terça-feira, outubro 28, 2008

PICLES DIETÉTICOS

- Quem pode aceitar que as mesmíssimas mãos que consertam um rádio ou um relógio pode tirar a vida de um semelhante? 

- Mergulhar na lembrança não é um risco? E se nela tiver muito visgo na fundura e não conseguirmos voltar à superfície? 

- Tão dessemelhante é um amor de outro amor!... 

- Uma alma que contagia a outra, assim sim, temos UM AMOR. 

- A gordura que escorre no fogo, a carne que sapeca no borralho, os sacrifícios pascais: quem legalizou tais abominações? 

- Só quando a morte começa a fechar o cerco é que advém a privação da sensualidade nas pessoas normais. 

- O transe crucial, no qual a sensualidade é afetada e até suprimida, é algo que beira o mortal precipício. 

- O mundo que temos é este mesmo que temos de melhorar continuamente, indefinidamente. 

- Uma pessoa só é uma pessoa considerável se for o amor de outra pessoa. 

- O rosto de Greta Garbo é um pensamento de extrema felicidade? 

- Fugir da tristeza deitado numa cama é mais difícil do que fugir de um cão raivoso numa estrada larga e comprida. 

- O autor se exprime quando o leitor se vê na expressão. 

- Assim como Sartre sentia, já na rua, depois de ver um grande e belo filme, sinto-me um pouco mais que eu, quase um outro, melhor que eu. 

- Os olhos dela falavam de lugares logicamente inexistentes, familiares apenas a eles, olhos dela. 

- A prospecção de minha lavra: capenga aqui, afoita ali, quase esbarra no cristal inamovível.. 

- Os filmes de amor costumam exagerar na dose romântica. E o expectador, a enxugar tanta lágrima, ouve a própria voz dizendo em surdina: ora essa, que infantilidade, a minha! 

- O cara que diz: quem faz sacanagem comigo faz uma vez só, vive de mal com quase toda a população da cidade onde mora. 

- Quando São Pedro risca seus fósforos e arrasta as cadeiras no céu é sinal que os desabrigados da terra vão dançar. 

- Por que acrescentar complicações mortas às complexidades vivas?- Pergunta Nietzsche. 

- O trivial às vezes prevalece: uma banal cantiga de aldeia pode resultar numa preciosa sonata de Mozart. 

- As combinações vegetais de musgos e ramos igualam ou ultrapassam as combinações artísticas dos seres humanos. 

- Tudo que nos é dado de bom e de ruim, é dado como matéria-prima para produções que podem passar do efêmero ao definitivo. 

- Um salto mentalmente longo e fisicamente perto. Assim é não pular antes de pular. Do subjetivo para o objetivo. 

- Regressar ao sono já dormido é um exercício intelectualmente válido. 

- Feio por feio, prefiro meu corpo, que pelo menos é meu. 

 - O que há de comum entre o escritor e o relógio é que ambos são imprecisos e trabalham de graça. 

- No mundo do espetáculo, sempre que uma estrela cai, um astro cai em cima. 

- Segundo Ezra Pound, quem fez a primeira cadeira é um inventor; quem fez a segunda, um mestre. E quem sentou na terceira é um diluidor. 

- Programa a vida como se isto fosse possível. É um autor de telenovela. 

- Proust encontrou a eternidade procurando o tempo perdido. 

- O que chamam de lavagem cerebral não passa de outra sujeira cerebral. O cara escapa do espeto e cai na brasa. 

- Dirigia tão devagar na estrada de terra que se as rodas do carro fossem de madeira, brotariam. 

- O absurdo tem sua razão de ser. O senso comum não pode entender a estrutura do universo nem suportar o peso deslumbrante de uma tarde estival. 

- O que escondo dos outros, quanto mais escondo, mais visível fica para mim. 

- O individuo conhecido como desmancha-prazer tem dez manchas onde ninguém vê? 

- Para medir o peso de seus textos, o escritor pesava as folhas em branco e depois de escritas. 

- O uso do cachimbo faz a boca porca? 

- Quem morde na água quebra a cara ou os dentes? 

- Todo artista é contestador. Um bom exemplo: há mais de três séculos que Shakespeare vive a contestar os maus autores do mundo inteiro. 

- O contrário da humilhação é a dignidade – falou e disse André Malraux. 

- A arte é ambígua, o amor é ambíguo. Se não fossem ambíguos, o que seriam? Batatas digeridas ou não, amanhã jogadas no lixo? 

- Deus aparece na hora do dia amanhecer, depois desaparece, diz um personagem dostoievskiano no romance “Os Possessos”.

- “No turvo ocaso as luzentes asas”, diz Hopkins sobre o espírito santo vergado sobre o nosso mundo. - William James bem que tentou, através do óxido nitroso, embarcar no misticismo, mas acabou pegando o trem mais viável do pragmatismo. 

- Às vezes tenho a impressão que Freud é mais escritor do que cientista. Às vezes leio-o como se estivesse lendo Proust. 

- Ela me espezinha sem dó nem piedade porque me odeia, ou seja, porque me ama. 

- É nas horas mortas da noite que a vida desperta para o poeta que esmurra a porta fechada da própria noite. 

- Um pesquisador constatou a existência de 3.259 regos de esgoto a céu aberto na cidade, onde, em muitos deles, centenas de crianças nadam de braçadas. 

- Chutava tão mal a gol que não acertava nem a linha de fundo. 

- A mania de trocar todo ano de carro, de aparelhos eletrônicos, de roupas e de calçados, de mulher ou de homem, é fenômeno exclusivo da sociedade de consumo, que com mil negligências e artimanhas faz de tudo para que tudo isso seja mesmo trocável depois de certo tempo de uso. E quem paga o pato é a natureza cada vez mais dessacralizada, mais sugada e envenenada. 

- No Brasil da era Lula a desmoralização política é quase completa: os poderes executivo, legislativo e judiciário ficaram praticamente cooptados ao marasmo e expedientes da corrupção e dos desmandos. Restaram o quarto poder, ou seja, o da Imprensa que, infelizmente não vive de si mesmo e, por isso, sua autonomia fica no ar das dúvidas. Aí surge, escarrado das infâmias, o Crime Organizado, com seu incrível poder de fogo, atemorizando e matando tantas aspirações de nobreza autêntica. 

- Depois do reinado estéril e sufocante da tecnocracia nas décadas da ditadura, o retorno ao culto dos políticos, que parecia salutar, está agora descambando e mostrando os dentes podres e vorazes da truculência (i)moral que também assola a nacionalidade. 

- Que o sexo é, sobretudo, uma fonte de prazer, até o estudo da biologia prova: os seres que mais procriam são os assexuados. 

- Nunca mais levou desaforo pra casa, depois que descobriu o caminho do bar. 

- Possuía o ar tétrico de um pai que espancava os filhos e que jamais tinha comido cadeia por isso. - Quando o amor entra pela porta, o amante sai pela janela? 

- Tantas vezes o cântaro vai à fonte, que um dia cantará. 

- Beaumarchais disse que o que é muito tolo para ser dito, pode ser cantado. Profetizava o surto da maior parte da atual música popular brasileira? 

- Os tempos mudam. O judeu errante fincou os pés no solo e mandou o palestino sedentário errar pelo mundo. 

- O homem norte-americano polui cinco vezes mais que o indiano. Logo, povo desenvolvido não é, consequentemente, povo limpo. 

- É tão liberal que até admite a sobrevivência dos corruptos, uma vez que teme ficar solitário neste velho mundo sem porteiras. 

- Na minha cidade os pernilongos são tão descomunais que quando pousam em nossas orelhas, elas até abanam. 

- O rio da roça viajou léguas para prosear com o rio da cidade, mas quando chegou perto não aguentou o fedor. 

- Nunca um não me doeu. Quem não me ama, não me merece. 

- Nada a polemizar com a turma arrogante dos que pensam que o nada, na boca deles, é o tudo. Nada de perder tempo com essa cambada. 

- O ser humano é capaz de esquecer a ofensa, o desacato, a injustiça, mas jamais esquecerá uma humilhação sofrida. 

- Drama que pode virar tragédia é o do arrivista que não logra seus intentos. 

- Muitas vezes quem pensa que está indo adiante, está é retrocedendo, passando o que já passou – e agora com as pernas cansadas. 

- Certos filmes e livros deviam ser vendidos em farmácias, como remédios para muitos males. “Relíquia Macabra”, de John Houston, já me curou de uma gripe enfadonha e persistente. E “Dom Casmurro”, romance de nosso querido Machado de Assis: para quantos males pode ser receitado? 

- O mundo globalizado está desafinando? Azar de nossos ouvidos, sujeitos à zoeira da baianização irremediável e da falsificação da musica caipira, transformada em caipora sub-urbana. 

- Os versos das canções populares têm outra poesia, não a dos poemas de palavras que encolhem e desdobram com a flexibilidade de plantas sob o sol e a chuva da roça. São mais cortantes e atenuantes, mais explícitos na direção colimada. 

- A praga das faculdades de fins de semana em todo o país atenta contra as boas normas do prazer e da cultura. 

- O exibicionista mata a cobra e mostra o pau. 

- Os sonhos da Bela Adormecida no Bosque com o Monstro da Lagoa Negra faziam a Branca de Neve corar. 

- A fome era tanta que enquanto as aranhas teciam as redes em sua garganta, as suas tripas maiores comiam as menores. 

- Virava e mexia e sapecava seus trocadilhos infames. Morreu com um palavrão atravessado na garganta. 

- A casa é o seu interior, é a moldura do retrato, o vazio dela tem a forma e o conteúdo de cada corpo que nela mora. 

- O ir e o vir ocupam o mesmo caminho. Só o caranguejo anda de ré, mas ele também vai e volta. Ou está sempre voltando, indo? 

- O ser vivo está frequentemente tocado pela morte – está se aproximando cada vez mais dela. Exprimir essa angustia existencial através dos ritos dramáticos: quando vou conseguir? 

- Quem não tem medo de morrer, tem coragem de matar? 

- O belo tem um certo parentesco com o horrível quando, também, causa um certo medo. O medo de alguma verdade muito feia? 

- É muito difícil levantar as causas sem cair nas conseqüências. 

- E tenho aquele distante parente lá da Barra, que casou, homisiou, viveu consecutivamente com quatorze mulheres diferentes. O cara só podia ser doido de jogar pedras: não tinha amor-próprio nem subconsciente, nem nada dentro da cachola; vivia da boca pra fora. 

- Farias Brito acreditava que a prosa venceu o verso quando a imprensa foi inventada, facilitando a escrita torrencial antes dificultada pelo esforço manuscrito. Da síntese poética do verso passamos à torrencialidade da prosa. 

- O que distingue o cidadão de qualquer comedor de feijão é que o primeiro não quer levar vantagem em tudo e se recusa a fazer o mal, mesmo quando não pode fazer o bem. E então, você é um cidadão ou um mero comedor de feijão? 

- No trágico episódio da refrega do crime organizado no Estado de São Paulo versus autoridades constituídas, levando o pânico, a morte, a insegurança ao seio da população, dois personagens se destacaram nos bastidores: de um lado o jornalista Alexandre Garcia acusando os culpados e do outro o ministro Tarso Genro defendendo os culpados. 

- Um favor ou benefício que você presta a outrem, se repetido de tal maneira que vira uma obrigação, deixa de ser um favor ou um benefício, para ser uma espécie de desaforo. 

- A diferença entre um campo de nudismo e uma praia (ou piscina) no verão, é que nesta ainda resta uma nesguinha (uma tanguinha) de sensualidade. 

- Quem se devota à literatura enfrenta tanta dificuldade, tanta malquerência, que acaba se arrependendo. Só que tardiamente, quando reconhece que está perdidamente apaixonado por ela. 

- Antigamente se Maomé não ia à montanha, a montanha ia à Maomé. Hoje, com tanta caixinha de fósforos ao alcance das mãos dos malfeitores, toda montanha, na época da seca, vira uma bola de fogo. 

- A mulher à sombra se compara (diz a lírica chinesa). Segue-se a sombra, ela foge; foge-se da sombra, ela nos segue. 

- O mundo pode viver sem a literatura? - Pergunta Sartre. Muito mais ele pode viver sem o homem – é a sua resposta. 

- O desejo é melhor do que o orgasmo, diz a psicóloga Lídia Aranty – pois aquele perdura no tempo e na intensidade, enquanto que este é limitado no tempo e na intensidade. A diferença entre os dois (ela acrescenta) está entre o não vivido (onde cabe tudo) e o vivido (onde cabe do melhor e do pior, mas só cabe o que cabe). 

- Fedaputa, desgramado, ordinário, vagabundo, excomungado: alguns xingamentos usados na roça, tempos atrás. Não de caso pensado nem de pré-concebida maldade, mas por indignação, raiva instantânea. 

- Tomé de Souza chegou à Salvador em 1549, trazendo o Governo- Geral, o Ouvidor-Geral, o Provedor-Geral. A cidade e a colônia passaram a ter tudo menos povo, uma vez que os índios não eram vistos como gente. Quase quinhentos anos depois temos o povo, mas não a organização do povo. 

- O alto daquela serra espera por mim anos e anos. Quando irei lá, para ver de perto a camada de verdes palavras falando sobre a pedra negra e inconsútil, esférica e acolhedora? Quando irei lá descansar minha cabeça sobre a linha dos musgos sombrios? 

- Por que uma boa história arranca-me lágrimas e não sorrisos? Chorar diante da tristeza é normal, mas sentir a prevalência das lágrimas mesmo diante de uma bela e positiva emoção.... Sei não. 

- A resignação é um pequeno e furtivo suicídio, como queria Balzac? 

- De uma coisa Conan Doyle tinha certeza: em toda história de crime o Mau Gosto é o personagem principal. 

- É claro que não tenho nenhum prazer em presenciar, ouvir e contar sobre as causas, os atos e os efeitos da violência institucionalizada em muitas partes do mundo. Ao contrário! É sempre com um lenço enxugando os olhos que vejo, ouço e conto (por dever de ofício? Profilaxia psíquica?) o que assim tanto fere a vida das espécies de nosso tempo. 

- A pessoa quando é má e ruim, só tem boca pra xingar, não é mesmo? Nesse caso está desprovida de sensualidade e traz e leva em si apenas a reles sexualidade. 

- Fantasiar a realização dos desejos é fácil – e não causa danos a ninguém. 

- É raríssimo encontrar um pobre que seja escritor, músico ou cineasta. Por que? Porque a arte custa dinheiro e dinheiro custa ganhar. 

- O inquisidor dos pássaros? É o mesmo detonador dos fluidos maléficos, o mesmo causador das desinterias espaciais, o fazedor de desertos, o apropriador das economias domésticas, o zanga-sabão do dia-a-dia familiar e comunitário. 

- É preciso olhar o lado (ia escrevendo o lodo) horrendo da mente humana, de vez em quando? 

- Nos olhos o olhar que nunca parecia findar: radiante como o de um céu ou de um abismo (de rosas). 

- Às vezes a luz ofusca, a escuridão aguça. 

- Uma nuvem de incenso alternadamente cobria e descobria seu corpo escorregadio e fremente. 

- Uma e todas, todas e uma: é sempre a mesma mulher que me procura que eu procuro. 

- Realidade, magia, milagre, é só abrir os olhos e encontrar. Mas como encontrar essas qualidades no ser humano sem os piques e os repiques da aversão e dos atritos? - Ao morrer outra pessoa sairá de mim e eu, invisível aos outros e a mim, ficarei olhando, sem nada sentir. 

- Sou a mesma pessoa na claridade e na escuridão? 

- A vida rural é toda feita de religião, magia, mistério, dor, purgação, milagre, morte e ressurreição. 

- Um grande esforço devia ser feito para conservar a inocência espontânea das pessoas que ainda não foram atacadas e feridas. Elas que vivem sem queixas e mágoas que ainda acreditam na sincera bondade das outras pessoas. 

- A vítima fragilizada pensava, enquanto apanhava do algoz: você é parrudo e cruel, mas ainda vai encontrar alguém mais parrudo e cruel. 

- Passar do implícito para o explícito não é perigoso? O segundo momento não pode banalizar o primeiro momento? 

- As pessoas da trindade: ego, id, superego: a mulher o homem o ambos a narrativa a descrição o discurso as três frases consecutivas, as três palavras os três pensamentos no ar. 

- A imaginação: se lhe der asas, ela não pára de voar. 

- Uma, além de bonita, é bela. Outra, apesar de feia, é bela. 

- Perdido de amor, ele caminhava sobre as pedras, sem pisá-las. Carregava arroubas de espigas num ombro e no outro levava papagaios e capivaras comendo as espigas. E cantava, enquanto andava. Cantava sem parar. 

- As pessoas podem ser humildes, mas não humilhadas. 

- Lá do morro o vento mandava algumas de suas brisas para a baixada, mandava suas melhores lembranças para acariciarem nossos cabelos e molharem nossos sorrisos. 

- Existia um sujeito na minha terra, malucado e subentendido, que gostava de mencionar os maus presságios atmosféricos e de rabiscar na areia com as suas garatujas os croquis cabalísticos, figuras estranhas, coisas iniciáticas, signos de salomão, enigmas folclóricos, logo ele, coitado, tido e havido como um capiau da roça. 

- Ái de nós, como pesa a certeza de que um dia ficaremos perdidos em nós mesmos numa dessas noites profundas, em pleno dia. E então para sempre ficaremos arquivados nalgum escurinho que ninguém mais freqüenta, tipo Conservadoria Geral do José Saramago? 

- Afinal por que uma pessoa se mata? Ela não se mata, nunca: antes é matada. 

 - É preciso acender com o fogo de nosso coração o coração das outras pessoas, como queria Gogol. É assim o contágio da vida.

DIVINÓPOLIS 2008

O ar empedernido e agressivo, repleto de pernilongos, percevejos, marimbondos; o chão empedernido e agressivo, repleto de poeira, estrepes e buracos; a sociedade apavorada, indormida, sofredora, dividida: de um lado os malfeitores, de outro lado os sofredores.. As casas blindadas de choques elétricos, os moradores sitiados e temerosos, a convivência desarraigada, a estranheza disseminada (cada pessoa querendo engolir a outra?). É óbvio que a poesia não tem nada a ver; é óbvio que a política tem tudo a ver! É que assim tropeçando no levanta e cai que caminha a aturdida humanidade brasileira?

sábado, outubro 25, 2008

CANTO E DESENCANTO

Qualquer pesquisador das constantes comportamentais dos seres humanos quer saber quando, onde, como e porque um ato de amor pode transformar-se em pecado mortal. Melhor dizendo: quando o ativista de uma causa torna-se vítima dessa mesma causa. É uma contradição encontrável na história da civilização desde as eras mais remotas. Basta lembrar os lamentáveis episódios envolvendo Sócrates, Petrônio, Dostoievski, Soljenitsin, Issenin, Maiakovski, Graciliano Ramos e muitos outros ideólogos e escritores que viram a vó por uma greta num imóvel que eles mesmos ajudaram a levantar. No Brasil aconteceu principalmente com a escritora PAGU, sacrificada pelo totalitarismo de Prestes em concluio com a antropofagia de Oswald Andrade (escrevi e publiquei, aqui mesmo no Magazine, um texto a respeito). Agora, lendo o livro “MAIAKÓVSKI – Vida e Poesia”, Segunda Edição, Editora Martin Claret, São Paulo, SP, 2008, traduções de Emilio C. Guerra, Daniel Fresnot e Nicole A. Vilhena, o tema ocorre-me, novamente. Poeta loquaz no genérico de sua obra, quando se vale da poesia para fazer a propaganda do então (segunda década do século vinte) nascente comunismo soviético, e comedido nas pausas de sua verdadeira poesia (a de caráter propagandístico é uma contradição em termos, uma poesia anti-poética), ele viveu e sofreu, foi feliz e infeliz na pinguela da dualidade de seus fazeres intelectuais. A verdadeira, a legítima poesia transparece nos intervalos da militância favorável aos seus futuros algozes. As incorporações de estilos da fugaz oralidade que ilusoriamente o aproxima de Walt Whitman foi, certamente, o artifício que o alçou à decantada posição de arauto proselitista do marxismo-leninismo, que tanto dano veio causar à humanidade. Valendo-se da intenção poética para louvar um troço anti-poético, ele involuntariamente demonstra que a militância partidária entorpece a ombridade de uma desejável nobreza de caráter pessoal. Exemplo: “As baionetas/ cruzam o ar com brilho de relampagos./ Os marinheiros/ jogam bombas de mão/ como se fossem bolas inocentes”. Assim está na página 123. Na página 151 lê-se outra babozeira triunfante: “Camaradas:/ os trabalhadores/ e as tropas de cantão/ tomaram Shangai!” Assim o apologista das aleivosias chega a assinar mais esta heresia: “O poeta/ igual a uma puta de um rublo/ deita/ com qualquer palavra”. Está mais do que provado: todo poeta que tenta valer-se da poesia para elogiar e propagar a política, mais cedo ou mais tarde, arrepende. E muitas vezes paga com a própria vida suas boas intenções a favor do lado errado de uma porfia que implica numa sobrevivência humana mais salutar. Deixando de lado seu “vocabulário destituído de aura estética”, no afã de criar seus fajutos lemas revolucionários, temos que enaltecer o lado positivo de sua proeminência no chamado “Movimento Futurista”, que trabalhava na renovação da linguagem, tentando adequá-la ao confronto da imposição de uma nova ordem (o comunismo) sobre o secular estabelecimento das odiosas oligarquias. O sucesso de seu trabalho, contraditoriamente, foi o causador dos espinhosos conflitos com as hostes stalinistas, que utilizavam, acintosamente, o fogo no lugar da luz nas relações humanas, evidenciando a ineficácia da pretensa poesia política – o jogo dos dois valores que não se fundem, que são como água e óleo. Em muitas partes do livro os lídimos versos da boa poesia sobrepairam no redemoinho prosaico de suas enganadas preocupações na atroz militância. É fácil e gratificante pinçar a expressão de alguns de seus melhores momentos realmente poéticos: no prólogo de “A Flauta de Vértebras”: “A todos vós/ que já fostes ou que sois amados/ como um ícone guardado/ na gruta da alma/ qual um copo de vinho/ à mesa de um banquete/ ergo meu crânio repleto de versos”. No prólogo do outro livro “A Nuvem de Calças”, destacamos: “Na alma não tenho um só cabelo branco./ Nenhuma ternura senil em mim./ Atroando pelo mundo/ com voz potente vou/ garboso/ em meus vinte e dois anos”. E depois, do mesmo livro, na página 79: “Ante a tímida gente/ que vive na paz caseira/ ergue-se um halo de incêndio/ de mil olhos./ Ó meu derradeiro grito! Dize aos séculos futuros pelo menos isto:/ que eu estou em chamas”. E aqui e agora, já no século seguinte, tenho o prazer de ouvir a bela voz dele e de ver a verdadeira chama da vida de terna luz da vida dele. Maiakovski! 1893-1930.

quarta-feira, outubro 22, 2008

SERRA NEGRA DO CURRAL - Conto

Serra negra do verde mais antigo, do ouro mais brioso (que foi parar em mãos alheias), serra negra dos mares remotos e dos alimentos orgânicos – as matas nativas do século dezoito estendiam-se de um lado até Pium-i, do outro até Congonhas, o verão chovia onde outrora morava uma rosa em cada cálice verde e depois nevava de abril a julho, onde o indiozinho vivia a gangorrar: hoje nos lugares só existe a textura argilosa do solo ondulado, de baixa fertilidade – as serras periféricas e os degraus intermediários converteram-se em leitos de mares mortos e serras sucessivas como as do Mutirão, das Piteiras, do Amaro, da Siriema, das Flechas, das Mamonas, do Repuxo, das Perobas, onde outrora demarcaram-se as primeiras sesmarias do Campo Grande do Espírito Santo das Itapecericas. 

O Escrivão. Ele misturava as palavras na cabeça e no papel, tinha as mãos trêmulas (quando ia tomar café, tinha que segurar a tigela com ambas as mãos, para que não entornasse), o olhar um pouco alheio – gostava de brincar de morrer, sonhar com os sonhos, viver a morte, morrer a vida. As interpolações davam sentido à clareza no emaranhado dos dias e lugares. Gostava de um gole de pinga e de comer angu com quiabo ao molho de frango. Quando ia fazer um registro no livro ou extrair cópia de certidões fazia, antes, uma oração a São Roque, rogando que o mantivesse lúcido e coerente. Escrevia devagar, caprichando nos traços, parava para ler e não raro batia o carimbo de “inutilizado” na página, para se livrar dos erros de gramática e de articulação. Era nervoso e atribulado pelos demônios do realismo mágico. Quando ia passar uma escritura de compra e venda de terrenos, errava onde não podia errar, baralhava todo o contexto, colocava as medidas e confrontações onde deveriam constar os nomes dos outorgantes. Em outros assentamentos deixava escapar dos dedos pedaços de pensamentos descabidos, intercalados no fluxo peculiar do discurso cartorial frases soltas como “preciso matar o gavião que está acabando com os pintos do quintal”; “deu uma goteira no meu ouvido esquerdo”; “o porco já está com três dedos de toucinho”; “esses meninos vão acabar com meus dias de vida”. A casa era espaçosa e cheia de gente. Casara duas vezes, tinha filhos e netos da mesma idade. Sustentava umas quinzes pessoas, mais ou menos, incluindo genros e noras e irmãos paralíticos e sobrinhos deserdados. As duas salas da frente, destinadas ao Cartório, regurgitavam de pessoas que desejavam lavrar escrituras, extrair certidões, firmar contratos de casamentos e de promessa de compra e venda de imóveis. A família se misturava à clientela e também os gatos, os cães, as galinhas e leitões capados. O sonho é uma carta enigmática, ele dizia a um de seus botões, no meio da barafunda. O ser humano não está abaixo nem acima de qualquer animal, pois é um animal como outro qualquer, acrescentava ao pensamento, enquanto corria a pena no papel pautado do volumoso livro de suas horas contadas. Uma vez registrou a criança que deveria chamar-se Rodolfo Antunes com o quilométrico nome de Rodolfo Vai Pra Dentro Menino Antunes. No meio de tanta algaravia, a cabeça a rodopiar, seu ofício ficava realmente difícil. A caligrafia se expunha nítida, a descrição ia bem – mas se via o menino de bunda suja, pensava e escrevia no meio dos alqueires e tronqueiras a frase “a maior beleza do corpo é a limpeza da alma”, e em seguida ralhava a plenos pulmões: “Vai pra dentro, macuquento!” Nos últimos anos de vida ampliou a margem dos erros e não acertava, na íntegra, qualquer anotação de fôlego. É por isso que em Serra Negra (e também nas Três Barras e no Tira-Chapéu e nos Marimbondos, povoados vizinhos) tem muita gente com nome esquisito e até espúrio. Ainda vivem nas redondezas os João Ontem Choveu de Castro, o Sebastião da Abóbora de Porco Antunes, o Manoel Titica de Galinha Rodrigues, o Isidoro de Assunção Vale Seis Ladrão de Milho, o Antônio Pasto de Gabirobas da Cruz, a Maria Cotia das Aves de Azevedo, Lucia Crioula Banguela da Silva, o Julio Pagode Sem Sanfona Dias Furtado, a Julia Jurubeba Sem Graça das Graças. Aconteceu até mesmo no casamento da Célia com o Célio, ele casar a noiva com o próprio pai, reservando ao noivo o simples papel de testemunha.  

Mas foi muito pranteado, quando morreu. Era um guerreiro, dizia um do lugar; um feijão sem bicho, dizia outro, de outro lugar. O enterro foi ao som de sinos merencórios, banda de música fúnebre, com o tristíssimo solo de clarineta do Eu Zébio da Pedra Rosa – e o choro entoado de toda a numerosa família.

terça-feira, outubro 21, 2008

OS TRÊS NOMES DO GATO (*)

Dar nome aos gatos não é tarefa fácil nem fútil. Muitas vezes quando digo que o gato deve ter TRÊS NOMES DIFERENTES, olham-me de novo, julgam-me biruta. Mas assim é, por mais que estranhem e gozem. Primeiro o nome corrente, de uso da família, que pode ser Poetinha, Alípio ou Conceição. Depois o escolhido de pessoas refinadas (extravagantes ou mesmo sóbrias), como Menelau, Polonaise ou Pixinguinha. Por último o mais íntimo e solitário, que ele mais necessita para manter o orgulho e esticar os bigodes, enrodilhar-se na cadeira ou pular o muro como num vôo - e que pode ser Diadorim, Caracóia ou Ana Lívia Plurabelle, que nenhum outro gato deste mundo ostenta. Mas além desses e acima de tudo e de todos, há um nome especial de sua preferência e esse ninguém sabe e nunca saberá. É o nome que nenhuma pesquisa humana pode descobrir e que só o próprio gato sabe, mas que nunca dirá a ninguém. Assim, quando ver um gato em profunda meditação, os olhos abertos e cegos, as unhas em inocente repouso, saiba que a razão é sempre a mesma: sua mente está ocupada na contemplação de seu misterioso e inescrutável e singular NOME. 

(*) Paráfrase de Um Poema de T. S. Eliot.

O MORRO DO LOPES

Um Poema de Osvaldo André de Mello

A Carlos Antônio Lopes Corrêa 
Muito me tranqüiliza que Lopes tenha um morro, 
o Morro do Lopes, em Serrinha, na Bahia. 
Dele disse Euclides da Cunha: 
“apruma-se, à maneira de disformes pirâmides de blocos arredondados e liso”. 
Há rebentos de matas nas proximidades 
e arbustos flexuosos de bromélias rubras. 
Muito me tranqüiliza que 
Lopes resista ao clima inóspito e seja um forte.

quarta-feira, outubro 15, 2008

ESCARAMUÇAS

Escornado no banco da venda do arraial, os olhos vermelhos e estufados, a roupa suja e rasgada e grudada de carrapichos, o Zazá da Samambaia narra suas peripécias mais recentes: - ELE correu atrás de mim a noite inteira, o demonho, esse capeta, aquele diabo, o coisa-ruim. Nem me deu tempo de fechar a porta da casa, quando ia sair. Arreganhou os dentes de ferro em brasa e veio. Rastejei debaixo da cerca de arame, ganhei o trilho da capoeira, entrei no cerrado das lobeiras, ele colado atrás, a fustigar minhas costas com os ramos de esporão. Só me deu sossego quando o sol estava saindo e ajoelhei ao pé do cruzeiro lá no Morro das Contas. O senhor faz uma idéia da distância: lá de casa até o alto do Morro das Contas, a noite inteira zanzando no cipoal, na ribanceira, no capim meloso, na frente do tatu pemba sugador das podridões do cemitério.É nu e cru, o medonho, ninguém faz a menor idéia. É uma moita de esporões agudos que descola do valo e vem me pegar, espetar-me seus espinhos, suas folhas de tutaranas e mandruvás. Tem dois chifres na cabeça, um jeito de morcego na tristeza da feiúra, os pés de pato que voam como se fossem asas, é assim que ele é, o lúcifer dos negrumes sensacionais, o capeta das figuras de livros, em tamanho natural, o bode preto dos quintos dos infernos, o motreco das estacas no brejo das congonhas e bocainas. O excomungado corre atrás de mim, sem temer minha rezação, adivinha meus negaceios e esconderijos, atalha quando dou voltas, dá voltas quando atalho, sempre a me sovelar, a me queimar com seus bafos de onça histérica. Corro tropicando, caindo e levantando, esfolo o nariz e as orelhas, sangro os pés e as mãos, machuco os olhos, os cotovelos, sigo rasgando a roupa nas unhas de gato das vielas selvagens, ele nos meus calcanhares, o malvado superego das montarias humanas, a soltar fogo pelas ventas, a exalar o fedor das carniças de ratos envenenados. Que Deus te livre e guarde de tal monstrengo, o cão imundo das evacuações catinguentas, o satanás dos imprevistos e das moléstias, o furricoco mais sombrio dos abismos, o rabo grosso cheio de felpas nos badalos das pontas. O que o senhor está pensando? Procuro dar meu jeito, xingo, esbravejo, rezo, reluto, mas nada adianta, ele até escarnece e fica mais raivoso, avança de uma vez, puxa minhas orelhas, agarra no cós de minha calça, estica e rasga minha camisa, como o senhor pode ver. Filho da Puta, demo das profundas dos infernos, dono dos esporões dos barrancos, horrível anjo dos pêlos felpudos e eriçados de olhos cruéis, a carcaça de todos os terrores noturnos, o belzebu das escarpas rochosas, que range os dentes da bunda, mesmo sendo banguela na bunda – assim ele é: escamoso na restinga pelada, manhoso nas ferinas fibras dos ananás, com o pêlo vericuloso, que parece roupa mas não é, é a indecência peladona do mais feio que os outros. Tem uma lança ou facão saindo no lugar do braço direito , que estica e encolhe quando bem quer. Se tem estrada ou trilho na frente, eu vou. Se não tem, entro no mataréu, dou trombada nas árvores e nos cupins, pulo as moitas e valos, muros de pedras, atravesso os brejos e córregos até sem ver, quase voando, olha só como estou ferido no rosto, nos braços e nas pernas. Depois ainda dizem que estou com psicose alcoólica, uma injúria. O senhor, que sabe das coisas, pode me dizer.A perseguição que sofro é efeito da pinga que bebo? Não senhor, nunca! Bebo para esquecer dos tormentos. Sei que a pinga é moça branca, filha de um homem trigueiro – e que quem pegar amor por ela, nunca vai juntar dinheiro. Tudo isso é verdade, mas nada tem a ver com o bafo do satã na minha nuca. Sempre bebi na vida, mas só agora me vem esta danação dos quintos. Às vezes estou voltando para casa, depois de um duro dia de serviço no cabo da enxada, estou andando de cabeça baixa, sem um pingo de pinga nas veias, a enxada de boca larga nos ombros, todo assim descuidado – e quando vejo, o que vejo? Ele, o vibrante estertor das pavorosas maldições, o estridente contumaz, o rapace falastrão mesmo na mudez de um chulo e ímpio e íncubo e malvado arrotador de enxofres horripilantes. As cores das coisas vão descolando e caindo no chão, as perebas das aparências assás dolorosas acicatam-me da cabeça aos pés, aí conto uma, duas vezes e dou no pé e ele vem atrás, as asas de morcego, a cara de rato, o capote de vampiro, os dentes de cão zangado, o vulto hediondo do lobo faminto, o filho da porca que ronca enlameada no brejo. Aí grito apavorado, tenho repentes de enfrentá-lo homem a homem, mas desisto e encolho, volto a correr na direção do esbarrancado, viro um gato na esperteza, passo a pinguela e o quebra-corpo num átimo, mergulho no rio com roupa e tudo, grito os nomes mais feios que a raça humana já inventou, mostro muques ao tronco do jatobá, faço figas e cruzes-credos até chegar no cruzeiro da laje, onde fico de joelhos, rezando, até o dia amanhecer. Aí ele, de orelhas murchas, pálpebras de aranha, traidor de seus iguais da caverna, aí ele tranca a circulação da seiva na haste da planta, esbordoa um seixo enviesado, aí ele me olha, injuriado, de longe e desaparece na barra do dia e do mataréu. O infeliz das trevas, o vilão dos redemunhos, o opaco das coisas malévolas, com sua barba de arame farpado e os cabelos de milho podre, desaparece no sorvedouro do ar daquelas bibocas. Mas quando passa o dia e a noite de novo chega, ó ele aí de novo, o olhudo das frinchas, o rei das bandalheiras e dos pactos inconfessáveis, novamente a fustigar meu pavor, a esfolar minha sofreguidão, a repetir minha esfolada peripécia. Quem me ver correndo e xingando e dando muques nas estradas e matos, deve pensar que estou doido varrido, mas não é isso não. Ninguém vê a horrenda figura do colossal pererê atrás de mim, ninguém faz um cálculo dos meus apertos nas tronqueiras e desfiladeiros, ninguém vê o diabo das pernas arqueadas e o peito de pomba e a cara do hediondo fatal dos rolos inenarráveis. Por que será que me persegue tanto assim? O que fiz de tão ruim na minha vida para merecer tal castigo? Não maltratei minha mãe nem meu filho que nunca tive, nunca prestei falso testemunho, nunca pequei contra a castidade nem desejei a mulher do próximo. Não canso de perguntar: por que ele me persegue tanto assim? Será que gosta de mim, ele, o pelé no caminho do gol adversário, o mais feio do que os outros, o que é a solidão da corriola? Quer me levar para a terra dele, a da fogueira que queima eternamente sem se extinguir? Cruz credo! É muito capaz de eu ir, aqui ó! Não vou e não vou, nem amarrado por mais de uma dúzia deles, enfiados um no rabo do outro. Fadigado pela contação da desventura e das peripécias, ele pede mais um gole para rebater o anterior e depois escorna novamente no banco tosco da venda, a boca aberta babando, os olhos esbugalhados no costumeiro pesadelo. Os fregueses entram e saem, nem dão pela presença dele, estendido no canto escuro da parede. É conhecido na região por Zazá da Samambaia, o funcho-brado, o pinguço da Venda, um pau-dágua desassistido pelas reiteradas clemências humanas e divinas, o que não tem onde cair morto, o filho pagão sem pai nem mãe. O que tem, sim, na verdade, é uma triste história de seus dias no correr dos anos. Em criança, foi criado de déu em déu, na casa dos outros, sem experimentar as dores e alegrias do afeto recíproco, sem conhecer o vínculo umbelical, possessivo e tortuoso de uma família nuclear. Viveu parte da infância e da juventude no alambique do Benevides, onde contraiu o hábito do gole alternado nas várias horas do dia. Moeu cana e engarrafou cachaça até quando o patrão vendeu a propriedade ao Sô Azevedo, um latifundiário de maus bofes e piores olhados, que não foi com a cara dele, que já estava um tanto oval e desbeiçada , expulsando-o de seus domínios. Ele então foi viver num casebre abandonado na beira da estrada, perto do grotão das samambaias, à meia-légua do arraial, onde passou a ir todo dia para tomar cachaça e prestar serviços esporádicos como tirador de formigas, coveiro de cemitério, capador de animais e capinador de carrascais. Adquiriu logo a fama de cometer as piores maldades, como pisar nas plantas tenras, comer borboletas e beija-flores, bater nos bobos e nos animais mansos, praticar zoofilia, aterrorizar as crianças e velhos. Passou a ser sempre o principal suspeito de todos os males feitos nas redondezas, como pôr fogo nas matas e pastos, colocar barras de ferro nos trilhos da linha férrea, deixar porteiras e tronqueiras abertas, badalar os sinos da igreja nas horas mortas da noite. Entre as represálias naturais que já sofreu na vida, além da possessão atual, consta uma estrepada funda no pé direito, que o deixou mancando muito tempo; uma facada no braço e outra na perna; um atolamento até ao pescoço no brejo das imbaúbas; muitas surras nas ruas do arraial e nos pagodes da roça; um coice de mula; uma chifrada de vaca parida de novo e uma picada de jaracuçu; muitas ferroadas de marimbondos e mangangás; uma dentada de cachorro zangado; sem contar os dentes quebrados em brigas, os desaforos e pouco-casos, o sangue derramado na poeira, nas pedras e nos vegetais das quinze bandas regionais. Agora, exausto na recapitulação das sucessivas refregas, ele se detém, amuado na canseira, tossindo e coçando a cabeça, rodeando o olhar abismado nas portas internas e externas da Venda, sem fixar-se nas pessoas, como se elas não estivessem ali. De repente agita-se freneticamente, acossado pelos íntimos demônios, chamando atenção dos fregueses da venda com o palavreado de sua paranóia: - Sei que me ouve e me olha detrás da porta, ó perseguidor de meia-tigela! – Assim ele clama, aziago e extrovertido, levantando-se resoluto, a falar ao vazio de uma das portas da rua: “Por que não aparece no claro do dia, e não cai aqui no osso do papai?! Vem agora, se quer mesmo dar cabo deste pé rapado, faça-o agora mesmo, diante de tantas testemunhas! Vem agora, se é mesmo o maludão todo poderoso, com essa cara de chifres pontudos, com essas mãos de dedos pontudos e zunhudos. Vem!” – Ele repete, fuzilando o vazio com seu olhar estarrecido. “Pensa que tenho medo docê, assim no claro e na presença de testemunhas?! Vem! Cai no osso aqui do papai, que tem tutano para estrebuchar essas pelancas nojentas de sua infeliz pessoa!” - E assim dizendo, começa a tremer como uma vara verde, entre a porta da venda e a calçada da rua. Afasta-se um pouco, ainda ressabiado, coça a cabeça, flexiona as pernas bambas, alcança a via pública – e logo começa a correr, a correr desabaladamente pela rua afora, como se atrás de si corresse um touro brabo ou uma manada de diabos enfurecidos. E, correndo, olha para trás, e esmurra o ar, gritando: “Vai à puta que te pariu, filho de uma puta! Não tenho nem um pinguinho de medo docê, viu?! Aqui procê, seu vagabundo dos quintos dos infernos!” – exclama, exibindo o muque dos punhos fechados, a correr, sempre a correr, perseguido, até desaparecer no final da rua.

segunda-feira, outubro 13, 2008

UM LUGAR IDEAL

Procuro um lugar (profundo? Superficial? Definitivo? Transitório?) para aprofundar-me e espairecer-me nas águas rasas que se aprofundam na tênue respiração, entre os ímpetos e os recolhimentos de minha pessoa. Um lugar para espairecer e aprofundar; um lugar para aprofundar e espairecer nas águas circunscritas aos próprios leitos e aos ares livres das ocasionais vicissitudes e embevecimentos amplificados. Um lugar assim apaziguaria minhas intrínsecas contradições, no infindo jogo de minhas indefinições, que morrem e ressuscitam sem parar?

domingo, outubro 12, 2008

A SORTE GRANDE, O FILME

O artesanato um tanto primitivo, um tanto criador, um ar de mistério que amenize o realismo e que aguce o enlaçamento da fantasia subliminar; o feixe de pontas ilusoriamente amarrado; o cenário de pontos ocasionais, que veio de um estúdio improvisado, fonte de outras incógnitas.... Assim os cenários, os diálogos, o enredo, são tirados da vida cotidiana de qualquer mortal. As tomadas, os planos e a decupagem são empregadas adequadamente, e assim do farelo dos fragmentos advém a uniformidade (vale dizer o ritmo, a unidade, o cômputo) do que uns querem mostrar e outros querem ver. Fazer uma casa é fácil, fazer um filme é difícil, fazer um passarinho é impossível. Em seu último filme, Alípio Tavares consegue do ator Abelardo Flecha Azul uma interpretação antológica, representando o sujeito pobretão e sonhador que teve o azar de tirar a sorte grande da loteria federal. A partir da confirmação do prêmio numa agência lotérica, conferindo o cartão no painel dos resultados das apostas, ele, de caso certamente pensado, tenta negar e esconder o terrível e maravilhoso acontecimento.Diz a si mesmo a toda hora que a vida deve continuar na mesma pastagem e que só começará a gastar a dinheirama quando todo mundo desistir de conhecer a identidade do sortudo. Não pode ser alvo da atenção generalizada dos pedidores, dos sugadores e dos roubadores. Estou perdido se cair nas garras dessas pessoas, ele se diz, repetidamente. Tenho que fazer de conta que nada aconteceu na minha pobre vida. Quem sabe daqui a um ou dois anos, eu possa sair desovando aos poucos? A partir desse momento, o ator encarna toda a gama de vulnerabilidades e aos poucos vai entrando no parafuso da paranóia, passando a ver em cada pessoa um meliante, um malfeitor que só almeja subtrair um quinhão de sua fortuna. Não tem mais sossego. As pulsões corporais são constantes (mesmo quando tenta recair no sossego da rotina anterior), e também o arregalar dos olhos na presença dos estranhos, os sustos que sofre diante de qualquer ruído ou barulho. Tudo isso passa a incorporar-se à tônica de seu comportamento – e a própria mulher sente a estranheza e também os filhos, os outros parentes e os colegas de serviço na construção civil, onde continua a trabalhar. Sem ser ator para despistar, o personagem arrepia os cabelos diante das luzes repentinas e das sombras mais demoradas, nas ruas e dentro de casa. Mortificado no vai-e-vem das desencontradas emoções, arrepende-se de ter jogado e ganhado, sem jamais atinar que o melhor a fazer seria mesmo festejar a premiação e assumir a felicidade. A cena dele falando de um orelhão duplo na Rua Halfed (Juiz de Fora, MG), movimentada e barulhenta, exemplifica o ritmo compulsivo da narrativa e aguça o clima de apreensão e periculosidade do fio romanesco que estamos acompanhando. A fala entrecortada de senões, articulada mais em olhares do que em palavras; a fileira de tipos mal-encarados (esquisóides? Desempregados? Bandidos? Malandros?) que se aproximam e esgueiram, farejando algo como animais carentes; a moça que chega e utiliza a outra orelha telefônica: ela parece falar com ele, quase face a face, enquanto fala com o namorado ausente e distante. Ele descarta o jogo da moça, contrai as feições, está noutro contexto: as inflexões, os gestos, a trepidação circundante, tudo a causar bruscas interrupções e retomadas do diálogo que procura manter com o gerente da Caixa Econômica do outro lado da linha: as elevações e atenuações do tom da voz evidenciam a insegurança do personagem e a segurança do cineasta no afã de transmitir ao espectador o caos existencial do ser humano amesquinhado nos dias que passam. O ganhador da Loto, depois de obter do gerente a garantia de que sua premiação permanecerá incógnita, depõe o fone no gancho e respira aliviado. Na verdade ele só conseguiu a garantia depois de prometer aplicar o montante do prêmio nos fundos de investimentos da agência administrada pelo interlocutor. “Se ninguém souber que ganhei, ninguém vai me importunar” – ele diz a si mesmo, enquanto entra num bar, toma um chope, fuma um cigarro e troca outras palavras em seu monólogo. Se a corja de bandidos que estão livres ou mesmo reclusos ou foragidos das prisões...Se eles souberem da dinheirama que disponho...ah, não, eles não podem nem desconfiar de nada.... Meus filhos são susceptíveis, a mulher é indefesa, meus pais também são raptáveis, eu mesmo não passo de um trouxa: de forma que sequestrar qualquer um de nós é café pequeno para esses bandidos profissionais. Alípio Tavares chega ao nível dos mestres. Descola a panorâmica das ruas centrais de Juiz de Fora: a multidão a bater pernas, a cansar os semblantes, a exemplificar a veemência sem sentido. Por que toda essa gente não trabalha nas fábricas e nos campos, em vez de ficar assim vagabundeando? A câmera parece perguntar. Todos para baixo e para cima, nas ruas, a inquietar os olhos uns dos outros, a bater as pernas das fomes desatendidas, a inquietar as estruturas ameaçadas.... As pessoas tem palavras na boca, tem catarro no nariz – e o riso fixo, agora sem abrir no rosto de boca fechada: todas sabem que o quê anoiteceu futurista, amanheceu decadente? As mãos abanando dos mandriões, as nádegas e barrigas obesas dos vadios, os bigodes e barbas pornográficas dos metidos a galãs, as pernas bambas dos contrafeitos, os pés de patos espantosamente no chão, dos malignos. Como se livrar deste tormento? Só uma guerra civil pode dizimar tal formigueiro? Um golpe militar? Uma guerra atômica mundial? Os primeiros anos de feições góticas, o clima barroco dos anos seguintes...: Puxa vida! – o figurante exclama, ao escapar da derrapagem de um automóvel na esquina. A seqüência seguinte, que descreve o personagem saindo de casa todo arrumado e lampeiro (onde será que vai: visitar um parente? Tomar um chope num bar melhorzinho? Consultar a cartomante? Ver uma boa fita num cinema melhorzinho?), prima pela valorização fotográfica dos detalhes: a palavra que sai da boca de um trocador de ônibus e vai aos ouvidos do outro trocador do outro ônibus, a pedra que estilhaça a vidraça de um palacete com o som simultâneo ao de um tiro que rebenta os miolos de um batedor de carteira na rodoviária. O ganhador da sorte grande se apavora quando alcança a praça atrás da rodoviária e presencia mais duas ou três cenas violentas: a batida engarrafada de vários veículos na esquina, a troca de pescoções dos freqüentadores de um boteco, a correria de pessoas falando para um lado e para outro da rua. É assim que os passos dele, nas ruas do final da tarde, retomam o sentido da vulnerabilidade: todas as pessoas com que defronta, à exceção de algumas crianças e de uma ou duas moças, têm as feições facinorosas, as atitudes beligerantes, umas de ataque, outras de defesa, todas fisionomicamente capazes das piores atrocidades. Mais uma vez o diretor prova sua competência expressionista, sua capacidade de captar e de transmitir a atmosfera das vicissitudes e borrascas do drama e da tragédia urbanas. As alegorias implícitas no traçado direto da narrativa dependuram a fusão do “absurdo” e do “normal” no mesmo gancho da credibilidade. Estamos mesmo envoltos pelas nuvens do cotidiano, às margens de muitos abismos? Chegando em casa, cansado e suado, o personagem aporta, momentaneamente, num pequeno oásis de luz beatífica. As tomadas nas dependências internas e na pequena área arborizada do quintal parecem filtradas em outra lente. A compleição roliça da mulher de belos olhos, que ficam olhando mesmo depois de baixarem ou desviarem, o rosto singularmente embelezado na ausência de cosméticos – e também a brejeirice das crianças, para as quais não há, em tempo algum, tempo ruim. Os marrecos na grama, os pássaros na amoreira, a algazarra latente que exclui a componência implícita do repentinamente inusitado e do permanentemente irremediável. A presença invisível do agouro e do pessimismo fica também demonstrada nas projeções em lâminas embaçadas das cavernas do pensamento do personagem, prenhe de susceptíveis periculosidades (a nublada imaginação do seqüestro acompanhada de sevícias, estupros, extorsões, chantagens, resgates) – imagens difusas que arrepiam-lhe ainda mais os cabelos, repuxam-lhe os olhos, acionam os tiques de seu nervosismo. Poucas vezes temos visto na tela um casamento tão bem sucedido entre a imaginação e a vivência do medo. Elba Ramos, no papel de Marga, a esposa que descobre sem querer a premiação do marido e guarda o segredo com ela mesma, está perfeita no jogo duplo do amálgama interpretativo: a personagem que se vê obrigada a ser atriz, pois sabe um segredo e finge que não sabe. Seus grandes e belos olhos negros ajudam na expressão do espanto e do júbilo (o espanto de viver o irreal e o júbilo de prever a desfrutação da riqueza cheia de belos horizontes). É uma atriz de firmada experiência, sabe andar, gesticular e falar diante de outras pessoas e da câmera, sabendo que milhares de olhos espreitarão depois os detalhes de sua aparência (a aparência, essa porta superficial das profundidades existenciais). Os dias seguintes à exploração jornalística do mistério do anônimo ganhador do maior prêmio em dinheiro do país são importantes na estruturação dramática do enredo porque, além de recalcar a repercussão do evento, prepara o caminho para o desdobramento romanesco: o personagem continua levando a mesma vida, trabalhando pesadamente no emprego, comprando moderadamente as mesmas coisas, tudo aparentemente igual em sua casa e na vida rotineira. Mas a câmera de Tavares alarga e aprofunda seus focos, revela a hediondez das situações aparentemente banais. A ironia, o sarcasmo, a mesquinhez, tudo o que fere e dói passa a ferir e doer ainda mais. E quando o personagem começa a executar o esquema friamente armado da nova vida, ou seja, a comprar uma nova casa em outra cidade e uma fazenda em outro município, aí o desfecho se precipita. Não há interregnos nem sublimações, além das brincadeiras do pai sexagenário num jantar festivo de aniversário. Ele vem lá com uma parábola, que enuncia e desenvolve, mas não conclui, brindando cada um dos convivas (a própria esposa, o filho, a nora e os três netos), com as palavras apontadas em cada dedo da mão esquerda: “A TOLICE estufa o peito sem nada dentro. A VAIDADE, como a coruja, sempre a gabar o próprio toco. O SERVILHISMO acanhado na cadeira mostra o rabo sem querer. A HIPOCRISIA, que dá o tapa e esconde a mão. O MEDO, que borra pelas pernas quando a coisa fica feia”. Uns olham para os outros, ninguém entende, mas os pratos e os copos estão bem ali ao alcance das mãos: o lombo apetece mais que o frango; o guaraná não chega aos pés da cerveja geladinha. Seis meses depois, antes de levar a família nas partes turísticas do mundo, ele decide levá-la às partes turísticas do pátrio-torrão. Mas, por mal dos pecados, logo na primeira viagem há a colisão (que Alípio Tavares revela em cru realismo) do ônibus com o caminhão de carga pesada numa rodovia federal, acidente que resulta na morte de 33 pessoas, entre as quais o incógnito ganhador da Loto, sua esposa e os três filhos menores.

terça-feira, outubro 07, 2008

A QUARTA DE FUBÁ – conto

 - Norvina, cadê o Zé Juca? – Pergunta o Moinho nas vinte e quatro horas do dia-e-noite do relógio despertador. E o Monjolo responde: - Tá no munho! A audição do diálogo da água com a madeira alcança as vivendas da vizinhança, a lembrar que o sítio do Zé Juca produz fubá, farelo e farinha de milho, a granel, para vender e trocar. O Zé Juca é um sonhador em atividade, nas cercanias do Arraial, que aprecia o bom paladar das coisas, dos alimentos, dos fazeres e das palavras. Não subestima nem estorva a liberdade e a felicidade dos vegetais – e até mesmo costuma perguntar a quem dele discorda: quando que um ramo de alecrim ou mesmo o espinho do esporão salta da moita para barrar o nosso caminho ou agredir-nos nas munhecas? Entretanto, noutros pormenores era intransigente: em se tratando de negócios, com ele é assim: vem à nós tudo; ao vosso reino, nada. Seu compadre lá dos Narcisos vem comprar dele uma quarta de fubá e não desmente, mais uma vez, a fama de chorão e de pechinchador. Depois de afirmar que anda ruim das pernas e da cabeça e que não sabe como consegue tratar de sua família tão grande num terreno tão exíguo como o que tem, lá nos Narcisos. “Será que todos de minha família” – ele se queixa, interpretando a tônica da amargura pessoal - “são sempre os mesmos que, uma vez nascidos, terão que sofrer até morrer, e que assim continuarão até à consumação dos séculos?” - Qual o quê! – Ameniza o Zé Juca, medindo o fubá na enorme vasilha de madeira. “Você está chorando de barriga cheia. Não tem medo de Deus castigar?” Ao ouvir o que o vendedor dizia, o comprador nota a fofura do fubá perfazendo uma quantidade bem menor, se estivesse apesoado. E lá do fundo de sua contumaz astúcia roceira, começa a contar um caso. - Ah, compadre, não digo nada. Preparei uma terra de arroz lá nas Itapecericas, que ficou supimpa, só vendo. Deu muito trabalho para esgotar o pedaço do brejo e destocar o chão, mas agora só vendo a beleza que está: uma gema de cultura numa daquelas vazantes do rio. A terra é úmida, mas fica deslinguenta quando enxuga, fica igualzinho a esse fubá... Vai dar até para plantar feijão solteiro, do tempo, na seca. - Conheço o lugar, - responde o Zé Juca. “A gleba é dos filhos do Isaltino, não é? Está plantando à meia ou à terça?” - A colheita do primeiro ano vai ser só minha, do segundo ano em diante vai ser à meia. - Mas aquele terreno, até nas cabeceiras, não está no rol de demandas dos filhos do Isaltino com o Sô Azevedo? - Está. - Então se o Azevedo ganhar, você perde o trabalho. - Toda demanda leva tempo. Até chegar lá, já terei colhido a produção da roça. - O tal de Azevedo é danado, do olho limpo. Sabe que ele comprou, a preço de banana, o Pasto da Lobeira, com as roças e a capoeira da Fontinha e tudo mais, de porteira fechada, da Dona Braulina? - É compadre, mas sem mudar de assunto, o que eu estava dizendo da terra que destoquei é que apareceu por lá uma baita duma capivara (faz o gesto do braço levantado em relação ao piso do moinho, para exemplificar o tamanho da capivara). - E você tem visto a bitela nas imediações? - Não, mas julgo o tamanho dela pelos rastros que ela deixa na terra afofada. Olha só como são os rastros dela. Aí o roceiro dos Narcisos, chamado Antônio Maria, apóia a palma da mão direita sobre a superfície do fubá afofado e diz: “Julgo que ela deve pesar umas duas arroubas. Julgo pelos rastros dela, que são mais ou menos assim (e assim dizendo, ele calca o fubá no vasilhame, até compactá-lo em toda uma superfície, agora de nível mais abaixado. Mas o Zé Juca, que de bobo não tem nada, percebe a artimanha e dá corda às próprias habilidades arremedadeiras, para replicar). - Uma capivara das baitas, puxa! Não seria uma paca? Tem que ficar de tocaia, com a arma de fogo. Se quiser, empresto a chumbeira, com o trato de depois trazer-me um bom naco do lombo dela. Capivara com feijão mulatinho e farinha de mandiocas e couve rasgada, é de lamber os beiços, não é compadre? Os farrapos de nuvens molham os mandiocais. O cavalo morto já está no papo dos urubus? Valerá a pena comprar o barrote do Sandomir? E buscar nos olhos da Anabela a sombra do amor? Mas o que tem a ver a capivara com a sovinice dos compadres? O Zé Juca continua na dúvida do sobreaviso. Já entendeu aonde o compadre quer chegar com a estória da capivara, que é o ser mais confiado dos terrenos alagadiços. É mais uma de suas arapucas, que ele me arma, o safado. O jeito, pois, é contra-atacar. - Aqui em casa a Norvina cismou de plantar uma horta de couve. A coitada pelejou um bom par de luas, mas a horta até hoje não quer vingar. Ela até que fez tudo direitinho, escolheu uma nesga de terra escura, ao lado esquerdo da casa, onde os filhos, quando eram pequenos, costumavam cagar e mijar. Ela cercou os canteiros com pedras arredondadas, de forma que até ficou bonito. Estercou com bosta seca de gado, curtida, deitou as mudas e sementes, aguou, aguou, mas até hoje nada, nada da horta prosperar. - Não entendo porque, compadre. Se ela fez tudo direitinho... - Só porque ela não misturou o esterco na terra, só por isso. Não misturou nem revolveu uma coisa com a outra até bem fundo antes de plantar. O que ela tinha de fazer era isso (e dizendo lança as mãos no conteúdo da quarta de fubá, e esgaravata da superfície até onde os dedos alcançam, assim afofando inteiramente o produto na medida, até que o mesmo suba ao nível anterior ao calcamento astucioso do compadre). Momentos depois, subindo o Morro do Esbarrancado, com o saco de fubá nas costas e a capanga de laranjas num dos braços, o Antônio Maria sacudia a cabeça, pensando que no sítio do Zé Juca até os mortos devem capinar as roças e bater os pastos, pois que eles não comem nem bebem, nem dão outras despesas. Ele é o compadre que fuma no escuro o cigarro apagado, não dá nem bom dia de graça e não come a banana para não ter que jogar a casca fora. - A coisa é feia! – Alguém grita na rabeira do eito da roça de milho do Zé Camilo. - É feia, mas é boa! – responde quem está capinando na dianteira do sitio. Tem gente que não dá sossego à própria sombra – pensa o comprador de fubá, todo suado no caminho de casa, a procurar um toco ou uma pedra na sombra da estrada para descansar um pouco seu futuro cadáver.