Campinas, quem diria, uma cidade maior que Belo Horizonte. Ao longo de um terreno baldio, visto da janela do hotel, a escória industrial adquire a deprimida feição de um grupo de animais subitamente e para sempre imobilizado. A chuva cai e não escorre, por falta de declive. A cidade é uma campina arborizadíssima, na qual as ruas brotaram naturalmente, ao longo do tempo, todas sinalizadíssimas, levando-nos através do filho Paulo, que mora lá, aos belos recantos estudantis, religiosos, recreativos e aos requintados restaurantes e shoppings. E para ilustrar o bucolismo, o passeio inesquecível a Jaguariúna, no trem maria fumaça, um percurso de 24 km, passando em 6 estações, entre antigas fazendas de café.
Em São Paulo, no Mosteiro de São Bento, o concerto sinfônico de uma espécie de dueto entre Mozart e Beethoven: as flautas e oboés e violinos e pianos
nas sonatas e sonetos,
a dor é uma flor ignorada, reduzida a espinhos?
A flauta da mocinha, o violino do rapazinho:
são os relicários das beatitudes?
Acenos de anjos e santos nos altares,
os soluços de pecadores abençoados pelas mãos e olhos de Deus,
os acenos de anjos e santos ajoelhados diante dos altares,
de mãos postas apontam os caminhos que nos atraem,
que nos afetam.
Depois vem o jogo de luzes e sombras do Teatro Negro de Praga, bem ali na Avenida Jamaris (Moema), representando os distanciados vestígios da inefável cidade dos palácios e castelos, onde o inverno é uma primavera, e vice-versa, a nórdica beleza das pessoas (a brancura imaculada do corpo e da alma?): aprazível terra de nossa querida amiga Pavla Lidmilová, escritora tcheca especializada em literatura de língua portuguesa. Dela conservo carinhosamente os livros que ela traduziu e publicou – e teve a bondade de enviar-me - : “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, “Perto do Coração Selvagem”, de Clarice Lispector, e os “Contos” mágicos de Murilo Rubião, todos no idioma para mim ilegível, e mesmo assim prenhes de vida bem temperada na afetividade e na racionalidade do que há de melhor no espírito humano. Quanto ao espetáculo, ah, no cenário escuro (do fundo) e claro (do primeiro plano), os personagens visíveis e invisíveis encenam o romance duplamente poético do realismo e da magia de um surrealismo dinâmico e inteligível. A fantasia dento do contexto da realidade.
A exposição da Casa Cor 2007, no Jockey Club de São Paulo, apresenta 67 ambientes criados por 87 profissionais da arte decorativa, que aproveita e embeleza o espaço da convivência, de forma ágil e suave, expansiva e aconchegante. A formatação espacial vai da calçada de uma edificação ao preciosismo de uma iluminação interna com sacolas pendentes recheiadas de cristais luzentes no bojo. O percurso dos arranjos passa pelo gazebo das flores, os lounge e jardins, atravessa terraços e estúdios, salas multimídias, espaço goumert e boudoir, closet de casal, brinquedoteca, academia de ginástica, adega, biblioteca, cozinha, sala de jantar, quartos de crianças, salas de beleza e saúde. Algo impensável fora do grand monde das zelites (como diria o presidente). Haja dinheiro porque o bom gosto está até nas pessoas desaquinhoadas. Até água colorida tem na decoração dos interiores sofisticados, riquíssimos. Haja moeda corrente, fria ou quente. Mas o que se há de fazer? A estética é também um formidável componente da felicidade.
No mega- teatro ALPHA, onde já tínhamos visto do Grupo Corpo o maravilhoso “Ongotô”, vimos agora (com a regalia da primeira fila, encomendada com antecedência pela filha Ana Paula) o espetáculo encantatório, de duas horas e trinta minutos, “My Fair Lady”, de 10 cenários rotatórios, com 20 músicos, 40 artistas, 65 técnicos e 300 figurinos, baseado na peça de Bernard Shaw (“Pygmalion”), com texto e letras de Alan Jay Lerner, música de Frederick Loewe, versão brasileira de Cláudio Botelho, direção geral de Jorge Takla, com a interpretação de Daniel Boaventura, Amanda Acosta e Francarlos Reis, nos papeis principais dos personagens. Uma espécie de telepatia coletiva tão possessiva que os aplausos repetiam-se, eufóricos, a cada mudança de quadro. Até parecia que estávamos diante de um espetáculo do melhor Shakespeare dos famosos palcos elizabetanos de Londres ou dos não menos renomados da Broadway dos Estados Unidos. Um vigoroso eco do humorismo socialista de Shaw, que marcou uma época e continua marcando outras épocas através da habilidade de exprimir, em termos assimiláveis, a sua enternecida paixão pela igualdade social dos seres humanos. Algo ao mesmo tempo inesquecível e esperançoso.
Dias depois acontece o desfecho vitorioso da viagem com a demorada e atenciosa visita à Exposição de Charles Darwin, Vida e Obra, no MASP, que valeu mais do que a leitura de muitos livros sobre o assunto.
Há mesmo uma inegável grandeza na visão de vida do revolucionário cientista: perceber e anotar a partir de um início simples, infinitas formas, belas e verazes, que evoluíram e continuam evoluindo, inspirando-lhe, forçosamente, o grande tema de sua persuasiva pesquisa: a evolução pela seleção natural,a partir da qual ele pôde explorar a Variação e a Adaptação das espécies. Advindo, logicamente, a certeza de que as espécies são ligadas a uma única árvore genealógica. As mãos, as asas, as nadadeiras...: os mamíferos compartilham da mesma ancestralidade; as semelhanças e as diferenças conjugam-se no processo da hereditariedade: os netos parecidos com os avós. Os bichos feios e bonitos (ou todos são principalmente bonitos?) facilitam o entendimento do registro fóssil da terra em sua rica biodiversidade. Quanto aos seres humanos, ele sabia que todos têm os mesmos sentimentos, demonstrados nos semblantes da mesma maneira.
Sua esposa Emma “o protegia de qualquer aborrecimento” que pudesse estorvar seu trabalho. Sobre a filha ele escreveu que “seu querido rosto brilhava o tempo todo”, mesmo na lembrança, depois do falecimento dela aos oito anos de idade. Susannah, sua mãe, era amiga do poeta Coleridge. E o avô paterno, Erasmus, era poeta, o poeta que inspirou Mary Shelley no romance dela, “Frankenstein”. Darwin escreveu muitos livros, desde os sobre as plantas trepadeiras até sobre as minhocas. Garantiu que as espécies mudam com o passar do tempo – e que a própria terra já sofreu enormes mudanças: ao longo de milhões de anos montanhas tomam formas diferenciadas e até as árvores são petrificadas. Conclui, assim, que o mesmo pode acontecer com as espécies vivas: não são imutáveis. Aluno indiferente: a escola o aborrecia, sabia que havia outras verdades ignoradas ou camufladas. Não cansava de estudar os detalhes da natureza, mas temia afrontar a doutrina cristã – e chegou a dizer que publicar sua teoria era como que confessar um assassinato. Mas sua teoria é confirmada e reforçada continuamente pela genética moderna, e continua a inspirar novas descobertas no mundo natural. A Evolução é que faz com que a biologia tenha sentido. E advertiu que nascem mais animais do que podem, naturalmente, sobreviver. A luta deles por espaço e comida faz com que só sobrevivem os que possuem vantagens competitivas (como tolerância à seca ou a posse de uma pelagem mais espessa que a média). Sua atualidade se justifica porque ele atingiu a verdadeira verdade – e isso é o que vale para todos os estudos posteriores, ontem, hoje, e amanhã.
(Divinópolis 12/06/2007).