sexta-feira, julho 25, 2008

CHEGA A DIVINÓPOLIS O BELLO POETA FRANCÊS

Os carros levantavam a poeira vermelha da estrada cortada numa terra de cultura da gema, como dizem os roceiros das regiões agrestes do centro de Minas. Depois de contornarem uma das serras da cordilheira emparelhavam ao casario longitudinal de mais uma das alegres cidades do sul de Minas. Qual é mesmo o nome dela (Passa Quatro? Pouso Alto? Baependi?)? Como o povo vive em seus quadrantes e contornos? As mulheres são bonitas e dengosas? Os olhos delas movem-se quando elas andam? Os homens do lugar sabem conviver com elas, entender seus pormenores? Os carros da comitiva roncam, voam ao longo do percurso entre a vegetação e a cadeia de montanhas, nos verdes contornos sem limites. Mais de uma vez Blaise Cendrars, poeta francês que assumira o drama brasileiro dos pobres vexados, anotou que na viagem pelos rudes caminhos da década de vinte as árvores das margens viravam as raízes para o ar como os raios de uma roda vertiginosa. Ele é doido e ainda bebe? - Diria quem o visse de repente. Ele era assim e assado, na graça de certa estranheza, sempre caindo na tentação da revelia, na vontade de domar a serpente estética, sempre a repetir que a vida das plantas é mais repleta de emoção do que um drama policial. Assim ele falava, trauteando um chorinho. Queria conhecer a Minas Barroca: de São João Del Rei, Sabará, Ouro Preto, Mariana e Congonhas, ou seja, o que para ele seriam os anacronismos, as inverossimilhanças, as delineações formais do existencialismo mais natural deste mundo. Aqui nada embaraça a imaginação, alguém diz. Quem teria dito? De repente estavam num parque recreativo de Caxambu – e Tarsila Amaral e Olívia Penteado tomavam banho de água mineral da fonte da Princesa Isabel. A Tarsila tem o risco e o bordado no revestir e no adentrar (o que é triste dá outro sentido ao que é belo): sua boca não tosse, o nariz não funga, a saúde sempre à frente da moralidade, sempre loura como uma criança; a Olívia tem os seios apartados um do outro, como dois pássaros distintos da mesma sensualidade, que ela, constrangida, portava, como que contra a vontade. Só faltava na aquarela feminina a pureza mais primitiva, a meiguice mais criançola da Pagu, agora comendo o pão que o diabo amassou com o rabo nas hostes de um frívolo, acanhado comunismo tupiniquim. No dia seguinte, em dois automóveis, chegam a São João, onde conhecem a mulher nanica e capenga, na praça da Igreja de São Francisco de Assis, os olhos dela cheios de lealdade e confiança. Cendrars afasta-se um pouco para chorar, verter as lágrimas mais quentes da piedade. Depois todos vão a Tiradentes, onde conhecem o Lobisomem aprisionado nas muralhas do santuário das montanhas escarpadas, em negrito. Os outros integrantes da comitiva: René Thiollier, Mário de Andrade (atônito diante do sol agudamente vermelho no poente do altiplano horizontal, que vai até à Ponta do Morro, onde os Inconfidentes discutiam seus planos de ação libertária, a ouvir uma vez ou outra os manjados galanteios do Oswald às damas-companheiras, antes de concluir, enfático, que o índio extinto não adorava Deus porque Deus é bom, mas adorava, sim, o Diabo, não porque este seja mau, mas sim, porque era e é inquietante. Assim ele impressionava as mulheres mais do que as infundadas parábolas de baldada sedução do colega cafageste), Gofredo Teles, Afonso Taunay (já picados pela mosca azul do integralismo do Plínio Salgado?) e Oswaldo Andrade Filho, abordavam as pessoas da terra, como se elas fossem de outro planeta: “nem contigo nem sem tigo: nem sem nada, nem contudo” – era assim que pensavam e conversavam, em conjunto. Nos ramos de todos os lugares os pássaros trilhavam o ar de ideogramas e epígrafes talvez apócrifas e/ou blasfemas. Uma tertúlia itinerante sob o sol e a chuva do conhecimento que alarga e aprofunda o mistério de todas as coisas. As pessoas são diferentes, o clima é mais quente e arejado, a mente abre mais as pestanas, o coração até parece parar de tão descansado. Assim eles chegavam antes de terem partido, apertavam as mãos dos desconhecidos, como se os conhecessem, episodicamente. No dia seguinte chegam a Divinópolis, de onde seguirão para Sabará, dois ou três dias depois. Blaise Cendrars, o belo poeta que havia perdido um braço na primeira guerra mundial, ficou à vontade no meio dos franciscanos, ferroviários e carroceiros. A Tarsila (tinha o sexo literalmente doce, metaforicamente verde e realmente lindo) namorava o Oswald, enquanto ouvia de Cendrars a intenção dele de ambientar na cidade um romance surrealista. Mário de Andrade recolhia as imagens para compor seus festins poéticos e folclóricos, mergulhando “no melhor chuveiro do mundo”, do Íris Hotel, que ainda existe até hoje. Depois Cendrars proferiu uma conferência em latim sobre o romantismo de Victor Hugo para os franciscanos holandeses (que ele confundia com os jesuitas) e ferroviários em plena praça da estação. Cada linha de suas palavras era, conforme Cocteau, uma tatuagem indelével. Les négres parlent tours latin et ne travaillent pás. Isso mesmo: os morenos da ferrovia danaram a cantar em latim, entrando na greve começada pelos carroceiros da praça da estação. As mulheres da cidade deitavam sobre os trilhos, impedindo a marcha do trem de ferro. Por que Tarsila não aproveitou num quadro a óleo essa imagem da obstinação e do despreendimento femininos, malgrado o obstinado machismo daquela época? Olívia queria conhecer os arrebaldes, os ritos de passagem do Desterro, as encomendações de almas da Bocaina, a fabricação caseira dos queijos do Buriti. Mas Gofredo Teles prognosticava a escalada da radicalização direitista da política, enquanto um frade debatia com Oswald a doutrina da antropofagia: se o colonizado come o colonizador, ah, daí pode resultar o meio-termo da nacional-democracia, vereda perigosa, que pode levar à outro banho de sangue. Blaise Cendrars levou Mário à beira do rio das itapecericas para verem os bagres saltando sobre as pedras no líquido vento das multiplicadas cachoeirinhas. Segredou-lhe que o pessoal dali não era flor que se cheirasse facilmente, dando a entender que deixava de lado muita coisa de si e mostrava só o que não podia ocultar. Sabe, fiquei sabendo de um prefeito daqui que comia a mulher de um doutor, e lá um dia ou outro ela se aborreceu e desfechou três tiros no coração dele, dentro de sua própria casa, depois de terem comido da maçâ aos dois proibida. E sabe o que o marido dela fez, ao chegar em casa? Apagou as impressões digitais da esposa na arma e desfechou mais três tiros no cadáver estendido no tapete da sala. Eta homem, heim? Esse é dos nossos! Eta mulher, heim? Eta três pessoas arretadas, heim? Desabusadas, heim? Serão personagens do romance que vou escrever quando voltar para a minha Oropa-França-e-Bahia. Tarsila (o nariz escorreito na perfeita conjunção dos olhos argutos e da boca capitosa: só de encostar os pensamentos nela que o Oswald esquecia sua penca de mulheres subalternas) queria pintar as lavadeiras do Canto da Mina, mas tinha esquecido o pincel no carro que regressou a São João. Cendrars pegou o grisu e foi ao Bairro Operário da Esplanada das Oficinas para ver de perto a sistemática operativa da rede mineira de viação. Bateu inúmeras fotos nos olhos mnemônicos para revelar e montar, depois, um painel romanesco. Estava maravilhado e nem sentiu a aproximação de Mário, que estava aflito por rever Henriqueta Lisboa, musa e poeta das alterosas, cuja imagem de calafrio e rubor aproximava nos sonhos dele e depois distanciava na realidade. Ele morreu solteiro, ela morreu solteira. O franciscano argumentava: só o ensino das artes nas escolas pode restabelecer o equilíbrio entre a tecnologia e o humanismo. Olívia prenunciava o som do olhar, colhido cinqüenta anos depois em muitas moças da cidade por seus poetas inibidos e arredios. Ela se prevenia dos agouros, beliscava os braços de Tarsila, que parecia viver só de beijos e abraços. E por falar em abraços: quê falta que todos sentiam de um dos braços do belo e talentoso poeta francês.... Que parecia anotar num dos cadernos da cachola lá dele: todo autor deve ir com calma, sabendo que ninguém está a morrer por causa de sua imaginação travada ou solta. Mas se algo nascer dela, no devido tempo de sua luz natural, tanto melhor se for uma coisa válida e bela, que recompense o trabalho de parto que deu. E todos viam as palavras andando pelos campos mineiros até os horizontes circulares e montanheses, alçando vôo ali, aterrissando acolá, reverenciando uma curva, aplaudindo o pássaro das quimeras nas grimpas do jatobá, ali pelas bandas de Azurita, agora todos encavalados nas poltronas da primeira classe do trem de ferro que os levavam de Divinópolis a Belo Horizonte. 

Escrito depois de ler o livro “A Aventura Brasileira de Blaise Cendrars”, de Alexandre Eulálio e Carlos Augusto Calil.

sexta-feira, julho 18, 2008

O ESPÍRITO DO ATEISMO

Com tantos predicados coroando a harmonia do nosso sistema planetário, como duvidar ou negar que um Criador todo poderoso e todo misterioso não esteja possuído dos direitos de autoria de todo esse manancial? E por que não chamá-lo de Deus, mesmo subtraindo de sua propalada inteireza tantos preconceitos duvidosos e controvertidos? Perguntas afloradas durante a atenciosa leitura do livro “O Espírito do Ateísmo”, de André Comte-Sponville (autor que eu não conhecia e que um amigo de São Paulo apresentou-me, afortunadamente). O vocábulo “ateu” no sentido de “atoa” é logo descartado pelo criterioso e ajuizado filósofo, portador de riquíssima bibliografia na área especulativa dos temas mais fundamentais da cultura humana. O impacto da leitura leva-me à tentativa de escrever este texto antes mesmo de chegar à metade do conjunto de suas páginas, deixando-me à vontade para voltar ao assunto depois. Estudando “a possibilidade de se viver bem sem a religião”, ele confere “o que há de comum entre o xamanismo e o budismo, entre o animismo e o judaismo, entre o taoismo e o islã, entre o confucionismo e o cristianismo” e conclui ser “um equívoco utilizar a mesma palavra (religião) em todos esses casos”, acrescentando que “seus adeptos formam não tanto igrejas quanto escolas de vida ou de sabedoria”. Etimologicamente, segundo suas palavras, “uma religião pertence menos à COMUNHÃO (que liga) do que ao que chama de FIDELIDADE (que recolhe e lê). Os valores da FIDELIDADE nasceram, historicamente, nas grandes religiões (o judaismo, o cristianismo e o islamismo), “mas isso não prova que os valores (moral, fidelidade, comunhão) necessitem de um Deus para subsistir. Nós é que precisamos deles para subsistir de uma maneira que nos pareça humanamente aceitável”. O autor acredita (plausivelmente) que “a fé é uma crença” e que a “fidelidade é mais um apego, um comprometimento, um reconhecimento. A fé tem por objeto um ou mais deuses; a fidelidade tem os valores, uma história, uma comunidade. A fé é do âmbito do imaginário ou da graça; a fidelidade, da memória e da vontade”. Na página trinta ele diz que não precisamos acreditar em Deus para acreditar que “a sinceridade é melhor do que a mentira, que a coragem é melhor do que a covardia, que a generosidade é melhor do que o egoísmo, que a doçura e a compaixão são melhores do que a violência e a crueldade, que a justiça é melhor do que a injustiça e que o amor é melhor que o ódio... Quem acredita em Deus, reconhece em Deus esses valores, reconhece Deus neles”. Pois, só por não crer mais no Deus tradicional, no onipotente, onipresente, todo poderoso, alguém tem de se tornar um covarde, um hipócrita, um canalha? Assim ele desmonta o famoso postulado de um personagem de Dostoievski, segundo o qual “se Deus não existe, tudo é permitido”. Claro que não é assim, o autor afirma na página 46: “a moral é autônoma ou não é moral (Kant já mostrava)”. Quem se impede de sair roubando e matando só pelo medo da sanção divina, é despido de moralidade, está meramente imbuído de “prudência, medo do policial divino, egoísmo”. E quanto a quem faz o bem só para se salvar, não faz o bem, mas sim algo por interesse e não por dever ou amor. Hipocrisia, no caso, até mesmo pecaminosa, eu diria. O personagem do genial autor russo é um inculto (leiam o romance “Os Irmãos Karamazov”, para confirmar): se fosse um personagem culto saberia que a perda da fé não é a perda da moral. Para se fazer o bem no mundo, a religião não basta, nem o ateísmo, mas ajudam. “Se a palavra religião é entendida em seu sentido ocidental e restrito, como a crença num Deus pessoal e criador, então a questão está historicamente resolvida: uma sociedade pode viver sem religião. A prova? O confucionismo, o taoísmo, o budismo, que inspiraram imensas sociedades, admiráveis civilizações. O termo latino “religío” vem do verbo “religare”, o que significa amarrar, ligar bem”. (...) Abro aqui um parêntesis para lembrar a famosa frase de Karl Marx: “a religião é o coração de um mundo sem coração”. Frase um tanto descabida no contexto socialista do chamado materialismo histórico que, assim, tentava apropriar-se meramente do lado místico da propagação de toda ideologia que vise doutrinar as massas populacionais. Marx já é uma página virada, mas a problemática existencial ainda não. “Nos diferentes monoteísmos” (o filósofo francês continua em nossa citação), “as pessoas são ligadas entre si, horizontalmente, por terem a sensação de estarem ligadas a Deus, verticalmente”. Estou ainda na página 58 de um livro (quê livro!) de 191 páginas. Comecei a leitura, preliminarmente refutando a idéia corrente de um Deus lá em cima tomando conta de todos os passos de todos os seres vivos da terra e também de todo o universo. Sou leigo em filosofia e em teologia. Sou um leitor das coisas da vida e do mundo. Sinto-me, mesmo assim, podado nas restrições intelectuais, propenso a preferir a fidelidade nos valores do que a fé dos mistérios. Deus existe, sim, é inegável. Mas não como rastreador dos passos de todos os seres do mundo, para avaliar e distribuir as venturas e desventuras, as bênçãos e castigos de conformidade com o merecimento de cada um. Isso (quando foge da alçada da conscientização individual) é prerrogativa da chamada classe dirigente (que às vezes dirige só a favor de si mesma) das sociedades que não se firmam num estágio de possível (utópica?) felicidade. Temos muitas páginas adiante, no livro; muitos achados e perdidos na vida. Prossigamos na busca.

quinta-feira, julho 17, 2008

O DIA DAS MÃES NA SERRA DAS PEROBAS

Primeiro veio John Ashbery arengar comigo na subida das vertentes. Ele urdia o poema que seria ele mesmo, o poeta, ou seja, o poema de forma despojada, falando de uma mulher ausente nele e na manhã: a triste mulher nervosa na janela de uma das ruas de Ermida dos Campos. Ela seria um poema de carne e osso, sem palavras, mas: isto seria possível? Sem palavras, todo feito de semblante e melodia – e o silêncio com o qual a mulher afasta o homem de sua poesia, e fica de longe, a namorar as árvores da rua. O cérebro comanda as articulações, esbarra nas reumas da prosa, chora de impotência. Aí ela entra para dentro da casa, não o quer mais a seu lado, assim inútil, supérfluo. - Ele quer apenas valer-se de mim, provocar-me? – Ela se pergunta. Perdida nos corredores da casa, ela se criva de dúvidas. No íntimo mais profundo reconhece que desejava ser apenas um poema e não um ser humano de reumas sufocado. Assim fico dispersivo nas entrelinhas. O erotismo é espelhado: o feio quer ser bonito para atrair o outro bonito e nas raízes narcísicas da idealização (diz Renato Mezan), arredonda a copa da genealogia giratória. A rivalidade é uma duplicidade. A ciência, ao clarear, elimina. Mas Ulisses desencanta os encantos, para encantar-se. Todo casamento dá errado, mas todo erro pode ser corrigido. Deus é feito de eus, como diz um professor. A formosura é a implosão do ego: yang:parte masculina da mulher: animus yin: parte feminina do homem: anima. O homossexualismo é a radicalização dos componentes acima. Não pode haver macho e fêmea, pois sois um em Jesus, dizia Boehme. Rilke roga a Deus que o faça hermafrodita. A família humana é criada por um modo intenso de amor e dá origem a um modo mais intenso de morte. Na fase oral da criança (incorporação simbólica), ela engole o mundo.E quanto à mulher: ela não tem explicação! Ela é quem eu conhecia antes de conhecê-la: nascemos um para o outro. Algum tempo depois a canção voltava do meio do caminho. Era triste assim de cabeça baixa. Seus lábios são macios, como são macios os seus lábios! Como eram macios os lábios de Anne Bancoft em 1957! Eu carregava seus beijos nos braços, só para beijá-los nos lábios úmidos. Ela tem os seios do tamanho do amor - e se tem umbigo, estou salvo! Quem puder mais engole o outro na quarta dimensão do amor. Depois veio Jill Hoffman, com as ondas do amor de seu olhar, os sonhos vivos no corpo móvel a dormir, a me pedir um endereço nas abstrações da lua. Ela disse que ouvia no sonho o grito, chamando-a. Ao ouvir o grito chorado, pulava da cama, ela disse: pulo da cama onde deixo o marido a dormir e com os modos e dons que Deus me deu, deixo o marido amável e surdo na cama quente, abro a porta do outro quarto - onde a esperança do encontro se realiza. É assim, que agarrado um ao outro, o novo casal se encontra: ele me chupa, me sorve, me esgota na escassa luz da madrugada. Sua boca voraz me esvazia, me enche, como é notório (como é bom de achar!). Assim ficamos um bom tempo, um ao lado do outro: eu a ver no rosto dele, transbordante as gotas de leite brilhando na escassa luz da madrugada... É ali e assim que sinto o corpo fluir e bocejar... Logo tornamos a dormir: ele sorrindo o inocente sorriso, eu sorrindo o inocente sorriso! Depois acordo, abençoada na cama quente, retorno à outra cama, o paraíso primitivo, no qual o meu amor foi um dia concebido. Volto para beneficiar-me de outro tipo de calor, abraçada ao corpo de outro homem! Jacob canta no Egito a seus filhos, José é o rebento de uma árvore fértil: o rebento de uma árvore fértil (junto de uma fonte), cujos ramos passam por cima do muro, para satisfazerem outra cidade. Agora suas pernas estão dobradas, como diz Breton, com os joelhos à altura dos seios, formando a orquídea, bandeira de sua canção. Mas a Mafalda, do Quino, bronqueia nos bons ares argentinos: - “por que siempre sopa, mama? Por que? Si nos queremos! Si vos sentis amor por mi! Y yo sinto amor por vós! Por que arrisesgarte a que naufrague nuestro romance?” E depois de escrever em toda casa “feliz primavera, mama”, ela diz: “uma de dos, mama: o vos dejás de hacer sopa o yo de escribir hipocresias!”. No sexto dia, tendo criado o firmamento com o sol e as estrelas e as fontes os rios o mar as montanhas, a terra inteira com seus verdes e maduros, os animais aquáticos, terrestres, aéreos, Ele viu que tudo isto era bom, que tudo isto era muito bom! Reviu os contornos e a extensão de cima em baixo sentiu que faltava alguma coisa no ar, na terra, na água: falta o ser que nele podia ser refletido... Então criou o homem à sua imagem e semelhança... E viu novamente que as coisas que tinha feito era boas, eram boas e muito boas! E fez a manhã e a tarde do sexto dia e no sétimo descansou, porque ninguém é de ferro e Ele era semelhante ao homem de carne e osso e espírito e alma. A descansar no sétimo dia, depois de inspirar no rosto do homem o sopro da vida, Ele pensou bem no que tinha feito: ainda faltava alguma coisa? No fundo, Ele sentiu pena da solidão humana, que iria redundar na esterilidade planetária. Então, o que fez? Criou a mulher do próprio homem (por isso é que se diz com muita justeza que o homem é a primeira mãe do mundo). Só assim Ele ficou feliz e realizado: acabava de criar a fecundidade planetária. Mais feliz ainda ficou quando viu que a cópia era melhor do que o original, mais bela e sensível, mais generosa e amável... Disso Ele nunca se arrependeu, pois a mulher é a nossa mãe de cada dia, pois nenhuma delas na história e na geografia jogou pedras nas caixas de marimbondos, não teve o nome maculado nos massacres e genocídios e holocaustos. Ela que mantém no seio a luz do mundo, não participou nem de longe da crucificação de Jesus Cristo, nem lidera qualquer comando vermelho do crime organizado. A ela hoje brindamos em homenagem agradecida: À NOSSA MÃE, SUA MELHOR SAÚDE! Como a ela pode ser imputada a culpa do pecado original? Ela tem a força moral acima da fraqueza social. Até mesmo uma das mais fragilizadas (Marlene Dietrich) consegue fragilizar homenzarrões (Jean Gabin, Orson Welles, John Wayne). A Marlene Dietrich, quem diria! Logo ela, que parecia mover-se numa moldura diáfana, envolvida num ar diferente, que respirava com dificuldade, e que imprimia nas feições distanciadas (enfatizadas, porém, pelos longos cabelos louros-avermelhados) o ar doentio e cativante de sua extrema formosura. Qualquer uma delas, seja nova ou não, bela ou feia, preta ou branca, pobre ou rica (existem mesmo estas distinções?), ao contracenar com os homens em qualquer palco da realidade, rouba os olhares da platéia, como a ruiva Greer Garson fazia na teatral Inglaterra de seu tempo. De tê-la criado assim como é, na peneira das ambigüidades instigantes, Deus nunca se arrependeu. Ela é a mãe nossa de cada dia, a namorada de nossas paixões, sempre a encontrar (como já dizia Balzac) as indulgências em seu coração para as tolices que inspira a nós, vassalos dela. Oba, oba! Estou a dizer e repetir-me: seja normal, não se envergonhe da delicadeza de certos momentos e da ternura dos inadiáveis instantes: só assim chegará, merecidamente, perto da mulher, atraindo-a. Nenhuma delas, na História e na Geografia, jogou pedras nas caixas de marimbondos, nem jamais teve o nome maculado no relato de massacres e genocídios e holocausto: ela que traz no seio a luz do mundo, não participou nem de longe da crucificação de Cristo nem lidera, hoje em dia, qualquer comando vermelho do crime organizado. Palmas para ela! A família é um feixe de afetos problemáticos ou é um feixe de problemas afetuosos? Todos brigam, aos beijos e abraços – e no final das contas o choro até que chega a parecer um canto muito alegre, não?

sábado, julho 12, 2008

O FILME DOS IRMÃOS COEN

No cáustico deserto texano a vilania mordaz do algoz vai à caça mortífera, ensangüentando a poeira do pedregulho. É um facínora por assim dizer ubíquo, inelutável e poderoso (o diabo em figura de gente?), dos que sabem fazer o bom ficar ruim e o ruim ficar pior? Bárbaro, fanático, niilista,, como diria o filósofo André Comte-Sponville. Nada o detém na prática da teoria negativa que assombra os caminhos circunstanciais, até onde a hediondez emplaca no deserto moral sua efígie terrorífica, estabelecendo ali o progressivo sortimento dos maus costumes. De tal maneira que a fera no homem fala mais alto, enquanto o sol chove no deserto os raios e trovões da mortandade serial. De tal maneira que amedronta até o cinéfilo inveterado, pois que a hediondez crestou de vez a vegetação da coragem, imobilizou de vez a piedade da educação moral, disseminou de vez a insânia da sangria desatada da tortura, do martírio, do que mata sem sepultar, a própria humanidade. Mas...: repare bem numa das cenas finais: a vítima não lança seu último olhar ao espectador, dizendo sem dizer, que há algo idêntico e talvez pior no meio de vocês aí, na platéia abismada? É assim mesmo que ele fala antes de exalar o último suspiro?

O TURBILHÃO ATMOSFÉRICO

Se você reparar bem vai notar que na solidão, o silêncio é muito barulhento. Infinitos grilos das lonjuras empilham seus arroubos uníssonos, perfuram as paredes de sua casa, adentram seus ouvidos passivos, gritam musicalmente na monotonia, na mesma laboriosa tonalidade das esferas, que rodeiam e alcançam as latitudes e longitudes na manhã estival da noite profunda que nos submerge e nos arrebata dos abismos às superfícies. Quando você desacorda da complascência do sono reparador, das neuroses cansativas do dia anterior, ainda fechado entre quatro paredes, deitado no relaxamento de si mesmo e dos outros, isolado no patamar da manhã dominical: você escuta o som das lonjuras nos ritmados ecos da ressonância universal, assim mesmo, de leve, o turbilhão incessante das esferas planetárias, a trocar sono exangue pela lucidez medíocre, ali mesmo no resguardo de nosso cantinho individual, no patamar da renovada manhã, de cada ninho residencial da humanidade ignorante das recônditas significações das sinfonias dos confins, assim unidas na mesma audição do mesmo recital mundial de tanta mansuetude inaproveitada.

JOAMIR E MIRAFÉLIA

Cada estrada é uma linha de demonstração. A lembrança de Mirafélia é a boa notícia. Se não há caminho assinalado, é nos ramos fechados que devo entrar e seguir. Se uma folha nova brilha e acena da árvore, é o sinal dela a chamar-me. Suas palavras são escassas e grandes como as dos livros de rezas, que cheiram a rosas imarcescíveis: mas apenas uma delas, dita ao acaso no instante apropriado, alimenta-me a semana inteira. De manhã as palavras sobem à laje da tapera, levadas pelo sol ruidoso e temporão; de noite elas descem carregadas de silêncio, descansadas dos atavios intemporais. A laje não apenas escorrega, também balança e roda, afunda aqui, submerge ali, igual uma nave avariada no mar bravio. O bom de tudo é um açude vulnerável, o ruim de tudo nem precisa se defender: ataca, ciclópico. O duelo sem trégua dos dois, é o que garante a vida no planeta? Com o sonho nas mãos no leve corpo a corpo, ela dança comigo no baile da Casa do Rosário. Ai vêm os afagos de seus haveres, a brisa da janela, o vento da porta, as estrelas dos olhares do céu, as belas canções encadeadas. As cores trocam de cores algumas vezes: quando os seios dela esbarram no meu peito, onde bate um coração aprisionado!

sexta-feira, julho 11, 2008

O TRICÔ DE INÊS BELÉM BARRETO

Homenagem de Osvaldo André de Mello – Divinópolis, fevereiro de 2004. 

Sapatinhos de lã 
A um recém-nascido. 
Jogo de carinho 
Feito de olhos abertos-fechados 
Para quem existe e não é visto. 
A sabedoria: urdir 
Um par de tais sapatos ponto a ponto 
Prontos como se fossem próteses. 
O visível mostra o lugar do invisível. 
A decisão de cada linha que conduz a cor. 
Malha adentro ao termo de um desenho. 
Pés quentes, cabeça fria. 
A invenção, a galope. 
O espírito cavalga o céu. 
Cada ponto é uma palavra 
De espanto que repousa no ar 
e espreita a laçada final. 
 “O arremate da obra”: 
Os sapatinhos de lã 
Pisem caminho de luz.

quinta-feira, julho 10, 2008

ESBOÇOS DO CONTEXTO

Freud e Jung e uma cantora portuguesa viajam comigo no carro voador, rumo ao infinito de nós mesmos. Eles dizem que os sonhos são produtos de conflitos pessoais e que são dotados de uma estrutura de conciliação entre a consciência e o inconsciente. Acrescentam que os sonhos contradizem os ditados da lógica, mas perfazem certa continuidade para trás e para diante, como o belo carro que não me deixa impregnar da angústia do tráfego, pois canta na ida e na volta as belezas da vida ativa. Se a velocidade é superior a do som, ouvimos ao inverso as palavras saídas dos lábios do interlocutor. Se a velocidade é superior à da luz, aí então o tempo muda de significação, a história torna-se retrospectiva: o apóstolo São Paulo aparece na estrada de Damasco antes de Jesus nas montanhas da Galiléia. Ao anoitecer a cantora resolve fazer amor com o automóvel, voa ao lado e ao longo dele, toda elegância e flexibilidade, assim delgada a bailar no ar, rindo na mais pura alegria, suas roupas fluorescentes nas esferas de outras estrelas também bailarinas, amantes e amáveis. Eram muitas horas da noite quando o Tomazinho chegou à casa do Otaviano Caseca. Bateu palmas do lado de fora até acordá-lo. - O que deseja com esse espalhafato no meio da noite? – O Caseca pergunta, com a lamparina acesa na mão e a raiva nos olhos. - Quero que vá à casa do Joaquim Pedro pedir a mão da filha dele em casamento. - Mas numa hora desta? Não pode esperar até amanhã? - Não posso esperar. É hoje, é agora. É hoje, é agora ou nunca! - Como assim? - Se não for hoje, que estou abrasado, amanhã não serve. Amanhã é outro dia, o carneiro perde a lã, vou mudar de assunto e cantar noutra freguesia. Cavalgava na poeira da chuva, lembrando de uma surra sofrida na infância e de uma cena de amor no paiol de milho. A imagem da Francisca (Francisca ou Lucinda? Lucinda ou Constância? Como seria hoje a beleza naquele tempo da juventude da irmã de meu trisavô paterno?) não me saía da cabeça, ela, esguia e consistente, a voltar do Desterro para sua casa nos Magos, a pé na estrada no meio das árvores, atravessando porteiras, quebra-corpos, pinguelas. Ela seguia, flexível e aromática, pelos caminhos da roça, para o céu de si mesma. Levava uma boa imagem de mim? Por que apenas flertamos o tempo todo e não namoramos um minuto sequer? Por que beijamos apenas na vontade e não nos abraços reais? Um bentivi a persegue, voando de árvore em árvore, cantando a melodia cerúlea das magnitudes inefáveis. Ao assim cantar, ele responde aos gritos de dor dos grilhões mais distantes, contemporizando-os? Ela agora pára na curva do caminho e hesita um pouco? Ela agora quer voltar de sua casa nos Magos, encaminhando-se na direção de minha casa no Lavapés? Vem pedir-me em casamento? Ah Francisca moderna, ah Lucinda ou Constância antiga: que pulo ágil de ano em ano através das décadas do século? Tenho que respirar bem fundo, abrir bem os olhos nublados. Ela está vindo e dentro de alguns instantes acenderá as luzes dos horizontes de minha casa perdida nas brenhas do Lavapés, acenderá minha vida com seus olhos apaixonantes. Agora as rodas deslizam em almofadas de ar. O automóvel de câmbio automático e controle eletrônico entra e sai na estratosfera dos países como se transitasse nos conhecidos municípios regionais. Sentimos a terra correr no espaço a 106.000 km. por hora e os átomos na corrente sanguínea a uma velocidade ainda maior. A viagem transige automaticamente de terrestre a sideral. Depois de subir ao altar das montanhas de Minas, de Jaime do Prado Gouveia, e tangenciar os baixadões de São Paulo e do Paraná, encostamos na estrela Aldebarã, onde à noite os olhos das pessoas são luminosos, com variações de claridade e de cor de acordo com as paixões de cada uma. Logo emparelhamos maciamente às estrelas duplas, aos sóis múltiplos, como se voássemos sem asas, como se nadássemos em duas lagoas ao mesmo, movidos pela vontade de chegar ontem ás regiões solenes de luz espiritual da primeira estrela do firmamento, de onde enfim poderemos desfrutar dos renovados paraísos da terra. E a palavra angústia, que acaba de chegar? Veio de onde? Der onde veio a palavra angústia? Da Estiva? Da Bemposta? Do Arraial Novo? Veio de onde não vem resposta? Meio-dia, as estrelas de fora (como os botões na barguilha da calça) velam minotauros na sombra da mangueira. O sal na camisa, o sol a soltar marimbondos no pasto. O regato erra o caminho do córrego, que erra o caminho do rio, que erra o caminho do mar. Tudo vai pro beleléu na região. O nosso é mesmo o pais da impunidade? Todos podem prevaricar? Não é melhor vadiar, então? A borboleta do tamanho de uma águia, a voar sobre as hastes espinhosas. O mundo dá muitas voltas. Numa delas o Destino pode te pegar com a calça nas mãos, desnudo. As mãos sem poros do lenhador são pedras que se atiram a esmo contra os nomes mais bonitos da biodiversidade dos campos e capoeiras. Se não fosse a dor da alma, não estaria chovendo uma chuva só minha: da alma na alma. Ah meu Deus do céu... Quê vontade de sair correndo! Depois de roubarem o milho da roça, os meninos, temerosos do castigo das mães, subiram pelo ar azul numa corda de bacalhau que um colibri levou a ponta, amarrando-a ao tronco de uma árvore lá em cima. As mães subiram atrás deles pela mesma corda, ávidas pelo justiçamento da malvadeza deles. Mas eles, nas grimpas dos páramos, vendo as mães subindo, determinadas no arroubo da represália, desamarraram a ponta da corda – e elas caíram todas numa só revoada aos vários abismos da terra, transformando-se no ato em aves, bichos e pessoas. E Deus lá do céu, presenciando a dupla maldade dos meninos, condenou-os a ficarem estatelados lá em cima, onde estavam, de cabeças para baixo, eternamente, na esfera do teto inferior do lado externo do céu, todos olhando para baixo, obrigados a verem toda a noite a reprodução da maldade que fizeram com suas mães. É assim que uma lenda indígena explica a existência das estrelas. O caminho mais curto das montanhas é o que medeia cimo a cimo, assim falava Zaratustra, de Friedrich Nietzsche. Quê semelhança temos com o cálice da rosa que treme porque oprime uma gota de orvalho? Lá está a pergunta dos deuses do antigo panteão, no livro que foi escrito para ser lido aos poucos, uma página de cada vez, num abrir e fechar respeitoso, religioso. Se assim não for causará comoção, enfarte do miocárdio, derrame cerebral, negligência sensorial. Do outro lado, descendo um pouco a montanha, somos um pouco Mani (maniqueísta, meu deus do céu?!), com o nosso incomparável sósia, o sizísio, o nosso anjo revelador, o altar-ego, uma sombra deteriorada de Jesus, e mesmo assim a iluminar a iluminar a iluminar. Passada mais uma refrega da incrível viagem, vem a bela monotonia que suaviza o rosto perverso. É preciso desancar a catatônica entropia do carisma carola, infligir o azougue na fantasia febril, operística, dos flasbacks compulsivos. Ninguém foge do amor, mas o amor não bafeja os medrosos. A tensão da cidade em cada um de seus impulsos, a boca torcida da loura platinada, que mais parece a cicatriz de uma ferida. Quem aí conseguiria burilar o falso magnetismo das berrantes telenovelas? Entre os mortos e feridos, quem sairá ileso? O que me oprime, dentro, no fundo? A insatisfação depois da saciedade? A culpa de crimes cometidos por outras pessoas? Sou às vezes uma outra pessoa? Quando é que vou me conhecer? Se um dia chegar a ser feliz, como farei para seguir vivendo? Só eu sou um erro na vida ou os outros apenasmente não confessam? Fulano de tal é errado porque é bom ou é bom porque é errado? Assim começa, perguntando, a pedagogia do comportamento, ou seja, a maldade tacitamente aceitada? Neste mundo de maldade e de ilusão (como lá diz o samba de Dorival Caymi), toda vez que alguém fala uma verdade, temos que enxugar a lágrima antes dela borbulhar nos olhos indefesos. Só os insensíveis não sofrem, porque jamais estarão em si mesmos, sozinhos. Porque nada sabem da crueldade e da ganância e da demência. Assim (na sensibilidade) as perguntas afloram nas veredas serpentinas, nas aventuras feéricas, nas jardinagens paisagísticas de Edgar Allan Poe, nos olhos espiritualmente cinzentos das amadas dele, Edgar Allan Poe.

quarta-feira, julho 09, 2008

PRIMITIVO E CRIADOR

Seus parentes (esposa, filhos, netos) contam as fases e estadias da família: os trabalhos pesados no Peniche; os maus bocados passados na Lajinha; os dias tão atabalhoados na Barra; os casos de sombração no Gravatá; e os do Caboclo Dágua na Cachoeira do Caixão; e as arengas com o Fumo Ruim no Rio de Janeiro. Enquanto ouço, presto atenção no pensamento sobre a magia criativa dele, que faz das tripas coração e de um toco de lenha uma canção. Ele se curva diante dos anos vividos na docilidade dos infortúnios da sorte, pouco importando com as subseqüentes represálias sofridas pelos benfeitos contra os malfeitos deste mundo desmundado. Puro como uma criança bem criada, indefeso como um velho solitário, artista ungido pelas alturas beneplácitas do Criador, conforme ele diz e repete (“sou um artista primitivo e criador”) à equipe de filmagem que vem testemunhar, mesmo em linhas gerais, como ele consegue expulsar os demônios do corpo, para não endoidecer, diariamente, o espírito libertino. Durante a filmagem dos exteriores no Sítio da Prata do Meio, o diretor Carlos Augusto Calil pediu-me para instigar a verve dele, GTO, na contação dos causos, para assim poder, naturalmente, gravar o pitoresco bestiário que na opinião de toda a equipe seria uma fusão de lembranças e invenções ao sabor do entusiástico falatório. Foi assim que, enquanto ela falava comigo, o Lauro Escorel vinha com a câmara lenta de baixo para cima, na terra arada do sítio, o gravador escondido no peito de cada um de nós. Ele começa falando do moço sacudido, ladino e maludo, chamado Juca do Gustavo, que tinha comprado as terras secas da Prata de Cima e queria comprar as mais úmidas da Prata de Baixo. Mas o dono destas, um tal de Belarmino Costa Larga, não queria vendê-las por nenhum dinheiro. Neste ponto ele falava de seu anterior conhecimento do lugar e desse tal de Juca do Gustavo, um ser pretérito e lendário, meio cafuso e descabriolado, um bruxo. O escultor transpirava, a pele queimada, intensamente escurecida no borralho das pelejas roceiras de sol a sol de sua vida custosa. Falava reverentemente, menosprezando seu próprio nome emblemático, o já famoso GTO dos sonhos e das artes, uma espécie de mago, um assombro de prodígios intemporais, o demiurgo das insatisfações e potestade dos preâmbulos, que já viveu incontáveis fases de nossa história-pátria e interpretou outras tantas da idade de nosso pobre e rico mundo, um obedecedor diurno dos sonhos noturnos. Ele sentou no toco de jacarandá, serrado a meio-metro do solo – e disse ao Calil, que manejava a máquina fotográfica: “Pode bater!” Fiquei preocupado com a impressão que a foto podia dar aos outros: de ser ele o responsável pelo corte da árvore em cujo toco sentava. Logo ele, criador de formas e conteúdos, uma espécie de ressuscitador de toda a flora devastada pelas siderurgias da cidade. Pedi que recontasse a estória do Juca do Gustavo, misturando-a ao viveiro de formas e conteúdos do santuário de sua oficina, onde conviviam nos baldrames e receptáculos, nas estantes e giraus e mesas os índios de bálsamos abismados na noite das antigas florestas, e os negros de caviúna esbordoados ao peso da tarde, e a nefasta ociosidade senhorial dos patrões em peroba-rosa, as mucamas e sinhazinhas em acertados cedros do líbano, as mandalas e oroboros em jatobás e sucupiras. A Mandala, bem lembrada! O círculo mágico dela, a totalidade dos componentes anímicos, a figuração da névoa cármica, os elementos dos mistérios mais íntimos e distantes. - O Juca era um limpa-trilhos, ninguém podia com ele nas panelas e pratos das refeições. Mas se estávamos capinando milho, ele chegava e logo esfarelava o mato da roça. A gente nem via o corpo dele a roçar o pasto, só os ramos tombando no capinzal, já murchos. Uma vez fomos picar lenha na Mata dos Coqueiros (isso quando as siderurgias estavam chegando, vorazes, na cidade) – e ele estraçalhou toda a capoeira antes do sol se pôr. Nem se via seu machado picando, apenas os paus partindo em tamanhos regulares e empilhando-se, a bem dizer, sozinhos. É uma estória delirante, pensei. Uma verbalização de seus dons inventivos, mais uma ajudazinha de Deus para expulsar os demônios de sua alma. Nele como no poeta Saint-John Perse (“O alfaiate pendura em velha árvore um traje novo de belíssimo veludo”), a lucidez passa pela mediação do sonho – a primogenitura onírica está em cada poema de madeira ou de palavra, partejando as unidades de uma população debruçada nas janelas do poente. - Quando o Juca do Gustavo foi para ao exército de São João e de lá para combater e morrer nos campos de batalha da Itália, a fazenda da Prata de Cima começou a cair aos pedaços. O que se fazia de dia era desfeito de noite. Eu mesmo, que já morava aqui na Prata do Meio, fiquei uma semana capinando o mesmo lugar na roça de arroz: o mato que cortava de dia, repegava de noite. E por um capricho do destino, a outra Fazenda, da Prata de Baixo, prosperava à luz dos olhos mais descrentes. Tinha chegado lá um moço bonito, engravatado, embotinado, trajando o terno de linho branco e a camisa de seda, propagando as maravilhas do progresso metropolitano, a exibir folhetos de lindas mulheres peladas, de granjas pré-fabricadas, de máquinas agrícolas, adubos químicos e sementes selecionadas. As cinco moças da casa, filhas do Belarmino Costa Larga apaixonaram-se por ele, num átimo. Duas eram magras e esguias, duas eram robustas e fornidas, só a mais velha era indeterminada, a transigir de feiosa a mandona. Mas depois de doutrinada pelo moço, também se abrandou e aformoseou. Cada uma partilhava o fervor dele, cumpria os ritos e os ciclos, paria religiosamente nas primaveras. Eu ouvia a contação, associando os lances da estória aos arabescos das peças escultóricas, os tocos de madeiras transformados em imagens de seres vivos que só faltavam falar convencionalmente, pois etnograficamente já falavam. Falavam da nostalgia pré-colombiana, da vontade de restaurar a grandeza messiânica e assim ofuscar a historicidade opressiva da raça sob o tacão dos invasores de olhos mortais. E falavam também da primitividade asiática, não estigmatizada pelo estupro da escravidão, mas igualmente portadora das feridas contraídas na peregrinação do deserto, no nomadismo judaico ao mesmo tempo infinito e circunscrito. - Muitos diziam que o moço chique da Prata de Baixo era a metamorfose do Juca do Gustavo, da Prata de Cima, que tinha morrido na guerra. Possuía idênticos poderes absolutos, agora em forma mental e não mais na energia corporal. Uma contra-ordem de baixo ou do alto e ele fazia as pilhas de lenha voarem por cima desta Prata do Meio, mesmo aqui neste alto sobre o qual estamos – e as pilhas passavam acima das casas e das moitas de bananeiras, e depois aterrissavam lá na Prata de Baixo, onde se tornavam árvores vivas, novamente. E voavam também o gado e a porcada, e o alambique de pinga e o moinho e o monjolo – e quando desciam na outra fazenda, mudavam de figuras: o gado leiteiro virava gado solteiro, a porcada virava um rebanho de ovelhas, o monjolo virava uma moenda, e o paiol um chiqueiro repletos de porcos gordos. De forma que, a rigor,  não se pode dizer que havia expropriação nem apropriação, apenas o fato inusitado: enquanto uma fazenda decaia, a outra prosperava. Enquanto ele contava, a tarde caia na terra arada, as andorinhas catavam as minhocas expostas ao ar livre e os gaviões aterrorizavam os cuidados das galinhas de pinto no terreiro da casa de pau-a-pique de uma de suas filhas. Eu ouvia o que ele dizia, e pensava na transformação da natureza, na chegada do modernismo nos sertões mineireiros: a dessacralização dos lugares emblemáticos, o desnudamente do panteísmo tão arraigado na cultua popular dos moradores. Milênios de hordas migratórias e de agricultores de subsistência não mudaram tanto a face do planeta como agora está fazendo a mão de ferro do desmatamento, da mecanização da lavoura e da monocultura. - De forma que o filme está chegando ao fim? – Ele disse ao Calil e ao Escorel, que chegavam onde estávamos. Que pena, ele acrescentou.”Não tinha chegado nem no meio da estória”.

domingo, julho 06, 2008

DEPOIS DE LER ATAS POEMAS (*)

Há um lugar no Rio de Janeiro, 
todo sábado em Ipanema, 
em que o livro é o autor e este é o poema. 

Todas as bibliotecas são vivas, 
e a mais é a de Plínio, o Moço: 
tem o livro e o seu autor, 
cada um de alma e osso. 

 E Homero vivo e Drummond 
e todo o cordel da humanidade. 
O livro de corpo inteiro, bom como a fala da liberdade. 
Ao Plínio Doyle louve-se a construção desse forte. 
Entre o mar e a montanha: os gigantes de todo porte. 

(*) O texto acima (uma tentativa de poema?), tirado do fundo da gaveta, foi por mim perpetrado quando mantinha a luminosa correspondência com o saudoso Carlos Drummond de Andrade, que era um dos participantes das sabatinas na famosa biblioteca de Plínio Doyle.

quinta-feira, julho 03, 2008

INTERLÚDIO (*)

Não custa nada ao narrador onisciente, nesta altura de nossa parte do imenso mundo criado por Deus e mantido em parceria com suas criaturas minerais, vegetais e animais, dar um pulo até à região da Vargem Grande, para ver o andamento das coisas de lá em suas múltiplas constatações, sob a batuta da dupla do barulho, o Balamão e o Sidônio, que como já vimos e agora vamos rever, não são flores que cheiram bem. Sabemos que a jaratataca se anuncia pelo fedor que desprende - e até penso que foi naquelas paragens que se originou o rifão: “quem tem cu tem medo”. A própria égua cabresteira e certeira nos pinotes e valente na marcha picada, estava, de tal modo afetada pelo fetichismo, que não podia ver uma poça dágua que prancheava nela todo o lado direito de seu corpanzil. E tem outro dito popular a prevenir que basta falar no Medonho, que ele aparece. As veias de meu corpo até esfriam, só de pensar. A verdade é que o Sidônio armava as arapucas contra os roceiros, com tal perícia e feitiçaria que só ele mesmo poderia desarmá-las. Difundia as crendices nas pessoas, propalava que o pântano que vinha dos Lameus estava infestado de maus fluidos e que o malefício ia fazer o barro sopitar e alagar toda a baixada. E para que todos, de boa fé, acreditassem em seus sofismas, ele ensaiava publicamente um exorcismo, com as palavras: “São Arcanjo, valei-me!” E orava ajoelhado e de mãos postas diante de um galho de lobeira. “Como o mar braveja, o vento venteja, e o céu estreleleja, assim rogo-vos que braveje, venteje e estrelelege, para que todo mal que acomete os moradores desta nesga de Vargem seja tirado, sem dor e com piedade”. Assim o terror estampava a face de cada uma das condoídas pessoas que percebiam que naquelas paragens contaminadas só o caminho de ir embora é que estava livre e desimpedido. O que restava era só golpe de foice no escuro? Os bigodes dele, como tutarana agarrada acima do lábio superior, suplicava um socorro; e seus cabelos, como palhas de arroz entornadas do chapéu de abas largas, ameaçavam, praguejavam. O resto do rosto perdeu os olhos e a boca e ganhou felpas agudas e ferinas. “Os inquisidores chegaram! Chegaram os estripadores!” – Ele gritava de dentro da furreca fantasma, ao lado do Balamão, que se segura num fio de teia de aranha e enterra a faca na sombra até esbarrar num grito desconhecido, de outra parte do mundo. 

 (*) Fragmento do romance inédito “O Dia do Casamento”, de Lázaro Barreto. INTERLÚDIO (*) I Não custa nada ao narrador onisciente, nesta altura de nossa parte do imenso mundo criado por Deus e mantido em parceria com suas criaturas minerais, vegetais e animais, dar um pulo até à região da Vargem Grande, para ver o andamento das coisas de lá em suas múltiplas constatações, sob a batuta da dupla do barulho, o Balamão e o Sidônio, que como já vimos e agora vamos rever, não são flores que cheiram bem. Sabemos que a jaratataca se anuncia pelo fedor que desprende - e até penso que foi naquelas paragens que se originou o rifão: “quem tem cu tem medo”. A própria égua cabresteira e certeira nos pinotes e valente na marcha picada, estava, de tal modo afetada pelo fetichismo, que não podia ver uma poça dágua que prancheava nela todo o lado direito de seu corpanzil. E tem outro dito popular a prevenir que basta falar no Medonho, que ele aparece. As veias de meu corpo até esfriam, só de pensar. A verdade é que o Sidônio armava as arapucas contra os roceiros, com tal perícia e feitiçaria que só ele mesmo poderia desarmá-las. Difundia as crendices nas pessoas, propalava que o pântano que vinha dos Lameus estava infestado de maus fluidos e que o malefício ia fazer o barro sopitar e alagar toda a baixada. E para que todos, de boa fé, acreditassem em seus sofismas, ele ensaiava publicamente um exorcismo, com as palavras: “São Arcanjo, valei-me!” E orava ajoelhado e de mãos postas diante de um galho de lobeira. “Como o mar braveja, o vento venteja, e o céu estreleleja, assim rogo-vos que braveje, venteje e estrelelege, para que todo mal que acomete os moradores desta nesga de Vargem seja tirado, sem dor e com piedade”. Assim o terror estampava a face de cada uma das condoídas pessoas que percebiam que naquelas paragens contaminadas só o caminho de ir embora é que estava livre e desimpedido. O que restava era só golpe de foice no escuro? Os bigodes dele, como tutarana agarrada acima do lábio superior, suplicava um socorro; e seus cabelos, como palhas de arroz entornadas do chapéu de abas largas, ameaçavam, praguejavam. O resto do rosto perdeu os olhos e a boca e ganhou felpas agudas e ferinas. “Os inquisidores chegaram! Chegaram os estripadores!” – Ele gritava de dentro da furreca fantasma, ao lado do Balamão, que se segura num fio de teia de aranha e enterra a faca na sombra até esbarrar num grito desconhecido, de outra parte do mundo. 

 (*) Fragmento do romance inédito “O Dia do Casamento”, de Lázaro Barreto.