No transcorrer da leitura do romance TEMPO DE MENINO, perguntava-me porque o autor, Sebastião Gontijo, não teria atingido o alto nível da rememoração proustiana, para a qual dispunha dos elementos prospectivos essenciais. Penso que o empecilho derivava do contexto social da época e do local em que viveu, visto e revisto hoje em dia num retângulo de atraso cultural que não poderia propiciar melhores alongamentos e maiores profundidades. Ele poderia, quando muito, inspirar-se no mergulho, na caminhada e no vôo da criatividade, como é também o caso, guardadas as devidas proporções, de romancistas brasileiros do porte de Lima Barreto, Machado de Assis e Graciliano Ramos. Para o nosso conterrâneo Sebastião escasseavam tempo e espaço necessários para empenhos de tal monta. Sua rotina de vida laboriosa acontecia em outras dimensões culturais: era um intelectual de nível escolar superior, empenhado em outras artes e ofícios e não os da vivência preferencialmente literária. O recurso que pleiteou e obteve foi o do labor solitário de um exercício intermediário entre a intuição e a ação, assediado, no entanto, em lugares e momentos desencontrados, quase irreconciliáveis.
Assim ocupou seu tempo útil na tentativa da dissecação e da expressão dos dramas conjugais e sociais que escorregam mais para as comédias do que para as tragédias. Os escolhidos acalantos e inevitáveis xingamentos do diapasão caseiro desse amor contraditório, intercaladamente subjetivo e objetivo, - que se apaga e logo volta a se acender, e da convivência entre a velhice e a infância na mesma tessitura dos arroubos e tropelias, no mesmo alvoroço das sonâmbulas elegias – assim como a compensação de cada morro da vida, possuidor concomitante de subida e descida, às vezes muito cansativo, às vezes muito divertido.
Na escola o menino (ao mesmo tempo problema e solução na ambientação familiar-social) deixava o lápis cair debaixo da carteira só para olhar, de um ângulo favorecido, as belas coxas da Professora Alice, sentada à mesa bem defronte ao alunado. Uma evidência, sim, do prenúncio da precoce sexualidade humana. Quem freqüentou as aulas da escola primária dos anos 40 do século 20 lembra que a pudicícia feminina era do tipo de um condão sagrado. Interessante notar (no livro e na vida prática) que a manifestação desejosa do menino é quase sempre endereçada ao elemento feminino adulto e não ao da mesma faixa etária. Chega a ser uma predisposição genérica? O menino (Cirilo, personagem central) chega a culpar, desculpando-se, asa belas coxas da professora pelo insucesso de seus exercícios escolares – e a professora atribuía tal deficiência à sua congênita desatenção. O fato é que num só dia ele deixou cair o lápis nada menos do que treze vezes. A meninada masculina da sala de aula admirava e paquerava a professora “linda, de olhos azulados, os cabelos tratados e louros a caírem sobre os ombros. Quando sentava à mesa, abrindo e cruzando as pernas, os lápis dos alunos caiam de propósito, ensejando a bela visão da “cena grátis” das lindas coxas dela”.
Assim o Menino vivia em comunhão e absorvendo todo seu interesse num cenário de natureza farta e cativante, numa casa familiar (a mãe preocupada e nervosa; o pai, maquinista ferroviário, afável e comodista; os irmãos um tanto apagados na diária irrelevância), quase roceira, de quintal arborizado repleto de pássaros cantantes e vivazes, ampla e modesta, dando vista gratuitamente para as quinze bandas do Arraial do Desterro. A que ele mais preferia era a da descida para o Rio Itapecerica, com as praias, as matas ciliares e as mais ralas dos lados que projetavam as ruazinhas da localidade, ressaltando aqui e ali, a estação da estrada de ferro, a velha igreja matriz, o Morro do Cruzeiro, vermelho, formoso e eriçado – e os trilhos da linha férrea perdendo-se nas distâncias rumo ao Arraial do Cajuru, depois dos barrancos e mataréus da Ponte Funda. Cirilo se abismavam encantado pela dinamização da natureza repleta de pequenos seres dóceis e amáveis – o gorjeio e a revoada dos pássaros, os vívidos desenhos das aéreas borboletas e aranhas, toda a vida animal entrelaçada à vegetal tanto na visão genérica como na observação dos mínimos detalhes. A descrição é bem idílica, a narração é um rosário de surpresas para o menino observar e remoer o que no mundo a vida mais explicitava. Assim ele crescia, amando o rio e suas margens, pontes e cachoeiras. Sujeitava-se ao vai-e-vem dos rigores das estações do ano, a friagem das manhãs e os ventos das tardes. Uma amostragem na página 23: “Como ocorria todos os anos, os grandes flocos de névoa começariam a vagar de um lado para o outro, numa coreografia jamais ensaiada, até que o sol morno de agosto viesse destruí-los ou o vento forte que precede a um aguaceiro, levasse-os para longe. O rio, então, ressurgia com toda sua esverdeada beleza, ora com o sol faiscando sobre as suas águas, ora refletindo as galhadas dos ingás e os ramos frágeis dos muricis ou recebendo placidamente a claridade suave nas noites de plenilúnio”.
Assim Cirilo crescia, amando cada vez mais o soberbo rio, como se ele fosse uma linda mulher de misterioso fascínio. Testemunhava, acompanhando, o rastejar da Jaracuçu e da Jararaca, da floração e da agonia da enorme gameleira nas margens areiosas e barrancosas. Ele e os colegas-amigos enfrentavam as dificuldades da mata fechada , dos buracos, atoleiros e das ondas do rio volumoso que todo ano engolia pelo menos uma pessoa. Suas escapadas para a farra com os colegas causavam surras homéricas aplicadas pela mãe austera, sempre desobedecida. Levado da breca, ele nunca se emendava dos cometimentos errôneos, preferindo divertir muito e estudar pouco ou nada, sofrendo sucessivas reprovações nos exames escolares. Depois da terceira repetência, ameaçado de ser matriculado na escola particular do medonho professor Fitipáldi, ele se humilhou, rogando:”Pelo amor de Deus, mamãe, não me mande para onde quer me mandar, mande-me para onde a senhora quiser, menos para a escola daquele medonho cavanhaque de bode”. O que resultou do impasse foi, por exigência da matrona, ele ser levado ao Colégio Seráfico do Bairro Gameleira, de Belo Horizonte, onde purgou todos seus pecados, impiedosamente, durante os quatro primeiros anos de sua mocidade internada. O martírio pedagógico do confinamento no colégio religioso fez de sua adolescência apenas uma rememoração da infância, inflando sua mente da consciência de estará envelhecendo prematuramente, excluindo toda uma juventude que devia ter. Estragava a vida? Ou a vida só existe mesmo para ser estragada, mais cedo ou mais tarde? Páginas e páginas relatam o sadismo pedagógico dos professores trancados por dentro, realçando no adolescente a certeza de que fugindo da palmatória cruel do ensino civil, ele acabou encontrando um suplicio religioso desumano, infundado. Como vou sentir saudade desse sofrido período de crueldades clericais? Assim ele se perguntava ao regressar, infaustamente, ao convício da paisagem familiar que também, às vezes, é inteiramente, imensamente brutal.
NOTAS:
1 – Toponímia do Desterro:
- Moinho do Juza (página 1).
- Várzea do Epifânio (páginas 1 e 163).
- Rua da Ponte (citada em 17 páginas).
- ´Morro do Cruzeiro (página 1).
- Rua Itapecerica (citada em dezenas de páginas).
- Cemitério do Catalão (página 11).
- Largo da Cadeia Velha (páginas 14 e 35).
- Largo da Matriz (citada em dezenas de páginas).
- Praça da Estação (Página 28).
- Rua Bebiana (página 28).
- Pau d’Óleo (página 4).
- Largo do Rosário (páginas 37, 40, 41 e 52).
- Ponte de Ferro (página 76).
- Ponte Funda (páginas 32 e 177).
- Morro da Ponte (página 67).
- Arraial do Desterro (dezenas de páginas).
- Farmácia do Jota (páginas 17, 96, 158).
2 – Alguns dados biográficos do romancista:
Sebastião Gontijo (1916-1994), filho de José Galdino de Araújo e de Rosa Gontijo de Araújo, ele ferroviário, ela professora. Estudou em Divinópolis, em Belo Horizonte, em Niterói e no Rio de Janeiro, onde se formou como Cirurgião Dentista pela Faculdade Fluminense de Medicina. Como jornalista, colaborou no “O Diário”, “Folha de Minas”, em Belo Horizonte; no “Divinópolis Jornal” de sua cidade e na “Folha do Rio”, no Rio de Janeiro. Antes de exercer a profissão de Cirurgião Dentista trabalhou como Professor e Bancário em sua cidade e em Petrópolis (RJ). Casado com Lys , com quem teve os filhos Hamilton, Cláudio e Cristina. Escreveu e publicou os romances “Dias Idos e Vividos”, “Laços Apertados”, “Tempo de Menino”, “Memórias de Um Foragido” e “A Última Quimera”. Traduziu e publicou, em 1970, o livro “Tratamento Imediato dos Traumatismos Faciais (Early Treatment of Facial Injuries”, de Thomas John Zaydon e James Barrett Brown.