Antes de fixar-se em Belo Horizonte para empenhar sua palavra na vida literária, ele captou e absorveu o clima e a cultura das altitudes bíblicas e montanhesas dos nacionalismos judaicos e mineireiros enquistados em duros torrões natais das coisas e dos seres, testemunhando nas lonjuras e nas proximidades o fervor transviado em desconsolo, a pureza cada vez mais longe, o pecado cada vez mais perto.
As epígrafes bíblicas de seus contos são tiradas das sagradas escrituras como se fossem cartas de Deus encontradas nos serros frios, nos carmos de minas, nos morros velhos dos ouros brancos e pretos da mesma correlação antropogeográfica. Espelhando-se nas visões alteradas e nelas embutido, ele como que vislumbrava e concatenava os amplos e escantilhados horizontes. Sabia que bastava cavar a superfície para adentrar na profundeza – e aí a desmontagem de uma visão é a montagem de outra, e quando uma começa a tremeluzir, a outra começa a impor novos conceitos, às vezes nervosa e nebulosa e acirrada, envolta em estigmas, dos quais logo prorrompem novas membranas plasmáticas. É como se estivesse mentalmente nos antigos sertões salpicados de atritosos gentios e hebreus, e fisicamente viajasse nos modernos sertões mineireiros, igualmente atritados de ideologias correligionárias. O que fazer na dualidade dessa sofreguidão? Peregrinar na contrariedade dos tempos e lugares que se abraçam, furtivamente contemporâneos e irmanados? A peregrinação se avista nos ínvios trajetos
de Israel ao Egito, do Egito à Israel, passando pelas areias, águas e rios até chegar à Casa de David e à ascendência e descendência dos patriarcas, tudo em terras ásperas, demoradamente aproximadas na configuração de um novo testamento que descreve tantos bens materiais e imateriais, espetados em ícones luzidios, ainda hoje estrelados de sangue, suor e lágrimas, tanto nas distantes regiões de Nazaré, Betânia, Galiléia, Jerusalém, Sinédrio, Calvário (com o mártir da humanidade) quanto nas minas gerais de tantas pedras preciosas, tantos quilombos, espoliações e delações, tantos rios das mortes, serros dos frios e das piedades, sítios da inconfidência (com o mártir da brasilidade), cartas de datas e de sesmarias, autos de muita fé nas Nossas Senhoras do Desterro, das Dores, do Carmo de Minas e da Mata.
A ele, assim viajado e bem entendido, bastava abrir os olhos para ver e assim respirar os escantilhados horizontes, como se sem aluir do lugar estivesse nos píncaros dos alpes, dos andes, das canastras e mantiqueiras, a manipular a aparição de gigantes e de anões das várias espécies possíveis, a ver e ouvir a história do padre que misturava ouro moído nos alimentos para não deixá-lo em seu inventário, tão de mal estava com a humanidade enfadonha e ranzinza; e também a do homem de pele solta na carne e nos ossos, igual a de um gato, que podia, se quisesse, virar o rosto para a nuca, os dedos dos pés para os calcanhares. Uma terra assim pródiga de eventualidades exigia a presença de um homem valente e transfigurador, inspirado e auspicioso, respeitador e acatador das anomalias e excentricidades, um homem assim imbuído de poderes sobrenaturais que revirasse a ordem das coisas, mostrasse o avesso dos tempos, voasse nos cabos elétricos de choque em choque até fazer das tripas coração e dos estrídulos banais a mais requintada canção dos encantos da natureza incólume, apesar de todos os pesares.
Ao lado, abaixo e acima dos rincões revisitados
existe a geografia mental dos nichos e ninhos,
as ilhas de seixos paralelos e complementares,
uma ou duas bandeiras a meio-pau, detidas aqui
e soltas ali, a desobedecerem as recomendações de praxe,
a desarticularem
o lívido raciocínio.
E no espaço viscoso do tempo maleável, ele pinta e borda os caracteres, muito à vontade nas técnicas e aparelhagens, a lucidez tentando em vão demover a gama dos comportamentos incompatíveis: a docilidade apostando no desarrazoado, a complexidade surrando a simplicidade, aflorando aqui e ali os preciosos achados, soterrando as obviedades desgraciosas – e é assim que bem cedo amanhece o dia, saído dos lençóis e cobertores do aninhado impulso enredador. Assim mesmo é que é o mundo de Murilo Rubião, que levou a vida inteira a degustar os sabores mais requintados, sem jamais escoimá-los. Ele lia mais do que escrevia? Muito mais. Às vezes levava meses e anos para considerar pronto e acabado um conto que, no entanto, sintetizava outros tantos cheios de pontos e de pontas. Leitor feliz de Machado de Assis e Miguel de Cervantes, de Guy de Maupassant e Mário de Andrade, acabou caindo afavelmente nos próprios braços. Mas a escolher entre os ângulos do célere e do airoso, ele preferia a diagonal contenciosa, tentando acasalar a concisão com o esbaldamento na normalidade mais anormal do mundo, ficando entre o certo e o duvidoso, que afinal são faces da mesma carta do baralho do existencialismo de uma agridoce literatura das almas penadas e absolvidas, concomitantemente.
Em 1966 (plena ditadura militar), ele funda e começa a dirigir o Suplemento Literário do “Minas Gerais”, encarte do Diário Oficial, então distribuído semanalmente nos 853 municípios mineiros, quando fez pela cultura geral o que nenhum outro intelectual fez nos anos posteriores até os dias de hoje: as páginas recepcionavam os bons escritores novos e consagrados, sem criar e manter patotas com o dinheiro público – e além dessa publicação, ele, como Diretor da Imprensa Oficial, aproveitava o tempo ocioso do funcionalismo e do maquinário para propiciar o lançamento de novos autores, cujos textos originais fossem antecipadamente estudados e aprovados por uma Comissão Julgadora acima de qualquer suspeita. Paciente com Deus e todo mundo, ele só se impacientava com a mediocridade e o bafafá dos chulos e vaidosos, e mesmo sem afobar, ia escrevendo (sua obra magra resultou na verdade num polpudo resumo essencial): listava os alimentos, escolhia, remoia, e quando ia levar à boca, a mão tremia, e assim ia se fartando sem comer: entre duas alucinações, ele mancava, gaguejava...: como bom mineiro, falava pouco e acertado. Celibatário convicto, amante à distância de Marilyn Monroe, Greta Garbo e Silvana Pampanini, ele recolhia as cartas, grávido de propensões, ávido de expansões (contidas sabe Deus como). Bebia para fazer boca de pito, insurgia, apaziguava, comandava: nele o insólito nunca é espantoso:o escritor, o personagem, o leitor, todos aceitam e aprovam tacitamente o que seria um absurdo e que não é: se o freguês tira do bolso o dono do restaurante, ele o faz porque gosta de fazê-lo, e estamos conversados. Todos seríamos prosaicamente normais se a vida e o mundo não fossem poeticamente anormais.
Suas epígrafes bíblicas contradizem suas réplicas ao Pai Eterno? Não e não. Apenas expõem sua fé ao crivo da razão, tirando dela a cegueira que o próprio Deus substituiu nele pela claridade de ver com os próprios olhos. Sua literatura está sempre a dizer ao leitor: não sou doida, você é que está ficando um pouco mais livre, cada vez mais livre das peias e da escuridão. Assim ele não desarticula as junções das fases, não perde o fio da meada. Se a linguagem fosse empertigada, toda a magia e a licenciosidade das ações exauririam o nexo e o léxico do texto e logo-logo o leitor abjuraria a página e ia ler outra cantoria em outra freguesia.
A tese (de Borges) de que todo poema é um rascunho se confirma em seus textos: seus contos são poemas que pingam nas podagens e nos adendos, na circularidade dos temas e dos tons, que pingam nos tropeços e nos descaminhos, até que depois de tanto espicaçar caem no livro como as fecundas chuvas da estação mais propícia. Nunca se fez de rogado, para assim delicadamente replicar ao Criador: cada deformação é uma revisão da criatividade, ou ao contrário, cada revisão é uma proposital deformação, visando quebrar uma cansativa monotonia? Será que o Criador Universal lá no íntimo de sua pontualidade crítica terá aprovado e até exultado com a rubiana malcriação que, afinal de conta e de coisas, deixa-nos todos à vontade para observar e descrever os que se viram livremente na vida, por bem e por mal, nesta feira de variedades que é o mundo em que vivemos?