não sossegam, as ondas fervem nos redemoinhos. O verbalismo deles tem que se ajustar ao dinamismo da vida. As palavras não podem ser diferentes dos atos: “O Dito gostava de ter notícia de todas as vacas, de todos os camaradas que estavam trabalhando nas outras roças, enxadeiros que meavam. Requeria se algum bicho tinha vindo estragar as plantações, de que altura era que o milho estava crescendo”. Um outro deles apreciava a festa do Manuelzão (p.237): “Amiúde visava de lá o senhor do Vilamão, transitório, corujante, os olhos meio mortais, o rosto roseando suave no desde-luz, celeado geoso”. O fraseado cuidadoso, pinturesco e buliçoso não tolhia a verve descritiva nem a vivacidade do fluxo narrativo. No momento crucial da história, a morte do querido irmão Dito, ele repetia as frases que a mãe dissera quando o estava pondo dentro da bacia para lavar. Agora era ele quem precisava guardá-las, decoradas, ressofridas. Só Rosa disse que o Dito falava com cada pessoa como se ela fosse uma, diferente, mas que gostava de todas como se todas fossem iguais. E disse que o Dito parecia “uma pessoinha velha, muito velha em nova”. Já o outro irmão, o Liovaldo, era malino e urbanizado: veio à roça com a malícia cortante do pouco caso. Perto dele Miguilim nem queria conversar com os outros. “Porque o Liovaldo, só de estar em presença, parecia que estragava o costume da gente com as outras pessoas”. e assim como o autor não pode deixar de citar as trovinhas populares que os personagens citam, o leitor também não pode deixar de citar. Elas estão na ponta da língua e do pensamento: “Meu cavalo tem topete/topete tem meu cavalo/no ano da seca dura/mandioca torce no ralo. Quem quiser saber meu nome/carece perguntar não:eu me chamo lenha seca/carvão de barbatimão. Ó ninho de passarim/ovinho de passarinhar/se eu não gostar de mim/quem é mais que vai gostar? O bicho que tem no campo/o melhor é a sariema/que parece com as meninas/rouxeando a cor morena. Suspiro rompe parede/rompe peito acautelado/também rompe coração/trancado e acadeado. O bicho que tem no mato/o melhor é o passo-preto/todo vestido de luto/assim mesmo satisfeito. A literatura é um diálogo do autor com o leitor, que toma muitas conotações, dependendo da formação de vida de um e de outro, mais do autor, que, no caso, é o elemento ativo. Ele pode escrever pouco e acertado, usando a síntese da poesia, ou alongar-se páginas e páginas, dias e dias de leitura interminável. Nesse caso, ele tem que encher lingüiça com grãos de ouro, para não enfadar o leitor nas entrelinhas, nos intervalos dos lances mais enfáticos e sensacionais, como os de uma partida de futebol, na qual um gol de letra nasce às vezes de uma bola prosaicamente atirada da lateral do campo. Guimarães Rosa não pisca os olhos nem afrouxa as mãos nesses intervalos. Seu leitor não sente a diferença dos ritmos nos vãos da escada, ninguém percebe quando ele passa da armação do laço para a laçada do boi na invernada. Seguimos pelas ondulações cromáticas do mosaico e só depois é que nos lembramos dos ponto-chave, das nucleações, das pontas e dos pontos do fio narrativo. Às vezes defrontamos a epifania da poética, as lágrimas da paixão, os estribilhos do riso – porque de repente estamos bem dentro é da natureza e não do livro, e ela, a natureza, tem seus matizes e seus emblemas – e assim o próprio realismo mágico flui despretensiosamente, sem ser chamado e sem chamar atenção, como a coisa mais natural do mundo – o riachinho que de repente cessa de correr: “Foi no meio de uma noite, indo para a madrugada, todos estavam dormindo. Mas cada um sentiu, de repente, no coração, o estado do silenciosinho que ele fez, a pontuda falta da toada, do barulhinho. Acordaram, se falaram, até as crianças. Até os cachorros latiram. Aí , todos se levantaram, caçaram o quintal, saíram com luz, para espiar o que não havia.” Assim o geral, feito dos particulares, vai ressaltando os particulares e assim também naturalmente, sem premeditar, surgem os personagens do realismo mágico rosiano, como o tal de João Urugem, que, acusado de um furto que não cometeu, foi morar num pé de serra, longe das pessoas. Quando comparece à festa da inauguração da Capelinha de Samarra, é estranhado,pois “não sabia mais falar corretamente com os outros, parece que chorava pensando que estava rindo. Pegara por lá essa doença de malcheirar, quem sabe também o que ele não comia? ( ) Os cachorros estranhavam o indivíduo dele, iam para lá, latir”. O poder criativo desse arrumador de palavras pinta o cenário, move os personagens, conta o transcorrer dos momentos da vida e, assim, com o calor da fé e a arte do engenho, logo o que é pequeno fica sendo grande, o que é feio fica bonito, a festa vira um festão, a capelinha ganha a nobreza de uma catedral entre as veredas e os morros das gerais, repletas de buritis e criações de gado. As pessoas tocam, cantam e dançam, são elas mesmas na naturalidade sem empréstimos, e assim a brincadeira vira um frenesi de comunhões – assim como enamorados de si mesmos, em homenagem à natureza, que é talvez a parte mais instigante do corpo de baile: “Eu subi pro céu arriba/numa linha de pescar/fui perguntar Nossa Senhora/se é pecado namorar. Travessei São Francisco/montado numa cabaça/arriscando minha vida/por um gole de cachaça”. Guimarães Rosa reconta a própria História de Minas, mostrando que ela não se embasa apenas na mineração, mas se apóia no depois (como ele diria), na lida campesina da agropecuária de subsistência dos vastos sertões cheios de vida e de notícias e de sonhos: uma outra espécie de ouro , o alimento do corpo e da alma é procurada nas serras e vales, nas grotas, capoeiras e descampados e, aqui e ali e acolá, reluz em forma de paisagem viva da biodiversidade planetária. Para contar e recontar a outra saga da mineiridade, Guimarães Rosa colhe os nomes, as frases, os casos, no próprio local, com as mesmas pessoas envolvidas no romanceiro dessas roceiras arrelias. E vê (e vemos com ele) que tudo que há na história dos outros mundos está bem ali na história dos lugares: os sentimentos, os conhecimentos, os anseios e a contextualização. O lírico e o épico equilibram-se no alto da literatura, onde tudo aflui e ocorre: a onomatopéia da natureza, as nênias da infância, os desejos do amor, As incursões nas grimpas do fantástico, o ramerrão cotidiano entre as alternativas das mais incríveis aventuras..., e até os ecos longíncuos das vozes do além mar, as ressonâncias turcas, persas, gregas, judaicas, os romances medievais da cavalaria andante, tão bem transposta pelo Seo Camilo, o contador de histórias, numa transcriação, diria melhor, numa transfusão do Romance do Boi Bonito, conforme este pequeno trecho (para encerrar nossos apontamentos) da página 246: “esse boi que hei, é um Boi Bonito: muito branco é ele, fubá da alma do milho; do corvo o mais diferente, o mais perto do polvilho. Dos chifres, ele é pinheiro, quase nada torquezado. O berro é uma lindeza, o rastro bem encalcado. Nos verdes onde ele pasta, cantam muitos passarinhos. Das aguadas onde bebe, só se bebe com carinho. Muito bom vaqueiro é morto, por ter ele frenteado. Tantos que chegaram perto, tantos desaparecidos. Ele fica em pé e fala, melhor não se ter ouvido...”. 

Referências bibliográficas: ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim: Corpo de Baile. 17.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 

(*) Trabalho apresentado no Seminário Internacional GUIMARÃES ROSA – 1998-2000, na PUC Minas, organizado pela Comissão de Haroldo de Almeida Marques, Lélia Parreira Duarte, Márcia Marques de Morais, Maria do Carmo Lana Figueiredo, Maria Nazareth Soares Fonseca e Rachel Esteves Lima. E publicado no livro VEREDAS DE ROSA, organizado por Lélia Parreira Duarte – PUC Minas, CESPUC, 2000, Belo Horizonte, MG.

SOCIALISMO INSEPULTO

Comecei a publicar meus textos em livros, jornais e revistas a partir da vigência do regime militar, sob a rígida censura e o pérfido monitoramento, recursos casuísticos que tanto sujaram as páginas de nossa história, sem, no entanto, jamais ter sido molestado fisicamente pelos inescrupulosos fiscais de plantão diuturno. Conseguia levar adiante meu trabalho de crítica indireta ao cerceamento das liberdades não só dos artistas e intelectuais como de toda a população. Sempre que os desconfiados indagavam se eu era comunista, eu tinha a resposta pronta: não sou comunista nem capitalista, sou democrata. Na medida do possível alinhava meus esforços intelectuais à causa dos opositores, não como militante socialista, que para mim sempre foi apenas um recurso teórico, afeito mais ao campo da dialética do que da ação política. Mas comungando do mesmo sentimento de repulsa à violência de ação e de situação, nacionalmente imposta, restringia-me, como disse, ao malabarismo da crítica indireta de dar uma batida no casco e outra na ferradura. Até hoje sinto-me bem ficando alheio aos radicalismos de direita e de esquerda, ambos sobremodo desumanos, na minha opinião. Felizmente o céu mundial está hoje mais desanuviado, com a conversão do totalitarismo, excetuando apenas os nojentos respingos cubanos, venezuelanos e brasileiros, todos a reboque, por assim dizer, do fundamentalismo de outras regiões secularmente atritadas. Alexander Soljenitsin (1918-2008), autor do livro famoso (e merecedor do Prêmio Nobel) “Arquipélago Gulag”, a maior e mais poderosa condenação de um regime político (ver a revista VEJA, de 13/08/08), que mereceu do próprio Nikita Kruchev a aprovação editorial com as palavras: “Existe um stalinista dentro de cada um de nós. É preciso extrair esse mal”. Exilado de seu país em 1974, Soljenitsin foi viver numa cidade do interior dos EUA, onde continuou a escrever seus romances históricos, sem se encantar “com a democracia e a liberdade de mercado”, condenando no Ocidente o que chamou de “degeneração espiritual, cujos sintomas seriam a televisão e o rock”. Sem jamais perder a fé na queda completa do comunismo, que a história confirmou: a União Soviética dissolveu-se em 1991. E o da China não passa, hoje, de um capitalismo disfarçado. Na reportagem especial sobre a Educação Brasileira, a revista VEJA de 20/08/08 desmonta a falsa idéia de que tudo vai bem no setor.Mostra à exaustão que tudo vai mal, muito mal: “Os melhores alunos brasileiros ficam nas últimas colocações – abaixo da qüinquagésima posição em competição com apenas 57 países”. A pedagogia oficial prega abertamente os princípios esclerosados de um socialismo falido, que apenas decepcionou onde ao longo do tempo vigorou. Lê-se na página 77 o que as jornalistas Mônica Weinberg e Camila Pereira expõem como razão da falência: O comunismo destruiu a si próprio em miséria, assassinatos e injustiças durante suas experiências reais no século passado.... Os professores esquerdistas veneram muito (ainda!) aquele senhor que viveu às custas de um amigo industrial, fez um filho na empregada da casa e, atacado pela furunculose, sofreu como um mártir...Fariam tudo por ele, menos, é claro, lê-lo”. Idolatram personagem sem contribuição efetiva à civilização ocidental como Che Guevara ( cujo único mérito é o de enriquecer os fabricantes de camisetas) e Paulo Freire, autor de um método de doutrinação esquerdista disfarçado de alfabetização. Entre os professores ouvidos na pesquisa, ele goleia o físico alemão Albert Einstein, talvez o maior gênio da humanidade, por 29 a 6 votos. O petismo no poder quer ressuscitar ou sepultar o socialismo de bandeira vermelha? Gustavo Ioschpe, no artigo que arremata a reportagem, é bem explícito: “Pela mesma razão que o Estado é laico, as aulas do Estado deveriam ser politicamente neutras”. O pior de toda a demonstração de miséria educacional é o que a pesquisa aponta como resultado (encomendado?): a maioria absoluta dos alunos, dos pais dos alunos e dos “professores” dos alunos, consideram que a educação no Brasil está boa, muito boa. Infelizmente é assim mesmo o resultado mais cômodo e digerível: os alunos não são inspirados a estudar, os pais não precisam preocupar com o futuro dos filhos, os “professores” não precisam ensinar – e assim os alunos “pensam” que estão indo bem; os pais batem palmas pela “excelência dos resultados”; os “professores” manterão seus empregos sem o menor temor de concorrência, uma vez que a mediocridade nivelou por baixo. Definitivamente?

DUAS SAUDOSAS CANÇÕES E UM POEMA DE CIRCUNSTÂNCIA

A primeira, na interpretação de Francisco Alves, o Rei da Voz: 

Ái doce amor minha vida é um eterno sofrer. Ái doce amor eu preciso aprender a esquecer. Tu censuras minha pressa no fundo tu tens razão. Quem ama guarda o relógio e consulta o coração. Ái doce amor minha vida é um eterno sofrer. Ái doce amor eu preciso aprender a esquecer. Que dia negro e sombrio é o dia em que não te vejo. Mas se vens em noite escura, vejo o dia no teu beijo. Ái doce amor....... 

A segunda, na interpretação de Silvio Caldas, o Caboclinho Querido: Ái ai-ái, você de mim não tem dó! Ái ai-ái, não vês que eu vivo tão só? Por onde anda o corpo da gente a sombra vai pelo chão. Assim também é a saudade, a sombra do coração. Ái ai-ái, você de mim não tem dó! Ái ai-ái, não vês que eu vivo tão só? A nossa vida não passa de um grande lago sereno: Por cima esplendor e graça, por baixo lodo e veneno. Ái ai-ái, você de mim não tem dó!... 

POEMA DE CIRCUNSTÂNCIA
A dormir vivo a sonhar dubiedades 
a inventar coisas e lugares e pessoas completamente inexistentes em meus espaços e tempos conhecidos. O esquisito é que sou a mesma pessoa que está em num lugar inexistente. Não sei como posso ter a capacidade de inventar pessoas e lugares, ocasiões e situações descabidas, fora do contexto de meu ser descontente e razoável. Sempre no meio das coisas, lugares e pessoas estranhas às minhas origens, aos meus destinos. Sempre acordo apavorado estranhando-me momentaneamente. Sou acaso portador de um estranho passado, que se posta adiante, no sono fugaz? Atônito nas memórias e nas previsões, custo reconciliar o sono sem adentrar-me novamente nos lugares inventados. Toda noite é assim Todo sono é assim repleto de sonhos irreais.

terça-feira, agosto 26, 2008

O FUTEBOL COMO LIÇÃO DE VIDA

Albert Camus, um dos melhores romancistas da literatura mundial, disse de sua experiência de jogador de futebol (era um goleiro sempre em pânico diante do pênalti?), que foi essa prática que lhe deu a melhor lição de vida amealhada na convivência filosófica que embasou sua pungente ficção. Por que disse assim? Quem joga sente e aprende uma emoção e um entendimento existenciais diferentes e mais persuasivos? É preciso ser, ativamente, jogador e/ou torcedor fervoroso. Só quem assim é, é que pode entender o dito do autor de “A Peste”. Eu fui jogador (não dos melhores nem dos piores) em todas as quadras de minha vida e já lutei renhidamente em todas as posições da defesa e da armação das jogadas. Menos no ataque, uma vez que a emoção na hora de arrematar contra o gol adversário impedia-me de acertar o fundo das redes. Mas não é de minha experiência que aqui estou, mas sim, para dizer algo sobre o livro “União Esporte Clube: Retratos de Uma História”, de autoria do advogado, professor e escritor Constantino Barbosa, itapecericano de boa estirpe radicado em Divinópolis. É um livro (à venda na Boutique do Livro) bonito, legível, instrutivo, que homenageia o futebol de Itapecerica e de toda nossa região. Fartamente ilustrado: 112 fotos revelando o empenho esportivo do Clube no período de 1938 a 1976, quando rivalizava com o São Bento Esporte Clube nos campos do jogo de bola e da política, uma vez que os times representavam com a garra, o amor e o ardor os Papiatas (eleitores da antiga UDN) e os Tarecos (eleitores do antigo PSD). A rivalidade enfeitava e não enfeava a disputa pela primazia, constante, dos contendores, uma vez que os jogos eram sempre decididos educadamente, em tácita obediência ao justo merecimento da vitória ou da derrota. Quem perdia, tentava revidar na próxima partida – e é assim mesmo que a vida joga seus dados, suas bolas, suas cartas, no placar esportivo e nas urnas eleitorais. Particularmente mantenho minhas experiências e lembranças daquele belo futebol da cidade de muitas colinas. Vivi lá no final da década de 40, cursando o ginasial no então recém-inaugurado Ginásio Padre Herculano Paz. Morava na rua NecésioTavares, onde participava das renhidas peladas nos fins de tardes, que às vezes adentrava as noites, com a meninada da buliçosa artéria, também conhecida por Rua do Meio, por situar-se entre as ruas da linha férrea e da Avenida Vigário Antunes. Aos domingos e feriados não perdia as disputas do campeonato regional, principalmente os embates entre os times preponderantes, que eram o União e o São Bento. Aficcionado pelo futebol profissional dos grandes centros (que acompanhava através da radiofonia), cheguei a decorar (e lembrar até hoje) a escalação dos melhores times do eixo Belo Horizonte-Rio-São Paulo: do Cruzeiro de Geraldo II, Bibi e Bituca; Adelino, Hemetério e Juvenal; Nogueirinha, Selado, Niginho, Ismael e Braguinha. E do Atlético de Kafunga, Murilo e Ramos; Mexicano, Monte e Afonso; Lucas, Lauro, Mário de Souza, Lêro e Nivio. Sabia também – e memorizo até hoje, as briosas escalações do Botafogo, Flamengo, Vasco, Fluminense, do Palmeiras, Corintians e São Paulo. Era mesmo, e ainda sou “doente”, por assim dizer, e não podia perder um duelo entre o União e o São Bento. Lembro-me vivamente das espetaculares exibições de jogadores habilidosos do União, time mais querido das famílias e amigos de minhas relações. Como esquecer de pessoas que encantavam nossa infância? Os jogadores usavam gorros, a bola de capota era costurada à barbante de fora a fora, os campos eram de terra batida, sem alambrado e sem bilheterias. Os jogos eram disputados com paixão e tenacidade. Cada jogador, em sua posição, assumia a responsabilidade de defender e atacar em nome de sua honra pessoal, do seu amor próprio e de seu compromisso de força e de vontade com os companheiros e com a torcida que avivava a chama e o clamor das jogadas a favor da vitória brilhante ou de qualquer outro resultado honroso. Era com a emocionada alegria que, com os colegas da rua e do ginásio, vibrávamos, aplaudíamos as jogadas dos malabaristas e guerreiros do futebol amador, sinônimo de futebol com amor. A valentia e o arrojo do goleiro Jorge Turco, o respeitável e incansável Ziroca, o lendário Alcuino (músico inspiradíssimo em outros palcos), a matreirice e a habilidade dos Irmãos Macotas (Tuninho, Luiz, Geraldo e Carlito), o cracão Carmelo, brindando a torcida com suas firulas e arrancadas pela ponta direita, como se fosse um prenúncio do Garrincha. E, além de muitos outros, os memoráveis nomes dos craques Zé Gondim, Zadico, Lalado, Zué, Chibata e Venerando. Bons tempos tão bem evocados pelo talento descritivo de Constantino Barbosa, pródiga fonte das rememorações deste articulista e de tantos contemporâneos agora assim agraciados.

terça-feira, agosto 19, 2008

AS RELÍQUIAS ATUANTES

Viver e/ou passear na cidade de São Paulo, evitando, é claro, as notórias áreas de risco (vivamente agressivas em todas as grandes cidades brasileiras), é tomar um saudável banho de civilização. É uma das maiores cidades do mundo, de ótimas referências culturais e culinárias. Sem falar nas delícias oferecidas pelos pródigos restaurantes, é com prazer que relembro outros bons momentos. 

1 – A exposição interativa, com os sons, as imagens e as histórias, intitulada BOSSA NOVA ITAUBRASIL BOSSA NA OCA, encenada, fixamente, para uma duração de muitos dias no Pavilhão engenheiro Lucas Nogueira – OCA, Parque do Ibirapuera (ver www.itau.com.br/bossanova). Uma impressionante montagem de causa e efeito, imagem e som, forma e conteúdo, como se o local fosse construído especialmente para o evento. Glória, glória, aleluia, Vinicius, Jobim, João Gilberto e toda a constelação de astros e estrelas da plenitude sonora de nosso querido Brasil! Bem saliente nas retinas do espectador fica o violão sincopado que firmou as bases da Bossa Nova. O alarde inserido no contexto, perfeitamente. 

2 – A exposição sobre JERUSALÉM no MASP. A expressão iconográfica de um povo sisudo e afetuoso através do mostruário dos seculares meios de vida tornados relíquias hoje atuantes por seus intrínsecos valores. A exposição dos achados arqueológicos, explicitando os usos e os costumes dos muitos séculos antes e depois de Cristo. A técnica da cremação de animais em sacrifícios, os rituais, as tigelas em forma de romãs, os vasos das oferendas, a arca da aliança, as tábuas da lei, a adoração musical, as estatuetas e turíbulos, as mesas de pedras, os ossuários, as tumbas, tudo no meio das árvores saudáveis dos terrenos doentios. Os dois famosos Templos de Jerusalém, o capitel coríntio em pedra calcária com o esboço da flor de lis. Enormes jarros de pedras ao lado das minúsculas moedas de bronze, de prata e de ouro, os fragmentos de igrejas e monastérios com as colunas, as grades, paredes, crucifixos, púlpitos, pia batismal, piso em mosaico e os símbolos da fé cristã e judaica, o altar de uma sinagoga, as fachadas em mármore. E a vivência dos muçulmanos e cristãos. E a pergunta mundial: por que tanta briga por causa de um reduzido território? Por que a fé tem que ser violenta e não apenas fiel ao amor de uns aos outros, tão enfaticamente pregada por Maomé e por Jesus Cristo? 

3 – A 20º. Bienal Internacional do Livro de São Paulo no formidável Parque Anhembi: algo de embasbacar qualquer produtor cultural. Estandes e mais estandes numa bela e ordenada feira de amostra de uma infinidade de editoras de toda parte do mundo – e os espaços especiais destinados a uma biblioteca Viva, a um Espaço Literário e mais: o Salão de Idéias, o espaço Universitário, os Auditórios e as Áreas de Alimentação. É a grande vitrine da produção livreira, com as estandes expondo mais de mil selos editoriais, com cerca de 200 mil títulos e mais de dois milhões de livros à venda. Uma festa colorida de imagens e sons para embalar a expressão humana do conceito e da forma da civilização humana sobre a terra (ver na internet; www.folha.com.br/082261). De Minas Gerais destacamos a relevante participação do portentoso órgão cultural ALDRAVA, de Mariana, fundado e mantido por um brioso grupo de poetas locais. 

4 – Desfrutei, também, de duas projeções de filmes silenciosos nas telas da Cinemateca Brasileira (www.cinemateca.gov.br), órgão promotor da II Jornada Brasileira de Cinema Silencioso: O que restou do filme LIMITE, ícone da cinematografia brasileira do início dos anos 30, de Mário Peixoto, contando a história do barco perdido no oceano com três náufragos – um homem e duas mulheres. A desolação diante do inelutável infinito. O silencioso clamor de uma derrota implacável. E depois a projeção integral do filme PELE VERMELHA, de 1929, dirigido por Victor Schertzinger, prenunciando enfaticamente o repertório infindável do gênero faroeste, que tanto sucesso de público e de crítica vem fazendo desde então até hoje em todo o mundo. Na mesma noite estava passando AURORA, de 1927, dirigido pelo genial F. W. Murnau, com George O`Brien e Janet Gaynor – um marco histórico da cinematografia. Vi, depois, num cinema comercial da Avenida Paulista, o “Encarnação do Demônio”, de José Mojica Marins, considerado pelo crítico da Folha de São Paulo, como o retrato fiel do desarticulado Brasil atual. Todos os filmes de terror, antes produzidos, são fichinhas perto dessa metáfora da truculência institucionalizada: uma violência física comparável em extensão e profundidade à violência moral da atual política vigente no país. Sangria desatada o tempo todo em toda parte, impune e a céu aberto.