segunda-feira, junho 30, 2008

MÍMICA

A palavra, às vezes, tem o dom e o capricho de um pássaro que a gente procura no meio das árvores: canta seu mistério significativo sem dar o ar de sua graça física, escondendo-se no rol das folhas compactas, de galho em galho na interdição, deixando em dúvida o que quer dizer, no momento mais necessário. É mesmo assim que a palavra esconde o ar de sua graça: na densidade das trevas noturnas - e aí o bloqueio é ainda mais impertinente: as portas e janelas da escuridão são inamovíveis. O necessitado cansa de pelejar na insônia estéril! E nada da preciosa palavra dar o ar da graça de sua face luminosa. Então, munido de paciência, você se enrola no frio ou no calor da insônia, e espera que Deus acorde em sua amplidão e desperte os feixes e os flocos de luzes murmurantes e assim, religiosamente, o novo dia desabrocha de seus jardins, filtrando e publicando seu dicionário de infinitos vocábulos.

sexta-feira, junho 27, 2008

O MARAVILHOSO MUNDO DE DEUS

Da criteriosa, bonita e legível reportagem EM BUSCA DA ORIGEM DO UNIVERSO da Revista VEJA de 25/06/08 (55 páginas idoneamente trabalhadas por 31 profissionais habilitados), pinçamos alguns tópicos exemplares para o proveito dos leitores deste jornal, prevenindo-os que abrimos e fechamos aspas em todas as transcrições literais e que as partes sem aspas são minhas adaptações (reduções) de trechos mais amplos. - “A natureza sempre dá um jeito de nos surpreender e a ciência vai continuar fazendo novas perguntas, porque o homem é uma espécie curiosa” (André Parker, físico experimental). - Se não acontecesse “a súbita expansão inicial, o Big Bang (....) a terra teria se cozinhado na vizinhanças do Sol e hoje seria apenas uma pedra tórrida circulando o astro”. - Das moléculas orgânicas nascem o ritmo as cores, os sons, os sinais dinâmicos, ou seja, a Vida, pois “para Deus nada é impossível”. - Se o universo está se expandindo e resfriando é porque já foi pequeno e quente. “As partículas primordiais se fundiram, formando prótons e nêutrons (...) que depois se uniram para formar os primeiros núcleos atômicos (...), que unindo-se aos elétrons criaram os primeiros átomos (...). Assim a radiação cósmica se formou – e nasceram as estrelas, o sistema solar e os primeiros microrganismos, ou seja, a VIDA. - As estrelas são bolas de fogo: umas queimam a 3.000 graus e outras a 30.000 graus. Um fogo que não se extingue? Que não vira cinza? - Os planetas e as estrelas possuem um campo gravitacional que amarra seus gazes em seus arredores. - “Somos feitos dos mesmos elementos que deram origem às estrelas e aos demais corpos celestes. Os elementos químicos dos seres vivos (carbono, nitrogênio e oxigênio são sintetizados nas fornalhas nucleares no interior das estrelas”. - “Menos de 5% do universo é feito do tipo de matéria (átomo) que conhecemos e é visível aos nossos olhos”. - Se a terra parasse de girar, “o dia terreno teria a duração de um ano, metade com luz solar e metade no escuro”. O efeito estufa e a glaciação inviabilizariam a vida no planeta. - Se a lua fosse embora da atmosfera, morreríamos na alternância do frio e do calor. O sol e a lua são os nossos vizinhos benfeitores. - O que a ciência mais busca agora é o bóson de Higss, chamado no alto da página 96 de “PARTÍCULA DE DEUS”: um dos tijolos fundamentais da construção do cosmo, responsável pela existência de massa no universo. Sem essa partícula “não existiriam ar, água, terra nem, claro, seres vivos... Sem ela, os físicos vão precisar de outra teoria para explicar como Deus criou a mulher”. -“ O homem moderno surgiu no chamado período quaternário que se iniciou há, 1,7 milhão de anos atrás, depois dos cetáceos, dinossauros, répteis, os primeiros mamíferos, os insetos com asas, os anfíbios e os insetos, os primeiros invertebrados, os vertebrados, os moluscos e artrópodes e estromatólitos”. Os cientistas modernos mais credenciados colocam a criação do universo num momento único, o Big Bang, que “consistiu na súbita expansão de uma única partícula”(...) Este Big Bang, do qual temos conhecimento há poucas décadas, pode muito bem ser descrito pela primeira frase do Gênesis: “NO PRINCÍPIO DEUS CRIOU O CÉU E A TERRA”. O que Deus fazia antes de criar o céu e a terra? “Não fazia nada”, assegura Santo Agostinho, no século IV de nossa era. Não fazia nada porque não existiam o espaço nem o tempo. Einstein afirma que “as coisas não ocorrem sem uma causa” – e o pensamento religioso prega que “a causa de qualquer acontecimento ou fenômeno pode ser, simplesmente, a vontade divina”. Então, pois: “no princípio era a Partícula. Essa Partícula era Deus”. Bem dito, muito bendito. ADENDO. Enquanto os cientistas, teólogo e filósofos estudam e ensinam as origens, as atualidades e o futuro da vida e do universo, constata-se (ainda no mesmo número da revista VEJA, em criterioso artigo de J.R. Guzzo que “cerca de 20% de todos os integrantes do congresso nacional estão envolvidos em processos criminais; há, neste momento, 281 ações penais contra 81 senadores e 513 deputados federais. (...) O presidiário Fernandinho Beira-Mar deve lamentar amargamente, de sua cela na penitenciária ter errado de profissão: se tivesse entrado para a política, hoje estaria com a vida que pediu a Deus”. É o Diabo, meu Deus, não é? O político brasileiro (segundo o conceito do cineasta David Mamet, explicando (ainda na referida Revista) as semelhanças comportamentais de John Kennedy e George Bush), não consegue camuflar sua ambição de riqueza material a não ser fazendo pactos pessoais com o próprio Diabo. Quê quiabo, heim...? Mais vale o rifão ao mesmo tempo científico e popular a dizer que “O mundo é grande e Deus é maior”. E também, um outro, que a propósito ocorreu-me: “Quem deve a Deus paga ao Diabo”. Pagará mesmo ou levará a justiça na conversa, confiando na brasileira e folclórica impunidade? Cartas para a redação.

segunda-feira, junho 23, 2008

POESIA E POLÍTICA EM DIVINÓPOLIS

Não sou um resenhista contumaz porque esta não é a minha ilha intelectual. Minha ilha desdobra-se territorialmente nos caminhos e descaminhos da indefinição proposital – como o pássaro que prefere aspirar e respirar muitas espécies vegetais em vez de fixar-se em apenas uma ou duas. Transigindo, mesmo canhestramente, nos ramos da pesquisa e da criatividade, tento captar e exprimir os passos mais significativos do paralelismo histórico do notável confronto entre a Piedade (Poesia) e a Violência (Política) nas mais explícitas relações humanas ao longo da história da civilização. Em Divinópolis, na minha (questionável?) opinião, o exercício cultural da Poesia supera em quantidade e qualidade o da Política. Numa pesquisa sociológica nas últimas décadas do século passado, cheguei a levantar a existência na cidade de cerca de 50 escritores, publicando seus maduros e verdes textos em prosa e verso. Se não batiam os políticos em (em atividade na mesma época) em quantidade, venciam pelo menos em qualidade. E essa evidência se mantém ao longo do tempo. Envolvido no árduo trabalho de revisar e digitar meus livros inéditos, não consigo identificar nem acompanhar a marcha criativa dos atuais artistas e escritores da cidade, experiência que o Professor, Doutor e Escritor Pedro Pires Bessa, está desenvolvendo com muita competência e rigor. Se contei 50 escritores militantes (não no impiedoso e arrivista sentido petista, é claro) naquela época, hoje a quantidade deve ter dobrado, em ambas as atividades. Mas persistindo na histórica contraposição comportamental da Piedade (Poesia) versus Violência (Política), fica evidenciado que o resultado amplamente benéfico, socialmente falando, é o Poético (que, se não faz bem, mal também não faz), ficando com o Político o lado pernicioso, uma vez que não fazendo o Bem, só pode fazer o Mal à vida e ao mundo. Sei que o assunto é polêmico e que pode haver divergência – mas que me perdoe o leitor, mas a opinião é pessoal, contraída ainda em minha já longínqua juventude. Disponho aqui, diante de mim, da exemplaridade do trabalho intelectual dos ativistas literários e os últimos livros publicados na cidade, que prazerosamente relaciono, em linhas gerais: 1 – O trabalho profícuo e incansável de Pedro Pires Bessa, não só escrevendo como produzindo textos de expressão e de divulgação da riqueza cultural da cidade. 2 – O mesmo podemos dizer do trabalho de Mercemiro de Oliveira na editoria da revista da Academia Divinopolitana de Letras e também no pronto-socorro que presta aos novos autores na área gramatical e editorial. 3 – Igualmente temos que ressaltar o trabalho também objetivo, coerente e criativo de Carlos Antônio Lopes Corrêa, junto às novas gerações de artistas e de escritores da cidade. Paciência, boa vontade e competência não lhe têm faltado, ao longo do tempo. 4 – O mesmo podemos dizer de Marlene Moreira, autora da mais bela e veraz poesia, agora de braços abertos acolhendo e divulgando objetivamente o trabalho dos velhos (?) e novos (!) autores divinopolitanos nas prestigiosas páginas deste MAGAZINE. 5 – Citamos, também, a “Autobiografia do PROFESSOR LARA, na qual ele reproduza os passos de sua vitoriosa jornada no campo da Pedagogia. 6 – E também o belo livro “DR. SEBASTIÃO, O MÉDICO DO POVO”, do incansável pesquisador Mauro Corgozinho Raposo, no qual ele dá ênfase e prioridade ao lado humano, hábil e generoso de um verdadeiro apóstolo da medicina mais criteriosa, beneficente e altamente científica. Aplaudimos essa opção do Mauro, reconhecendo (de viva participação) a importância medicinal do Dr. Sebastião, acima de sua importância meramente política. 7 – É sempre com renovado prazer que abrimos cada novo livro do teatrólogo e poeta Antônio D. Franco, agora com a peça em livro “FANTASMAS – Uma Comédia do Outro Mundo”. Notamos que felizmente (e finalmente) o talentoso autor está desengavetando seus briosos originais e brindando-nos com os frutos de sua talentosa perspicácia, dando plena vazão à sua espontânea e profunda visão criativa, que não visa exibir erudição nem auto-ajudar o leitor-espectador; o que faz é o que deve ser feito pelo verdadeiro portador de talento e sensibilidade: iluminar o que, na obscuridade, está prenhe de veracidade e beleza. ADENDO: A violência política ataca novamente. No Brasil do Lula, segundo Reinaldo Azevedo (VEJA 18/06/08) as ONGs são “instrumentos de terceirização do governo: de 1999 a 2007 sairam do orçamento da União a cifra corrigida de 50 bilhões de reais – só no ano passado 7.670 entidades receberam essa “ajuda de custo” (?)... “Centrais sindicais, sindicatos de empregados e de patrões, sindicalistas, jornalistas, políticos, artistas, mulheres, maridos e ex-cônjuges de toda essa gente, empresas, igrejas, movimentos sociais, partidos” – todos levam grana do governo! De forma que “as ONGs passaram a ser ONGGs, ou seja, Organizações Não Governamentais, Governamentais!”

domingo, junho 22, 2008

DUAS, TRÊS AQUARELAS

1 - A Fruta de Jacarandá. Já vai longe o tempo, na Picada de Goiás, em que os bandeirantes e os garimpeiros levavam para os filhos os doces, as doces frutas de jacarandá. Também nos primórdios do século os campos eram pródigos e belos - os adultos ainda diziam, ao sair de casa: “Pitangas? Goiabas? Mamacadelas?” E as crianças da casa respondiam: “Queremos as frutas de jacarandá!”. Hoje o que impera é a lei da corrupção dos inquisidores de pássaros nos porões palacianos, dos caçadores de cabeças nos campos e nas capoeiras. E não há cristão que agüenta tanta violência do diabo a quatro nos dias e nas noites, as ciladas nas esquinas e nos escritórios, e mesmo a falta do lobo e da onça no capão que rodeava a fontinha de nossa infância. 

2 - Os Três Nomes do Gato (*). Dar nome aos gatos não é tarefa fácil nem fútil. Muitas vezes quando digo que o gato deve ter TRÊS NOMES DIFERENTES, olham-me de novo, julgam-me biruta. Mas assim é, por mais que estranhem e gozem. Primeiro o nome corrente, de uso da família, que pode ser Poetinha, Alípio ou Conceição. Depois o escolhido de pessoas refinadas (extravagantes ou mesmo sobriamente galantes), como Menelau, Polonaise ou Pixinguinha. Por último o mais íntimo e solitário, que ele mais necessita para manter o orgulho e esticar o bigode, enrodilhar-se na cadeira ou pular o muro como num vôo, e que pode ser Diadorim, Caracóia ou Ana Lívia Plurabelle, que nenhum outro gato deste mundo ostenta. Mas além desses e acima de tudo e de todos há um nome especial a preferir e esse ninguém sabe ou saberá. É o nome que nenhuma pesquisa humana pode descobrir e que só o próprio gato sabe, mas que nunca confessará a ninguém. Assim, se ver um gato em profunda meditação, os olhos abertos mas cegos, as unhas em inocente repouso, a razão é sempre a mesma: sua mente está ocupada na contemplação de seu profundo e inescrutável e singular NOME. 
(*) Paráfrase de um poema de T. S. Elliot. 

 3 – O Retorno do Oprimido. Quando voltei ao arraial das metáforas, a névoa doía um tanto nas lombadas e outro tanto no passivo coração apertado (a dor de dentro a responder à de fora). A angústia capitulava toda a perspectiva. Por que agora? Não já paguei o que devia? O carro derrapou numa das curvas, cantou nos pneus, calibrados, no vazio. A rua íngreme e bêbada já me levava ao alto dos morros e das árvores. As casas olhavam (janelas abertas para dentro e para fora), moradias da paixão, da anistia e da tocaia. O parabrisa filtrava o diagrama, rompia o calçamento, adentrava a felicidade (essa coisa súbita e regressiva). O contexto, lado externo dos sentidos, vinha mover-me os lábios no pensamento do trecho súbito e hostil, hirto e frio (o que vem sem ser chamado, pensei, silencia na alma o esforço da alegria, rasura o esforço da roça sazonada). De novo o sol a brilhar na chuva. A casa chega bem perto do carro (metade estranha, metade familiar): as flores de fora, as seivas de dentro (o que passou dá vida ao que vai passar? O que está lá dentro, no fundo, atende ao chamado do que está aqui fora?). No galho decepado da velha magnólia, o sabiá ainda canta, apesar de golpeado.

CONVERSA NA VENDA DO ARRAIAL II

“Para os matutos, todos os caminhos dão na venda” – Graciliano Ramos. O cenário é o do nosso velho arraial de alguns anos atrás, então tido e havido como um lugar de encrencas, mas que hoje a mansuetude dos comportamentos populares é sua tônica: só encontra briga quem muito procurar. O sol do meio-dia faz o caminhante pisar na cabeça da própria sombra, e mesmo assim os roceiros chegam das quinze bandas, pois o dia é dia santo de guarda: uns a pé, outros a cavalo, uns descalços, outros de botinas ou alpercatas, uns entram primeiramente na igreja, outros adentram diretamente na Venda do Toniquinho, onde compram as coisas, bebem a pinga e proseiam na linguagem dos lugares-comuns de suas circunstâncias. Chegar ali é fácil e participar da roda também é; o difícil é sair e na saída sentir o ardume nas orelhas, primeiro sinal de que falam cobras e lagartos em suas costas. Eles chegam, aboletam no balcão de madeira e nos sacos de mantimentos, empilhados do lado de fora do balcão, de propósito para servirem de assento e recosto. Eles enchem as capangas de cereais, sal, rapaduras, querosene e macarrão. São conhecidos por suas ocupações, participam da conversação geral de cada instante na linguagem salpicada de ditos populares, uma técnica falatória que economiza o palavrório e abrange uma roda maior de conviventes da mesma empreitada difícil e assumida do homem rural de nossos pequenos sertões. O Desocupado, quando chega, chama atenção. Desocupado (a todos): Se estão a falar da vida dos outros, podem falar da minha, que é um livro aberto, com todas as folhas em branco. Vaqueiro: Vem não, cabeça de leitão. Melhor do que falar dos outros é falar das mulheres dos outros. Desocupado: estão falando da minha? Já repararam que depois que arrumou os dentes e comprou roupa nova, ficou mais bonita? Catireiro (maledicente): Na dispensa de sua casa não falta nada, né? Desocupado (levando a ofensa na brincadeira): E na sua, falta alguma coisa? (olha os outros) e na de vocês? Na minha não falta nada. (Com a cara mais lambida) Alguém perguntou se sei o preço do quilo de toucinho? ...Não sei não... Eu bem que chamei você para terem uma mulher enfeitando a casa...(sai, hipocritamente rindo). Seleiro: Esse aí não tem um pingo de vergonha na cara. Catireiro: Mas o que ele falou é a pura verdade. A mulher dele dá bem uma meia-sola. Tem um traseiro que mal passa nessa porta: um torresmão! Seleiro: Mas não é do seu bico, já tem boi na linha. E sabem quem é? Adivinhou quem pensou ser o Caetaninho da Maleita: ô cara inserido, está sempre na moita, desferindo suas investidas, com a cabeleira englostorada e o eterno paletó de jaquetão. Vaqueiro:O Zecapião já terminou o amansamento naquela área? Seleiro: Aquele (você disse bem) vai na frente chupando as laranjas e comendo as mangas. Só deixa as cascas e os caroço para os outros. Ferreiro: Conheço esse Zecapião desde o tempo do onça. Nunca teve eira nem beira, coitado. Nasceu ali nos espinhos das Restingas. Não sei onde tirou esse dom de agradar às mulheres. Vaqueiro: É só ele passar e elas ficam rindo à toa. Ferreiro: E não passa de um sujeitinho atarracado, de conversa mole. Seleiro: Mas a cada dia está montado num animal mais raçudo e bonito, todo garboso. É tudo dos outros, dele mesmo só possui aquela eguinha báia, estropiada. Mas as mulheres só vêem a empáfia, o lenço no pescoço, o chapéu de feltro, as botas empolainadas, os dentes de ouro ou de cobre, sei lá. Lenhador: Uma vez ele engraçou com a minha patroa – e eu mandei ele chispar na poeira dos caminhos. Carreiro: De vez em quando ele dá com os burros nágua. O Juca Pifão, lá da estiva, chegou a agarrar a garganta dele e aí ele arriou a calça e pediu “pelo amor de Deus, seu Juca, não faça isso comigo, que tenho filhos para tratar. Sei que estou errado, mas peço perdão de mãos postas, se quiser!” Capinador: É um semquefazer da pior espécie, acho até que tem partes com o demo, com aquele jeito cretino de boa praça. Lenhador: Você foi em cima da pinta, como suas palavras. Ele deve ter partes com o Dito Cujo, pois monta no burro mais brabo da tropa do Titão e sai na maior maciota, o burro fica tão manso de repente, que se coçar nele, ele até deita. Vendeiro: Vocês ficam aí a falar mal dele. Empombado ele é, não descreio, mas fiquem sabendo de uma coisa: ele anda comendo outra dona, muito conhecida, além da mulher do Pacau, que é do conhecimento de Deus e de todo mundo. Vaqueiro: Quero morrer seu amigo, viu?! Mas você põe a pulga atrás de nossas orelhas, ao contar o milagre sem dar o nome do santo, ou melhor, da santa. Catireiro: Isso mesmo! Conta quem é. Quem sabe assim a gente pode ir queimar um pouco de incenso no altar dela? Lenhador: Quem ajoelha tem que rezar. Pronuncia ao menos a primeira letra do nome dela. Vendeiro: Sou lá algum trouxa? Lenhador: O que perde em dizer? Vendeiro: Perco o freguês. E sabe que quanto mais mulheres ele tem mais fregueses eu passo a ter? A cadernetinha está ali, às ordens dele. Lenhador: O marido da tal está ente nós aqui, né? Vou andar daqui pra lá e você vai dizendo quando estou frio e quando estou quente. Combinado? Vendeiro: É peta insistir. Bato na boca pelo que falei. Em boca fechada não entra mosquito e eu, desavisado, abri a minha, que torno a fechar. Roçador: Eu também antipatizo com semelhante pessoa. Ele não vale o feijão que come. Vaqueiro: Ele acha que é melhor que os outros só porque casou com a filha do Calixto. Só por isso pensa que é o tal. Em si mesmo não tem eira nem beira. Carreiro: De minha parte não ponho a mão no fogo pela fidelidade da mulher dele. Não ponho mesmo! Ela até já deu bola pra mim num pagode lá nos Vieiras, enquanto ele tocava sanfona. Depois é que fiquei sabendo que ela deu, na mesma noite, prum fazendeiro do Fundão, nos cômodos dos fundos da casa do pagode. Banquei o trouxa e perdi um quinhão, né? Vaqueiro: Mas você, heim? Tenho dito que quero morrer seu amigo. Carpinteiro (chegando): Ó vocês aí, que nunca me deram nada nem intenção tem de me dar. Vaqueiro (debochando): O que é seu está bem guardado aqui (faz um gesto). Carpinteiro (debochando): banana verde não se dá, soca naquele lugar pra madurar. Vendeiro (atendendo ao Capinador): Enquanto vem com o milho, vou com o fubá. Capinador: Quando você morrer, vão dizer caboucubão tava ali. Vendeiro (irônico): Falar o que vem à boca é fácil. Difícil é falar para certos fregueses aquela lorota de quem não deve não teme ou não treme. Capinador (entendendo a indireta): Nunca fintei ninguém nem intenção tenho de fintar. O que lhe devo, senhor Toniquinho, está dependendo do Afonsinho lá da Laje me pagar o que me deve. O trabalho de duas semanas! Vendeiro: Sendo assim podemos tirar os cavalinhos da chuva. Aquele tráia da Laje não paga nem fogo na roupa. Catireiro: O Toniquinho aí é danado. Bate na cangalha de um burro para a tropa toda entender. Vaqueiro: Olha só quem fala! A galinha que canta é a que bota. Catireiro: O que eu lhe devo? Vaqueiro: deve a meu pai, deve a meu irmão. Não me deve porque não sou bobo. Catireiro: Ah, isso são outros quinhentos. Vaqueiro: Quem toma a carapuça é porque lhe assenta. Você não passa de um passador de manta nos incautos. Catireiro (tomba o chapéu em cima dos olhos, deitado na pilha de sacos): Se está com raiva, tira a calça e pisa nela. Não custa nada. Vaqueiro (aos outros): O que faço com um tráia desses? Não agüenta nem uma gata pro rabo. Catireiro: briga foi feita para os cachorros.... Vendeiro: Vocês nunca combinaram. Por que estão brigando agora? Ferreiro (mudando de assunto): Ninguém me tira um nome que tenho aqui na cabeça. E juro que não vou daqui enquanto o Toniquinho não der ao menos uma dica do nome da mulher que o Zecapião está rosetando. Vendeiro: Ela é de meia-altura, tem os cabelos anelados e os olhos castanhos. Carreio (suspira): A minha então não é. A minha não tem os cabelos anelados. Capinador: Pois a minha tem, mas a do Roçador ali também tem e a do... (receia continuar falando). Lenhador: A minha é mais alta do que baixa. Ferreiro: A minha não é, pois não dou trégua. Canta: “Quem tem mulher bonita/ traga-a presa na corrente./ Eu também já tive a minha? e o jacaré levou nos dentes”. Retireiro: A minha não é boba, sabe o marido que tem. Encho a cara dela de balas de fogo. Lenhador: E na cara do corneador? Nem um tapinha? Retireiro (sobressaltado): O que está insinuando? Acha que é a minha mulher que está na berlinda? Lenhador: Eu de nada sei. Quem sabe de tudo é o Toniquinho aí, que é igual um padre. Todo mundo conta as coisas pra ele. Vaqueiro: A minha mulher sempre teve os cabelos compridos, quase batendo nos joelhos. Carreiro: Depois de cobrir as “partes”, claro, Vaqueiro; Ah vai amolar o boi, sô! Mas, como ia dizendo, foi uma sirigaita lá em casa e comprou a cabeleira dela, para fazer perucas para as damas da cidade. Depois disso é que ela fez o tal de “permanente”, contra a minha vontade. Catireiro: E contra a sua vontade, ela... Ah, fica bobo na praça que o jacaré te abraça. Vaqueiro (depois de virar o copo de pinga): estava falando com o dono dos porcos e não com a porcada (o Catireiro faz menção de levantar do saco de arroz em casca, onde está deitado, mas apenas inclina um pouco). Vendeiro: Vocês nunca combinaram... Fazendeiro (chegando)|: Vocês sentam em cima dos próprios rabos para falarem mal do rabo dos outros, não é, cambada? Ferreiro: estamos a falar das mulheres que estão dando. Fazendeiro: Todas as casadas estão dando para os respectivos maridos, ora essa. Ferreiro: Algumas são como pés de chuchu: trepam no muro e vão dar pro vizinho. Seleiro (gozando): Fala de experiência própria? Ferreiro (sem levar a mal): Epa, saltei de banda. O compadre aí sabe que não malho em ferro frio, sabe que em casa de ferreiro o espeto é de pau. Não sabe? Lenhador: Eu não sou daqui. Sou lá do brejo. Estou aqui é enxugando. Mas já ouvi dizer que no coração das mulheres daqui sempre cabe mais um. Fazendeiro: Mas não se pode generalizar. Ferreiro (maledicente): O Zecapião escolhe as freguesas é nas roças, aquelas cujos maridos ficam o dia todo fora, longe, no trabalho pesado, Lenhador: O que é da onça o sô lobo não come. Capitalista (chegando): Como é que é? Carreiro: Mata o homem e deixa a mulher. Capitalista (rindo): mulher e vinho fazem errar o caminho. Seleiro: Bem fiz eu, que sou feio e tenho a boca meio-torta, ao casar com a mulher feia e de boca meio-torta. Roçador: A minha também é feia de fazer dó. Não é mais feia porque é uma só. Fazendeiro: É como se lá diz: não há maior sossego do que mulher feia em casa, cavalo capão e horta de couve embaixo do rego. Retireiro: Mas é por causa de uma cara feia que a gente às vezes perde uma bela bunda. Roçador (sentindo-se ofendido, aos outros): Estamos falando na sala, a conversa ainda não chegou à cozinha. Ambrosina (chegando, ao Vendeiro): Queria duas rapaduras. Vendeiro (gozador): Queria... Não quer mais? Ambrosina: Faz hora não, seu Toniquinho. Está pensando que minha cara é relógio? Vendeiro: Entra lá no depósito e tira que eu anoto aqui na caderneta (a mulher entra e depois sái, com a mercadoria no samburá). Voz da Mulher do Vendeiro (no outro cômodo): Está cego, Tonho? Ela disse que ia pegar duas rapaduras e pegou três. Vendeiro: Faz mal não, Judite. Assentei quatro. Catireiro: Esse aí tem o olho limpo, conserta relógio no fundo dágua. Depois eu é que levo a fama de passador de mantas. Vendeiro:Você?! Te conheço desde o outro carnaval. Arranca os olhos dos outros e ainda lambe os buracos (o Capitalista sai). Catireiro (referindo-se ao Capitalista): esse aí é o assemelhado do Zecapião. Depois eu é que sou o comedor de mulheres do Arraial. Vaqueiro: Esqueci de perguntar a ele quanto está cobrando de juros, agora. Catireiro: Se cair na malha dele, está perdido. Ele não é pior porque é um só. Feito uma cobra caninana com os botes que dá. Em compensação tem uma mulher de se tirar o chapéu. Vale mais do que qualquer uma das nossas. Ferreiro: Epa, alto lá! Você venderia a própria mãe, que dirá a mulher. Não fale pelos outros, viu?! Seleiro: Vou dando o fora, antes que um engula o outro. Que Deus não me tenha por testemunha (sai). Catireiro (rindo): Em minha casa tudo está à venda, sempre! Faço até um leilão: quanto me dão por minha alma? Quanto dão pro meu rabo? Lenhador: Dou cinco paus por sua mulher... Catireiro: Cinco paus? Você não tem nem um para remédio. Lenhador: Dou cinco mangos. Catireiro: Ah sô, vai ver se estou lá na esquina, vai. Capinador: Esse negócio de mulher de um dar para outro ainda vai dar muito pano pra manga, muito pó pra cheirar, ah, isso vai. Ferreiro: Eu sempre digo que mulher casada cheira a defunto. Carreiro: Olha só quem está falando. Cavalo inteiro mandou lembrança. Ferreiro: Olha só quem está reclamando. O que você pede chorando que não lhe dou rindo? Carreiro: E aquela desculpa esfarrapada de pescar no Fundão? Lenhador (interferindo): Ah, sô, ele está mais para lá do que para cá, não agüenta uma gata pelo rabo. Mais um tempo e estará chamando urubu de meu louro. Ferreiro: Quem fala de mim tem paixão. Mas na verdade você tem razão. Ultimamente não pego nem resfriado. Vendeiro: O pior do avanço da idade é que a gente continua a desejar a mulher do próximo – e ela não deseja mais a gente. Roçador (quebrando cabeça ao conferir as contas na caderneta): difícil agora é provar que pulga não é elefante. Vendeiro: É o mesmo que tirar o papo sem ofender o pescoço. Se não confia na minha escrita é só comprar à vista. Ferreiro (saindo, ao Lenhador): Você sabe com quanto paus se faz uma canoa? Escreveu e não leu, o pau comeu! Lenhador: Êta ferro, heim? Catireiro (ao Lenhador): É verdade que quanto maior é o pau, mais bonito é o tombo? Lenhador: Você não sabe em que mato está lenhando... Catireiro: Sei muito bem. Qualquer negócio comigo depende da volta. Você sabe que a casca é que engrossa o pau, não? Lenhador: Por que não vai tomar banho na caixa de fósforo? Está pensando que comigo tudo é várzea? Vendeiro: Vocês dois aí nesse lenga-lenga. Quem puder mais que engula o outro, mas lá fora. Aqui dentro não. Lenhador (ainda ao Catireiro): deixa estar, jacaré, que a lagoa vai secar. Você tem o olho maior que o bucho. Mas que tenha cuidado. Não é só Deus que mata não. Catireiro (preocupado): Já cansei de dizer que se um dia mexi com sua mulher, foi por engano. Pensei que era outra mulher. Mas tenho que ficar dando explicação a vida inteira? Lenhador: Qualquer paixão me diverte. Para onde o vento der, o pau lá vai. Vaqueiro (interferindo): Vocês estão com a mania dos paus. Parece até que estão com um na frente e outro atrás. Lenhador (indicando o lugar onde está sua genitália): Este aqui está perguntando: cadê aquele vaqueiro sem vergonha? Vendeiro (preocupado): O que é isso, gente? Vocês não amarram a égua no mesmo pau, mas são farinha do mesmo saco. A cara de um, o focinho do outro. Briga é pra cachorro. Vamos matar o bicho? (entorna a cachaça nos copos, e todos bebem, uns fazem caretas, outros lambem os beiços). Roçador (a cantarolar): “Estou ficando velho/ Estou ficando fraco/ Estou encolhendo a pomba/ Estou espichando o saco”. Lenhador (referindo-se ao Roçador): Esse aí é bobo até onde chegou e mandou parar. Roçador: Bobo é ovo na boca de seu povo. Vendeiro (ao Carreiro): E você? Está aí quieto como a imagem de um santo. Carreiro: Estava pensando nos paus, uns nascem para santos, outros para tamancos. Vendeiro: Mas nem todo dia é dia santo. O que você vai levar hoje, de mantimento? Carreiro (desatento): Estou pensando na vida. A alegria do carreiro é ouvir o carro cantar. Roçador: Estou pensando é na mulher que o Zecapião está comendo. Lenhador: A minha é que não é. Quem fala demais dá bom dia a cavalo. Vaqueiro: Falou em cavalo é comigo mesmo. O que vocês estão aprendendo, estou esquecendo. Lenhador: Você chegou há pouco de fora. Aqui no Arraial - e sapo de fora não ronca. Vaqueiro: Quando um burro fala, o outro murcha a orelha. Lenhador: Onde mesmo você nasceu? Vaqueiro: Pra lá do toco e pra cá da raiz, onde o cachorro cagou e sua avó atolou o nariz. Vendeiro (ao Lenhador): Você podia bem dormir sem esta! Vaqueiro: E você, quando sai para trocar cebolas com os bobões das bibocas: o que pensa que sua mulher fica fazendo em casa? Catireiro: Envém você com mulher no meio outra vez. Não mexa com quem está quieta. Vaqueiro: Dou um boi para não entrar na briga, mas quando entro dou uma boiada para não sair. Catireiro: Quê boiada, você dá, sô? A do seu patrão? Deixa o Quinca Afonso saber disso? Vaqueiro (nervoso): A minha boiada é do Quinca Afonso e sua mulher é do (olha na porta o Capitalista voltando)...É de quem chega. É de quem chega primeiro! Capitalista (entrando, ressabiado): O que há de novo aí? Vendeiro: Muita galinha e pouco ovo (o Capitalista senta no balcão e fica olhando os outros, calado e sem graça). Roçado (ao Capinador): dizem que você é muito ladino e muito maludo... Capinador (rindo): Eu? Sou o último que fala e o primeiro que apanha. Lenhador: Dizem que urubu sem sorte atola até nas pedras. Catireiro (a respeito do Capinador, gozando): O que ele é, é mau calado. Dizem que já deu em dois soldados lá na estiva e ainda amassou a cabeça do cabo. (risos). Capinador (espantando um cão que entrou na venda): Olha só como ele não tem nem um pinguinho de vergonha de andar pelado... Sai do meio dos outros, cachorro! Lenhador (rindo): A bobagem ainda vai te carregar, um dia. Capinador: O bom julgador a si se julga. Lenhador: Coração bom está aqui no peito, só falta é trato. Roçador: Alguém aí ouviu o galo cantar e não sabe aonde. Lenhador: uns gostam dos olhos, outros da remela. Carreiro: Mulher é igual chita: uns acham feia e outros, bonita. Catireiro: Mas a galinha do vizinho é sempre mais gostosa do que a nossa. Lenhador: Essa é a opinião do seu vizinho? Catireiro (levantando-se, dando a impressão que ia partir para a briga braçal): Vou propor um enigma. Quem tem a mulher que dá pro Zecapião tem uma palha na cabeça...(todos se levantam dos sacos e do balcão, incomodados e enraivescidos, rodeiam o Catireiro que, amedrontado, põe as mãos sobre os olhos fechados, como se temesse uma agressão). Catireiro (corrigindo-se): Não falei por mal. A mulher que dá pra ele pode ser uma de qualquer um de nós, pode ser a minha, que apesar de ter os cabelos lisos, é muito ajeitada de corpo, tem boa altura, boa largura e... (aí todos desfazem a roda e se reacomodam na sacaria e no balcão). Carreiro (ao Catireiro): Vai avançando na lua pensando que é queijo, para ver o que é bom para a tosse. Roçador: Em vez de enigma, vou fazer uma pergunta com a reposta encavalada: O que tira o homem do sossego? Mulher bonita, cavalo inteiro e lodo dentro do rego? Vendeiro (alheiado): Quem não tem couro não faz barganha com a cuíca. Quem toca sino não acompanha a procissão. Catireiro: Chifre é igual dentadura: demora, demora, mas acostuma. Lenhador: Esse cara está querendo uns petelecos! Quando se procuram porcos, até as moitas roncam, não é meu amigo? (Pergunta ao Roçador). Roçador: Não me comprometa. Amigos, amigos, negócios à parte. (ao Capitalista) O senhor é que está com o burro na sombra. Soube que está comprando a Fazenda do Gabrielinho... Carreiro (baixinho, de forma a não ser ouvido pelo Capitalista): Comprando ou tomando na marra? Vendeiro (tentando agradar ao Capitalista): Quem compra terra não erra. Capitalista: Quem tem cabras, cabritos vende. Carreiro (saindo): Em lagoa de sapo, mosquito voa bem alto. Capitalista (indo para o fundo da venda): Quem tem cabeça de cera, não deve pô-la ao sol. Carreiro (já do lado de fora): Quem fala do Diabo, pisa no rabo. Vendeiro (contemporizando as possíveis ofensas): A vida boa está no prato raso. Capinador (saindo): Em terra de sapos, andemos de cócoras (imita um corcunda). Lenhador (saindo): Burro velho conhece o pau onde pode coçar. Roçador (saindo): Se tem formiga na escada é sinal que tem doce lá em cima. (entram um Velho e uma Velha). Catireiro (ao Capitalista): Esse velho e a velha dele. Os dois não parecem a tampa com o balaio? Velho (apontando o Catireiro e o Capitalista, ao Vendeiro): Os dois aí:o malho com a bigorna. Lá fora o sol declina na serrania, atrás da torre da Igreja. Os pássaros ainda cantam na alegria verde dos quintais. A meninada ri da cara amarrada do homem de poucos amigos. A mulher no chafariz põe a rodilha na cabeça, mas não agüenta o peso do pote. Um homem feio que nem embrulho de mandioca passa pela mulher do Caetaninho Maleita e suspira: “Ah, lá em casa!” Uma furreca vem buzinando. É sinal que o pãozinho de sal e o de doce acabam de chegar do Arraial Novo. As mulheres daqui não fazem mais quitandas? – O passarinho que vinha seguindo a furreca do Zé Pereira, pergunta. A buzina da furreca responde, cantando: “Elas só pensam em namorar!”

segunda-feira, junho 16, 2008

FICHAS DE VITROLA

A certeza que se tem (evidenciada em publicações anteriores) é que Jaime do Prado Gouveia, autor do livro “Fichas de Vitrola” (Editora Record, RJ, 2007), conhece e domina a técnica e a arte de lidar com as palavras na expressão das idéias e sentimentos. Com a naturalidade flexível e expansiva com que narra e descreve as situações de vida, despertando a localização e a vivência dos personagens no contexto das ambigüidades de uma paisagem humana evasiva e hesitante, ele sabe ser simples na complicação e complicado na simplicidade, alcançando o que almeja: a revelação do retrato realístico do ser humano disforme e perdido numa sociedade em polvorosa desagregação. A vida atual é assim, o mundo atual é assim – tudo está em andamento, e mesmo a corrosão da matéria chega a ser criativa sob o ponto de vista maleável da flexibilidade mental do autor. As palavras encadeam-se nos períodos e parágrafos sem pretéritas ligações, sem prenúncios axiomáticos disso ou daquilo. São as notas dos acordes no afinamento instrumental dos sons saltitantes que se aglutinam mais em função do clima melódico do que com a sua premeditada ressonância. Quando menos esperamos, do caos interior salta a bailarina de Nietsche, vivificando o contexto até então indefinido. Somos os outros também, assim é que somos. No conto “As Cinco Pontas da Estrela”, o das mulheres descabeceadas e fáceis e patéticas, e dos homens (seus humilhadores contumazes) ébrios no mortal desconsolo do descabimento existencial, começa a brilhar a luz mortiça dos inferninhos noturnos da grande cidade. No outro conto “A Nossa Infância” o absurdo da lógica estuda a lógica do absurdo – pois que no quebra-cabeça das incongruências é que pode residir a lucidez nebulosa que contextualiza a insanidade numa equívoca e necessária aceitação. “Este é o meu genuino povo”, constata sociologicamente o narrador de “Concerto Para Berimbau e Gaita”, na página 29, que logo percebe “como uma criança que não encontrou o bico” que “a claridade tem olhos vermelhos”. “Não vou escrever sobre heróis” nem sobre “o gigolô que tortura sua putinha”, - pois “todo mundo que tem um poderzinho quer torturar os outros”. Constatações assim, tão agudas, estão em consonância com o timbre arguto de quem trabalha a melancolia machista, que lembra, na disponibilidade, a incursão libidinosa do romancista norte-americano Philip Roth no escorregadio esforço de confirmar a supremacia moral e física do homem sobre a mulher, esforço que prejudica, fundamente, as relações de ambas as partes – e que projeta o lado desconcertante e quase sempre sombrio da literatura moderna. “A dor de corno estética”, oportunamente referida na página 146, não é uma exclusividade do bebum notívago afeiçoado aos arcanos da criatividade artística, mas participa do sentimento que afeta qualquer pessoa que ousa cultivar o exercício das chamadas belas artes. Doa ou não ao leitor desprevenido, Jaime do Prado Gouveia não escreve para engambelar quem quer que seja. Sabe (e nós sabemos) que o desencanto individual do ser humano na multidão é o mesmo na solidão e na convivência dos que afogam o pensamento e o sentimento no lago etílico das casas noturnas, onde o prazer de beber e comer logo se transforma no desprazer generalizado das tertúlias. A ressaca precede todo reinício dos desencontrados encontros, por assim dizer. A impressão que se tem é a do repeteco da fossa sentida e propiciada pelos componentes europeus e brasileiros das chamadas gerações perdidas dos existencialistas, surrealistas e modernistas. Fica no ar a dúvida se o pendor etílico precede ou sucede à náusea de viver, se é causa ou conseqüência da meditação individual em termos sociais. Enfim a dúvida de sempre: pensar e sentir fere e dói? O álcool e a droga curam e apaziguam? Os personagens do livro estão sempre partindo juntos para a outra morte que parece ser cada capitulo desta vida sofrida e custosa, na qual a mulher passiva defronta os “olhares ferozes dos homens que ela bem gostaria de ter força e coragem para cravar as unhas” (página 104). Impossível a leitura programática e mecânica deste portentoso livro de Jaime do Prado Gouveia - e também dos de outros autores igualmente viscerais, nos quais o leitor tem que se reprimir, resfolegar, sofrer as conseqüências do impacto diante do purgatório e da redenção e, assim, sair ileso dos atritos eletrizantes. A vida é difícil – e só o que é difícil merece um tratamento estético regenerador. Assim penso no meio-termo do pessimismo e do otimismo nesta altura dos acontecimentos políticos-sociais.

sábado, junho 14, 2008

ADÃO E EVA

Mantive durante muitos anos na década de 60 uma coluna no saudoso “Diário do Oeste” sob a rubrica de Mitologia Moderna, onde tentava interpretar sob o ponto de vista literário (incipiente como sempre, é claro) os fatos mais focalizados pela mídia da época. Na edição do dia 23 de outubro de 1966 publiquei o texto sobre as relações entre os sexos, tentando jogar um pouco de luz sobre a deplorável e histórica submissão do sexo feminino ao masculino, responsável por uma civilização machista repleta de acontecimentos negativos ao longo do tempo. Sei que da década de 60 aos dias de hoje aconteceu uma sensível melhoria nas relações, depois de tantos movimentos mundiais a favor da emancipação feminina. Mas a voz de mando masculina prevalece até hoje no primeiro plano da organização e da administração dos comportamentos humanos. O texto referido é o seguinte: ADÃO E EVA. Adão e Eva na terra, milhões de anos depois do Paraíso. Podemos transportar toda a questão para o plano da vida moderna, reportando-nos a Rainer Maria Rilke, que disse: “A felicidade amorosa só será possível quando o nome da mulher não mais suscitar no homem a idéia de oposição, de complementação e de limite, mas a de vida e existência, transformando o vexatório estado atual numa relação de ser humano para ser humano, não de macho para fêmea”. Tão leve e doce não será a realização dessa profecia, tão amável e feliz a coabitação iluminada por “um amor que consiste na mútua proteção, limitação e saudação de duas solidões”. Ele diz textualmente: “Talvez os sexos sejam mais aparentados do que se pensa e a grande renovação do mundo reside nisso: o homem e a mulher, libertados de todos os empecilhos, virão a procurar-se não mais como contraste, mas sim como irmãos e vizinhos; a juntar-se como homens para carregarem juntos, com simples e paciente gravidade, a sexualidade difícil que lhes foi imposta”. O próprio e recente caso de João Joana é ilustrativo: prova que a ausência de privilégio equivale à simultânea ausência de preconceito, e que o amor humano é bem mais saudável, excluindo-se o espectro do ciúme. Muitos pensam que o monstro de olhos verdes confirma o amor: oh, só se o amor fosse uma doença crônica em vias de se tornar aguda. Mas voltemos a Rilke: “O amor é bom porque é difícil. O amor de duas criaturas talvez seja a tarefa mais difícil que nos foi imposta, a maior e última prova, a obra para a qual todas as outras são apenas uma preparação. Por isso, pessoas jovens que ainda são estreantes em tudo, não sabem amar: têm que aprendê-lo”. De certa forma complementando a dissertação acima, publiquei logo na semana seguinte o poema “OS OLHOS DE CORPO E ALMA”, que releio agora, quatro décadas depois e que, sem revisar, acrescento ao texto acima, tal qual era a intenção, na primeira publicação, esquecida até mesmo pelo autor (mas que contém muito do que ele, o autor acredita como proposta de visão e de vivência). Com a devida licença, pois, o poema dividido nas partes ELE e ELA. Abaixo: ELE O poeta – será o lobo das cordilheiras sonhando com as guitarras da campina? O poema – uma noite, ou melhor, um pátio cercado de farpas: pasto de feras e diamantes? No joelho a lua e as formigas. Que fiz do coração e do sexo? Das outras direções do vento? Da moça de fita azul nos cabelos? E esmurro a noite do lado de fora da parede. E some a lua, onde eu roubava o fogo dos deuses. Como vou morrer nas unhas dessa noite, viver nas garras da poesia? ELA A memória que espera é a mesma servil que lembra e esquece as figuras de aversão. Desmancho o filete e acendo as luzes corporais da abstinência. A alma nos dedos entra e sai para os nórdicos países e amados litorais e províncias. A memória abraça o arvoredo, mas se arrepende e volta. Pergunta ao poeta se ele me entende. Pergunta ao herói se ele me ama.

segunda-feira, junho 09, 2008

O AMOR NOSSO DE CADA DIA - Conto

O grande mito antropológico é o do andrógino, diz Berdyaev: o homem completo, masculino e feminino, solar e telúrico, lógico e cósmico ao mesmo tempo, o ser que se fiou na saudade imemorial depois da divisão humana em dois sexos diferentes. No começo do mundo, diz Platão, os seres humanos não possuíam sexos diferenciados. Eram valentes e ambiciosos andróginos que mandavam e desmandavam nos quadrantes da terra. Mas quando atacaram Júpiter, deram-se mal: o Todo Poderoso daquele tempo rebateu a investida com uma mão e com a outra dividiu o exemplar andrógino ao meio, de cima para baixo, fazendo dois de cada um deles. Depois da vertical cirurgia cada parte nunca mais sentiu-se completa e realizada, cada uma deseja, eternamente, unir-se à outra. Desde então os seres humanos buscam o amor, experimentam todos os sentimentos sem jamais encontrar sua alma gêmea, o corpo complementar do inextinguível desejo nosso de cada dia. De minha parte concordo plenamente. Sou assim mesmo: uma espécie de cão farejador que olha, cheira e lambe a ausência de quem esteve em si mesmo procurando outro coração, como se precisasse de dois para melhormente viver. O outro, de outra cor, de outra feição e de outro cheiro e de outro gosto – e mesmo assim complacente e feliz na unificação. Desde a infância que sou assim. Lembro-me como simpatizava com a Esterlina, uma garotinha salpicada de sardas, como amava a Toninha, momentinha nos enfeites e desleixos, e me apaixonava pela Zizinha, que tanto me procurava com os olhos como fugia com as perninhas equilibradas. Depois, na juventude, quase morri de amores por tantas moçoilas da roça e do arraial, e depois na primeira maturidade o apego que nutria pelas moças da mesma estatura, de outras feições e diversificadas biografias. Sei que todas eram sempre a mesma dos sonhos, do desejo de completude – pois que sendo eu uma das linhas do novelo da VIDA, carregando a consciência da memória e da expectativa, procurava (e procuro) novas palavras para receber, entender e transmitir as fantasias e realidades do sono e dos sonhos. Na procura feri algumas pessoas e feri-me algumas vezes, inevitavelmente. Aconteceu tanta novidade nos incontáveis caminhos, só vendo outra vez para acreditar! Uma vez detive-me diante do rosto de uma moça estranhamente enclausurada na própria casa (o pai ciumento não permitia que ela nem mesmo chegasse a uma das janelas): os olhos dela doeram em mim. Descreviam uma virada de onda sob o fluxo da correnteza, sabendo ter sobre a cabeça aureolada um beija-flor hipnotizad pelo olhar venenoso de uma incrível serpente. As mulheres que inspiraram Shakespeare são as mesmas que enfeitam as casas e ruas de hoje em dia? Ele disse a respeito de uma Laurinda de seu tempo (que (in)certamente é a mesma Laurinda de meu tempo) que a palavra de amor cavalga o coração apaixonado como a plumazinha do cisne na alta onda do mar revolto, sem voltar-se para nenhum dos lados. Assim ele disse, com as palavras dele, muito melhores do que as minhas, claro. A minha Laurinda tinha os olhos verdes e amarelos – e assim numa tarde de minha crepuscular juventude, ela passou na farmácia e, sabendo que a noite prometia ser friorenta e ventosa, comprou um tablete de cacau – e depois de passá-lo nos lábios, cuidadosamente, deu-me para passar nos meus. E eu, enquanto passava, disse-lhe: “só assim, por tabela, consigo beijar teus lábios tão pertos e tão fugidios”. Ela riu, retraída e pudica, como se dissesse: “considere-se, pois, devidamente beijado, sim?” Até hoje arrependo-me de nunca ter sido, na vida, um pouco audaz. O fato é que não pedi nem ganhei, nem roubei o beijo tão querido. Sei que a conformação fisiológica prepondera na distinção sexual masculino/feminino: a mulher tem a direção erétil mais internalizada, por isso seu desejo maior é o de ser desejada e não o de desejar; já o homem possui o aparelhamento de forma mais exteriorizado em virtude da própria dotação física: assim ele não cuida de ser desejado, mas sim de desejar, ou seja, quer ser o elemento ativo e não passivo ou intermediário, condição que o leva mais ao caminho do estupro do que o da paridade. E só de pensar no estupro quase automático do modelo usual da relação, ah, só isso me inibe e me inibe. Mas, lá um belo dia desfrutei da ventura de ver os seios de Odília no alpendre da casa dela, quando ela se inclinou para mostrar-me uma folha de versos e de flores. Isso aconteceu mesmo onde e quando? No Camacho? Mas nunca fui ao Camacho em toda a minha vida! Ah, deixo a dúvida de lado, mas o que aconteceu, aconteceu indelevelmente. Vi então as duas juritis ali retendo o mesmo vôo e o mesmo canto, as duas maçãs do rosto formoso, os dois olhos miraculosos, as duas palavras do mais extremado amor instantâneo. Meu coração bateu forte e só faltou falar e cantar que o corpo dela é a planta e a alma, a flor peregrina pousada no galho de uma das primaveras da eternidade. Assim passa o tempo nas asas dos pássaros, assim passou nas minhas pernas incansáveis. “Ela passou aqui” – alguém deu-me a informaçã, na estrada de terra que vai do Curral aos Teixeiras. Passou – e devia caminhar como sempre caminhava: o traseiro levemente arrebitado, o rosto levemente pendido – e aquela maneira só dela de ficar calada como se estivesse conversando. Segui a vontade de procurá-la, rodeando as serras lisas e escarpadas, os vales encapoeirados, as encostas e pastagens, os pedregulhos e campos sáfaros, salpicados aqui e ali de arbustos de boizinho e de barbatimão. Apreciava de longe as ilhas de chuvas, a cerração líquida e delimitada, a gotejar nos pontos da paisagem em que o verde mais escurecia. Já entardecia quando cheguei ao lugar antecipado de brejos, espinheiros e cipoais, onde ainda vive um punhado de elementos de uma tribo remanescente da escravidão colonialista, que vive poupando ao longo do tempo sua herança genética, seus festejos e a mobilidade verbal de seus antepassados sacrificados. Foi ali, de longe que senti a luminosidade dela, antes mesmo de vê-la. Tampado pelas moitas de alecrins e sempre-vivas, esgueirei-me na estradinha à deriva dos brejos até alcançar a melhor cena daquele pequeno paraíso, finalmente encontrado. A simulada princesa iraniana, descendente da Raquel, serrana bíblica e camoneana, ali estava a mergulhar e emergir no amplo poço do monjolo, com toda a singeleza rara que aviva o sol da natureza, o aroma da beleza, as nuvens vermelhas nas serras azuis, ah, a alma prescinde da roupa para se encalorar! O ar passa nas árvores, não passa nas pedras: a canção voltava dela para mim? Do Itambé ao Itatiaia, a correr de uma nádega à outra; do Tabor aos Andes, a correr de um seio ao outro: uma perna na Mantiqueira, outra na Canastra, lá vou eu passando embaixo com a brisa que carrega os horizontes para bem longe. O vento que traz as notícias nas palavras diz que “a história é forjada não pela destreza da razão, mas pela astúcia do desejo”, diz também que a felicidade é a realização adiada de um desejo pré-histórico – e por isso, como diz Norman O. Brown, o dinheiro, não sendo um desejo infantil, traz pouca felicidade e muita desventura. Mas ela agora mergulha e bóia na flor da água, o sol a dourar seus pêlos pubianos, a água a molhar os outros poemas de seu corpo, e ela bem ali, a recuperar a linguagem sensual na qual, segundo Jacob Boehme, todos os espíritos falam uns com os outros, pois a linguagem sensual é a linguagem da natureza. As árvores sentam com ela na grama, pensam com ela na solução dos problemas comuns, falam com ela nas canções passarinhas. Os andróginos, segundo Platão, tornaram-se insolentes, e os deuses, ofendidos, para castigá-los, racharam-nos ao meio com o intuito de eles, assim aleijados, preocupassem na eterna procura da outra metade – e que movidos por esse desejo sem fim, renunciassem ao desafio que até então faziam de despojá-los de suas arraigadas divindades. Assim é que nasceu o AMOR, esse desejo, essa nova forma de desdobramento individual. Ah, esse amor que tanta falta nos faz!

domingo, junho 08, 2008

O VENDEIRO DO MORRO DA FONTE - Conto

Mandou comprar um bilhete lotérico fechado, da Federal, e guardou a sete chaves. Estava enfarado de sonhar com burro, cobra, elefante, avestruz. Quem sabe a má sorte advinha justamente dos sonhos instintivamente forçados? Fazia cinco anos que jogava, uma semana na Federal, outra na Mineira. A não ser algumas pedras caídas e terminações, da Sorte Grande do Bilhete Inteiro nem mesmo o cheiro de uma aproximação. Estava empobrecendo cada vez mais em vez de enriquecer. Já tinha vendido o pasto do Retiro e desfalcado sua casa de negócios, que era de ferragens e tecidos e passou a ser meramente de bebidas e mantimentos. Raros fregueses apareciam para vasculhar o que sobrou dos parafusos, das ferraduras e dos pregos – mas a presença semanal do cambista era infalível, sempre a brandir a tentação na penca de bilhetes da sorte grande. Belas e extensas fazendas verdejantes, manadas de vacas e bois na invernada, os cavalos de raça a galope nas pradarias, os amigos e conhecidos trazendo as boas palavras, os desconhecidos trazendo os conhecimentos e as bajulações. Os melhores sonhos do perdido, mas recuperável, coronelismo familiar dos antepassados, tudo de bom e do melhor estava agora no bilhete fechado, a correr naquela sexta-feira e a dar-se ao conhecimento publico no jornal de sábado, vindo no trem que passava na estação da via férrea, da capital mineira para a imensidão dos sertões. Tudo de bom e do melhor estava ali no bilhete fechado, cuidadosamente guardado na terceira gaveta da penteadeira de sua esposa Manuelina. Assim pensando e sonhando, foi dormir com os anjos auspiciosos do céu e da terra. Se ganhasse recompraria a Fazenda que foi do pai, lá no Sabarazinho, que hoje é da viúva do Juca Tavares, onde os filhos e os futuros genros poderiam extrair os mantimentos para o sustento de cada um dos lares. Como todos ainda são solteiros, com o beneplácito da sorte grande, não seria difícil arranjar bons casamentos para todos. E no pensamento ele alinhava os pares: a Lulu, a mais velha (mas não tão velha, coitada) com o Zezé do Atanázio Teixeira, que também não é muito velho nem muito novo, mas que está ficando para titio; o Alfeu com a professora Idalina, que tem o melhor salário do arraial; o Américo com a professora Deodora, o segundo melhor salário do arraial; o Jessé com a filha da poderosa Dona Sancha Amaral, da Estiva; a Creuza com o feitor da Rede Mineira de Viação, que deve ganhar muito bem, mensalmente; o Maurinho com a Marialva do Zé Juca, que não é rico nem pobre: é remediado, mas sua filha, nem se compara com as outras moças: é um pedaço de mau caminho; o Zuta com a zuretinha do falecido Miguel Arcanjo que, dizem, deixou um cofre estufado de notas de mil; o Otoniel preguiçoso e desanimado com a herdeira do Juvenildo, a solteirona Zilica; o Otávio com a filha da Bebiana, a Lutinha, pobrezinha, coitada, mas é o amor da vida de meu Otavinho; e por fim o caçula Antonico, com apenas 16 anos, com a Irenice do Genésio, também de 16 anos, quando ambos completarem 18 anos e criarem juízos. O dinheiro que sobrar da recompra da fazenda e da fazeção de casas para todos os filhos e filhas, vou empregar no sortimento da Venda (que levarei para a rua de cima) com tudo de bom e do melhor, para vender bem mais barato do que os outros vendeiros, de forma a ficar ao alcance dos pobres de toda a região. Dormiu e sonhou de acordo com todos seus melhores desejos. Todo pimpão e altaneiro era de novo o dono da Fazenda da Tapera, no Sabarazinho, que tinha pertencido ao seu avô e que seu pai tinha dissipado no jogo, na bebida e na mulherada. O curral agora novamente cheio de gado, os lavradores com as ferramentas, os vaqueiros com os laços e relhos e esporas. No meio da sonhação viu direitinho o professor Norberto escrever a giz no quadro negro uma numeração aritmética, com a caligrafia caprichada e legível. O primeiro número era o 2, seguido do 6. Aí o professor pigarreou, olhou os alunos e gravou lá no quadro o número 8; em seguida, com rapidez e deliberação, acrescentou os algarismos 5 e 3. De onde o nosso personagem estava sonhando, viu direitinho a totalidade da numeração: 26853. 26853, ele namorou cada unidade do conjunto, releu, memorizou e, não satisfeito, acordou de repente com os números na cabeça. Ato contínuo, ele tirou o lápis na gaveta da mezinha do quarto e copiou a numeração que ainda estava quente na memória. Sentado na cama, sentiu uma estranha frieza, seguida de um estranho calor. Ao longo do tempo em que arriscava a sorte, nunca tinha acontecido algo idêntico – era tudo num emaranhado de acasos e coincidências. Agora não. Havia algo de carta marcada, de destino desfolhado. Num átimo abriu a outra gaveta, tirou o envelope fechado do bilhete e, quase morto de espanto, confirmou o agrupamento numérico: 26853, sem tirar nem pôr um único algarismo. DESTA VEZ DEU! – Ele não se conteve, gritou e tornou a gritar, acordando a mulher e os filhos. FAÇA CAFÉ COM BOLOS FRITOS! – Ele ordenou à esposa, foi ao cômodo da Venda, pegou os maço de foguetes e começou a soltá-los da porta da cozinha e da porta da rua e, também andando do lado de fora, acordando os vizinhos com os estampidos acompanhados dos gritos de TIREI A SORTE GRANDE! TIREI A SORTE GRANDE! Aí a vizinhança assediou para confirmar e, em alvoroço, comemoraram e bebemoraram e comeram todo o estoque da cozinha e da venda pelo resto da noite afora. Quando o sol saiu, ele fez questão de ir em mutirão com os parentes e amigos à estação ferroviária, distante légua e meia, para comprar o jornal no trem das dez horas, para oficializar a conferência do bilhete sorteado. NÃO ABRA O JORNAL, ele disse aos filhos ansiosos. QUERO ABRIR! – Ele disse, com o maço de folhas nas mãos. Quando abriu e conferiu a relação dos prêmios, ficou verde e branco ao mesmo tempo, na plataforma da estação, a ver todo o verde e o branco estendendo-se ao longo da linha férrea e esparramando aos lados cobertos de capim e arvoredo dos cerrados e montes que, ao longe, fechavam a visão numa bolha de lágrimas. Com o bilhete BRANCO nas mãos, tudo mais descoloria, perto e longe de sua pessoa definitivamente decepcionada.

sábado, junho 07, 2008

DIA E NOITE

O bando de capivaras no relvado da beira do rio: o dia inteiro sem proferir uma palavra. “Já estamos conversados”, cada uma diz, no interminável diálogo lá delas, que para nós é satisfatório silêncio. Varrendo as folhas das árvores do passeio de sua casa, o idoso é interpelado pelos passantes da rua: “a folhagem não dá trégua, heim?” Ele ri amarelo, aceita a pergunta sem responder. Sabe que cada uma das folhas é uma palavra de Deus, a ele remetida em todo santo dia, em forma de álacres bilhetes da fértil imaginação cósmica. Depois de ler e curtir centenas de escritores (alguns talentosos, outros geniais), sinto-me livre de todos eles, sabendo que nada estou a dever a nenhum deles, e que agora estou apenas comigo, e que agora posso andar com as próprias pernas ao longo e ao redor da vida e do mundo, sem tropeçar nas aflições e nos barrancos, sabendo que Deus não dá asas à cobra, e que a mim Ele dá asas, mas cobra.

quinta-feira, junho 05, 2008

JOSÉ AFRÂNIO MOREIRA DUARTE

A passagem de José Afrânio Moreira Duarte neste nosso velho mundo sem porteiras, lembra o dito popular (e dele exorbita) que fala sobre a possível fama que possa eternizar o ser humano dela portador. No caso dele, que mais fez pelos outros escritores do que por si mesmo, o que mais fica é o que mais o define: a luz dele sobre os outros, que se reproduz e multiplica, interminavelmente. No seu livro “DE CONVERSA EM CONVERSA – Entrevistas (Editora do escritor, São Paulo, SP, 1976), ele, primeiramente, reconhece o valor de cada um dos 45 autores na época (1976) ainda não consagrados pela mídia. Em seguida examina os elementos constitutivos da obra de cada um – e depois dá a palavra, plenamente livre, à cada um deles, a fim de que se apresentem ao público com a bagagem literária, não só a já adquirida e mostrada, como a já claramente intuída e prometida, prenhe de toda a gama de inquietude e de deslumbramento. De minha parte, como um novo autor na época, não conheço ninguém mais na literatura brasileira que trabalhasse tão afavelmente um quinhão de estímulos tão objetivos, com resultados tão positivos. Que Deus seja louvado, pois.