“Para os matutos, todos os caminhos dão na venda” – Graciliano Ramos.
O cenário é o do nosso velho arraial de alguns anos atrás, então tido e havido como um lugar de encrencas, mas que hoje a mansuetude dos comportamentos populares é sua tônica: só encontra briga quem muito procurar. O sol do meio-dia faz o caminhante pisar na cabeça da própria sombra, e mesmo assim os roceiros chegam das quinze bandas, pois o dia é dia santo de guarda: uns a pé, outros a cavalo, uns descalços, outros de botinas ou alpercatas, uns entram primeiramente na igreja, outros adentram diretamente na Venda do Toniquinho, onde compram as coisas, bebem a pinga e proseiam na linguagem dos lugares-comuns de suas circunstâncias. Chegar ali é fácil e participar da roda também é; o difícil é sair e na saída sentir o ardume nas orelhas, primeiro sinal de que falam cobras e lagartos em suas costas. Eles chegam, aboletam no balcão de madeira e nos sacos de mantimentos, empilhados do lado de fora do balcão, de propósito para servirem de assento e recosto. Eles enchem as capangas de cereais, sal, rapaduras, querosene e macarrão. São conhecidos por suas ocupações, participam da conversação geral de cada instante na linguagem salpicada de ditos populares, uma técnica falatória que economiza o palavrório e abrange uma roda maior de conviventes da mesma empreitada difícil e assumida do homem rural de nossos pequenos sertões.
O Desocupado, quando chega, chama atenção.
Desocupado (a todos): Se estão a falar da vida dos outros, podem falar da minha, que é um livro aberto, com todas as folhas em branco.
Vaqueiro: Vem não, cabeça de leitão. Melhor do que falar dos outros é falar das mulheres dos outros.
Desocupado: estão falando da minha? Já repararam que depois que arrumou os dentes e comprou roupa nova, ficou mais bonita?
Catireiro (maledicente): Na dispensa de sua casa não falta nada, né?
Desocupado (levando a ofensa na brincadeira): E na sua, falta alguma coisa? (olha os outros) e na de vocês? Na minha não falta nada. (Com a cara mais lambida) Alguém perguntou se sei o preço do quilo de toucinho? ...Não sei não... Eu bem que chamei você para terem uma mulher enfeitando a casa...(sai, hipocritamente rindo).
Seleiro: Esse aí não tem um pingo de vergonha na cara.
Catireiro: Mas o que ele falou é a pura verdade. A mulher dele dá bem uma meia-sola. Tem um traseiro que mal passa nessa porta: um torresmão!
Seleiro: Mas não é do seu bico, já tem boi na linha. E sabem quem é? Adivinhou quem pensou ser o Caetaninho da Maleita: ô cara inserido, está sempre na moita, desferindo suas investidas, com a cabeleira englostorada e o eterno paletó de jaquetão.
Vaqueiro:O Zecapião já terminou o amansamento naquela área?
Seleiro: Aquele (você disse bem) vai na frente chupando as laranjas e comendo as mangas. Só deixa as cascas e os caroço para os outros.
Ferreiro: Conheço esse Zecapião desde o tempo do onça. Nunca teve eira nem beira, coitado. Nasceu ali nos espinhos das Restingas. Não sei onde tirou esse dom de agradar às mulheres.
Vaqueiro: É só ele passar e elas ficam rindo à toa.
Ferreiro: E não passa de um sujeitinho atarracado, de conversa mole.
Seleiro: Mas a cada dia está montado num animal mais raçudo e bonito, todo garboso. É tudo dos outros, dele mesmo só possui aquela eguinha báia, estropiada. Mas as mulheres só vêem a empáfia, o lenço no pescoço, o chapéu de feltro, as botas empolainadas, os dentes de ouro ou de cobre, sei lá.
Lenhador: Uma vez ele engraçou com a minha patroa – e eu mandei ele chispar na poeira dos caminhos.
Carreiro: De vez em quando ele dá com os burros nágua. O Juca Pifão, lá da estiva, chegou a agarrar a garganta dele e aí ele arriou a calça e pediu “pelo amor de Deus, seu Juca, não faça isso comigo, que tenho filhos para tratar. Sei que estou errado, mas peço perdão de mãos postas, se quiser!”
Capinador: É um semquefazer da pior espécie, acho até que tem partes com o demo, com aquele jeito cretino de boa praça.
Lenhador: Você foi em cima da pinta, como suas palavras. Ele deve ter partes com o Dito Cujo, pois monta no burro mais brabo da tropa do Titão e sai na maior maciota, o burro fica tão manso de repente, que se coçar nele, ele até deita.
Vendeiro: Vocês ficam aí a falar mal dele. Empombado ele é, não descreio, mas fiquem sabendo de uma coisa: ele anda comendo outra dona, muito conhecida, além da mulher do Pacau, que é do conhecimento de Deus e de todo mundo.
Vaqueiro: Quero morrer seu amigo, viu?! Mas você põe a pulga atrás de nossas orelhas, ao contar o milagre sem dar o nome do santo, ou melhor, da santa.
Catireiro: Isso mesmo! Conta quem é. Quem sabe assim a gente pode ir queimar um pouco de incenso no altar dela?
Lenhador: Quem ajoelha tem que rezar. Pronuncia ao menos a primeira letra do nome dela.
Vendeiro: Sou lá algum trouxa?
Lenhador: O que perde em dizer?
Vendeiro: Perco o freguês. E sabe que quanto mais mulheres ele tem mais fregueses eu passo a ter? A cadernetinha está ali, às ordens dele.
Lenhador: O marido da tal está ente nós aqui, né? Vou andar daqui pra lá e você vai dizendo quando estou frio e quando estou quente. Combinado?
Vendeiro: É peta insistir. Bato na boca pelo que falei. Em boca fechada não entra mosquito e eu, desavisado, abri a minha, que torno a fechar.
Roçador: Eu também antipatizo com semelhante pessoa. Ele não vale o feijão que come.
Vaqueiro: Ele acha que é melhor que os outros só porque casou com a filha do Calixto. Só por isso pensa que é o tal. Em si mesmo não tem eira nem beira.
Carreiro: De minha parte não ponho a mão no fogo pela fidelidade da mulher dele. Não ponho mesmo! Ela até já deu bola pra mim num pagode lá nos Vieiras, enquanto ele tocava sanfona. Depois é que fiquei sabendo que ela deu, na mesma noite, prum fazendeiro do Fundão, nos cômodos dos fundos da casa do pagode. Banquei o trouxa e perdi um quinhão, né?
Vaqueiro: Mas você, heim? Tenho dito que quero morrer seu amigo.
Carpinteiro (chegando): Ó vocês aí, que nunca me deram nada nem intenção tem de me dar.
Vaqueiro (debochando): O que é seu está bem guardado aqui (faz um gesto).
Carpinteiro (debochando): banana verde não se dá, soca naquele lugar pra madurar.
Vendeiro (atendendo ao Capinador): Enquanto vem com o milho, vou com o fubá.
Capinador: Quando você morrer, vão dizer caboucubão tava ali.
Vendeiro (irônico): Falar o que vem à boca é fácil. Difícil é falar para certos fregueses aquela lorota de quem não deve não teme ou não treme.
Capinador (entendendo a indireta): Nunca fintei ninguém nem intenção tenho de fintar. O que lhe devo, senhor Toniquinho, está dependendo do Afonsinho lá da Laje me pagar o que me deve. O trabalho de duas semanas!
Vendeiro: Sendo assim podemos tirar os cavalinhos da chuva. Aquele tráia da Laje não paga nem fogo na roupa.
Catireiro: O Toniquinho aí é danado. Bate na cangalha de um burro para a tropa toda entender.
Vaqueiro: Olha só quem fala! A galinha que canta é a que bota.
Catireiro: O que eu lhe devo?
Vaqueiro: deve a meu pai, deve a meu irmão. Não me deve porque não sou bobo.
Catireiro: Ah, isso são outros quinhentos.
Vaqueiro: Quem toma a carapuça é porque lhe assenta. Você não passa de um passador de manta nos incautos.
Catireiro (tomba o chapéu em cima dos olhos, deitado na pilha de sacos): Se está com raiva, tira a calça e pisa nela. Não custa nada.
Vaqueiro (aos outros): O que faço com um tráia desses? Não agüenta nem uma gata pro rabo.
Catireiro: briga foi feita para os cachorros....
Vendeiro: Vocês nunca combinaram. Por que estão brigando agora?
Ferreiro (mudando de assunto): Ninguém me tira um nome que tenho aqui na cabeça. E juro que não vou daqui enquanto o Toniquinho não der ao menos uma dica do nome da mulher que o Zecapião está rosetando.
Vendeiro: Ela é de meia-altura, tem os cabelos anelados e os olhos castanhos.
Carreio (suspira): A minha então não é. A minha não tem os cabelos anelados.
Capinador: Pois a minha tem, mas a do Roçador ali também tem e a do... (receia continuar falando).
Lenhador: A minha é mais alta do que baixa.
Ferreiro: A minha não é, pois não dou trégua. Canta: “Quem tem mulher bonita/ traga-a presa na corrente./ Eu também já tive a minha? e o jacaré levou nos dentes”.
Retireiro: A minha não é boba, sabe o marido que tem. Encho a cara dela de balas de fogo.
Lenhador: E na cara do corneador? Nem um tapinha?
Retireiro (sobressaltado): O que está insinuando? Acha que é a minha mulher que está na berlinda?
Lenhador: Eu de nada sei. Quem sabe de tudo é o Toniquinho aí, que é igual um padre. Todo mundo conta as coisas pra ele.
Vaqueiro: A minha mulher sempre teve os cabelos compridos, quase batendo nos joelhos.
Carreiro: Depois de cobrir as “partes”, claro,
Vaqueiro; Ah vai amolar o boi, sô! Mas, como ia dizendo, foi uma sirigaita lá em casa e comprou a cabeleira dela, para fazer perucas para as damas da cidade. Depois disso é que ela fez o tal de “permanente”, contra a minha vontade.
Catireiro: E contra a sua vontade, ela... Ah, fica bobo na praça que o jacaré te abraça.
Vaqueiro (depois de virar o copo de pinga): estava falando com o dono dos porcos e não com a porcada (o Catireiro faz menção de levantar do saco de arroz em casca, onde está deitado, mas apenas inclina um pouco).
Vendeiro: Vocês nunca combinaram...
Fazendeiro (chegando)|: Vocês sentam em cima dos próprios rabos para falarem mal do rabo dos outros, não é, cambada?
Ferreiro: estamos a falar das mulheres que estão dando.
Fazendeiro: Todas as casadas estão dando para os respectivos maridos, ora essa.
Ferreiro: Algumas são como pés de chuchu: trepam no muro e vão dar pro vizinho.
Seleiro (gozando): Fala de experiência própria?
Ferreiro (sem levar a mal): Epa, saltei de banda. O compadre aí sabe que não malho em ferro frio, sabe que em casa de ferreiro o espeto é de pau. Não sabe?
Lenhador: Eu não sou daqui. Sou lá do brejo. Estou aqui é enxugando. Mas já ouvi dizer que no coração das mulheres daqui sempre cabe mais um.
Fazendeiro: Mas não se pode generalizar.
Ferreiro (maledicente): O Zecapião escolhe as freguesas é nas roças, aquelas cujos maridos ficam o dia todo fora, longe, no trabalho pesado,
Lenhador: O que é da onça o sô lobo não come.
Capitalista (chegando): Como é que é?
Carreiro: Mata o homem e deixa a mulher.
Capitalista (rindo): mulher e vinho fazem errar o caminho.
Seleiro: Bem fiz eu, que sou feio e tenho a boca meio-torta, ao casar com a mulher feia e de boca meio-torta.
Roçador: A minha também é feia de fazer dó. Não é mais feia porque é uma só.
Fazendeiro: É como se lá diz: não há maior sossego do que mulher feia em casa, cavalo capão e horta de couve embaixo do rego.
Retireiro: Mas é por causa de uma cara feia que a gente às vezes perde uma bela bunda.
Roçador (sentindo-se ofendido, aos outros): Estamos falando na sala, a conversa ainda não chegou à cozinha.
Ambrosina (chegando, ao Vendeiro): Queria duas rapaduras.
Vendeiro (gozador): Queria... Não quer mais?
Ambrosina: Faz hora não, seu Toniquinho. Está pensando que minha cara é relógio?
Vendeiro: Entra lá no depósito e tira que eu anoto aqui na caderneta (a mulher entra e depois sái, com a mercadoria no samburá).
Voz da Mulher do Vendeiro (no outro cômodo): Está cego, Tonho? Ela disse que ia pegar duas rapaduras e pegou três.
Vendeiro: Faz mal não, Judite. Assentei quatro.
Catireiro: Esse aí tem o olho limpo, conserta relógio no fundo dágua. Depois eu é que levo a fama de passador de mantas.
Vendeiro:Você?! Te conheço desde o outro carnaval. Arranca os olhos dos outros e ainda lambe os buracos (o Capitalista sai).
Catireiro (referindo-se ao Capitalista): esse aí é o assemelhado do Zecapião. Depois eu é que sou o comedor de mulheres do Arraial.
Vaqueiro: Esqueci de perguntar a ele quanto está cobrando de juros, agora.
Catireiro: Se cair na malha dele, está perdido. Ele não é pior porque é um só. Feito uma cobra caninana com os botes que dá. Em compensação tem uma mulher de se tirar o chapéu. Vale mais do que qualquer uma das nossas.
Ferreiro: Epa, alto lá! Você venderia a própria mãe, que dirá a mulher. Não fale pelos outros, viu?!
Seleiro: Vou dando o fora, antes que um engula o outro. Que Deus não me tenha por testemunha (sai).
Catireiro (rindo): Em minha casa tudo está à venda, sempre! Faço até um leilão: quanto me dão por minha alma? Quanto dão pro meu rabo?
Lenhador: Dou cinco paus por sua mulher...
Catireiro: Cinco paus? Você não tem nem um para remédio.
Lenhador: Dou cinco mangos.
Catireiro: Ah sô, vai ver se estou lá na esquina, vai.
Capinador: Esse negócio de mulher de um dar para outro ainda vai dar muito pano pra manga, muito pó pra cheirar, ah, isso vai.
Ferreiro: Eu sempre digo que mulher casada cheira a defunto.
Carreiro: Olha só quem está falando. Cavalo inteiro mandou lembrança.
Ferreiro: Olha só quem está reclamando. O que você pede chorando que não lhe dou rindo?
Carreiro: E aquela desculpa esfarrapada de pescar no Fundão?
Lenhador (interferindo): Ah, sô, ele está mais para lá do que para cá, não agüenta uma gata pelo rabo. Mais um tempo e estará chamando urubu de meu louro.
Ferreiro: Quem fala de mim tem paixão. Mas na verdade você tem razão. Ultimamente não pego nem resfriado.
Vendeiro: O pior do avanço da idade é que a gente continua a desejar a mulher do próximo – e ela não deseja mais a gente.
Roçador (quebrando cabeça ao conferir as contas na caderneta): difícil agora é provar que pulga não é elefante.
Vendeiro: É o mesmo que tirar o papo sem ofender o pescoço. Se não confia na minha escrita é só comprar à vista.
Ferreiro (saindo, ao Lenhador): Você sabe com quanto paus se faz uma canoa? Escreveu e não leu, o pau comeu!
Lenhador: Êta ferro, heim?
Catireiro (ao Lenhador): É verdade que quanto maior é o pau, mais bonito é o tombo?
Lenhador: Você não sabe em que mato está lenhando...
Catireiro: Sei muito bem. Qualquer negócio comigo depende da volta. Você sabe que a casca é que engrossa o pau, não?
Lenhador: Por que não vai tomar banho na caixa de fósforo? Está pensando que comigo tudo é várzea?
Vendeiro: Vocês dois aí nesse lenga-lenga. Quem puder mais que engula o outro, mas lá fora. Aqui dentro não.
Lenhador (ainda ao Catireiro): deixa estar, jacaré, que a lagoa vai secar. Você tem o olho maior que o bucho. Mas que tenha cuidado. Não é só Deus que mata não.
Catireiro (preocupado): Já cansei de dizer que se um dia mexi com sua mulher, foi por engano. Pensei que era outra mulher. Mas tenho que ficar dando explicação a vida inteira?
Lenhador: Qualquer paixão me diverte. Para onde o vento der, o pau lá vai.
Vaqueiro (interferindo): Vocês estão com a mania dos paus. Parece até que estão com um na frente e outro atrás.
Lenhador (indicando o lugar onde está sua genitália): Este aqui está perguntando: cadê aquele vaqueiro sem vergonha?
Vendeiro (preocupado): O que é isso, gente? Vocês não amarram a égua no mesmo pau, mas são farinha do mesmo saco. A cara de um, o focinho do outro. Briga é pra cachorro. Vamos matar o bicho? (entorna a cachaça nos copos, e todos bebem, uns fazem caretas, outros lambem os beiços).
Roçador (a cantarolar): “Estou ficando velho/ Estou ficando fraco/ Estou encolhendo a pomba/ Estou espichando o saco”.
Lenhador (referindo-se ao Roçador): Esse aí é bobo até onde chegou e mandou parar.
Roçador: Bobo é ovo na boca de seu povo.
Vendeiro (ao Carreiro): E você? Está aí quieto como a imagem de um santo.
Carreiro: Estava pensando nos paus, uns nascem para santos, outros para tamancos.
Vendeiro: Mas nem todo dia é dia santo. O que você vai levar hoje, de mantimento?
Carreiro (desatento): Estou pensando na vida. A alegria do carreiro é ouvir o carro cantar.
Roçador: Estou pensando é na mulher que o Zecapião está comendo.
Lenhador: A minha é que não é. Quem fala demais dá bom dia a cavalo.
Vaqueiro: Falou em cavalo é comigo mesmo. O que vocês estão aprendendo, estou esquecendo.
Lenhador: Você chegou há pouco de fora. Aqui no Arraial - e sapo de fora não ronca.
Vaqueiro: Quando um burro fala, o outro murcha a orelha.
Lenhador: Onde mesmo você nasceu?
Vaqueiro: Pra lá do toco e pra cá da raiz, onde o cachorro cagou e sua avó atolou o nariz.
Vendeiro (ao Lenhador): Você podia bem dormir sem esta!
Vaqueiro: E você, quando sai para trocar cebolas com os bobões das bibocas: o que pensa que sua mulher fica fazendo em casa?
Catireiro: Envém você com mulher no meio outra vez. Não mexa com quem está quieta.
Vaqueiro: Dou um boi para não entrar na briga, mas quando entro dou uma boiada para não sair.
Catireiro: Quê boiada, você dá, sô? A do seu patrão? Deixa o Quinca Afonso saber disso?
Vaqueiro (nervoso): A minha boiada é do Quinca Afonso e sua mulher é do (olha na porta o Capitalista voltando)...É de quem chega. É de quem chega primeiro!
Capitalista (entrando, ressabiado): O que há de novo aí?
Vendeiro: Muita galinha e pouco ovo (o Capitalista senta no balcão e fica olhando os outros, calado e sem graça).
Roçado (ao Capinador): dizem que você é muito ladino e muito maludo...
Capinador (rindo): Eu? Sou o último que fala e o primeiro que apanha.
Lenhador: Dizem que urubu sem sorte atola até nas pedras.
Catireiro (a respeito do Capinador, gozando): O que ele é, é mau calado. Dizem que já deu em dois soldados lá na estiva e ainda amassou a cabeça do cabo. (risos).
Capinador (espantando um cão que entrou na venda): Olha só como ele não tem nem um pinguinho de vergonha de andar pelado... Sai do meio dos outros, cachorro!
Lenhador (rindo): A bobagem ainda vai te carregar, um dia.
Capinador: O bom julgador a si se julga.
Lenhador: Coração bom está aqui no peito, só falta é trato.
Roçador: Alguém aí ouviu o galo cantar e não sabe aonde.
Lenhador: uns gostam dos olhos, outros da remela.
Carreiro: Mulher é igual chita: uns acham feia e outros, bonita.
Catireiro: Mas a galinha do vizinho é sempre mais gostosa do que a nossa.
Lenhador: Essa é a opinião do seu vizinho?
Catireiro (levantando-se, dando a impressão que ia partir para a briga braçal): Vou propor um enigma. Quem tem a mulher que dá pro Zecapião tem uma palha na cabeça...(todos se levantam dos sacos e do balcão, incomodados e enraivescidos, rodeiam o Catireiro que, amedrontado, põe as mãos sobre os olhos fechados, como se temesse uma agressão).
Catireiro (corrigindo-se): Não falei por mal. A mulher que dá pra ele pode ser uma de qualquer um de nós, pode ser a minha, que apesar de ter os cabelos lisos, é muito ajeitada de corpo, tem boa altura, boa largura e... (aí todos desfazem a roda e se reacomodam na sacaria e no balcão).
Carreiro (ao Catireiro): Vai avançando na lua pensando que é queijo, para ver o que é bom para a tosse.
Roçador: Em vez de enigma, vou fazer uma pergunta com a reposta encavalada: O que tira o homem do sossego? Mulher bonita, cavalo inteiro e lodo dentro do rego?
Vendeiro (alheiado): Quem não tem couro não faz barganha com a cuíca. Quem toca sino não acompanha a procissão.
Catireiro: Chifre é igual dentadura: demora, demora, mas acostuma.
Lenhador: Esse cara está querendo uns petelecos! Quando se procuram porcos, até as moitas roncam, não é meu amigo? (Pergunta ao Roçador).
Roçador: Não me comprometa. Amigos, amigos, negócios à parte. (ao Capitalista) O senhor é que está com o burro na sombra. Soube que está comprando a Fazenda do Gabrielinho...
Carreiro (baixinho, de forma a não ser ouvido pelo Capitalista): Comprando ou tomando na marra?
Vendeiro (tentando agradar ao Capitalista): Quem compra terra não erra.
Capitalista: Quem tem cabras, cabritos vende.
Carreiro (saindo): Em lagoa de sapo, mosquito voa bem alto.
Capitalista (indo para o fundo da venda): Quem tem cabeça de cera, não deve pô-la ao sol.
Carreiro (já do lado de fora): Quem fala do Diabo, pisa no rabo.
Vendeiro (contemporizando as possíveis ofensas): A vida boa está no prato raso.
Capinador (saindo): Em terra de sapos, andemos de cócoras (imita um corcunda).
Lenhador (saindo): Burro velho conhece o pau onde pode coçar.
Roçador (saindo): Se tem formiga na escada é sinal que tem doce lá em cima. (entram um Velho e uma Velha).
Catireiro (ao Capitalista): Esse velho e a velha dele. Os dois não parecem a tampa com o balaio?
Velho (apontando o Catireiro e o Capitalista, ao Vendeiro): Os dois aí:o malho com a bigorna.
Lá fora o sol declina na serrania, atrás da torre da Igreja. Os pássaros ainda cantam na alegria verde dos quintais. A meninada ri da cara amarrada do homem de poucos amigos. A mulher no chafariz põe a rodilha na cabeça, mas não agüenta o peso do pote. Um homem feio que nem embrulho de mandioca passa pela mulher do Caetaninho Maleita e suspira: “Ah, lá em casa!” Uma furreca vem buzinando. É sinal que o pãozinho de sal e o de doce acabam de chegar do Arraial Novo. As mulheres daqui não fazem mais quitandas? – O passarinho que vinha seguindo a furreca do Zé Pereira, pergunta. A buzina da furreca responde, cantando: “Elas só pensam em namorar!”