CRÍTICA E AUTO-CRÍTICA EM SEBASTIÃO NUNES
O novo livro de Sebastião Nunes, ADÃO E EVA NO PARAÍSO AMAZÔNICO, que reúne 50 crônicas selecionadas pelas edições DUBOLSINHO, Sabará, MG, 2009, está bem aqui a meu lado, desfolhando-se no belo prazer de minha leitura.. O surrealismo e o neo-realismo conjugam-se nele resumindo um realismo no qual o mundo e a vida estão constantemente na mira de um anunciado Juízo Final que virá extirpar a desordem vigente, trazendo a Fúria que descerá dos céus e subirá dos infernos, obrigando os inválidos mortais a invejarem os ratos e baratas que “compreendem o medo mas não o terror”. No tortuoso clima do insólito paraíso, todos os seres vivos são contingentes, contrafeitos, bipolares, pairando nas espumas de uma doutrina cuja dialética possui muitos lados - sendo que o bom é também o ruim e vice-versa. Assim o Autor vai expondo as peripécias dos seres vivos sobre essa superfície movediça. Uma atabalhoada aglomeração de contradições. Depois de incorrer, recorrer e discorrer nas trepidações do humorismo criativo (oposto aos redundantes clichês da escrita e da oralidade), Sebastião Nunes agora incorre, recorre e discorre no terreno menos rugoso da crônica dos dias e das semanas da imprensa que se quer ativa, atuante e abrangente. Assim mesmo, sem perder a verve e as palhetadas de seu pessoalíssimo senso de humor que o distingue no cenário mineireiro da literatura. Um convite ao divertimento instrutivo e ao mergulho em águas vivas e profundas.... Um gênio do humorismo brasileiro do porte de um requintado Millôr Fernandes, introduzindo no cenário das instintivas (in)transigências morais “as narrativas cabeludas, desconexas e descabidas”, como confessa, em belo lance de auto-crítica na página 57? Afinal de contas, quem neste mundo conturbado consegue viver sem a pitada do riso ocasional, sem perder um tanto ou quanto da sanidade mental? - Assim ele vira e mexe as páginas da história humana e de lá extrai e desmistifica as figuras (exponenciais?) de vidas airadas que ganharam e perderam pendões e rugosidades, como Pedro Malasartes, Ali Babá, Jorge Amado, Adão e Eva, o próprio Deus do Céu e seu oposto, o Demônio do Inferno - sem dar continuidade a numerosa lista para, como diria, não dar nossa mão à palmatória.. - A estranha trindade:: Deus no trono, de um lado Jesus e do outro o Satanás. É assim que se consegue administrar o equilíbrio entre o Bem e o Mal na terra. E o Espírito Santo? É apenas um estranho nos arredores, ele assegura. - O ser humano é um projeto fracassado? Ele suscita a pergunta, na pág. 20- O texto sobre os poetas municipais, estaduais e federais é um tiro certeiro, um súbito estampido contra a mediocridade que vira moda em termos de revelação de talentos na desmesurada produção de contistas, de músicos e de poetas, criando confusão e deslustrando os conceitos de qualidade e de autenticidade. Grifei especialmente a parte em que ele fala sobre a música ao “vivo” dos botecos, que devia apelidar-se, na verdade, de música ao “morto”. Crítica necessária e que ninguém arrisca fazer. Creio que a diferença entre Sebastião e outro autor talentoso é a mesma entre o amante abstêmio e o levemente tocado, entre o ensaísta iconoclasta e o pragmático. Ele sai das linhas paralelas para entrar nas curvas, de onde (de cada escanteio) pode alvejar o bicho papão das leviandades. Percebo, ao longo da leitura de todos seus livros (incômodos em plácidas estantes ?) que ele ignora os autores ruins, tolera os bons e desconfia dos ótimos, sem depreciar ou vangloriar a própria competência criativa. O inusitado é a sua pedra de toque. Está sempre indo, indo e indo aos lugares aparentemente inóspitos, nos quais pululam as cobras e lagartos e outras matilhas intratáveis.Um criador de casos? Só vê marasmo na rotina? Não, não é tão refratário a ponto de omitir-se nas arenas das polêmicas. Sabemos que a normalidade dos seres e das coisas comporta, em suas múltiplas dimensões, uma gama enorme de variáveis, na qual desponta sempre (no claro e no escuro) um começo de precipício que pode estorvar a visibilidade das indicações aceitáveis, insinuando aqui, ali e acolá a magnífica abertura dos castelos e dos abismos feéricos. Facécias por assim dizer sebastiananescas: - Sobre os funcionários públicos (página 27): “Cargos públicos exigem dos ocupantes, para perfeito desempenho, mentiras inocentes e ocasionais. Dessas que não tiram pedaço, só aumentam o nariz e reduzem as pernas”. - Sobre os legendários garanhões: “Harum-Al-Rachid, o Favorito de Alá, reunira nos tempos de maior fausto apenas 1.460 jovenzinhas em flor, quatro para cada dia do ano. John F. Kennedy e Mick Jagger, conhecidos garanhões, nunca passaram de oito por noite, totalizando 2.920 anuais per capita” (pág. 44). - “A política –digam o que disserem – continua sendo a “ciência” da apropriação e da manutenção do poder sobre o restante da população”..., da qual, segundo Veblen, “extorquem seus meios de subsistência”. (pág. 71)- - Sobre os poetas municipais, na página 157: “São incontáveis. Tanto quanto os grãos de areia nas praias do Espírito Santo. Não levam poesia muito a sério, mas escrevem de vez em quando. Seus temas preferidos são os mendigos, as velhinhas desamparadas, a crueldade com os animais, as borboletas e os netos. Cometem erros monumentais de lógica, rima, ritmo, ortografia, história, política e o diabo a quatro.... Quando jovens escreviam versos para arranjar namoradas. Depois de velhos, continuam a escrever do mesmo jeito. Sua cultura parou no primeiro grau e já leram uns dez livros. Não dou exemplo porque não sou besta.”