PICLES DIETÉTICOS
- Quem pode aceitar que as mesmíssimas mãos que consertam um rádio ou um relógio pode tirar a vida de um semelhante?
- Quem pode aceitar que as mesmíssimas mãos que consertam um rádio ou um relógio pode tirar a vida de um semelhante?
O ar empedernido e agressivo, repleto de pernilongos, percevejos, marimbondos; o chão empedernido e agressivo, repleto de poeira, estrepes e buracos; a sociedade apavorada, indormida, sofredora, dividida: de um lado os malfeitores, de outro lado os sofredores.. As casas blindadas de choques elétricos, os moradores sitiados e temerosos, a convivência desarraigada, a estranheza disseminada (cada pessoa querendo engolir a outra?). É óbvio que a poesia não tem nada a ver; é óbvio que a política tem tudo a ver! É que assim tropeçando no levanta e cai que caminha a aturdida humanidade brasileira?
Qualquer pesquisador das constantes comportamentais dos seres humanos quer saber quando, onde, como e porque um ato de amor pode transformar-se em pecado mortal. Melhor dizendo: quando o ativista de uma causa torna-se vítima dessa mesma causa. É uma contradição encontrável na história da civilização desde as eras mais remotas. Basta lembrar os lamentáveis episódios envolvendo Sócrates, Petrônio, Dostoievski, Soljenitsin, Issenin, Maiakovski, Graciliano Ramos e muitos outros ideólogos e escritores que viram a vó por uma greta num imóvel que eles mesmos ajudaram a levantar. No Brasil aconteceu principalmente com a escritora PAGU, sacrificada pelo totalitarismo de Prestes em concluio com a antropofagia de Oswald Andrade (escrevi e publiquei, aqui mesmo no Magazine, um texto a respeito). Agora, lendo o livro “MAIAKÓVSKI – Vida e Poesia”, Segunda Edição, Editora Martin Claret, São Paulo, SP, 2008, traduções de Emilio C. Guerra, Daniel Fresnot e Nicole A. Vilhena, o tema ocorre-me, novamente. Poeta loquaz no genérico de sua obra, quando se vale da poesia para fazer a propaganda do então (segunda década do século vinte) nascente comunismo soviético, e comedido nas pausas de sua verdadeira poesia (a de caráter propagandístico é uma contradição em termos, uma poesia anti-poética), ele viveu e sofreu, foi feliz e infeliz na pinguela da dualidade de seus fazeres intelectuais. A verdadeira, a legítima poesia transparece nos intervalos da militância favorável aos seus futuros algozes. As incorporações de estilos da fugaz oralidade que ilusoriamente o aproxima de Walt Whitman foi, certamente, o artifício que o alçou à decantada posição de arauto proselitista do marxismo-leninismo, que tanto dano veio causar à humanidade. Valendo-se da intenção poética para louvar um troço anti-poético, ele involuntariamente demonstra que a militância partidária entorpece a ombridade de uma desejável nobreza de caráter pessoal. Exemplo: “As baionetas/ cruzam o ar com brilho de relampagos./ Os marinheiros/ jogam bombas de mão/ como se fossem bolas inocentes”. Assim está na página 123. Na página 151 lê-se outra babozeira triunfante: “Camaradas:/ os trabalhadores/ e as tropas de cantão/ tomaram Shangai!” Assim o apologista das aleivosias chega a assinar mais esta heresia: “O poeta/ igual a uma puta de um rublo/ deita/ com qualquer palavra”. Está mais do que provado: todo poeta que tenta valer-se da poesia para elogiar e propagar a política, mais cedo ou mais tarde, arrepende. E muitas vezes paga com a própria vida suas boas intenções a favor do lado errado de uma porfia que implica numa sobrevivência humana mais salutar. Deixando de lado seu “vocabulário destituído de aura estética”, no afã de criar seus fajutos lemas revolucionários, temos que enaltecer o lado positivo de sua proeminência no chamado “Movimento Futurista”, que trabalhava na renovação da linguagem, tentando adequá-la ao confronto da imposição de uma nova ordem (o comunismo) sobre o secular estabelecimento das odiosas oligarquias. O sucesso de seu trabalho, contraditoriamente, foi o causador dos espinhosos conflitos com as hostes stalinistas, que utilizavam, acintosamente, o fogo no lugar da luz nas relações humanas, evidenciando a ineficácia da pretensa poesia política – o jogo dos dois valores que não se fundem, que são como água e óleo. Em muitas partes do livro os lídimos versos da boa poesia sobrepairam no redemoinho prosaico de suas enganadas preocupações na atroz militância. É fácil e gratificante pinçar a expressão de alguns de seus melhores momentos realmente poéticos: no prólogo de “A Flauta de Vértebras”: “A todos vós/ que já fostes ou que sois amados/ como um ícone guardado/ na gruta da alma/ qual um copo de vinho/ à mesa de um banquete/ ergo meu crânio repleto de versos”. No prólogo do outro livro “A Nuvem de Calças”, destacamos: “Na alma não tenho um só cabelo branco./ Nenhuma ternura senil em mim./ Atroando pelo mundo/ com voz potente vou/ garboso/ em meus vinte e dois anos”. E depois, do mesmo livro, na página 79: “Ante a tímida gente/ que vive na paz caseira/ ergue-se um halo de incêndio/ de mil olhos./ Ó meu derradeiro grito! Dize aos séculos futuros pelo menos isto:/ que eu estou em chamas”. E aqui e agora, já no século seguinte, tenho o prazer de ouvir a bela voz dele e de ver a verdadeira chama da vida de terna luz da vida dele. Maiakovski! 1893-1930.
Serra negra do verde mais antigo, do ouro mais brioso (que foi parar em mãos alheias), serra negra dos mares remotos e dos alimentos orgânicos – as matas nativas do século dezoito estendiam-se de um lado até Pium-i, do outro até Congonhas, o verão chovia onde outrora morava uma rosa em cada cálice verde e depois nevava de abril a julho, onde o indiozinho vivia a gangorrar: hoje nos lugares só existe a textura argilosa do solo ondulado, de baixa fertilidade – as serras periféricas e os degraus intermediários converteram-se em leitos de mares mortos e serras sucessivas como as do Mutirão, das Piteiras, do Amaro, da Siriema, das Flechas, das Mamonas, do Repuxo, das Perobas, onde outrora demarcaram-se as primeiras sesmarias do Campo Grande do Espírito Santo das Itapecericas.
Dar nome aos gatos não é tarefa fácil nem fútil. Muitas vezes quando digo que o gato deve ter TRÊS NOMES DIFERENTES, olham-me de novo, julgam-me biruta. Mas assim é, por mais que estranhem e gozem. Primeiro o nome corrente, de uso da família, que pode ser Poetinha, Alípio ou Conceição. Depois o escolhido de pessoas refinadas (extravagantes ou mesmo sóbrias), como Menelau, Polonaise ou Pixinguinha. Por último o mais íntimo e solitário, que ele mais necessita para manter o orgulho e esticar os bigodes, enrodilhar-se na cadeira ou pular o muro como num vôo - e que pode ser Diadorim, Caracóia ou Ana Lívia Plurabelle, que nenhum outro gato deste mundo ostenta. Mas além desses e acima de tudo e de todos, há um nome especial de sua preferência e esse ninguém sabe e nunca saberá. É o nome que nenhuma pesquisa humana pode descobrir e que só o próprio gato sabe, mas que nunca dirá a ninguém. Assim, quando ver um gato em profunda meditação, os olhos abertos e cegos, as unhas em inocente repouso, saiba que a razão é sempre a mesma: sua mente está ocupada na contemplação de seu misterioso e inescrutável e singular NOME.
Um Poema de Osvaldo André de Mello
Escornado no banco da venda do arraial, os olhos vermelhos e estufados, a roupa suja e rasgada e grudada de carrapichos, o Zazá da Samambaia narra suas peripécias mais recentes: - ELE correu atrás de mim a noite inteira, o demonho, esse capeta, aquele diabo, o coisa-ruim. Nem me deu tempo de fechar a porta da casa, quando ia sair. Arreganhou os dentes de ferro em brasa e veio. Rastejei debaixo da cerca de arame, ganhei o trilho da capoeira, entrei no cerrado das lobeiras, ele colado atrás, a fustigar minhas costas com os ramos de esporão. Só me deu sossego quando o sol estava saindo e ajoelhei ao pé do cruzeiro lá no Morro das Contas. O senhor faz uma idéia da distância: lá de casa até o alto do Morro das Contas, a noite inteira zanzando no cipoal, na ribanceira, no capim meloso, na frente do tatu pemba sugador das podridões do cemitério.É nu e cru, o medonho, ninguém faz a menor idéia. É uma moita de esporões agudos que descola do valo e vem me pegar, espetar-me seus espinhos, suas folhas de tutaranas e mandruvás. Tem dois chifres na cabeça, um jeito de morcego na tristeza da feiúra, os pés de pato que voam como se fossem asas, é assim que ele é, o lúcifer dos negrumes sensacionais, o capeta das figuras de livros, em tamanho natural, o bode preto dos quintos dos infernos, o motreco das estacas no brejo das congonhas e bocainas. O excomungado corre atrás de mim, sem temer minha rezação, adivinha meus negaceios e esconderijos, atalha quando dou voltas, dá voltas quando atalho, sempre a me sovelar, a me queimar com seus bafos de onça histérica. Corro tropicando, caindo e levantando, esfolo o nariz e as orelhas, sangro os pés e as mãos, machuco os olhos, os cotovelos, sigo rasgando a roupa nas unhas de gato das vielas selvagens, ele nos meus calcanhares, o malvado superego das montarias humanas, a soltar fogo pelas ventas, a exalar o fedor das carniças de ratos envenenados. Que Deus te livre e guarde de tal monstrengo, o cão imundo das evacuações catinguentas, o satanás dos imprevistos e das moléstias, o furricoco mais sombrio dos abismos, o rabo grosso cheio de felpas nos badalos das pontas. O que o senhor está pensando? Procuro dar meu jeito, xingo, esbravejo, rezo, reluto, mas nada adianta, ele até escarnece e fica mais raivoso, avança de uma vez, puxa minhas orelhas, agarra no cós de minha calça, estica e rasga minha camisa, como o senhor pode ver. Filho da Puta, demo das profundas dos infernos, dono dos esporões dos barrancos, horrível anjo dos pêlos felpudos e eriçados de olhos cruéis, a carcaça de todos os terrores noturnos, o belzebu das escarpas rochosas, que range os dentes da bunda, mesmo sendo banguela na bunda – assim ele é: escamoso na restinga pelada, manhoso nas ferinas fibras dos ananás, com o pêlo vericuloso, que parece roupa mas não é, é a indecência peladona do mais feio que os outros. Tem uma lança ou facão saindo no lugar do braço direito , que estica e encolhe quando bem quer. Se tem estrada ou trilho na frente, eu vou. Se não tem, entro no mataréu, dou trombada nas árvores e nos cupins, pulo as moitas e valos, muros de pedras, atravesso os brejos e córregos até sem ver, quase voando, olha só como estou ferido no rosto, nos braços e nas pernas. Depois ainda dizem que estou com psicose alcoólica, uma injúria. O senhor, que sabe das coisas, pode me dizer.A perseguição que sofro é efeito da pinga que bebo? Não senhor, nunca! Bebo para esquecer dos tormentos. Sei que a pinga é moça branca, filha de um homem trigueiro – e que quem pegar amor por ela, nunca vai juntar dinheiro. Tudo isso é verdade, mas nada tem a ver com o bafo do satã na minha nuca. Sempre bebi na vida, mas só agora me vem esta danação dos quintos. Às vezes estou voltando para casa, depois de um duro dia de serviço no cabo da enxada, estou andando de cabeça baixa, sem um pingo de pinga nas veias, a enxada de boca larga nos ombros, todo assim descuidado – e quando vejo, o que vejo? Ele, o vibrante estertor das pavorosas maldições, o estridente contumaz, o rapace falastrão mesmo na mudez de um chulo e ímpio e íncubo e malvado arrotador de enxofres horripilantes. As cores das coisas vão descolando e caindo no chão, as perebas das aparências assás dolorosas acicatam-me da cabeça aos pés, aí conto uma, duas vezes e dou no pé e ele vem atrás, as asas de morcego, a cara de rato, o capote de vampiro, os dentes de cão zangado, o vulto hediondo do lobo faminto, o filho da porca que ronca enlameada no brejo. Aí grito apavorado, tenho repentes de enfrentá-lo homem a homem, mas desisto e encolho, volto a correr na direção do esbarrancado, viro um gato na esperteza, passo a pinguela e o quebra-corpo num átimo, mergulho no rio com roupa e tudo, grito os nomes mais feios que a raça humana já inventou, mostro muques ao tronco do jatobá, faço figas e cruzes-credos até chegar no cruzeiro da laje, onde fico de joelhos, rezando, até o dia amanhecer. Aí ele, de orelhas murchas, pálpebras de aranha, traidor de seus iguais da caverna, aí ele tranca a circulação da seiva na haste da planta, esbordoa um seixo enviesado, aí ele me olha, injuriado, de longe e desaparece na barra do dia e do mataréu. O infeliz das trevas, o vilão dos redemunhos, o opaco das coisas malévolas, com sua barba de arame farpado e os cabelos de milho podre, desaparece no sorvedouro do ar daquelas bibocas. Mas quando passa o dia e a noite de novo chega, ó ele aí de novo, o olhudo das frinchas, o rei das bandalheiras e dos pactos inconfessáveis, novamente a fustigar meu pavor, a esfolar minha sofreguidão, a repetir minha esfolada peripécia. Quem me ver correndo e xingando e dando muques nas estradas e matos, deve pensar que estou doido varrido, mas não é isso não. Ninguém vê a horrenda figura do colossal pererê atrás de mim, ninguém faz um cálculo dos meus apertos nas tronqueiras e desfiladeiros, ninguém vê o diabo das pernas arqueadas e o peito de pomba e a cara do hediondo fatal dos rolos inenarráveis. Por que será que me persegue tanto assim? O que fiz de tão ruim na minha vida para merecer tal castigo? Não maltratei minha mãe nem meu filho que nunca tive, nunca prestei falso testemunho, nunca pequei contra a castidade nem desejei a mulher do próximo. Não canso de perguntar: por que ele me persegue tanto assim? Será que gosta de mim, ele, o pelé no caminho do gol adversário, o mais feio do que os outros, o que é a solidão da corriola? Quer me levar para a terra dele, a da fogueira que queima eternamente sem se extinguir? Cruz credo! É muito capaz de eu ir, aqui ó! Não vou e não vou, nem amarrado por mais de uma dúzia deles, enfiados um no rabo do outro. Fadigado pela contação da desventura e das peripécias, ele pede mais um gole para rebater o anterior e depois escorna novamente no banco tosco da venda, a boca aberta babando, os olhos esbugalhados no costumeiro pesadelo. Os fregueses entram e saem, nem dão pela presença dele, estendido no canto escuro da parede. É conhecido na região por Zazá da Samambaia, o funcho-brado, o pinguço da Venda, um pau-dágua desassistido pelas reiteradas clemências humanas e divinas, o que não tem onde cair morto, o filho pagão sem pai nem mãe. O que tem, sim, na verdade, é uma triste história de seus dias no correr dos anos. Em criança, foi criado de déu em déu, na casa dos outros, sem experimentar as dores e alegrias do afeto recíproco, sem conhecer o vínculo umbelical, possessivo e tortuoso de uma família nuclear. Viveu parte da infância e da juventude no alambique do Benevides, onde contraiu o hábito do gole alternado nas várias horas do dia. Moeu cana e engarrafou cachaça até quando o patrão vendeu a propriedade ao Sô Azevedo, um latifundiário de maus bofes e piores olhados, que não foi com a cara dele, que já estava um tanto oval e desbeiçada , expulsando-o de seus domínios. Ele então foi viver num casebre abandonado na beira da estrada, perto do grotão das samambaias, à meia-légua do arraial, onde passou a ir todo dia para tomar cachaça e prestar serviços esporádicos como tirador de formigas, coveiro de cemitério, capador de animais e capinador de carrascais. Adquiriu logo a fama de cometer as piores maldades, como pisar nas plantas tenras, comer borboletas e beija-flores, bater nos bobos e nos animais mansos, praticar zoofilia, aterrorizar as crianças e velhos. Passou a ser sempre o principal suspeito de todos os males feitos nas redondezas, como pôr fogo nas matas e pastos, colocar barras de ferro nos trilhos da linha férrea, deixar porteiras e tronqueiras abertas, badalar os sinos da igreja nas horas mortas da noite. Entre as represálias naturais que já sofreu na vida, além da possessão atual, consta uma estrepada funda no pé direito, que o deixou mancando muito tempo; uma facada no braço e outra na perna; um atolamento até ao pescoço no brejo das imbaúbas; muitas surras nas ruas do arraial e nos pagodes da roça; um coice de mula; uma chifrada de vaca parida de novo e uma picada de jaracuçu; muitas ferroadas de marimbondos e mangangás; uma dentada de cachorro zangado; sem contar os dentes quebrados em brigas, os desaforos e pouco-casos, o sangue derramado na poeira, nas pedras e nos vegetais das quinze bandas regionais. Agora, exausto na recapitulação das sucessivas refregas, ele se detém, amuado na canseira, tossindo e coçando a cabeça, rodeando o olhar abismado nas portas internas e externas da Venda, sem fixar-se nas pessoas, como se elas não estivessem ali. De repente agita-se freneticamente, acossado pelos íntimos demônios, chamando atenção dos fregueses da venda com o palavreado de sua paranóia: - Sei que me ouve e me olha detrás da porta, ó perseguidor de meia-tigela! – Assim ele clama, aziago e extrovertido, levantando-se resoluto, a falar ao vazio de uma das portas da rua: “Por que não aparece no claro do dia, e não cai aqui no osso do papai?! Vem agora, se quer mesmo dar cabo deste pé rapado, faça-o agora mesmo, diante de tantas testemunhas! Vem agora, se é mesmo o maludão todo poderoso, com essa cara de chifres pontudos, com essas mãos de dedos pontudos e zunhudos. Vem!” – Ele repete, fuzilando o vazio com seu olhar estarrecido. “Pensa que tenho medo docê, assim no claro e na presença de testemunhas?! Vem! Cai no osso aqui do papai, que tem tutano para estrebuchar essas pelancas nojentas de sua infeliz pessoa!” - E assim dizendo, começa a tremer como uma vara verde, entre a porta da venda e a calçada da rua. Afasta-se um pouco, ainda ressabiado, coça a cabeça, flexiona as pernas bambas, alcança a via pública – e logo começa a correr, a correr desabaladamente pela rua afora, como se atrás de si corresse um touro brabo ou uma manada de diabos enfurecidos. E, correndo, olha para trás, e esmurra o ar, gritando: “Vai à puta que te pariu, filho de uma puta! Não tenho nem um pinguinho de medo docê, viu?! Aqui procê, seu vagabundo dos quintos dos infernos!” – exclama, exibindo o muque dos punhos fechados, a correr, sempre a correr, perseguido, até desaparecer no final da rua.
Procuro um lugar (profundo? Superficial? Definitivo? Transitório?) para aprofundar-me e espairecer-me nas águas rasas que se aprofundam na tênue respiração, entre os ímpetos e os recolhimentos de minha pessoa. Um lugar para espairecer e aprofundar; um lugar para aprofundar e espairecer nas águas circunscritas aos próprios leitos e aos ares livres das ocasionais vicissitudes e embevecimentos amplificados. Um lugar assim apaziguaria minhas intrínsecas contradições, no infindo jogo de minhas indefinições, que morrem e ressuscitam sem parar?
O artesanato um tanto primitivo, um tanto criador, um ar de mistério que amenize o realismo e que aguce o enlaçamento da fantasia subliminar; o feixe de pontas ilusoriamente amarrado; o cenário de pontos ocasionais, que veio de um estúdio improvisado, fonte de outras incógnitas.... Assim os cenários, os diálogos, o enredo, são tirados da vida cotidiana de qualquer mortal. As tomadas, os planos e a decupagem são empregadas adequadamente, e assim do farelo dos fragmentos advém a uniformidade (vale dizer o ritmo, a unidade, o cômputo) do que uns querem mostrar e outros querem ver. Fazer uma casa é fácil, fazer um filme é difícil, fazer um passarinho é impossível. Em seu último filme, Alípio Tavares consegue do ator Abelardo Flecha Azul uma interpretação antológica, representando o sujeito pobretão e sonhador que teve o azar de tirar a sorte grande da loteria federal. A partir da confirmação do prêmio numa agência lotérica, conferindo o cartão no painel dos resultados das apostas, ele, de caso certamente pensado, tenta negar e esconder o terrível e maravilhoso acontecimento.Diz a si mesmo a toda hora que a vida deve continuar na mesma pastagem e que só começará a gastar a dinheirama quando todo mundo desistir de conhecer a identidade do sortudo. Não pode ser alvo da atenção generalizada dos pedidores, dos sugadores e dos roubadores. Estou perdido se cair nas garras dessas pessoas, ele se diz, repetidamente. Tenho que fazer de conta que nada aconteceu na minha pobre vida. Quem sabe daqui a um ou dois anos, eu possa sair desovando aos poucos? A partir desse momento, o ator encarna toda a gama de vulnerabilidades e aos poucos vai entrando no parafuso da paranóia, passando a ver em cada pessoa um meliante, um malfeitor que só almeja subtrair um quinhão de sua fortuna. Não tem mais sossego. As pulsões corporais são constantes (mesmo quando tenta recair no sossego da rotina anterior), e também o arregalar dos olhos na presença dos estranhos, os sustos que sofre diante de qualquer ruído ou barulho. Tudo isso passa a incorporar-se à tônica de seu comportamento – e a própria mulher sente a estranheza e também os filhos, os outros parentes e os colegas de serviço na construção civil, onde continua a trabalhar. Sem ser ator para despistar, o personagem arrepia os cabelos diante das luzes repentinas e das sombras mais demoradas, nas ruas e dentro de casa. Mortificado no vai-e-vem das desencontradas emoções, arrepende-se de ter jogado e ganhado, sem jamais atinar que o melhor a fazer seria mesmo festejar a premiação e assumir a felicidade. A cena dele falando de um orelhão duplo na Rua Halfed (Juiz de Fora, MG), movimentada e barulhenta, exemplifica o ritmo compulsivo da narrativa e aguça o clima de apreensão e periculosidade do fio romanesco que estamos acompanhando. A fala entrecortada de senões, articulada mais em olhares do que em palavras; a fileira de tipos mal-encarados (esquisóides? Desempregados? Bandidos? Malandros?) que se aproximam e esgueiram, farejando algo como animais carentes; a moça que chega e utiliza a outra orelha telefônica: ela parece falar com ele, quase face a face, enquanto fala com o namorado ausente e distante. Ele descarta o jogo da moça, contrai as feições, está noutro contexto: as inflexões, os gestos, a trepidação circundante, tudo a causar bruscas interrupções e retomadas do diálogo que procura manter com o gerente da Caixa Econômica do outro lado da linha: as elevações e atenuações do tom da voz evidenciam a insegurança do personagem e a segurança do cineasta no afã de transmitir ao espectador o caos existencial do ser humano amesquinhado nos dias que passam. O ganhador da Loto, depois de obter do gerente a garantia de que sua premiação permanecerá incógnita, depõe o fone no gancho e respira aliviado. Na verdade ele só conseguiu a garantia depois de prometer aplicar o montante do prêmio nos fundos de investimentos da agência administrada pelo interlocutor. “Se ninguém souber que ganhei, ninguém vai me importunar” – ele diz a si mesmo, enquanto entra num bar, toma um chope, fuma um cigarro e troca outras palavras em seu monólogo. Se a corja de bandidos que estão livres ou mesmo reclusos ou foragidos das prisões...Se eles souberem da dinheirama que disponho...ah, não, eles não podem nem desconfiar de nada.... Meus filhos são susceptíveis, a mulher é indefesa, meus pais também são raptáveis, eu mesmo não passo de um trouxa: de forma que sequestrar qualquer um de nós é café pequeno para esses bandidos profissionais. Alípio Tavares chega ao nível dos mestres. Descola a panorâmica das ruas centrais de Juiz de Fora: a multidão a bater pernas, a cansar os semblantes, a exemplificar a veemência sem sentido. Por que toda essa gente não trabalha nas fábricas e nos campos, em vez de ficar assim vagabundeando? A câmera parece perguntar. Todos para baixo e para cima, nas ruas, a inquietar os olhos uns dos outros, a bater as pernas das fomes desatendidas, a inquietar as estruturas ameaçadas.... As pessoas tem palavras na boca, tem catarro no nariz – e o riso fixo, agora sem abrir no rosto de boca fechada: todas sabem que o quê anoiteceu futurista, amanheceu decadente? As mãos abanando dos mandriões, as nádegas e barrigas obesas dos vadios, os bigodes e barbas pornográficas dos metidos a galãs, as pernas bambas dos contrafeitos, os pés de patos espantosamente no chão, dos malignos. Como se livrar deste tormento? Só uma guerra civil pode dizimar tal formigueiro? Um golpe militar? Uma guerra atômica mundial? Os primeiros anos de feições góticas, o clima barroco dos anos seguintes...: Puxa vida! – o figurante exclama, ao escapar da derrapagem de um automóvel na esquina. A seqüência seguinte, que descreve o personagem saindo de casa todo arrumado e lampeiro (onde será que vai: visitar um parente? Tomar um chope num bar melhorzinho? Consultar a cartomante? Ver uma boa fita num cinema melhorzinho?), prima pela valorização fotográfica dos detalhes: a palavra que sai da boca de um trocador de ônibus e vai aos ouvidos do outro trocador do outro ônibus, a pedra que estilhaça a vidraça de um palacete com o som simultâneo ao de um tiro que rebenta os miolos de um batedor de carteira na rodoviária. O ganhador da sorte grande se apavora quando alcança a praça atrás da rodoviária e presencia mais duas ou três cenas violentas: a batida engarrafada de vários veículos na esquina, a troca de pescoções dos freqüentadores de um boteco, a correria de pessoas falando para um lado e para outro da rua. É assim que os passos dele, nas ruas do final da tarde, retomam o sentido da vulnerabilidade: todas as pessoas com que defronta, à exceção de algumas crianças e de uma ou duas moças, têm as feições facinorosas, as atitudes beligerantes, umas de ataque, outras de defesa, todas fisionomicamente capazes das piores atrocidades. Mais uma vez o diretor prova sua competência expressionista, sua capacidade de captar e de transmitir a atmosfera das vicissitudes e borrascas do drama e da tragédia urbanas. As alegorias implícitas no traçado direto da narrativa dependuram a fusão do “absurdo” e do “normal” no mesmo gancho da credibilidade. Estamos mesmo envoltos pelas nuvens do cotidiano, às margens de muitos abismos? Chegando em casa, cansado e suado, o personagem aporta, momentaneamente, num pequeno oásis de luz beatífica. As tomadas nas dependências internas e na pequena área arborizada do quintal parecem filtradas em outra lente. A compleição roliça da mulher de belos olhos, que ficam olhando mesmo depois de baixarem ou desviarem, o rosto singularmente embelezado na ausência de cosméticos – e também a brejeirice das crianças, para as quais não há, em tempo algum, tempo ruim. Os marrecos na grama, os pássaros na amoreira, a algazarra latente que exclui a componência implícita do repentinamente inusitado e do permanentemente irremediável. A presença invisível do agouro e do pessimismo fica também demonstrada nas projeções em lâminas embaçadas das cavernas do pensamento do personagem, prenhe de susceptíveis periculosidades (a nublada imaginação do seqüestro acompanhada de sevícias, estupros, extorsões, chantagens, resgates) – imagens difusas que arrepiam-lhe ainda mais os cabelos, repuxam-lhe os olhos, acionam os tiques de seu nervosismo. Poucas vezes temos visto na tela um casamento tão bem sucedido entre a imaginação e a vivência do medo. Elba Ramos, no papel de Marga, a esposa que descobre sem querer a premiação do marido e guarda o segredo com ela mesma, está perfeita no jogo duplo do amálgama interpretativo: a personagem que se vê obrigada a ser atriz, pois sabe um segredo e finge que não sabe. Seus grandes e belos olhos negros ajudam na expressão do espanto e do júbilo (o espanto de viver o irreal e o júbilo de prever a desfrutação da riqueza cheia de belos horizontes). É uma atriz de firmada experiência, sabe andar, gesticular e falar diante de outras pessoas e da câmera, sabendo que milhares de olhos espreitarão depois os detalhes de sua aparência (a aparência, essa porta superficial das profundidades existenciais). Os dias seguintes à exploração jornalística do mistério do anônimo ganhador do maior prêmio em dinheiro do país são importantes na estruturação dramática do enredo porque, além de recalcar a repercussão do evento, prepara o caminho para o desdobramento romanesco: o personagem continua levando a mesma vida, trabalhando pesadamente no emprego, comprando moderadamente as mesmas coisas, tudo aparentemente igual em sua casa e na vida rotineira. Mas a câmera de Tavares alarga e aprofunda seus focos, revela a hediondez das situações aparentemente banais. A ironia, o sarcasmo, a mesquinhez, tudo o que fere e dói passa a ferir e doer ainda mais. E quando o personagem começa a executar o esquema friamente armado da nova vida, ou seja, a comprar uma nova casa em outra cidade e uma fazenda em outro município, aí o desfecho se precipita. Não há interregnos nem sublimações, além das brincadeiras do pai sexagenário num jantar festivo de aniversário. Ele vem lá com uma parábola, que enuncia e desenvolve, mas não conclui, brindando cada um dos convivas (a própria esposa, o filho, a nora e os três netos), com as palavras apontadas em cada dedo da mão esquerda: “A TOLICE estufa o peito sem nada dentro. A VAIDADE, como a coruja, sempre a gabar o próprio toco. O SERVILHISMO acanhado na cadeira mostra o rabo sem querer. A HIPOCRISIA, que dá o tapa e esconde a mão. O MEDO, que borra pelas pernas quando a coisa fica feia”. Uns olham para os outros, ninguém entende, mas os pratos e os copos estão bem ali ao alcance das mãos: o lombo apetece mais que o frango; o guaraná não chega aos pés da cerveja geladinha. Seis meses depois, antes de levar a família nas partes turísticas do mundo, ele decide levá-la às partes turísticas do pátrio-torrão. Mas, por mal dos pecados, logo na primeira viagem há a colisão (que Alípio Tavares revela em cru realismo) do ônibus com o caminhão de carga pesada numa rodovia federal, acidente que resulta na morte de 33 pessoas, entre as quais o incógnito ganhador da Loto, sua esposa e os três filhos menores.
- Norvina, cadê o Zé Juca? – Pergunta o Moinho nas vinte e quatro horas do dia-e-noite do relógio despertador. E o Monjolo responde: - Tá no munho! A audição do diálogo da água com a madeira alcança as vivendas da vizinhança, a lembrar que o sítio do Zé Juca produz fubá, farelo e farinha de milho, a granel, para vender e trocar. O Zé Juca é um sonhador em atividade, nas cercanias do Arraial, que aprecia o bom paladar das coisas, dos alimentos, dos fazeres e das palavras. Não subestima nem estorva a liberdade e a felicidade dos vegetais – e até mesmo costuma perguntar a quem dele discorda: quando que um ramo de alecrim ou mesmo o espinho do esporão salta da moita para barrar o nosso caminho ou agredir-nos nas munhecas? Entretanto, noutros pormenores era intransigente: em se tratando de negócios, com ele é assim: vem à nós tudo; ao vosso reino, nada. Seu compadre lá dos Narcisos vem comprar dele uma quarta de fubá e não desmente, mais uma vez, a fama de chorão e de pechinchador. Depois de afirmar que anda ruim das pernas e da cabeça e que não sabe como consegue tratar de sua família tão grande num terreno tão exíguo como o que tem, lá nos Narcisos. “Será que todos de minha família” – ele se queixa, interpretando a tônica da amargura pessoal - “são sempre os mesmos que, uma vez nascidos, terão que sofrer até morrer, e que assim continuarão até à consumação dos séculos?” - Qual o quê! – Ameniza o Zé Juca, medindo o fubá na enorme vasilha de madeira. “Você está chorando de barriga cheia. Não tem medo de Deus castigar?” Ao ouvir o que o vendedor dizia, o comprador nota a fofura do fubá perfazendo uma quantidade bem menor, se estivesse apesoado. E lá do fundo de sua contumaz astúcia roceira, começa a contar um caso. - Ah, compadre, não digo nada. Preparei uma terra de arroz lá nas Itapecericas, que ficou supimpa, só vendo. Deu muito trabalho para esgotar o pedaço do brejo e destocar o chão, mas agora só vendo a beleza que está: uma gema de cultura numa daquelas vazantes do rio. A terra é úmida, mas fica deslinguenta quando enxuga, fica igualzinho a esse fubá... Vai dar até para plantar feijão solteiro, do tempo, na seca. - Conheço o lugar, - responde o Zé Juca. “A gleba é dos filhos do Isaltino, não é? Está plantando à meia ou à terça?” - A colheita do primeiro ano vai ser só minha, do segundo ano em diante vai ser à meia. - Mas aquele terreno, até nas cabeceiras, não está no rol de demandas dos filhos do Isaltino com o Sô Azevedo? - Está. - Então se o Azevedo ganhar, você perde o trabalho. - Toda demanda leva tempo. Até chegar lá, já terei colhido a produção da roça. - O tal de Azevedo é danado, do olho limpo. Sabe que ele comprou, a preço de banana, o Pasto da Lobeira, com as roças e a capoeira da Fontinha e tudo mais, de porteira fechada, da Dona Braulina? - É compadre, mas sem mudar de assunto, o que eu estava dizendo da terra que destoquei é que apareceu por lá uma baita duma capivara (faz o gesto do braço levantado em relação ao piso do moinho, para exemplificar o tamanho da capivara). - E você tem visto a bitela nas imediações? - Não, mas julgo o tamanho dela pelos rastros que ela deixa na terra afofada. Olha só como são os rastros dela. Aí o roceiro dos Narcisos, chamado Antônio Maria, apóia a palma da mão direita sobre a superfície do fubá afofado e diz: “Julgo que ela deve pesar umas duas arroubas. Julgo pelos rastros dela, que são mais ou menos assim (e assim dizendo, ele calca o fubá no vasilhame, até compactá-lo em toda uma superfície, agora de nível mais abaixado. Mas o Zé Juca, que de bobo não tem nada, percebe a artimanha e dá corda às próprias habilidades arremedadeiras, para replicar). - Uma capivara das baitas, puxa! Não seria uma paca? Tem que ficar de tocaia, com a arma de fogo. Se quiser, empresto a chumbeira, com o trato de depois trazer-me um bom naco do lombo dela. Capivara com feijão mulatinho e farinha de mandiocas e couve rasgada, é de lamber os beiços, não é compadre? Os farrapos de nuvens molham os mandiocais. O cavalo morto já está no papo dos urubus? Valerá a pena comprar o barrote do Sandomir? E buscar nos olhos da Anabela a sombra do amor? Mas o que tem a ver a capivara com a sovinice dos compadres? O Zé Juca continua na dúvida do sobreaviso. Já entendeu aonde o compadre quer chegar com a estória da capivara, que é o ser mais confiado dos terrenos alagadiços. É mais uma de suas arapucas, que ele me arma, o safado. O jeito, pois, é contra-atacar. - Aqui em casa a Norvina cismou de plantar uma horta de couve. A coitada pelejou um bom par de luas, mas a horta até hoje não quer vingar. Ela até que fez tudo direitinho, escolheu uma nesga de terra escura, ao lado esquerdo da casa, onde os filhos, quando eram pequenos, costumavam cagar e mijar. Ela cercou os canteiros com pedras arredondadas, de forma que até ficou bonito. Estercou com bosta seca de gado, curtida, deitou as mudas e sementes, aguou, aguou, mas até hoje nada, nada da horta prosperar. - Não entendo porque, compadre. Se ela fez tudo direitinho... - Só porque ela não misturou o esterco na terra, só por isso. Não misturou nem revolveu uma coisa com a outra até bem fundo antes de plantar. O que ela tinha de fazer era isso (e dizendo lança as mãos no conteúdo da quarta de fubá, e esgaravata da superfície até onde os dedos alcançam, assim afofando inteiramente o produto na medida, até que o mesmo suba ao nível anterior ao calcamento astucioso do compadre). Momentos depois, subindo o Morro do Esbarrancado, com o saco de fubá nas costas e a capanga de laranjas num dos braços, o Antônio Maria sacudia a cabeça, pensando que no sítio do Zé Juca até os mortos devem capinar as roças e bater os pastos, pois que eles não comem nem bebem, nem dão outras despesas. Ele é o compadre que fuma no escuro o cigarro apagado, não dá nem bom dia de graça e não come a banana para não ter que jogar a casca fora. - A coisa é feia! – Alguém grita na rabeira do eito da roça de milho do Zé Camilo. - É feia, mas é boa! – responde quem está capinando na dianteira do sitio. Tem gente que não dá sossego à própria sombra – pensa o comprador de fubá, todo suado no caminho de casa, a procurar um toco ou uma pedra na sombra da estrada para descansar um pouco seu futuro cadáver.