sexta-feira, fevereiro 23, 2007

ALHEIA AFETIVIDADE

“Quem gosta de velho é reumatismo”, estava o homem de barba rala a dizer, abrindo a tronqueira do esbarrancado, lá nas restingas dos novos sertões. “Só porque somos escritores, não somos amados pelos contemporâneos”, constatava o poeta acadêmico, a lamuriar. “Sou acaso a ave rara da mangueira do quintal? O bicho desconhecido dos outros bichos? uma pessoa culpada por ser honesta?” assim abria os braços para si mesmo, outro poeta desarvorado. “Também somos seres humanos”, os alcólatras diziam, escornados na idade sem poesia. “Por que somos excluídos da alheia afetividade?” os poetas inéditos, uníssonos, reclamavam aos ventos de todas as direções. Por que, mesmo jurando que não vou abocanhar qualquer fruto do erário público, não consigo ganhar nenhuma eleição?”, lastima o neófito político na ingenuidade. Sei não, mas Deus que me perdoe, se estou mais uma vez enganado: estou propenso a levantar a voz e dizer que o ser humano, tal como o vemos hoje em dia, nas malhas do rol dos degradados filhos de eva, só quer mesmo na vida entrar no covil dos ímpios, só visa mesmo dar-se bem na corriola lá deles, só quer dinheiro muito dinheiro no bolso e na conta bancária. Queira Deus que eu esteja novamente errado.

sábado, fevereiro 17, 2007

AINDA HÁ MUITA DIVINDADE EM ISRAEL (*)

Ainda se vê pelos campos e pelas ruas as figuras emblemáticas de Raquel e Jacob, de Rute e Débora, de David e Betsabá, de Pedro e Maria Madalena, de Jesus, Maria e José! Os muros, alicerces e oásis ainda intactos? O Jardim das Oliveiras ainda florido? O calvário de Gólgota, ainda na encruzilhada? E o Sinédrio das agruras e da paixão? E os indícios da Ressurreição? E a prevalência do Amor ao Próximo do Pai Nosso nos semblantes das pessoas e das habitações sobre o ódio ao próximo do tio sam, em suas trancas e arestas belicosas? Ainda se vê a mão de Deus ao longo do que se vê: a velha areia prenhe de vigorosas raízes, o sol e a neve temperando as aclimatações, os templos e o Templo de Jerusalém! Ainda hoje se ouve a súplica dos homens de bem: Que o Senhor aplaque a ira de Caim e Abel; que amenize as refregas e suprima os holocaustos; que a menção profética dos Patriarcas e das Matriarcas que tanto transpareceu nas ações das Dozes Tribos abençoadas e nas profecias e pregações de João Batista e dos apóstolos, vivifique perpetuamente os sentimentos e as mentalizações; que a coligação dos Testamentos inspire e acione as súplicas das boas graças caindo em solo fértil no esforço universal da bela e veraz comunhão dos bens celestiais, ainda agora e sempre tornados terrenos e cotidianos. Amém! 

(*) Escrito depois de ver as imagens do arquivo de um e-mail remetido pela amiga Rita de Cássia Pereira da Silva, a quem agradeço.

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

AS MAZELAS E OS SORTILÉGIOS - Conto

Ia à pé aos tropeços e baques pelas mazelas da paisagem, atravessando pinguelas, valos, procurando (achando e perdendo) os caminhos desfeitos que levam aos estranhos lugares de um enganoso destino, - isso pela terceira ou quarta vez. Não sei como, o sonho (era nele que eu andava ao léu) pode ter certa lógica e tantos extravios. Sei que a direção é do objetivo – e assim animado pulava mais um rego de enxurrada, abaixava os arames farpados de uma cerca para esgueirar-me, vendo e sabendo que estava certo, que não era a primeira vez a passar naquele campo deformado em sarandis, capinzal e buraqueira, pois que ainda a agora reconhecia aquela ladeira que leva à Tapera do falecido tio Pedro Novato, de onde alcanço outro estradão maltratado, que some de vista e que me leva depressa a uma outra miragem: agora sim confirmo a localização da enorme barragem das águas lodosas, bem à minha direita, do outro lado do esbarrancado. Visão tremenda, medonha. Se usasse chapéu até que o tiraria da cabeça, faria o “pelo sinal da santa cruz” e quem sabe, se tivesse uma grama perto, até ajoelhasse para rezar. Estarrecido, inclino-me à esquerda, seguindo as mazelas da paisagem, passando pelos trapos de pessoas, pelos garranchos de casas caindo aos pedaços. E mais uma vez ocorre-me a repetida lembrança de já ter passado por todos esses lugares. Distanciando daquela imensidão de águas vermelhas, peguei a reta no prolongamento frontal até chegar à localização da grande indústria daquelas bibocas, de área construída repleta do corre-corre dos operários bem arrumados, todos absurdamente desconhecidos; do frigir das ferramentas acionadas em guindastes monumentais, escadas rolantes vertiginosas, trilhos e mais trilhos automáticos, uns rasteiros, outros aéreos. Onde mais uma vez sou atendido pela mesma moça das outras vezes, completamente desconhecida por mim na vida real. Ah, como já deixei entender, o conto que conto é a repetitividade de um mesmo sonho vivido pela quarta vez nos últimos anos de minha inglória vida. A moça tinha algum interesse por minha pessoa? Seria bonita se a reparasse melhormente? Lembrava-me vagamente de outra, de recolhido amor, não? Não. Ela também estava sendo inventada pelas artes e ofícios do sonho mais real que alguém possa ter, no qual os fatos e casos são normais, apesar de não acontecidos, e os personagens são normais, apesar de absolutamente desconhecidos. E os lugares pelos quais trançava, desavisado, condoído, curioso? Tudo inventado pelo sonho que se repetia em mim como o replai de um aparelho eletrônico. Consciente da realidade onírica (tinha certeza que estava inteiramente dentro de um sonho), que me afetava, cheguei a comparar a luminosidade crepuscular dos verões anteriores à daquele dia, - mas sentindo a incapacidade dos sentidos de captar, discernir e explicar a extravagância de tanta algaravia, mesmo depois de acordado, longe da cama, bebendo da mesma água que lavava o rosto para recobrar a lucidez. O que sei é que fica sempre um desvio que foge de nossos pés, isso sem falar nas sombras e luzes invisíveis que nos rodeiam no percurso dos sortilégios. Coçando a cabeça na impertinência, segui as mazelas da paisagem, novamente espezinhando trilhos recobertos de benzinhos e cipós, locas e pedregulhos, vendo no horizonte que se afastava um esbarrancado vermelho sob o montão de nuvens negras, riscadas de mudos relâmpagos, anunciando uma tempestade que não me amedrontava. Sabia que, como das outras vezes, ela ameaçava mas não vinha, distanciava enquanto eu seguia, e só aproximava se eu fizesse meia-volta para retroceder. Tudo muito aceitável por Deus e todo mundo, - assim eu pensava, mesmo estando sem Deus e todo o mundo. O que ainda agora me implica é a capacidade desse sonho de inventar tantas feições e visões, tantas coisas diferentes umas das outras, tudo assim instantaneamente. Será que ele próprio, desinformado, forjava com os sobejos de outros sonhos (de outras pessoas, talvez) todos aqueles seres e aquelas coisas, especialmente para configurar uma paisagem, na qual eu devia, incansavelmente, perambular? A eternidade não volta, mas a humanidade sim, volta. Ainda agora, da porteira de um curral fui à tronqueira de uma palhada, aí virei o corpo, retrocedendo e cheguei à mesma porteira do curral de uma tapera. E no interim duas horas se passaram, que não voltam mais. Depois, aproximando-me de um bambual, percebo que o silêncio é preenchido de mil ressonâncias cósmicas, infinitamente encabuladoras, que ocupam o vazio atmosférico deixando nas beiradas as pausas descansativas para a recepção e a emissão de novas potencialidades sonoras, reservando a parte mais íntima para expandir o turbilhão esférico só audível na concentrada atenção de alguém que, na solidão, se dispõe a ouvir o incessante redemoinho gritantemente uniforme, deixando o espaço para a locação marginal do silêncio afável e beneplácito, sempre pronto a dar um tempo pra novas locuções e audições, como a necessária “deixa” das falas teatrais. É assim que às vezes penso que não passo de um espírito (alma penada?) vagando pelas taperas, machucando-me nos estrepes, espinhos e atoleiros físicos. Aí, nesse caso, o sangue e a dor são do corpo e não do espírito, que se ausenta momentaneamente. À s vezes chego a duvidar se o ser humano é uma vítima ou um algoz, na ordem das coisas. No reino geral dos animais terrestres, ele dá a entender que é um estranho no ninho das propriedades autônomas de cada espécie? Por que demora tanto contratar-se naturalmente uma amizade de convivência duradoura entre todos os seres vivos? Às vezes fico bobo de ver como a mocidade desregrada emputece a velhice comedida. Sei lá. Não tenho nada a ver com isso. Que as lágrimas sejam suores do espírito. O que não posso é bobear no meio de transes tão arriscados. À certa altura do percurso, já inquieto nas dimensões tão volúveis das peripécias, atinei-me no pormenor do retorno ao arraial onde realmente moro, antes que me endoidasse de vez naqueles escaninhos oníricos. O sol já abaixava, urgia, pois, providenciar um alvitre. Nisso vi a casinha na beira do caminho, na porta da qual um homem deitado apoiava a cabeça no colo da mulher sentada no degrau da escadinha, enquanto o filhozinho deles brincava nos arredores. Aproximei-me para indagar como fazer para voltar ao arraial. O homem recomendou-me ler Elias em Reis I 17-8-23, que fala sobre “quando foi fechado o céu por três anos e seis meses, advindo então a dilatada fome sobre toda a terra. E a nenhuma das viúvas foi mandado Elias, senão a uma viúva de Sarepta, na Sidônia”. Você acaso é algum parente do Elias do Genésio? A mulher, mudando de assunto, perguntou-me.O menino, com o gargarejo de adulto, perguntou-me se o sobrenatural é só química e se tanto a eletricidade como a fantasmagoria são ou não uma simples ilusão de ótica. Estou ficando doido? Pensei, ao ouvir tanta besteira. O medo é uma criancice? A coragem é uma embromação? Com quantos enigmas se faz uma pessoa no sonho de outra pessoa? Ah, os astrofísicos e os metafísicos de fraldas abonam e desabonam novas crendices na infinita coleção dos percalços das (in)certezas (i)moderadas Recomecei o percurso do regresso, envolvido nas disposições arrevesadas de tantos parâmetros sufocados nos muros caídos, nos valos desbeiçados, o chão abaixando e suspendendo suas trilhas sob a relva, os bambus lascados nos pomares desfeitos, o monte de cores gotejando miasmas em cima dos córregos.... Assim mesmo eu avançava nos perigos e dificuldades, alheio às severas reprimendas dos obstáculos, movido pela intenção de que agora não mais podia retroceder nem parar, mesmo sabendo que seguir podia ser ao mesmo tempo voltar. O que não podia, no entanto, era cair em si de mim mesmo no insuportável atordoamento de acordar banhado de suor. O que afinal de contas aconteceu.

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

MURILO RUBIÃO, SOZINHO E DEUS

Antes de fixar-se em Belo Horizonte para empenhar sua palavra na vida literária, ele captou e absorveu o clima e a cultura das altitudes bíblicas e montanhesas dos nacionalismos judaicos e mineireiros enquistados em duros torrões natais das coisas e dos seres, testemunhando nas lonjuras e nas proximidades o fervor transviado em desconsolo, a pureza cada vez mais longe, o pecado cada vez mais perto. As epígrafes bíblicas de seus contos são tiradas das sagradas escrituras como se fossem cartas de Deus encontradas nos serros frios, nos carmos de minas, nos morros velhos dos ouros brancos e pretos da mesma correlação antropogeográfica. Espelhando-se nas visões alteradas e nelas embutido, ele como que vislumbrava e concatenava os amplos e escantilhados horizontes. Sabia que bastava cavar a superfície para adentrar na profundeza – e aí a desmontagem de uma visão é a montagem de outra, e quando uma começa a tremeluzir, a outra começa a impor novos conceitos, às vezes nervosa e nebulosa e acirrada, envolta em estigmas, dos quais logo prorrompem novas membranas plasmáticas. É como se estivesse mentalmente nos antigos sertões salpicados de atritosos gentios e hebreus, e fisicamente viajasse nos modernos sertões mineireiros, igualmente atritados de ideologias correligionárias. O que fazer na dualidade dessa sofreguidão? Peregrinar na contrariedade dos tempos e lugares que se abraçam, furtivamente contemporâneos e irmanados? A peregrinação se avista nos ínvios trajetos de Israel ao Egito, do Egito à Israel, passando pelas areias, águas e rios até chegar à Casa de David e à ascendência e descendência dos patriarcas, tudo em terras ásperas, demoradamente aproximadas na configuração de um novo testamento que descreve tantos bens materiais e imateriais, espetados em ícones luzidios, ainda hoje estrelados de sangue, suor e lágrimas, tanto nas distantes regiões de Nazaré, Betânia, Galiléia, Jerusalém, Sinédrio, Calvário (com o mártir da humanidade) quanto nas minas gerais de tantas pedras preciosas, tantos quilombos, espoliações e delações, tantos rios das mortes, serros dos frios e das piedades, sítios da inconfidência (com o mártir da brasilidade), cartas de datas e de sesmarias, autos de muita fé nas Nossas Senhoras do Desterro, das Dores, do Carmo de Minas e da Mata. A ele, assim viajado e bem entendido, bastava abrir os olhos para ver e assim respirar os escantilhados horizontes, como se sem aluir do lugar estivesse nos píncaros dos alpes, dos andes, das canastras e mantiqueiras, a manipular a aparição de gigantes e de anões das várias espécies possíveis, a ver e ouvir a história do padre que misturava ouro moído nos alimentos para não deixá-lo em seu inventário, tão de mal estava com a humanidade enfadonha e ranzinza; e também a do homem de pele solta na carne e nos ossos, igual a de um gato, que podia, se quisesse, virar o rosto para a nuca, os dedos dos pés para os calcanhares. Uma terra assim pródiga de eventualidades exigia a presença de um homem valente e transfigurador, inspirado e auspicioso, respeitador e acatador das anomalias e excentricidades, um homem assim imbuído de poderes sobrenaturais que revirasse a ordem das coisas, mostrasse o avesso dos tempos, voasse nos cabos elétricos de choque em choque até fazer das tripas coração e dos estrídulos banais a mais requintada canção dos encantos da natureza incólume, apesar de todos os pesares. Ao lado, abaixo e acima dos rincões revisitados existe a geografia mental dos nichos e ninhos, as ilhas de seixos paralelos e complementares, uma ou duas bandeiras a meio-pau, detidas aqui e soltas ali, a desobedecerem as recomendações de praxe, a desarticularem o lívido raciocínio. E no espaço viscoso do tempo maleável, ele pinta e borda os caracteres, muito à vontade nas técnicas e aparelhagens, a lucidez tentando em vão demover a gama dos comportamentos incompatíveis: a docilidade apostando no desarrazoado, a complexidade surrando a simplicidade, aflorando aqui e ali os preciosos achados, soterrando as obviedades desgraciosas – e é assim que bem cedo amanhece o dia, saído dos lençóis e cobertores do aninhado impulso enredador. Assim mesmo é que é o mundo de Murilo Rubião, que levou a vida inteira a degustar os sabores mais requintados, sem jamais escoimá-los. Ele lia mais do que escrevia? Muito mais. Às vezes levava meses e anos para considerar pronto e acabado um conto que, no entanto, sintetizava outros tantos cheios de pontos e de pontas. Leitor feliz de Machado de Assis e Miguel de Cervantes, de Guy de Maupassant e Mário de Andrade, acabou caindo afavelmente nos próprios braços. Mas a escolher entre os ângulos do célere e do airoso, ele preferia a diagonal contenciosa, tentando acasalar a concisão com o esbaldamento na normalidade mais anormal do mundo, ficando entre o certo e o duvidoso, que afinal são faces da mesma carta do baralho do existencialismo de uma agridoce literatura das almas penadas e absolvidas, concomitantemente. Em 1966 (plena ditadura militar), ele funda e começa a dirigir o Suplemento Literário do “Minas Gerais”, encarte do Diário Oficial, então distribuído semanalmente nos 853 municípios mineiros, quando fez pela cultura geral o que nenhum outro intelectual fez nos anos posteriores até os dias de hoje: as páginas recepcionavam os bons escritores novos e consagrados, sem criar e manter patotas com o dinheiro público – e além dessa publicação, ele, como Diretor da Imprensa Oficial, aproveitava o tempo ocioso do funcionalismo e do maquinário para propiciar o lançamento de novos autores, cujos textos originais fossem antecipadamente estudados e aprovados por uma Comissão Julgadora acima de qualquer suspeita. Paciente com Deus e todo mundo, ele só se impacientava com a mediocridade e o bafafá dos chulos e vaidosos, e mesmo sem afobar, ia escrevendo (sua obra magra resultou na verdade num polpudo resumo essencial): listava os alimentos, escolhia, remoia, e quando ia levar à boca, a mão tremia, e assim ia se fartando sem comer: entre duas alucinações, ele mancava, gaguejava...: como bom mineiro, falava pouco e acertado. Celibatário convicto, amante à distância de Marilyn Monroe, Greta Garbo e Silvana Pampanini, ele recolhia as cartas, grávido de propensões, ávido de expansões (contidas sabe Deus como). Bebia para fazer boca de pito, insurgia, apaziguava, comandava: nele o insólito nunca é espantoso:o escritor, o personagem, o leitor, todos aceitam e aprovam tacitamente o que seria um absurdo e que não é: se o freguês tira do bolso o dono do restaurante, ele o faz porque gosta de fazê-lo, e estamos conversados. Todos seríamos prosaicamente normais se a vida e o mundo não fossem poeticamente anormais. Suas epígrafes bíblicas contradizem suas réplicas ao Pai Eterno? Não e não. Apenas expõem sua fé ao crivo da razão, tirando dela a cegueira que o próprio Deus substituiu nele pela claridade de ver com os próprios olhos. Sua literatura está sempre a dizer ao leitor: não sou doida, você é que está ficando um pouco mais livre, cada vez mais livre das peias e da escuridão. Assim ele não desarticula as junções das fases, não perde o fio da meada. Se a linguagem fosse empertigada, toda a magia e a licenciosidade das ações exauririam o nexo e o léxico do texto e logo-logo o leitor abjuraria a página e ia ler outra cantoria em outra freguesia. A tese (de Borges) de que todo poema é um rascunho se confirma em seus textos: seus contos são poemas que pingam nas podagens e nos adendos, na circularidade dos temas e dos tons, que pingam nos tropeços e nos descaminhos, até que depois de tanto espicaçar caem no livro como as fecundas chuvas da estação mais propícia. Nunca se fez de rogado, para assim delicadamente replicar ao Criador: cada deformação é uma revisão da criatividade, ou ao contrário, cada revisão é uma proposital deformação, visando quebrar uma cansativa monotonia? Será que o Criador Universal lá no íntimo de sua pontualidade crítica terá aprovado e até exultado com a rubiana malcriação que, afinal de conta e de coisas, deixa-nos todos à vontade para observar e descrever os que se viram livremente na vida, por bem e por mal, nesta feira de variedades que é o mundo em que vivemos?

ROSAS VERMELHAS

Anotações de Lázaro Barreto. 

- “Saudade e Rosas Vermelhas”, livro de José Feliciano Pereira (edição particular, Araraquara, SP, dezembro de 2006), filho de Olavo e Ana, casado com Yara Bardi, pais de Rita de Cássia, Maria Inês, Júnior, Henrique e Tereza Cristina. O autor é de formação humana e intelectual irrepreensível – que lhe propiciou realizar e manifestar belas iniciativas no meio social que engrandecia com a brilhante presença de sua pessoa. - Agraciado pela família com um exemplar, sinto, ao lê-lo, o pulsar da vívida importância existencial, que não se apaga no tempo porque registra a veracidade episódica com a alma que ilumina o corpo, ou seja: com a luz incomum que abençoa as coisas e os seres comuns. Obra prima de um autor despretencioso, mas atilado e sobremodo preparado para salvar essa vívida importância na posteridade dos acontecimentos, impedindo que as rosas vermelhas da saudade prossigam na exalação dos perfumes do que há de melhor no meio social de uma cidade: as pessoas afeiçoadas e integradas na tônica do bom andamento das relações humanas. Estão ali as crônicas como achados de tesouros perdidos e assim recuperados, revestidas da mesma linha de tratamento literário dos mestres como Rubem Braga, Otto Lara Resende, Pedro Nava. Não me contive no deleite da leitura ao perpetrar as anotações (merecedoras de alongamentos, é claro), como algumas abaixo alinhadas: - “As noites de nossa própria vida” repletas de recordações no silêncio de uma solidão ilustrada pelos objetos mais significativos do contexto familiar, entre os quais os livros fechados na estante, e mesmo fechados a contar milhares de histórias da VIDA. - As Provas numa Faculdade e a constatação das preocupações do alunado presente e do alunado ausente: milhares de jovens excluídos da otimista maratona, estampando no pensamento a infinidade de cadeiras vazias na perplexidade das pessoas de bom senso quanto ao futuro do País. - A gata expulsa de seu ninho, que se vinga, mordendo a mão de sua dona (episódio também vivido por este leitor “gatófilo”), a Dona Ivone, que Deus a tenha, irmã do Feliciano. - “Araçatuba no Ponto” é outra página de belas propiciações, ternas citações dos organismos naturais e dos eventos artificiais que resultam na passagem do SER para o ESTAR, assim como acontece com a flor, a fruta, o alimento, a pessoa, o meio-social, tudo lentamente forjado nas divinas oficinas do bom gosto, que é uma das mais rútilas partículas da FELICIDADE. - A certa altura ele fala também nas peripécias dos tempos modernos, em que o medo vira fobia. Na rua, um cumprimento de um desconhecido faz com que se peça socorro (na imaginação e, às vezes, até mesmo na ação). - E assim o livro vai, discorrendo a longa caminhada do cotidiano rumo à eternidade. Um livro curto e fino, de leitura prolongada, de múltiplo aproveitamento, uma vez que cada página desdobra-se na imaginação do leitor em deliciosas seqüências do que foi dito e do que foi apenas sugerido.

domingo, fevereiro 04, 2007

FRAGMENTO DE UM CONTO

Joãozinho e Maria, do livro “A Cabeça de Ouro do Profeta”. 

Ele: As mulheres, as mulheres! De algumas gostamos das partes baixas do corpo, as formas e os volumes; de outras amamos o sorriso e o olhar, os sons no silêncio perfumado. Ela: Se gostasse de minhas partes altas não estaria deitado de cabeça para baixo.... Ele: Aqui estou mais perto do pasto e da roça, a parte mais concreta da doçura. Ai no alto é a parte mais dúbia e abstrata, que varia de acordo com a temperatura ambiental. Ela : Temperatura? Você mede a minha pressão arterial? Ele: Sim, da quentura e da frieza. Lembra quando fica braba comigo? Aqui embaixo não tem raivosia, só acolhimento e brandura e formosura. Ela: Não entendo o que diz. Sou a mesma de corpo inteiro, a língua é que extrapola. Dizem que é a chibata do corpo alheio. Mas ela tem outro gosto também, ou não? Ele: Se tem! E boas palavras, se está boa nas outras partes do corpo.... Ela: Você é um cretino de mão cheia. Ele: Mão cheia quando espalmo assim (abarca com a dextra os seios e outras partes do corpo desnudo dela). Ela: Cretinice é o que não lhe falta. Ele: (Divagando) O mimetismo do corpo de minha amada não é apenas epidérmico, mas também anímico. Assim posso transigir de uma a muitas das amadas, sem sair do lugar. E assim posso encontrar a outra na mesma. Agora, por exemplo, você é toda rosa carnal, enxuta e comível, assim deitada em seus louvores e ao mesmo tempo levantada em seus labores. Ontem você estava magra e morena, os seios sumidos, os lábios ressecados, o beijos ficavam lá dentro, não sopitavam, mantinham o desejo nas cercanias. Amanhã, quem sabe, uma outra virá de longe, mais fornida nos cantos e recantos, os lábios menos beijadores e mais beijados, uma luz suave fora das palavras ardentes, os dedos dos pés e das mãos esculpindo outras flores em tua pele. Ela (afogueada): então é assim que pensa de mim? Enquanto me esforço para desdobrar, você fica aí fingindo fidelidade, mas está é gozando com outras mulheres. Bonito pra sua cara, viu?! É mesmo assim que me encara? E sabe o que penso de você, sem declarar? Que você é sempre o mesmo nos calcanhares e nas orelhas, às vezes cansativo, quase sempre desmotivado e desarrazoado. Sempre errado, mesmo sem dizer uma palavra. Ah, preciso pegar o trem e buscar outros ares e outras pessoas. Ele: Concordo com tudo que disse, menos “pegar o trem”. Pois estou bem aqui, com todos os amantes que você desejar. É só mentalizar, ou seja, fantasiar. Sou muitos, sou trezentos e tantos, como o Mário de Andrade dizia. Inteiramente às suas ordens.

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

SONETO NUPCIAL

Todo ser que nasce está sempre crescendo está sempre renascendo em beleza e sabedoria. Todo ser humano que vive e ama floresce e frutifica entre seus semelhantes. Assim Ana Paula e Guilherme que hoje se casam reescrevem, renovam os hinos familiares da verdade e da beleza da beleza e da verdade. 

(Lázaro Barreto, em 27/01/2007).

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

A SINFONIA DO BREJO

Dedicado aos amigos Ceniro e Rose

Se a noite cai e não vou ao Arraial de Serra Negra onde os matutos ferram quedas de muque nas vendas, fico a esfregar as nódoas da alma a bater culpas no peito ressentido a ler cadernos e livros hereditários a fechar porteiras e grutas, abrir clareiras e veredas.... fico horas e horas a pesquisar de ouvido a cantoria no brejo dos seres notívagos: os anuros desprovidos de caudas o sapo jururu de pele verrucosa que mete a ripa nos telhados de barro: os da cabeceira da lagoa perguntam os do capinzal do pasto respondem os do atoleiro de baixo cantam os dos aguapés da beira esquadrinham. Todos dormiram de dia, agora conversam alto exorcizam agouros, rimam mocréias nos eternos refrões da orfandade. Alguma jibóia entra no coro? Algum roedor? Calados de dia, ruidosos de noite nos lugares frios e ventosos e medulares eles suplicam às estrelas lá no empíreo? A perereca a jia o jacaré do papo amarelo: cada um é livre para dizer o que bem entende? a serenidade precede ou sucede às quietas aleluias? Todos os amigos da podridão entram no coral: o manto da noite lacustre é só deles o frango d‘água bate as asas sem voar as lacraias os vagalumes as centopéias, tudo é estrofe rimada e jogada na amplidão... Logo o aparelho musical do grilo apanha no ar as moscas de luz e assim e assim vai embora o boi e a corda e tudo... O cavalo a dormir em pé na beira do curral, assim é assim que a noite avança nas tramelas... O pingueiro opilado espicha na poeira da estrada: por que arrepende do mal que não fez? A lua, teta que paira (como lá diz o Rosa) sobre o nível em equilíbrio da água, ouve e responde aos acordes momentâneos, com os acordes de antanho e do porvir. Assim passa a noite na rotação da terra tim-tim por tim-tim nos minutos e nas folhas... A mandala é o relógio nas paredes da serra, mas logo-logo a barra do dia vem, vem com os quintilhões de dedos apalpando. A natureza já recolhe os cobertores de orvalho os escuros somem nos corredores dos confins o sol vem rezando outras antífonas outra povoação ocupa os lugares resfriados: pios trinados chilreios sonâncias alacridades... A matinada cantante é mais sonora que a noturna? a família dos falcônidas dos rálidas dos tirânidas esgancham e plainam, abrem os bicos e os desejos sopram afinações, gritam evasivas e fruições. O sentimento de ser, as idéias de estar lá deles: o que está a dizer o bico de veludo do sanhaço? e por que saltita nos gravetos esse jesus-meu-deus, essa maria-judia, o tico-tico dos ciscos e penas? está a dizer que a matinada é mais pungente? mais canora?