sexta-feira, novembro 28, 2008

AS NOTÍCIAS PERMANENTES

I - A Lamentável Decepção. A minha desilusão com a metodologia governamental do PT não é gratuita nem desarrazoada. Os motivos, infelizmente, são contundentes, resultantes da tardia certeza de um engodo perpetrado por ele (PT) e sofrido pelo malogrado eleitor, que seja quem for é, pelo menos, alguém que ao votar não assinou uma promissória em branco, que esperava uma gestão menos decepcionante. Em linhas gerais, em que se resume tamanha decepção? O declínio da moralidade, a perda da dignidade, sinais que contaminam todos os segmentos sociais, de tal maneira que o homem comum, que não se deixa corromper, passa a ter medo até de viver, sabendo do risco que corre se sair de casa e ser assaltado na rua ou se não sair de e ser, ainda assim, assaltado. O que afirmo parece exagero, mas não é. A onda de criminalidade aumenta a cada dia em todas as partes do país – e isso acontece porque os maus exemplos do cometimento e da impunidade vêm de cima (como certamente viriam se os exemplos fossem bons). Tenho certeza que se o presidente não desse as costas aos homens de bem, que influenciaram a diferença eleitoral que lhe deu a vitória do primeiro mandato, a atual decepção brasileira não seria tão clamorosa.. Abraçando a banda podre da política, que aceitava como um necessário trunfo a chamada militância petista, fisiológica, sedenta pelos ociosos cargos públicos e altos salários (sempre com a mão na roda das fraudes e subornos, extorsões, propinas e outras falcatruas) – o governo afastou, os homens públicos mais afeitos à nobreza de caráter e à aversão a toda e qualquer forma de corrupção. Nem preciso citar os nomes dos que se afastaram nem os dos que se aproximaram (insaciáveis glutões do arrivismo mais descarado: são notórios nas permanentes notícias de nosso dia-a-dia).). Sinto hoje que fui muito ingênuo em acreditar que o presidente iria preterir o lado podre do adesismo e preferir o lado sadio do apoio eleitoral recebido. A decepção é ainda mais lamentável porque mesmo sabendo que ele não iria “ignorar” os “companheiros”, eu acreditava que ele não desprezaria os melhores pontos de vista e de apoio, em termos não só de competência administrativa como de exemplos de probidade, moralidade, dignidade. Mas desprezou, não acintosamente, mas pelo mau hábito de preterir os bons e preferir os ruins. E o que acabou acontecendo foi a traição dos vencedores aos verdadeiros inspiradores e sustentáculos da vitória eleitoral do primeiro mandato. A do segundo mandato não conta, uma vez que a fruta já estava devidamente bichada. O que então passou a predominar em escala crescente foi o primado da mediocridade e da banalização acionando em todos os quadrantes a sanha do saque e da fraude: a corrupção como norma de ação em todos os segmentos governamentais de todo o país, fadado a se perpetuar como uma reles republiqueta latino-americana. Se todo esse descalabro ficasse apenas nisso, ficaríamos aguardando uma possível renovação a curto ou a médio prazo. Mas oito anos de ludibrio não são oito dias ou oito meses. As marcas são profundas. Correm mesmo o risco de se perpetuarem? Vade retro. 2 – Do Compêndio das Notícias Permanentes (*). ULISSES, romance de James Joyce. A leitura é difícil, quase um trabalho braçal. Parece que o autor, depois de saber tudo, prefere começar do nada, seguindo retroativamente, sempre para o lado do nada que tudo é e que fica imperceptível, normalmente. A ânsia dele, genial, de tentar apreender, numa redoma, o mistério desmedido. São quase novecentas páginas, uma narrativa ciclópica, na qual os mitos homéricos são trazidos para o nosso tempo, revividos nas vinte e quatro horas de um dos personagens. Suprimindo a individualidade romanesca, Joyce abriu um novo itinerário da linguagem literária, exprimindo em blocos as sensações totais do ser humano, precário e ambicioso, no contexto circunstancial de sua terrena existência. Isso enquanto tenta transcrever um diálogo e vai captando e transmitindo as sensações fisiológicas, visuais e intelectuais das pessoas envolvidas e dele próprio, narrador, que em certos momentos chega a dar a impressão que não está escrevendo com as mãos, mas com as vísceras, os ossos, o paladar, o tato – como se isso fosse possível. Algo muito novo pra o velho mundo da tranqüilidade linear. (*) – Fragmento de um texto escrito em 1986, ainda inédito.

sexta-feira, novembro 21, 2008

OS BARRETOS NA HISTÓRIA

O livro sobre a cidade de Barretos (SP, intitulado “BARRETOS- Primeiros Povoadores e Fazendas”, de Gabriel Junqueira Machione e Roseli Aparecida Tineli, confirma o nome de Francisco José Barreto como o fundador da famosa cidade dos rodeios, atrelando-o à família de nossos ascendentes portugueses O fragmento que abaixo transcrevo vai da página 32 à 38. A pesquisa deles corrige um erro do cartório do antigo Distrito do Desterro (hoje Marilândia), que registrou minha avó materna como sendo de pais desconhecidos. O nome dela (conhecida na nossa família por Vovó Barreta) é Maria Tereza de Jesus Barreto. A leitura do livro não exclui a hipótese dela ser sobrinha de Tiradentes e confirma que era da Família Barreto antes mesmo de casar-se com meu avô paterno José de Oliveira Barreto. O parentesco com Tiradentes está quase que explícito na Genealogia Mineira de Artur Resende; e com o fundador da cidade do interior paulista, do mesmo modo, está bem explícito no livro de Machione e Tineli, conforme a transcrição abaixo: “O insigne historiador mineiro Lázaro Barreto, em seu trabalho da Genealogia da Família Oliveira Barreto, presume ser Francisco José Barreto parente de Antônio José Barreto, um dos primeiros moradores do Distrito do Desterro da Villa do Tamanduá. A primeira igreja do Desterro foi provisionada em 1754, o que indica que o Arraial já existia – e numa Sesmaria de 1767 cita-se o referido Antônio José Barreto como dono das terras confrontantes ao patrimônio da igreja, o que indica que já residia lá há mais tempo. Esse Antônio José Barreto era sargento-mor, nascido em Sé de Braga, Portugal, casado com Joana Maria de Souza e Castro, nascida na Freguesia de Santo Antônio da Villa de São José (hoje Tiradentes). Era filho do Tenente Miguel de Araújo Barreto, de Sé de Braga, e de Rufina Barreto, da Freguesia de Soutelo, Arcebispado de Braga. Segundo Lázaro Barreto, baseando-se no livro “Os Primitivos Colonizadores Nordestinos e Seus Descendentes”, de Carlos Xavier Paes Barreto, a genealogia dos Barretos remonta a Frederico 4º, Rei de Astúrias, 451 anos depois de Cristo; depois vem Eurico, Alarico, Rei de Espanha, Amalarico, Leovegildo, Santo Ermenegildo, Rei de Sevilha, Atanagildo, Afonso III, Rei de Astúrias etc. Depois vem Gomes Mendes Barreto, pai de Fernão Barreto e Sancha Paes, dos quais descenderam, entre outros, Clóvis, Rei de França, Santo Arnaldo, Duque Henrique de Borgonha, Afonso Henrique, Primeiro Rei de Portugal (1111-1185), Tereza Pires de Bragança, Egas Muniz, Arnaldo Baião, Príncipe da Baviera, Nunes Soares etc. As armas dos Barretos, número 58 das 74 estampadas por ordem de Dom Manuel no teto da Sala dos Veados no Paço de Sintra: uma donzela vestida de arminho, cabelos soltos, braço direito curvado, uma mão apontando para cima, o braço esquerdo e a mão apoiados no quadril. O arminho significa pureza. No Minho foram edificados os solares dos Barretos. O primeiro Barreto chegou a Pernambuco em 1557: João Paes Barreto, neto de Florentino Barreto. O pesquisador Lázaro Barreto levantou vários Barretos ilustres na História do Brasil. Entre os quais: 1 – General Francisco Barreto, Governador Geral das Províncias Meridionais, na Bahia, até 1659. 2 – Capitão General Luiz do Rego Barreto, governador de Pernambuco, a partir de 1817. 3 – No Termo da Cidade de Mariana, de 1817, constavam os distritos de São Gonçalo do Barreto, e Pilar de Barreto. Igualmente Carmo da Mata chamava-se Mata do Barreto (devido às terras do citado Antônio José Barreto, que eram localizadas no atual município de Carmo da Mata). 4 – Belchior Isidoro Barreto, Intendente no Serro Frio em 1749. 5 – Fernão Dias Paes Leme (1666) que, segundo Lázaro Barreto, ascendência dele vai até Maria Alves Cabral, irmã do Descobridor do Brasil (um genro de Barreto Leme era ascendente de Fernão dias Paes Leme). 6 – Felix Sanches Barreto possuía uma Sesmaria no Ribeirão Iquiriri (Minas Gerais). 7 – Nicolau Barreto, bandeirante, 1711. 8 – Francisco Barreto de Menezes, sacerdote, descendente do Governador Geral do Brasil, de nome idêntico, na gestão de 1583 a 1584. Em 1715 outro fidalgo português, de igual nome, era Rendeiro da Passagem do Rio das Mortes. 9 – Gaspar Barreto, minerador que desbravou a região aurífera de Pitangui, em 1718. 10 – Amaro da Silva Barreto, comerciante em Pitangui, em 1718. 11 – Antônio Ferreira Barreto era Juiz Ordinário em Pitangui, 1718. 12 – Eleutério Barreto, possuía uma Sesmaria no lugar denominado Minas de Pitangui. 13 – Francisco Barreto Bicudo, sargento-mor, Sesmaria em Gualaxo do Norte, Freguesia de São José da Barra, Termo de Mariana. Possuía outra Sesmaria no Rio Gualaxo, na beira do Morro Descalvado, perto de Mariana. É antepassado do Cônego Trindade e do Deputado Jesus Trindade Barreto. 14 – Josepha de Almeida Barreto possuía uma Sesmaria entre a Freguesia de Santo Antônio da Roça Grande e a de Curral Del Rei, Comarca de Sabará. 15 – Manoel de Souza Barreto, Sargento-mór, Sesmaria na freguesia do Rio das Mortes Velhas Acima. 16 – Miguel Pires Barreto, Sesmaria na Cabeceira do Ribeirão do Papagaio. 17 – Thomaz Rui de Barros Barreto, Ouvidor Geral da Comarca do Rio das Mortes, gestão 1747 a 1751. 18 – José Barreto Pinto, Sesmaria no Sitio do Córrego São Lourenço, Termo de Mariana. 19 – Antônio Barreto de Lima, Sesmaria da Paragem do Ribeirão do Barreto, entre os arraiais de São Gonçalo e Campanha do Rio Verde, Termo de São João Del Rei. Possuía outra Sesmaria na Paragem da Serra do Ingai, Freguesia de Carrancas, Termo de São João Del Rei. 20 – Coronel José Velho Barreto, Árbitro de uma questão interestadual, que reconhece a posse do Triangulo Mineiro ao Governo de Minas, em 1765. 21 – João Caetano Soares Pereira Barreto, Provedor da Real Fazenda, em Villa Rica, de 1768 a 1777. 22 – Antônio José de Oliveira Barreto, Alferes de Ordenança e depois Capitão da Guarda Nacional, Solicitador de Causas (advogado), proprietário de terras em São João Del Rei e no Desterro do Tamanduá, nascido em 1768, em Santa Terezinha de Aroens, Termo de Guimarães, Portugal. 23 – Marechal Sebastião Barreto Pereira Pinto, Presidente da Província de Minas Gerais, gestão 1840-1841. 24 – Brigadeiro João Paulo dos Santos Barreto, Presidente da Província de Minas Gerais em 1844. 25 – Francisco de Paula Barreto, Sacerdote, nascido em 1773, fundou o Curato, a Freguesia e o Município de Oliveira , Minas Gerais. 26 – Antônio D’Escobar Barreto, Sesmaria na Paragem do Rio Abaixo. 27 – José da Cunha Barreto, casado com Ana Paula de Queiroz, comerciante em Pitangui, 1770. 28 – Francisco Moreira Piza Barreto, Sesmaria na Paragem da Cachoeira do Rio Machado, Freguesia de Santana de Sapucaí, Termo de São João Del Rei. 29 – Gonçalo Gomes Barreto, Capitão de Ordenança, Sesmaria na Paragem da Segunda Divisão no Córrego Robson Crusoé, Termo de Mariana. 30 – Bernardo José de Oliveira Barreto, Ajudante de Ordenança e depois Major e Comandante das Guardas Nacionais do Desterro do Tamanduá e da Villa de Tamanduá, tendo participado da Revolução Liberal de 1842, ao lado dos insurgentes, na Batalha de Santa Luzia. 31 – Mello Barreto, construtor do trecho ferroviário do Porto Novo do Cunha à Cataguases. 32 – Henrique Galvão Barreto, construtor do trecho ferroviário de são João Del Rei ao Arraial do Espírito Santo das Itapecericas, hoje Divinópolis, cidade que na época (começo deste século) recebeu seu nome em sua homenagem. 33 – Manoel Barreto dos Santos, Juiz Vintenário de Araxá, em 1791, nomeado pela Câmara da Villa de Tamanduá, para evitar a posse do Território do Triângulo Mineiro pelo estado de Goiás. 34 – José Simpliciano Barreto possuía uma fábrica de selins em Barbacena, no final do século 18. 35 – Abilio Barreto, escritor e poeta, jornalista e homem público, que pontificou em Minas no final do século 18 e no começo do 19. 36 – Tobias de Oliveira Barreto, Juventino Barreto, Quintiliano José Barreto, Floriano José Barreto, citados nos documentos referentes ao Distrito do Desterro (hoje Marilândia) e à Ermida do Carmo da Mata do Barreto (hoje Carmo da Mata), no período de 1817 a 1832. Em suas pesquisas, Lázaro descobriu três Francisco José Barreto, sendo um deles o fundador da cidade de Barretos, Estado de São Paulo. Uma filha do fundador da cidade tinha o nome de Tereza Rosa de Jesus, mas era chamada de Tereza Maria Barreto (o mesmo nome da avó paterna de Lázaro), tia de Valentim José Barreto. O pai de Lázaro chamava-se José Valentim Barreto. Pesquisas futuras poderão confirmar ou não a relação de parentesco entre Francisco José Barreto (o fundador da cidade paulista) e Antônio José Barreto (o fundador da cidade mineira de Carmo da Mata)” (Pela transcrição, Lázaro Barreto, que recomenda a leitura das páginas 100 e 101 do livro (esgotado) “Família Oliveira Barreto”, para a obtenção de mais detalhes sobre o assaunto). .

quinta-feira, novembro 20, 2008

PROSA E VERSO

Black is Beautiful: Na bela e gloriosa vitória eleitoral de Barack Obama, votado ao que parece pela maioria da população mundial e não apenas pela dos Estados Unidos, prepondera o lado (inusitado) negro do novo presidente de um país, até então refratário ao ideário e à prática da miscigenação. Uma vitória do ser humano, individualmente, na face da terra, sem dúvida. Venceu o candidato mais aquinhoado pelos dons da simpatia e da competência. Espera-se que a vitória se repita na gestão governamental, a favor não só da potente nação como de todas as outras nações do mundo (muitas delas reconhecidamente impotentes). Particularmente estranho, em todo o caso, um detalhe relevante: por que, depois da vitória, a mídia brasileira joga tanta luz no fato de Obama ser um negro triunfante? O que isso tem de mais? Ele não é um ser humano igual aos outros? Ele é, sobretudo um ser humano e não apenas um indivíduo da pele de cor negra. Não será um equívoco generalizado da mídia, estranhamente afetada de preconceito racial? Por que julgam que um preto é diferente de um branco? Sei (e penso que todos sabem) que não é. Nasci e fui criado num lugar pequeno, onde inexistia qualquer tipo de discriminação racial. O Francisco negro era o mesmo Francisco-pessoa-humana e não o Francisco-pessoa negra. Aprendi a ver a igualdade racial desde a mais tenra idade. E agora, já idoso assumido, e como escritor de cerca de dez livros publicados e de quase vinte inéditos, posso afirmar, em sã consciência, que nenhum personagem entre centenas de minha ficção, nenhum deles recebe o epíteto de negro, assim, simplesmente. Todos são, indiferenciadamente, os portadores de suas virtudes e defeitos, carregando seus nomes de batismo pela vida afora sem a menção da cor da pele como distintivo. A criançada do meu tempo comungava da mesma convicção de que a pessoa é boa ou má por outros motivos, não pela ostentação epidérmica. O menino conhecido como o “Nego da Fia” era, às vezes, um branquelo – e a própria “Nega do Totonho” era, de longe e de perto, uma branquela. A gente partilhava das coisas, dos espaços, dos quitudes, das idéias, dos modos e das ações cotidianas com as pessoas que não eram violentas: não porque era vermelha, verde ou azul. Afinal, como se lá dizia: O que seria do amarelo se não existisse o branco ou o negro? Esqueçamos a cor do Obama, que é apenas um detalhe que não vem ao caso da enorme responsabilidade que ele está assumindo, confiante na própria capacidade. Beleza e Veracidade. Na minha extensa relação de poetas que se imortalizaram na história da civilização, em virtude de suas obras excepcionais, destaco Homero, Dante, Camões, Shakespeare, Keats, Yeats, Rimbaud, Cabral, Fernando Pessoa, Lorca, Whitman, Rilke, Poe, Bandeira e Drummond, como os que conseguiram manter a unidade, a harmonia da síntese ao longo de suas obras volumosas. Estou falando dos que, amplificados no equilíbrio da quantidade com a qualidade através da síntese, conheço mais atenciosamente. Esses são sintéticos até mesmo na exuberância. Não dão varadas na água, não colocam o carro adiante dos bois: são mestres da ponderação, músicos alinhados no ritmo, pessoas bem situadas nos pontos de vista e de apoio – com a inteligência a nortear a sensibilidade no caminho da comunicativa expressão rentável, (literal e metafórica), escoimando sempre os desvios de tentadoras contrafações. Não cito aqui os romancistas e os ensaístas que estão sempre na pauta de minhas leituras, mas lembro deles a lição de que a oralidade poética na prosa versificada resume em extrair o sumo (o mel e o veneno) da fruta alimentícia do dia-a-dia do homem comum que eu sou – e que quase todos são. Divinópolis 2008. O ar empedernido e agressivo, repleto de sanguinários pernilongos. O chão empedernido e agressivo, repleto de poeira, estrepe e buraco. A sociedade apavorada, indormida, sofredora, dividida: de um lado os malfeitores, do outro lado os sofredores. As casas blindadas com seus dispositivos chocantes, Os moradores temerosos, sitiados, a convivência desarraigada, a estranheza que defrontamos, a anos defrontar (cada pessoa desconfiando da outra?). É óbvio que a poesia não tem nada a ver. É óbvio que a política tem tudo a ver! É assim tropeçando no levanta e cai que caminha a aturdida humanidade brasileira?

A POLÍTICA CULTURAL DE UM MINISTÉRIO

CORRIGIR A SEGUIR Revendo meus desorganizados arquivos culturais do porão de minha casa, onde se acumulam milhares de cartas recebidas de escritores brasileiros e estrangeiros, esboços e projetos de trabalhos ainda não realizados, originais datilografados e digitados de cerca de trinta livros inéditos, cópias e cadernos manuscritos de notas compiladas em sucessivas pesquisas de genealogias e de histórias municipais, além de pastas e de mais pastas de recortes e de dados referentes a futuros estudos sobre os numes tutelares da cultura humana e sobre o paralelismo histórico dos dois lados de nossa civilização, o da Piedade (Poesia) e o da Violência (Política), encontrei a pasta do Primeiro Seminário do Ministério da Cultura, realizado em Brasília (DF), na última semana de agosto de 1985. A intenção era a de reunir 80 intelectuais dos quatro pontos cardeais da nação, sem escolher apenas os que endossassem a política cultural que então se planejava implantar, mas, sim, os intelectuais de segmentos e de tendências diversificadas (uma congregação praticamente inédita em seminários convencionais). Constituiram-se, pois, dez grupos de oito participantes cada, sob a supervisão de Antônio Houais. Os participantes eram os ativistas intelectuais, representando estados e regiões, todo reconhecidamente envolvidos em estudos literários, sociológicos, antropológicos, artísticos e de comunicação social, entre os quais pontificavam os nomes exponenciais da cultura brasileira, como os de Álvaro Apocalipse, Antônio Hohlfeldt, Silvio Back, Júlio Lerner, João Ubaldo Ribeiro, Helvécio Ratton, Franklin de Oliveira, Ligia Fagundes Teles, Maria Clara Machado, Nélida Pinon, Reynaldo Jardim, Joãozinho Trinta, Oswaldo França Junior, Lya Luft, Affonso Ávila, Joaquim Pedro de Andrade, Tizuca Yamazaki, Ruth Escobar, Grande Otelo (ao lado do qual tive o prazer de participar de todas as reuniões do Grupo I). Na pasta dos textos que conservo sobre o assunto constam, além dos relatórios de cada grupo e do relatório final, os recortes de jornais de Brasília, que cobriram o evento e a Moção que apresentei em defesa da cultura popular (publicada depois no número 43 da Revista do GREMIG (Grêmio Recreativo e Cultural dos Empregados da CEMIG)). Sabendo agora, mais de 20 anos depois que o Ministério da Cultura ainda vive engasgado no lobbismo de suas articulações e realizações, publico aqui no meu blog o texto, lamentando que no nosso país as boas intenções são facilmente arquivadas pelo poder público. 

Eis a íntegra do texto, intitulado MOÇÃO EM DEFESA DA CULTURA POPULAR Em recente pesquisa, de campo e bibliográfica, realizada em Minas, recolhi inúmeros subsídios para o levantamento de um quadro etnográfico de nossa cultura popular. Alguns dados levantados e aferidos, de referencial mais extensivo, extrapolam da simples localização geográfica, pelo que acredito ser do interesse dos participantes pluralistas deste Seminário. Partindo da constatação de que em termos de cultura letrada o País está dividido em ilhas e desertos – enquanto as grandes cidades atraem e seguram as vocações intelectuais, as microrregiões esvaziam-se de talentos e até de seus estratos culturais específicos – encontramos uma cultura popular em estado de desarticulação e descaracterização. Isso é preocupante porque não apenas sinaliza uma forma de violentação, aumentando notadamente a disparidade entre o desenvolvimento econômico do cultural: enquanto a produção de bens de consumo é promovida e estimulada, a de bens culturais é reprimida e desvirtuada. Temo que tal discrepância pode levar-nos a imitar civilizações nacionais que deu certo economicamente, mas que por outro lado cristalizaram um comportamento ético indesejável (imediatista e até beligerante), que não titubeia em partir para a ignorância contra as outras nações que não assimilam nem aceitam ideologias extremistas.. Jean Paul Sartre, quando esteve no Brasil em 1960, constatou que o País era a maior democracia do ocidente e ao mesmo tempo uma ditadura de 10 milhões de pessoas urbanas sobre 60 milhões de roceiros. Essa ascendência de uma população sobre a outra, ainda existente, já que o êxodo rural esvaziou o campo e encheu a cidade de favelas, acirrou a luta de classes, instaurando fenômenos de violências de ação e de situação, antes inexistentes. Se a classe média urbana emergente aguça a vocação da rentabilidade econômica (o lucro rápido e rasteiro) é porque visa aproximar-se cada vez mais da classe alta e distanciar-se cada vez da classe baixa – e assim essa pendência acaba atingindo o modo de viver das pessoas, descaracterizando e invalidando os valores da cultura tradicional, que é fruto do contexto formativo da nacionalidade e não da implantação de modismos modernosos. A minha pesquisa restringiu-se a uma região do Nordeste de Minas, onde a invasão urbana ainda não se completou e, por isso, conseguimos constatar a permanência e a sobrevivência de valores importantes do ethos popular, principalmente os relacionados no sistema de crenças (a religiosidade, a medicina e as festividades praticadas pela fé e pelo gosto do povo). São valores imateriais e, portanto, mais resistentes ao um processo corrosivo mais extenso. Constatamos, por outro lado, as lamentáveis devastações no campo da cultura material: a substituição das técnicas de subsistência pela implantação da agroindústria e das tecnologias traumáticas (que não apenas suprimem a produção do artesanato decorativo e utilitário, como também mudam o comportamento cotidiano das pessoas) e pela imposição de formas seriadas dos utensílios e ferramentas, modificando, de certa forma, o próprio ato de viver e de sobreviver. . Deste processo devastador não escapa nem mesmo o exercício da literatura oral que a cada dia se torna mais arcaica em seu próprio habitat. Tendo em mãos dados atemorizantes, mas acreditando, como Albert Marinus, que a cultura, sendo algo vivo, não está sujeita apenas à morte, mas, também, a nascimentos, é que respondemos ao nobre esforço do Ministro Aluízio Pimenta, de tentar definir a missão institucional do Ministério da Cultura, de forma que possa, segundo as palavras dele, “constituir-se em instrumento de viabilização de uma política cultural que atenda aos anseios e demandas da sociedade”, sugerindo a conjugação de esforços de perenizar as fontes e os fluxos da cultura popular no sentido da continuidade de uma cristalizada identidade histórica - recuperando, sempre, o que estiver desaparecendo no sistema de crenças, nas festas populares, na literatura oral e na cultura material, liberando assim as forças criativas da sociedade, propiciando seu florescimento sem monitoração ideológica. A administração da cultura, mormente da cultura popular, tem que ser no sentido de estimular as formas da criatividade que enriquecem a vida das pessoas que formam a sociedade e também de combater o que inibe e tenta extinguir essa criatividade e sua livre manifestação. O Estado não é produtor cultural nem precisa interferir nessa produção, basta-lhe apoiar sem tutelar, e absorver, na administração da cultura, os resultados que possam revelar o mínimo de felicidade na vida das pessoas nas paz e na prosperidade comunitária, substituindo a inércia burocrática por uma funcionalidade mais comprometida com a realidade da vida social brasileira. Sabemos que as distorções da comunicação de massa concorrem para a dominação da cultura de elite sobre a popular, preterindo ou banalizando esta, folclorizando-a ao nível exótico do turismo, que é um valor maleável, mesmo economicamente. É preciso que a viabilização dessa comunicação seja administrada não de acordo com a rentabilidade empresarial, mas sim, que esteja contextualizada na realidade nacional em si mesma e não na relação aos parâmetros alienígenas. A cultura é algo muito sério para ficar à mercê da televisão enquanto mero órgão a serviço da sociedade de consumo, que não é o tipo de sociedade ideal para o tipo de humanismo que a cultura do povo sempre revelou. As empreitadas são óbvias e desafiadoras e reclamam ações coordenadas, delicadas e resolutas. Arrematando a linha deste raciocínio, sugeriria providências essenciais à recuperação e à preservação dos bens materiais e imateriais referentes à desintoxicação da psique coletiva, ao saneamento ecológico do meio urbano, com a devida proteção da natureza em todos os recantos do país. Sugeriria também que a nova legislação promova a transferência da administração de concessões e de normas funcionais dos meios de comunicação de massa para os quadros administrativos e funcionais do Ministério da Cultura, a fim de que sejam considerados como coisas vivas e não apenas negócios lucrativos. E que a nova legislação contenha, também, disposições mais cabíveis e praticáveis quanto à especulação imobiliária, à urbanização das vias públicas e o exercício da arquitetura em geral, de forma a impedir a prática atual de redução do espaço vital das povoações. E que de igual modo a legislação possa proteger a natureza, interrompendo o atual processo devastador, promovendo campanhas ecológicas e oferecendo alternativas de produção e de atividades que não sacrifiquem o meio-ambiente nem a cultura popular enraizada no meio social.

quarta-feira, novembro 12, 2008

POÉTICA

Muitas vezes o que é válido e precioso e indispensável para o autor, é impreciso e álgido e repetitivo para o leitor. Muito melhor é escrever pouco e acertado, sem dispersar as palavras em montes de páginas que se dilaceram na vacuidade. Exemplo? Compare o Maiakovski loquaz com o Rimbaud comedido. Quem procura a síntese encontra o leitor. O que é bom chega com um pé e volta com o outro. O que é ruim vem com a corda toda, para nos amordaçar. Prefiro os relâmpagos na trovoada, o piscar de luzes de uns olhos bonitos na escuridão, as palavras para ler e ouvir na nesga da alacridade: fechar nas mãos o momento conciso do tempo perdulário.

O MOINHO RIFONEIRO DE AUTRAN DOURADO (*)

No livro “Novelário de Donga Novais” Editora DIFER, 1976 – São Paulo – SP), Autran Dourado retifica a necessidade do equipamento sapiencial do ficcionista como ponto de partida para o trabalho criativo, O poeta, que é, também, ficcionista, mais que o intelectual que apenas examina por etapas as partes de um todo, precisa saber tudo, nem que seja para esquecer quase tudo na hora de escrever. Digo saber tudo pelo menos sob seu exclusivo ponto de vista, que abrange toda a dimensão da temática sobre a qual se debruça. Tem que desconhecer as limitações da ignorância e partir para a descrição de seu pequeno-grande mundo sem embargo de qualquer espécie. Talvez nunca venha escrever sobre as antigas embarcações fenícias nem sobre as figuras parietais das grutas do levante espanhol – mas é bom que saiba tudo isso e até, se possível, algo sobre as fórmulas químicas da cadeia carbônica. Só assim, sabendo ao máximo, pode esquecer o que ignora e, livre no velho mundo sem porteiras, poderá projetar seus abismos e planícies para possíveis exposições públicas. Autran Dourado dá essa impressão, como narrador onisciente, de sapiência abrangente e sem embargos. Em seu último livro (supracitado), além de dominar a descrição do fluxo do tempo e acioná-lo no espaço da ação romanesca, ele não só define e esclarece o comportamento dos personagens, iluminando as sucessivas páginas de riquezas eróticas e vocabulares, como insere as jóias do rifoneiro popular num contexto que não é, nem de longe, deliberadamente folclórico. Só mesmo quem, além de conhecer a cultura do povo, conhece a si mesmo, e que além de conhecer os livros, conhece os leitores, consegue tal proeza. Tenho o prazer de transcrever aqui alguns rifões inseridos com tanta força e espontaneidade no corpo do livro, que mais parecem terem nascido no livro e não na própria sabedoria popular, raiz (penso) de toda a genealogia filosófica, desde a mais primitiva até a mais contemporânea. Eis aí, pois, os picles dietéticos e os favos de mel, saborosos e pitorescos, que andam na boca do povo de todo mundo e nos dedos dos escritores de todos os tempos (especialmente nos de Autran Dourado, patense como os amigos e parentes Elaine Guimarães Coimbra, Donaldo Teixeira, Ricardo Marques e Maria Esther Maciel): - Cavalo, homem e arma: se não se usa, desarma. - Casamento e mortalha, no céu se talha. - Sem indez, galinha não tem vez. - Mulher que bem se arreia, nunca é feia. - Prosa boa e bater pão-de-ló é com um só. - Xexéu e virabosta, cada qual do outro gosta. - Beleza e ciência levam à falência. - Coração não quer certeza, só confirmar o que deseja. - Um rifão mais esconde do que responde. - Na entrelinha é que pia a galinha. - Galho seco pode ser cobra, se obra. - Quem não tem o que fazer, faz colher de pau e enfeita o cabo. - A quem conta, dê desconto; a quem escuta, araruta. - É furando que do outro lado vê o pica-pau. - Na boca do povo todo amarelo é ovo. - Burro não amansa, acostuma. - Mulher casta, uma vez basta. - Moça garrida, ou bem casada, ou bem perdida. - Se o tempo corrói o fuso, que dirá ao coração. - Amar e saber, juntos não podem ser. - Deus só dá nozes a quem não tem dentes. - Passarinha na muda não pia. - Tem hora que a própria vaca estranha a cria. - Corcunda sabe como se deita. - Quem usa a cabeça, não cansa os pés. - Bezerro enjeitado, não escolhe teta. - Solteiro pavão, noivo leão, casado jumento de estimação. - Filho de burro um dia dá coice. - Sombra de pau não mata cobra. - Quem procura e acha, não é desgraça. - Arma e sarna, ao coçar desarma. - Azeite, vinho e amigo: melhor o antigo. - A águia, quando não pode mais voar, vai morar no galinheiro. - Amor regado, amor dobrado. - Quem duvida não se engana, quem tem leque se abana. - Melhor curar goteira do que a casa inteira. - Na mijada da cotia é que o cachorro pega o faro. - Quem não sabe sofrer, não sabe reger. - El’Rei pode mandar marchar, chover não pode mandar. 

(*) Do livro inédito “Minha Bela e Querida Divinópolis”, escrito em 1986 e agora em fase de revisão.

domingo, novembro 09, 2008

FRAGMENTOS TEATRAIS (*)

- Um ator a outro ator, durante os ensaios de uma peça dramática: “Se teus esforços forem vistos com indiferença, não desanime: o próprio sol, ao nascer, dá um espetáculo todo especial e, no entanto, a grande maioria da platéia continua dormindo”. Assim falava um autor, cujo nome esqueci. - Uma atriz, recitando um texto de almanaque, humorístico: “Não há motivo algum para você se incomodar. Pode ser que seja bem sucedido na vida ou pode ser que seja mal sucedido. Se for bem sucedido, tudo bem. Se for mal sucedido, das duas uma: ou você conserva a saúde ou fica doente. Se ficar doente, das duas uma: ou você sara ou morre. Se morrer, das duas uma: ou você vai pro inferno ou pro céu. Se for pro céu, tudo bem. Se for pro inferno, terá que cumprimentar tantos amigos e conhecidos que não terá tempo para se incomodar”. - Um ator, recitando: Pelas estradas da vida subi morros, desci ladeiras e afinal ao meu cão eu digo: se entre amigos encontrei cachorros, entre cachorros encontrei-te, amigo. - Uma atriz: Todo mundo se admira da macaca fazer renda. Pois eu já vi uma perua ser caixeira duma venda. - O ator: A maré que enche e vaza, deixa o mangue a descoberto. Vai-se um amor, vem outro amor, nunca vi nada mais certo. - A atriz: Meu amor é uma laje, bem lá no meio do mar. Dá-lhe o vento, dá-lhe a onda, e ela nunca sai do lugar. - O ator: Alecrim da beira d’água, chora a terra que nasceu. Eu também vivo chorando pelo amor que já foi meu. - A atriz: A lua entrou na nuvem, todo o mundo escureceu. Não pode encontrar ventura, quem sem ventura nasceu. - O ator: Botei meu pé no estribo, meu cavalo estremeceu. Adeus vocês que ficam, quem vai embora sou eu. - A atriz: Rodai comigo, canoa, rodai no ribeirão que vai pro mar. Se é de amor que se vive, que morra quem não sabe amar. - O ator: No enterro da raimunda, foi aquela confusão: uma parte de seu corpo ficou de fora no caixão. - A atriz: A rosa branca se soubesse o cheiro que a roxa tem, ficava de noite no sereno pra ficar roxa também. - Ator: Era uma vez, na eterna caatinga do velho nordeste, estando um bando de retirantes em volta de um cacto, um deles levantou-se e disse: era uma vez, na mísera favela do Rio de Janeiro, estando seis desempregados em torno de uma mesa de jogo do bicho, um deles levantou-se e disse: era uma vez, na enorme bancada da assembléia legislativa de todo o gigantesco país, estando um bando de parlamentares aprovando a lei de aumento dos próprios proventos, um deles levantou-se e disse para os contribuintes: pá! Pá! Pá! – Fazendo o gesto obsceno de quem está a mandar balas de fogo contra a platéia incauta e boquiaberta. 

(*) ´Fragmentos não aproveitados na peça BAR, DOCE LAR, cuja primeira e única encenação no Theatron (Divinópolis, MG) foi premiada, em 1997. As trovas são de autores anônimos do cancioneiro popular brasileiro.

sexta-feira, novembro 07, 2008

O RISCO DO BORDADO

Sou um leitor um tanto desencantado da velha poesia que ainda se escreve no país. Novos autores surgem em toda parte, quase todos abastecidos na estocagem precursora dos modernistas de 22 e dos concretistas de 45. Até quando nos servirão o mesmo prato, substituindo apenas os cozinheiros? A poesia em si é algo que existe nas funduras e nas alturas da vida e do mundo, em estado latente, como uma flor ou um pássaro, oferecida a quem pegar primeiro. Pode pegar à vontade porque sempre ficarão os exemplares para quem chegar depois: ela é inexaurível, infinitamente renovável.Só quem copia está diluindo, corrompendo, poluindo. ........................................................................................................................................... 

O pequeno e grande romance “O APANHADOR NO CAMPO DE CENTEIO”, de J. D. Salinger. O que chamam de alienação da vida, possessão do mundo, não pode ser estudado apenas em termos e ao nível da psicologia, mas também adentrando as áreas da sociologia e da arte. O que faz o bom ficcionista senão descortinar sua obsessão individual através de sucessivas visões panorâmicas de um mundo quase sempre desgovernado? O livro supracitado exorbita da categoria simplesmente literária para se transformar num documento sincero sobre o nosso tempo, sempre instável, sujeito às ocasionais tempestade e à constância de um sol inclemente. .......................................................................................................................................... 

Faulkner pregava como ponto de partida da incursão literária os ditames da veracidade e do coração. Só mesmo a poesia (e a poesia não está apenas nos poemas, como sabemos), ou seja, o primado da piedade sobre a violência, pode exprimir e transfigurar as ações e situações, estabelecendo o equilíbrio, recuperando para a sanidade mental o caos existencial. Lemos milhares de páginas de jornais, revistas e livros e só raramente (quando encontramos o texto de verdadeira poesia em prosa ou em verso) é que fazemos uma pausa para examinar a própria consciência, tentando recuperar partes preciosas do passado com o intuito de sintetizar as articulações espasmódicas e torrenciais. Os grandes poetas históricos são os melhores legisladores da alma, os mais experientes codificadores sociais, os parceiros da natureza. ........................................................................................................................................... 

No livro “BAGAGEM”, Adélia Prado fala de suas experiências rotineiras, a vida em família numa cidade do interior de Minas (que já estava humildemente inscrita na geografia literária brasileira e que agora entra na história desta mesma literatura). Ela fala dos animais domésticos, dos objetos de uso pessoal, dos fatos mais comuns do cotidiano e dos entes familiares. Todas as pessoas do mundo falam disso a toda hora, umas bem, outras mal – e quase tudo se perde no burburinho do anonimato e do tédio exaustivo. Parece até que cada vez menos o homem se conhece mais se desumaniza, vítima de um opressivo esmagamento político. O poeta, que não perde a pureza original, fala de si por todos e de certa forma redime algo da espécie degradada. É uma espécie de efeito religioso onipresente na poesia da Adélia. A Bíblia é muito erótica, a obra de Guimarães Rosa idem. O erotismo, princípio positivo da vida, é mesmo muito poético. A BAGAGEM, de Adélia Prado, consta de muitas peças, de muitos órgãos, é uma bagagem repleta de cigarras que atrelam as patinhas no coração e também as moitas de sarças ardentes, a licença de sono e de perdão para o descanso das horas trabalhosas, o amarelo furável, a paixão branca e roxa de Jesus Cristo, a qualidade das telhas de antigamente nas casas de morar e de viver, alguns cantos para acordar mortos, os assobios dos santos, chamando, “um modo guloso de cheirar os verdes”, as três irmãs chorando na casa fechada por dentro, as comadres que se visitam aos domingos, um forte e prolongado carinho na nuca, as grandes e belas palavras que se tornam coisas e seres - e a roda dentada da própria poesia ilesa e ferina, docemente ferina. O bom livro é como uma caixa de segredos, da qual você vai tirando as coisas mais ou menos conhecidas, frases já lidas e ouvidas ou apenas intuídas, algumas dobras de tecidos, uma ou outra fruta ao alcance das mãos no quintal da infância. Nessa caixa você vai descobrindo novas lembranças e previsões que poderão levar o leitor ao fundo do mais alto estágio transitório, rompendo a linha linear de uma vida confinada apenas superficialmente. É só abrir e tirar um raio de sol perfumado aqui, uma franja de cútis aureolada ali. A gente vai abrindo e descobrindo e tirando um brilho na chuva, uma doce recuperação de pátinas pendentes.