Antigamente o relacionamento familiar era bem complicado. Por falta de outras opções (as pessoas de um modo geral não viviam tão em comum como hoje vivem) as moças e rapazes casavam-se na própria família, primos com primas, acontecendo até o caso de meu bisavô paterno contrair as renúpcias com a filha de uma irmã, mesmo precisando e conseguindo a autorização do Papa através de boa quantia em dinheiro e outra em celebrações de missas. Ele era Barreto e as duas esposas eram Tavares. As duas famílias amavam-se tanto, que mais quatro irmãos dele e uma irmã casaram-se com quatro irmãs e um irmão da primeira esposa. Isso no decorrer do século 19. Daí por diante o amor continuou e cresceu – e os barretos e os tavares continuam proliferando, no bom sentido, até os dias atuais. E meu objetivo aqui é narrar, mesmo por alto, as curiosas proezas dos dois Zequinhas: o Barreto e o Tavares. Eram primos entre si e casados com duas irmãs, que também eram primas em primeiro grau, de cada um deles. Seus nomes, pelos quais são até hoje lembradas: a Dona Cota e a Dona Naná. Para ser mais explícito:
o Zequinha Barreto (José Valentim Barreto – 1876-1940) contraiu as primeiras núpcias com Maria Arcângela de São José (Dona Cota – 1887-1930), ele filho de José de Oliveira Barreto e Maria Tereza de Jesus, e ela filha de Necésio José de Oliveira Barreto e Joaquina Rosa de São José. Por sua vez o Zequinha Tavares (José Pedro Tavares) contraiu as primeiras núpcias com Esmeraldina Cândida Tavares (Dona Naná), filha do mesmo Necésio José de Oliveira Barreto e Joaquina Rosa de São José, sendo que ele, o Zequinha, era filho de Ubaldina Cândida Barreto (1860), casada com José (Juca) Tavares, irmã do mesmo Necésio e do mesmo José, ambos filhos do Antônio José de Oliveira Barreto, o das renúpcias contraídas com a sobrinha. Tudo em casa, como se nota.
Vemos, pois, que os dois Zequinhas eram, além de primos, contemporâneos e concunhados e amigos. Estudaram o que na época podia ser considerado um curso superior ao nível dos de hoje, em São João Del Rei e em São Bento do Tamanduá (hoje Itapecerica). O Barreto era homeopata, (que entendia do latim da igreja católica, responsável que era pela manutenção e conservação da Igreja Paroquial de Nossa Senhora do Desterro, no Arraial do Desterro, além de saber bem o francês dos livros de homeopatia). Exercia ainda as funções de fazendeiro, comerciante, sub-delegado de segurança pública, músico (regente da Banda), Presidente do Clube Dramático e Tenente da Guarda Nacional. O outro Zequinha, o Tavares, era político, chefe dos papiatas (antiga UDN) de toda a região e depois ativista ferrenho do Integralismo de Plínio Salgado, além de ser Orador qualificado, eloqüente e escorreito, para toda e qualquer circunstância, músico (exímio tocador de clarineta) e fazendeiro abastado, o que o primo também era: a fazenda de um confrontava com a do outro, uma vindo do Lavapés e a outra da Laje da Pedreira. A nota a respeito de sua pessoa, no meu livro “Família Oliveira Barreto” diz na página 103: “Fazendeiro, comerciante, farmacêutico, político (líder integralista da região e músico. Sua imensa prole tomou muitos rumos geográficos e religiosos nos novos tempos. Para se ter uma idéia da prodigalidade genética: seu primeiro neto, Gaspar, tem hoje 70 anos e o último, Régis, tem apenas 15 anos de idade. E é interessante notar que seu catolicismo radical transigiu, familiarmente, nos dias atuais, através da numerosa descendência, para outra espécie de radicalismo religioso, o das chamadas igrejas evangélicas”.
Quanto às duas mulheres, ah, as duas mulheres! Na nota a respeito de dona Naná no livro citado, consta: “Casada com o primo (teve mais três irmãs – Maria Archângela, Rosa e Maria Joaquina – casadas igualmente com primos), deixou boas lembranças, quando faleceu. Dizem ter sido ótima atriz nas comédias e dramas encenados pelo clube Dramático do Desterro, nos primeiros anos do século 20. Dizem que quando a encenação estava frouxa e tediosa, a platéia gritava: “Manda a Naná! Manda a Naná!” Aí ela aparecia - e a ação retomava o fio dinâmico. Uma trineta dela, a Mayra Belém Tavares, revela-se nos dias de hoje uma atriz de sucesso nos palcos da cidade de Divinópolis”. Já a Dona Cota, para recompensar a esterilidade genital adotou informalmente (na época não existia uma lei a respeito da adoção) sete crianças carentes e ou órfãs, criando-as com atenção e carinho, da mais tenra infância até ao casamento de cada uma. Pessoa leal e obstinada e moralmente rigorosa: criou sete filhos das outras pessoas e recusou aceitar em sua casa e do marido uma filha natural dele, que teve de ser criada até atingir a idade escolar na Fazenda do Lavapés dos cunhados e primos Zequinha e dona Naná. Depois foi internada pelo pai num bom colégio de Cláudio, de onde saiu formada professora – e logo casou-se com um fazendeiro de Carmo da Mata, vindo a falecer quando ia completar cem anos de idade, em Belo Horizonte, deixando, por sua vez, uma bela família, muito bem encaminhada na sociedade da capital mineira e na cidade de Carmo da Mata.
Tenho a dizer - para encerrar estas notas e dar espaço ao belo texto de uma outra prima (a Tereza, filha do Lute), que mora com a família em Araxá – que a herança que José Valentim Barreto deixou para a família, foi toda saqueada pelos espertalhões da época no Arraial do Desterro, aproveitando o fato de minha mãe ser um tanto ingênua e analfabeta, e nós Devanir, Eu, Vitória e Maria José, contávamos, respectivamente, apenas 8, 6, 4 e 2 anos de idade. Do espólio de uma fazenda e um sítio e quatro casas ficou apenas duas das casas. Da maior e melhor parte não vimos nem o cheiro, como se diz. Mas depois de tanta aproximação mental e sentimental dos dois Zequinhas, resultou que a cativante figura humana do Tavares inspirou-me a criação de um dos personagens do romance inédito “Monólogo e Pranto”, enquanto que da figura saudosa e querida do Barreto captei a inspiração para criar o personagem central da peça teatral inédita “O Pão dos Anjos”. Gente fina, fina mesmo.
A FAZENDA DO LAVAPÉS - Tereza Maria de Jesus.
Esse era o nome da fazenda de meus avós paternos. Era uma linda propriedade, da qual me lembro como se fosse hoje. Era um casarão com enormes portas e janelas azuis. Na frente uma varanda onde, ao entardecer, reuniam a família, os amigos, empregados e outros que por ali passavam. Minha avó sempre pronta para servir a todos com cafezinho quente e gostosas quitandas.
O casal era querido por todos da redondeza. Levantavam cedo. Meu avô ia cuidar de seus afazeres enquanto minha avó cuidava da casa, venda, dos filhos e dos netos.
Tiveram sete filhos legítimos e criaram vários. Naquele tempo havia muita fartura. Não tínhamos notícias de fome e miséria. Os mais simples não tiveram acesso a uma sala de aula. Mesmo assim, conseguiam criar seus filhos trabalhando nas fazendas, apartando gado e cuidando da lavoura. Não se falava em “sem terra”. Ninguém falava de estresse, depressão, ansiedade, que são comuns no mundo atual.
Segundo contava meu pai, não havia diferença entre patrões e empregados no tocante à convivência.
A fazenda de meus avós, para os netos, era a visão do paraíso. Contávamos os dias para sair de férias.
Quando desembarcávamos no arraial já sabíamos que vovô havia preparado o carro de bois. Cobria-o com colchão de palha e colocava vários travesseiros de macela. Consigo até sentir novamente aquele cheiro. Como era bom! O carro saía cantando pelo caminho, com suas pesadas rodas. Minha avó nos esperava andando de um lado para outro, certificando-se que tudo estava de acordo para nos receber. Quando apeávamos, lá vinham eles, incansáveis, para nos saudar.
O almoço certamente estava pronto no grande fogão de lenha. A mesa era imensa, havia lugares para todos. Minha avó dificilmente se sentava, pois sempre chegava mais um e ela, com prazer, colocava mais pratos na mesa.
Nós, crianças, sentíamos pressa para comer e começar a andar naquele imenso pomar. Comíamos todas as frutas da época. Adorava pegar uma cestinha e ir colher ovos no galinheiro e dar de comer às galinhas. Na cidade não víamos nada igual. Pela manhã, meu pai nos levava para tomar leite fresquinho, espumado. Depois de alimentar, reuníamos com os primos e a brincadeira estava apenas começando.
Era tarefa difícil nos reunir para o almoço. Mais tarde íamos ver o monjolo trabalhar. Aí estava a maior preocupação de nossos pais e avós. Após tantas brincadeiras íamos até o pomar comer abacaxis. Sempre havia alguns no ponto. Era tudo muito gostoso. A única coisa que nos fazia reclamar é que o tempo na fazenda passava muito rápido. À tarde, após o jantar, reuníamos em volta de nossa avó para ouvir as mais lindas estórias que não se encontravam em nenhum livro desse mundo.
Hoje penso que se ela tivesse estudado teria sido uma grande escritora de livros infantis. Ouvíamos as estórias que vovó contava naquela sala mágica, com nossos olhinhos atentos sob a branda luz do lampião. Terminada a narrativa, vovó ordenava que fôssemos para cama. Ninguém desobedecia, pois sabíamos que no dia seguinte teríamos um longo dia pela frente. Tomávamos um lanche rápido e deitávamos felizes. Vovó ainda ia até nossas camas nos abençoar.
Crianças nas camas, os adultos se reuniam na varanda para um bom dedo de prosa... Meu avó José Pedro Tavares e minha avó Esmeraldina Cândida Tavares eram primos e se casaram cedo. Ele era conhecido como Zequinha e ela por Naná.
A exemplo de outros netos mais velhos, tive a sorte de nascer lá, pelas mãos de minha avó, que também era parteira.
Passados alguns anos, tudo mudou. Vovó Naná adoecera com um derrame cerebral que a confinou numa cadeira de rodas por longos nove anos, ou seja, até a sua morte.
A vida não poderia ser a mesma. Com a versátil vovó sem andar, vovô passou a dedicar sua vida a cuidar dela. Acabaram-se mudando para a cidade, sua saúde exigia cuidados.
A fazenda do Lava-pés foi vendida e hoje não existe mais. Acabaram-se o pomar, o casarão, o monjolo, o paiol, o quarto das bananas, os avós e meus pais, apenas existindo como uma recriação de minha mente, em forma de deleitosas lembranças.
Sei que foi o melhor tempo de nossas vidas. A querida Lava-pés era realmente um pedacinho do céu.
A foto abaixo, focalizando a presença dos músicos da Familia Oliveira Barreto é transcrita da página 50 do livro supra-citado. É de 1905, quando Marilândia ainda tinha o nome de Desterro. É um presente do saudoso e querido advogado Levi Beirigo Malaquias.
Vê-se da esquerda para a direita, ao fundo, Zequinha Tavares, José de Oliveira Barreto, Pedro Amaro Teixeira, Manoel José de Oliveira Barreto (Neca). E à frente: Zequinha Barreto, Antônio José de Oliveira Barreto (o Tonico Barreto), Elpidio Barreto, Bernardo José de Oliveira Barreto (o Nadinho) e o Francisco de Assis Teixeira, esposo de Idalina Arcângela Barreto, irmã do José, do Manoel, do Antônio e do Bernardo, constantes na mesma foto.