segunda-feira, setembro 29, 2008

AMOR EM PEDAÇOS

1 – Súmula filosófica de André Comte-Sponville: “Aceitar e amar a vida como ela é mais do que esperar uma outra: seja uma outra vida depois da morte, seja uma outra vida aqui embaixo”. (Contra-capa do livrinho(livrão) “Nomes de Deuses – o Alegre Desespero” – tradução de Maria Leonor F.R. Loureiro, Editora UNESP, São Paulo, SP, 1999. 2 – Comentário do Leitor LB: mesmo sabendo que Deus não está olhando especialmente a minha pessoa, lá do céu (mesmo porque Ele assim não existe – nem o céu), não consigo libertar-me do hábito piedoso de, na solidão do sofrimento cotidiano que às vezes desaba sobre a minha fragilidade humana, das exclamações e lamúrias contraidas empiricamente ao longo do tempo (“Ah meu Deus do céu!” e “Acode-me, Deus, Pai Nosso!”). O hábito faz o monge, diz o provérbio erudito – e o uso do cachimbo faz a boca torta – diz o ditado popular. É certo que fomos educados, desde à infância, para sermos frágeis e dependentes – e, depois, por mais que desejamos reciclar nosso comportamento, nosso lado vulnerável nos trai, e os suspiros e as imprecações assaltam-nos naturalmente, como se a parte mórbida de nossa pessoa infiltrasse na nossa parte lúcida. O que mais precisamos saber e disso conscientizar é que, sem o Deus tradicionalmente inserido no nosso subconsciente , mesmo sem Ele, não estaremos desprotegidos em nós mesmos, não estaremos desolados e, por que não dizer, desesperados na solidão. Se um valor religioso esfumaça, um valor metafísico ilumina: se não podemos contar com a ajuda da transcendência, temos, à nossa disposição, o auxílio da imanência: a confiança nos valores da sã consciência, da fraternidade social, do amor das criaturas, da fidelidade nos valores morais e poéticos. É uma conversão que às vezes pode trazer lágrimas do coração aos olhos. É assim mesmo, a verdade triste e verdadeira. Mesmo assim ela é, essencialmente, necessária à saúde, sendo como é, fonte de movimentos direcionados a uma possível alegria feliz. 3 – Em Nome de Deus. Aprendi, desde a mais tenra idade, a dizer: - “Deus me livre! – Diante de uma adversidade. - “Graças a Deus!” – Diante de um benefício. - “Deus queira!” – Diante de uma boa perspectiva. - “Meu Deus do Céu!” – Diante de uma incógnita ou dentro de um suspiro de apreensão ou de alívio. - “Se Deus quiser!” – Diante de uma esperançosa oportunidade. - “Assim Deus quis!” – Diante de uma perda irreparável. - “Deus seja louvado! – Diante de uma graça alcançada. E por mais que na maturidade intelectual da idade adulta você passa a descrer num Deus assim tão pessoal e onipotente, você continua a repetir tais exclamações, acintosa ou instintivamente. Se não é uma crendice, não chega a ser uma blasfêmia, uma vez que procedendo assim o incrédulo retardatário não está fazendo nenhum mal a ninguém. 4 – O Verso Descolado. Ganhei o dia salvando um verso do marasmo prosaico. 5 – O Amor em Pedaços. - “Quem começa a entender o amor, a explicá-lo, a qualificá-lo e quantificá-lo, já não está amando” – Gilberto Freyre. - “Nunca devemos julgar as pessoas que amamos. O amor que não é cego, não é amor” – Honoré de Balzac. - “O que se faz por amor está sempre além do Bem e do Mal”. – Nietzsche. 6 – Atenciosamente. As pessoas sérias e atentas, coniventes e interessadas no desenrolar da vida no mundo são (e estão) aptas a prestar depoimentos nos anais da pesquisa sociológica. Suas antenas (precárias? Habilitadas?) captam e conservam os traços e rastros das pessoas e dos acontecimentos de, no mínimo, três gerações contemporâneas: a dela mesma, a imediatamente anterior e a posterior. Sabem de cor e salteado sobre uma porção de gente, de lugares, de acontecimentos. Vivem numa espécie de cenário tridimensional. Folgadamente. A Graça de Cantar. 7 – A graça de cantar é uma fluência instintiva que pode dispensar o recurso da lucidez. Reparem nos termos da trovinha popular: “Chuva choveu/ Goteira pingou./ Pergunta ao papudo/ se o papo molhou.” O Poeta russo, “ Maiakóvski, introduziu (por volta de 1912 e depois dele o francês Jacques Prévert) no poema a linguagem da rua, as palavras do povo e as construções gramaticais familiares, sem que o poema se perca por esse motivo na insipidez banal das conversas de mesa” (Francis Combes, em “MAIAKÓVSKI – Vida e Poesia” – editora Martin Claret, São Paulo, SP, 2008).

domingo, setembro 28, 2008

NOVOS GRÃOS DE PÓLEN

Palavras provisórias de um livro em preparo, intitulado, também provisoriamente, de NUMES TUTELARES – Os Mestres de Outrora: a política sempre utilizou o até hoje inesgotável arsenal de ferro e fogo para controlar as populações urbanas e rurais de todas as partes do mundo. No Brasil o cidadão da roça e do campo fica peado e manietado, subjugado ao móvel sistema de controle acionado pelos donos do poder. Contra esse estado de coisas nojentas é que ao longo do tempo os numes tutelares da insurreição se levantam brandindo as palavras de esclarecimento, com a finalidade não de virar o jogo, que isso tem sido humanamente impossível, mas de pelo menos lavrar seu protesto de forma pública e notória, visando contrabalançar as arremetidas dos recrudescimentos despóticos. Brandir as palavras não basta, como não basta exercitar o quixotismo, mas os que tentam “segurar” o incansável recrudescimento, levantam as cabeças e erguem os braços enquanto proferem suas veementes locuções, oferecendo as veias do pescoço e dos pulsos e a própria pulsão do espírito – e assim a vida e não a morte continua a dar o ar de sua graça no planeta. De uma carta de 1998 remetida à poeta Maza de Palermo, que provavelmente não recebeu: “Há dias que venho lendo seu livro e parece que não chego jamais ao fim dele, porque cada fim é um recomeço – e além disso sinto que há uma grande distância entre um poema e outro; e assim tenho que parar para descansar e recuperar o tino anterior, ou melhor dizendo: - O livro de Maza de Palermo é uma pugna entre a piedade e a violência, é um casario humano, uma estatuária greco-romana, uma floresta de troncos abruptos e frondosos. É bom saber que há uma grande distância entre os poemas: é como sair de uma casa penhorada e chegar em outra remida, é como acorrentar Prometeu nos próprios olhos e examinar as arestas dos olhos e dos sexos de Júpiter, de Minerva, é como subir nos galhos da aroeira em extinção e depois colher as frutas e as sombras do pé de araticum. É um livro torrencial? Cada parte, parte para outros fins: as linhas são como tábuas de uma ponte pênsil... Cada verso é uma lágrima? Uma dor? Cada poema é uma flor da realidade? Marilyn Monroe Segundo Billie Wilder ela era muito mais provocadora que provocante, ou seja, mais atriz do que personagem. Isso quer dizer que alardeou sua imagem pública de estrela sensual, ocultando no recesso da intimidade a sua identidade primordial e autêntica, de mulher comum, familiar, social, amiga dos amigos – o que os produtores e lucradores de seu estrelato não permitia. Daí a predominância de sua imagem pública em detrimento de sua verdadeira imagem. A Vida Depois da Morte: Um irmão de meu avô, o Tonico Barreto, mudou com a família do Desterro para São Sebastião do Curral, ou seja, do Arraial Velho para o Arraial Novo, onde exerceu várias funções públicas, enviuvou-se, casou de novo e faleceu. Um dia, quando exercia o cargo de Delegado de Polícia, procurou a neta Geralda (segunda esposa do Antonino) e fez a seguinte proposta: “conhecendo-a como conheço e sabendo que é uma pessoa de palavra, como eu sou, proponho-lhe voltar à vida, depois que morrer, para contar como é a coisa lá na eternidade. Se você morrer antes, você vem me contar, combinado?” A Geralda, sem pestanejar, concordou. E como já sabia que ia acontecer, o Tonico morreu primeiro e lá numa tarde brumosa, dessas que precipitam a chegada da noite, estando ela a cabecear no quarto de dormir, na fazenda da família lá nas Itapecericas, lugar que hoje tem o nome de Aquiles Lobo, quando ouviu o silencioso rumor (se isso é possível) da chegada invisível do avô, que foi logo dizendo: “Ó minha querida Genera, não se assuste que vim em paz e amor cumprir o prometido. Fique tranqüila e ouça: lá onde estou não é como dizem, nem como pensam, nem como sonham, nem posso dizer como é. Vim porque sou homem de palavra. Mas feliz ou infelizmente você só ficará sabendo como lá é depois que um dia ( que ainda vai demorar), for dessa vida. Assim é, pode ter toda certeza. Toda a humanidade ignora e continuará ignorando e só vai saber depois do Juízo final.” E mais não disse e sua invisível presença foi embora, levando o silencioso rumor para o infinito da eternidade.E ela, a Geralda do Antonino, dormiu por muitos e muitos dias seguidos. E quando acordou, contou. Frase de uma extrema sabedoria, que às vezes vem assim de repente – e a gente não sabe de onde veio: “de uma criança a gente não espera que simplesmente chore, mas que também xingue”.

OS GRÃOS DE PÓLEN

1 – Mae West costumava dizer que quando era boa, era muito boa; mas quando era má, era melhor ainda. Alguém pode rir do sexo? Ela ria. Mas ao contrário do que se propagou durante muito tempo (“tome cuidado ao passar perto dela; sua libido está a ponto de explodir”), ela morreu praticamente virgem. Praticamente virgem? Sim, era uma abstêmia sexual. 2 – Temos que pôr a mão no coração e reconhecer que o sexo é mesmo algo fantástico e que a melhor sexualidade está ao nível de nossas fantasias, derivadas, é claro, de nossa realidade tátil-visual-olfativa-palatável-libidinal, com um pitada de mistério aqui e outra de poesia ali. 3 – Janet Leigh (ou uma sósia perfeita, que a representava): quando a vi numa manhã dominical do Parque Municipal de Belo Horizonte (onde eu vivia na década de 50), com os seus inconfundíveis olhos lancinantes me flertando, ah, tudo mais desaparecia, só ela era toda a manhã dominical, com aquele olhar de poesia que procura um poeta (que infelizmente eu não era) à altura de seus poemas mais interiores. 4 – Drenar um brejo é necessário? O arroz pode ser plantado noutro terreno, o pasto para o gado brota em qualquer outro lugar, mesmo nos altos. Mas um brejo..., a última lembrança de um rio...: é um viveiro auto-suficiente dos remanescentes dos seres amabilíssimos da fazenda. E, além disso, o que será do lençol freático que nele vem tomar um pouco de ar livre? 5 – Só nas mãos dos maus praticantes é que o ato sexual vira um ato violento, uma sevícia, um estupro. Quando isso acontece, a constelação das virgens lá no céu perde o sono e vira uma manada de rãs a coaxarem, transformam-se numa caixa de marimbondos açulados. 6 – Sim, acho que consegui aprisionar nos meus os olhos dela. Estão aqui guardados, retinados, disponíveis para novos olhares pensamentais. Mas até quando conseguirei segurar o brilho deles, tendo no meio tanta neblina, tanta distância? 7 – Todo homem que se defronta com o infortúnio, que é despojado da prosperidade material, acaba descobrindo que existe um remoto e pequeno ponto na imaginação, que não se manifesta amiúde, onde o espírito é capaz de manter-se a salvo, embora tal ponto jamais fosse suspeitado nas épocas de fortuna e abundância. Job transformou-se em primoroso poeta assim que seus rebanhos e manadas foram tomados e carregados. Assim disse James Russel Lowell (1819-1891). 8 –Cibele Ruas dizia em fins do ano passado (2003) que os chamados doces bárbaros (existencialistas, surrealistas, socialistas, hippies, feministas, desconstrutivistas etc), que invadiram e revolucionaram o século 20, estão sumindo. O que é uma pena. Penso na nova barbaridade dos terroristas, traficantes, seqüestradores, assaltantes, homicidas, mensaleiros, sanguessugas, membros da infame corporação do crime organizado, fisiologistas, e desavergonhados em geral) que estão invadindo e destruindo o século vinte e um já, em seus albores. Serão defenestrados como vírus letais? Quando? 9 – O criminoso hediondo (seja de colarinho branco ou de pescoço macuquento) a fugir das pessoas de bem, a procurar o nevoeiro dos ermos, a treva dos abismos. Por que não se planta logo nessas paragens lúgubres, dando sossego às pessoas de bem? 10 – Você se desnuda todo quando perde a vergonha na cara – e aí não tem mais como esconder a feiúra dos defeitos. O sentimento da vergonha sobrepuja o da culpa, como lá diz Silviano Santiago, que põe na boca de um personagem a catilinária contra a liturgia católica da confissão e expiação dos pecados. Pois a nódoa que se aprofunda não se apaga – e assim o expediente do confessionário é apenas uma credencial para novos cometimentos pecaminosos. 11 – O espaço flutuante (da ação e da situação) onde se movem a família e a comunidade: a guerra e a paz coexistem ali, explícitas ou implícitas, diuturnamente. 12 – As oportunidades não surgem gratuitamente, não são atiradas a deus-dará, impunemente. É pré-requisito para aproveitá-las estar adredemente preparado para recebê-las e cair em suas graças e fecundar suas entranhas, injetar e cruzar seus genes, e assim procriar a posteridade dos amálgamas. Assim como as árvores recebem as folhas, as folhas recebem as frutas, assim as mãos do escritor estarão aptas e espalmadas, sanguíneas e sedosas, otimamente preparadas para receber as palavras do dicionário e com a doce desenvoltura dos bons modos amaciá-las, proferi-las no crivo dos bons sentidos, e escrevê-las com todas as letras do alfabeto de que é constituído o mundo e a vida. 13 – Uma pessoa só vale a pena ser uma pessoa se for o amor de outra pessoa. 14 – Toda noite ia finalmente deitar num leito de pedra, tendo de um lado a angústia e do outro a canseira, e no teto o vazio que precisava preencher de sonhos e realidades. 15 – Primeiro você saboreia os doces eflúvios do ilusionismo e da enganação, depois come o pão que o diabo amassou com o rabo. Primeiro as sereias cantam nas ilhas paradisíacas, depois você se torna um bebê chorão sobre o leite derramado. 16 – O que é pior: a arrogância do desafio ou a humildade da cabeça baixa? 17 – Quem quer pegar um passarinho não chega dizendo xô. Mas o pássaro que você pega e mata vira uma cobra na sua consciência, não ? Ou você já é uma cobra? 18 – Uma mulher às vezes vale por todas. É a atriz que encarna várias personagens na sucessão dos espetáculos. A cada aparição dos lábios, e da irreflexão do olhar – é assim que nela espelha-se a noite das peripécias, o dia das surpresas. E depois... a intimidade implícita, a perder de vista... 19– Laura de Mello e Souza (é uma historiadora, mas bem que podia ser um poema, ou melhor, uma poeta) escreve que as colônias já estavam fadadas “a servirem de imenso purgatório aos pecados do Velho Mundo”. Na opinião dela o Brasil colonial era “natureza edênica, humanidade demonizada”. 20 – O caminho ao redor de uma esfera, a beleza que faz chorar. Quantas vezes já tive que recorrer ao lenço para não molhar as páginas de Dostoievski, Proust, Guimarães Rosa, Drummond e Pedro Nava, não por tristeza ou dor, mas pela emoção da beleza ardorosamente encontrada nas palavras que eram gestos, semblantes, beijos, caminhos, desejos, nuvens, fulgores, as palavras como seres e coisas. Os círculos concêntricos ampliando e desaparecendo como os efeitos de pedras atiradas na flor das águas de uma lagoa, que se desdobram em anéis de variações seqüenciais tão graciosas. 21 – Ésquilo define os gregos na peça “Os Persas”: eles não eram escravos nem súditos, -definição que condensa, na opinião de Cornelius Castoriadis, “um programa político para a humanidade inteira”. 22 – O sonho é uma espécie de vida paralela e complementar? Sem ele a vivência estaria confinada, perderia muitas de suas válvulas e de suas ações retroativas e mesmo progressivas. Sonhar é viver. 23 – existem pessoas inconfundíveis que, nem que passem muitos e muitos anos, jamais cairão no olvido de outras pessoas. É assim que às vezes quem está olhando o feio que se tornou, vê o bonito, que não sumiu da lembrança. 24 – A Ida Lupino no filme “Entre o Amor e a Morte”: os olhos em todo corpo, parte da bunda comida por um peixe, mas todinha auto-iluminada. Como uma pessoa assim pode um dia envelhecer e cair no ostracismo? Nem depois de morta. 25 – O verso livre é a linguagem franqueada de toda regularidade rítmica, logo uma prosa, como quer Roger Cailois? Não e não, eu penso. A própria prosa tem que ter lá seu ritmo, se quer exprimir uma continuação de vida e não sua imobilidade. 26 – De fome e de sede morria o rei da lenda no pomar e no jardim onde abundavam as águas das frutas e as frutas das águas..., e é assim que morro de impotência e de ignorância ao pé das armários dos livros da sabedoria humana longamente concatenada. 27 – O colonialismo cultural começa cedo. As crianças de hoje gostam mais de rock do que de samba. Por que? O uso do bico deforma a boca? No rádio, na televisão, em toda parte, só se ouvem a chamada música pop. O samba agora é estrangeiro na própria terra natal. 28 – Com o alargamento dos horizontes as pessoas ficaram contraditoriamente mais limitadas? É difícil de se ver alguém desenvolto, falando à vontade das coisas e dos seres. Onde quer que esteja, está sempre espremido entre aspas, parêntesis e paredes. 29 – Os picles shakespearianos, nunca por demais citados: “me adula quem me conta a verdade”; “jamais a cólera foi boa guardadeira de si mesma”; “a palavra de amor cavalga o coração apaixonado como a plumazinha do cisne na alta onda do mar revolto: sem voltar-se para nenhum lado”. À mulher sovina, que mata o prazer ainda em botão, ele recrimina num soneto, alegando que ela dá de comer à terra o que é do céu. O que em sentido prosaico coincide em linguagem popular brasileira o que o amante afoito diz à amada avara: “se não me der , a terra vai comer”. Nutres o ardor com as próprias energias – ele acrescenta: causando fome onde há tanta abundância. Só ele mesmo, para nos ser tão fiel e prestimoso, heim? 30 – Uma pesquisa nos EUA confirma que é importante para as pessoas acima dos 60 anos de idade fazer exercícios físicos e mentais continuamente, ter a companhia de um gato ou de um cachorro – e que a vida amorosa delas deve ser valorizada, não existindo nenhum motivo para diminuir a atividade sexual. 31 – O poeta, este ser intemporal contemporâneo do passado do presente do futuro conterrâneo de Demócrito de Jesus e de si mesmo. 32 – Como diria a Sabedoria Zen do Oriente: antes de conhecer a verdade, as montanhas são montanhas, as águas são águas. Enquanto conhecemos a verdade, a montanha já não mais parece montanha nem a água parece água.Mas depois de conhecer a verdade (a iluminação da beleza) a montanha volta a ser montanha e a água volta a ser água. 33 – A expressão “mundo xuxa” começa a ser cunhada na imprensa mais consciente do país, para tentar explicar o esforço (melhor diria o despudor) de certas figuras para boiar na mídia, mesmo que para isso tenha que vender a alma aos diabos da presunção e do estrelismo imposto e não merecido. É uma variação (uma modernização?) da antiga expressão “mundo cão”, sem a mesma crueza, mas com o mesmo despudor. 34 – Falam do chupa-cabra fisiológico e esquecem do chupa-cabra ideológico. Afinal quem esvazia mais a mensagem do socialismo utópico (como uma possível escada de Jacó)? Quem usurpa da juventude bem articulada a vitamina do cristianismo e injeta nela o arrivismo das castas e corporações que se impõem a qualquer preço? Quem fundiu as imagens (agora manjadas) do FHC e do Lula numa espúria bolha gelatinosa? Quem está comendo a mão esquerda das pessoas ou tornando-as, nas pessoas, uma outra mão direita, irrisoriamente cooptada? Esquerda e direita amputadas? 35 – Muito político esclerosado de nascença julga que o poder público é uma creche na qual pode aninhar seus parentes e amigos incapazes de viver por conta própria. É assim que boa parte dos recursos que deveriam beneficiar muitos, concentra-se nas mãos inábeis e desonestas que não sabem e não querem trabalhar e têm raiva de quem sabe e quer. 36 – Cristina Landman, teóloga africânder (da minoria da África do Sul), recomenda a poligamia contra certas conhecidas mazelas sociais: infidelidade conjugal, doenças sexualmente transmissíveis e o divórcio. 37 – Bela Bartok, compositor e folclorista húngaro, era um apaixonado pela busca do novo no velho, assim como no Brasil fazia o nosso querido Mário de Andrade, poeta e pesquisador, que classificava as tradições em móveis e imóveis: elásticas e recicláveis as primeiras, empertigadas e inúteis as segundas. Os dois artistas e intelectuais sabiam dar nomes aos bois, abrir e fechar aspas para citar os precursores e até os diluidores. 38 – O casal andava tão às turras que quando o telefone tocou e o marido foi atender, a mulher ficou de lado, olhando-o, inquisitoriamente, querendo saber quem estava do outro lado da linha. O marido, percebendo, tampou o bocal e disse, olhando-a: “É a sua mãe”. E ela (sabem o que ela disse em resposta, vermelha de raiva?) Ela disse em alto e bom som: “É a sua, seu...!”. 39 – Os monopólios agroindustriais acabam com as fazendas e controlam a produção de grãos no mundo inteiro, causando desemprego, êxodo rural e desqualificação do produto. O sanduíche de presunto não tem gosto de nada “e sua textura”, diz Gore Vidal, “é de um plástico cor-de-rosa. Isso porque nas grandes criações de porcos, estes permanecem em um só lugar durante toda a vida. Como não se locomovem nem fuçam na terra, não criam resistências naturais às doenças”, precisando da injeção de muitas drogas em seus corpos “prisioneiros, até sua morte e transformação em presunto incomestível”. 40 – A criança de hoje em dia considera a violência como algo comum do seu dia-a-dia de tanto vê-la, incessantemente, nos canais da televisão de sua casa. Chego a pensar que ela às vezes chega a pensar que o ser humano em geral só tem mãos para esmurrar e atirar – tal é o grau de veiculação do culto da violência em nosso tempo. 41 – A Televisão Brasileira está ótima em muitos casos e péssima quando acirra a competição por audiência. Aí surgem as figuras nada simpáticas dos Ratinhos e Faustões, dos Gugus e Silvios, das Márcias e Xuxas da vida. 42 – Como sentimos hoje a ausência do político-tribuno e a presença do político-despachante! O primeiro subia a tribuna para defender as grandes causas populares; o segundo é este que entra-e-sai nos gabinetes com os tapinhas nas costas, desviando uma verba daqui e outra dali, desmoralizando as dotações orçamentárias de todas as instâncias governamentais, para unicamente defender os próprios interesses eleitoreiros e bolsistas. 43 – A noite o frio era tanto que congelava a voz até das pessoas monossilábicas. Era preciso que o dia amanhecesse e o sol saísse para degelar o ar. Só então a voz deles ficava audível. 44 – Sade, Byron e Baudelaire, entre outros, trazem a angústia para o primeiro plano da literatura e transformam o feio, não em instrumento de beleza, mas em categoria estética autônoma. Igualmente estão em sintonia com eles as formas sobrenaturais de El Greco, a movimentação trágica dos barrocos, os pesadelos de Goya, a epilepsia de Brueghel, as figuras anãs de Velasquez. Foi assim que modernamente se rompeu a estética tradicional de filiação helênica (adaptação de LB de um arrazoado de Jamil Almansur Haddad). 45 – O doce pássaro da juventude não só voa no esplendor das plumas como canta na graça das flores. E tem a forma física específica e o conteúdo espiritual da conjugada leveza e mobilidade. 46 – É difícil e desnecessário polemizar com as pessoas mentalmente bloqueadas. O raciocínio delas é lento, curto e grosso: vai e volta indefinidamente no restrito círculo do cérebro hermeticamente fechado. 47 – Apreciei muito um dos quadros do especial de TV sobre a premiação do Oscar/98, justamente o que focalizou os astros e estrelas da chamada fase áurea do cinema, que ainda estão vivos. Encantou-me profundamente rever, numa aquarela risonha e franca, as figuras que encantaram minha adolescência e juventude, entre as quais Patrícia Neal, Claire Trevor, Tereza Wrigth e Jenifer Jones, que aproveitei como personagens (a Patrícia e a Claire, marcantes) em meu romance “Por Que Choras, Saxofone?”, ambientado na Belo Horizonte tão cinematográfica dos anos 50. 48 – Enquanto os governos brasileiros (dos municípios, dos estados e da federação) não conseguem resolver os dolorosos problemas dos menores abandonados, um casal de abnegados (ela alemã e ele paranaense, ambos diplomados em cursos superiores, no estrangeiro) começa a executar um projeto de aldeias educativas para menores carentes numa fazenda (que por sinal pertenceu a um trisavô meu) adquirida por uma ONG alemã, em Marilândia, a 30 km. de Divinópolis. O projeto tem tudo para dar certo, é de uma simplicidade franciscana, que inclui a participação efetiva da comunidade e se baseia no princípio cristão do amor entre os semelhantes. Conversando com os dois constatei uma coisa rara, e que devia ser comuníssima: a vida humana tem a mesma importância numa criança de rua e numa criança palaciana. E na ação deles fica também evidente que a humildade dinâmica constrói e que a vaidade improdutiva (que tanto vemos em tantas administrações da miséria) destrói. 49 – A escritora Leyla Perrone-Moisés , em seu livro “Altas Literaturas” esclarece muita negligência da vida cultural de nossos dias no país. Afirma que “os teóricos da escola de Frankfurt discutiam a relação entre arte e política em termos de ação emancipadora do homem. Hoje não vemos nem estetização da política nem politização da arte; o que vemos é uma circulação indiferente da arte, como um dos bens de consumo da sociedade capitalista”. Estado demais é terror, ela diz numa entrevista ao caderno “mais!” da Folha , “mas o que estamos vivendo é o Estado de menos. É a entrega dos destinos, não só da cultura, mas da sociedade, às leis do mercado, que não partem de avaliação nem de critérios de valor, pois só visam o lucro. ( ) O que está acontecendo é uma nova barbárie”. No livro, a certa altura, ela põe a ponta do lápis na crise atual de nossa literatura: “passaram a ter sucesso os escritores fotogênicos ou de vida interessante, as biografias dos mesmos começaram a ser mais vendidas do que as próprias obras.” 50 – O articulista da Folha de São Paulo, Marcelo Coelho, comenta o livro de Renato Mezan “Escrever a Clínica”, no qual o psicanalista tenta montar um curso para melhorar o estilo de escrever dos pós-graduandos em psicanálise e também nos outros cursos. Assim o faz o por estar “chocado com a má qualidade dos textos que é obrigado a ler como pesquisador, orientador de teses e professor universitário”. No fim do artigo, Marcelo escreve: “Mezan está lutando contra as falsas vocações, contra a absoluta falta de talentos”. E fico mais uma vez na dúvida sobre a preferência que as editoras brasileiras têm por livros assim acadêmicos, mal escritos e de sacrificante leitura. Não é um contrasenso? 51 – Pequena Homenagem a Liv Ullmann: A boca carnuda, os lábios revirados como os de quem vive a beijar (inchados de tanto beijar?). Andando dentro de um sonho, como se o sonho fosse uma paisagem. Tire a parte azeda do amor deixe apenas a mais doce. Assim quando a luz do meio apaga, a das beiradas enrodilham-se, rosadas. 52 – Fragmentos da Poética de Antônio Carlos Secchin, publicada no jornal “Poesia Viva” (Rio, agosto de 1997): “evite acordar o incêndio implícito de cada fósforo. E quando nada mais tiver a evitar, evite todos os horóscopos (...) Não nos iludamos: a disputa pelo trono do poder literário anti-acadêmico é tão ferrenha e feroz quanto a que se dá do outro lado. (...) As noites de autógrafos se transformam em rituais simultâneos de batismo e óbito de um livro, que, fora dali, não será mais visto em lugar nenhum”. 53 – Gostei muito da opinião de meu filho sobre os alemães – ele que estava estagiando numa Universidade de lá: “Todos são muito corretos, gostam de tudo muito certo e na hora certa. São rigorosos, mas isso é o correto. Estou gostando muito daqui, embora esteja com saudades daí.”É claro que o jogo de cintura brasileiro, seu flay-play e non sense, são comportamentos mais divertidos. Mas infelizmente toda a virtude dessa bela afabilidade está hoje sendo maculada pelo estigma da desonestidade que provem da chamada lei de gerson que recomenda levar vantagem em tudo, doa a quem doer. 54 – O amor tem seus altos e baixos, alegrias e tristezas, em toda sua inteireza muito de bom e muito de ruim. É uma teia de fios desconsertantes, uma incessante indicação de incertezas, um viveiro de dúvidas. Mas é também uma fonte de boas afirmações: doçura, felicidade, fervor, sublimidade. Diante dele os juízos de valor têm pernas curtas e braços canhestros: as pessoas pisam nos rabos, mordem nas línguas, dão varadas na água, exultam e deprimem com a mesma facilidade (e regularidade). Os conceitos de fidelidade, constância, traição, adultério, continência, param no ar das hipóteses e não no chão firme dos respectivos postulados. É levado da breca, esse tal de amor, essa flama conduzida por Cupido, o deuzinho grego que atirava flechas a torto e a direito nos corações confiados e arrependidos. A sociedade monogâmica sofre com suas diabruras. 55 – Pobre gosta é de luxo, já dizia o carnavalesco Joãozinho Trinta. O historiador francês Marc Ferro afirma que o socialismo ruiu de dentro para fora e não o contrário: a sociedade por ele produzida cansou de dividir as dificuldades e desejou mudar para uma vida mais livre e mais fácil. 56 – O sonho ecológico reincidente. A figuração móvel, tremeluzente,de um círculo branco rodeado de tarjas verdes: a brancura do deserto e a verdura da vegetação. Nota-se na circularidade tremeluzente da brancura um avanço paulatino nas bordas verdejadas. É o avanço da morte sobre a vida, na natureza? 57 – Quando você jura lhe pertencer, arrepiada e sorrindo e ele lhe jurar seu amor ser imortal, infindo – moça, é bom escrever: um de vocês está mentindo. (Dorothy Parker,trad. de Daniel Piza). 58 – Bouchardon, o escultor, disse, há dois séculos: “Quando leio Homero, sinto-me como se tivesse seis metros de altura”. ( ) O grande poeta proporciona aquelas palavras-chave, cuja posse nos transforma em mestre de tesouros insuspeitados, existentes nas cavernas do pensamento, do sentimento e da beleza e que se abrem a nossos olhos sob o poeirento caminho da vida diária”. (James Russel Lowell). 59 – Dizem que o famoso músico mexicano Xavier Cugat gostava tanto de mulher, que mesmo depois de morto, sentindo a aproximação de uma, de dentro do caixão abriu os olhos e disse: “Ô minha linda!” 60 – Carlos Drummond de Andrade, o poeta mais social de nossa história literária, escreveu em uma de suas crônicas que no Brasil o último escândalo nunca é o último, é apenas o anterior ao próximo. Na verdade o tempo brasileiro não parece constituir-se de ciclos sazonais e de fases lunares, mas sim de períodos de violência de ação e de situação. Já sofremos as repetidas fases das fraudes da Previdência e da falsificação de medicamentos e da compra superfaturada das ambulâncias; da corrupta compra de deputados corruptos; das chacinas em presídios e favelas e arrastões em ruas e praias; das fraudes e propinas na licitação de empreitadas de obras e serviços públicos; do extermínio puro e simples e impune dos focos de resistência às arbitrariedades; da onda de seqüestros duradouros, relâmpagos e/ou letais; das constantes e periódicas invasões dos desordeiros chamados de Sem Terra; dos sistemáticos assaltos aos caminhões de cargas; do socorro governamental aos banqueiros e usineiros; do fisiologismo e do nepotismo camuflado aqui e escancarado ali; da ascendência e mandonismo de figuras hediondas tipo PCFarias, Marcos Valério, Zé Dirceu, Paulo Maluf, Eduardo Azeredo, açambarcadores do erário público; da acumulativa, impiedosa escalada do desemprego; da proliferação dos mensaleiros, agora a nível federal, escandalosamente impunes; da diuturna insegurança pública de todo e qualquer rico ou pobre mortal não filiado às quadrilhas do chamado crime organizado; e das rebeliões dos presídios de insegurança máxima, que extrapolam para as ruas como focos de desesperada guerra civil. Até quando tal desordem pública constará da vulnerável e indefesa agenda das pessoas de bem, honestas e trabalhadoras? Qual será a manchete do próximo escândalo desse impiedoso destino da vida nacional? 61 – Está morta a égua, como dizia a titia lá na roça, quando ficava sabendo de algum escândalo público. Hoje os presidentes da república, os ministros, os deputados e senadores, os juízes, os empreiteiros, tantas excelências implantadas na nau dos insensatos. O que ela diria hoje das atuais circunstâncias? A vaca foi pro brejo? Na verdade andamos sempre espremidos entre aspas, parêntesis e paredes, neste país que nunca alcança a maioridade, ou seja, a seriedade. É sair do espeto e cair na brasa, como a tia diria. De tal maneira que a palavra política virou sinônimo da palavra corrupção. 62 – A boa música popular brasileira está emudecendo aos poucos. Às vezes, no trânsito das ruas e das estradas, sinto um pungente mal-estar, fico um tanto inquieto e preocupado. O que estaria acontecendo com o carro ou comigo? Aí resolvo desligar o rádio e assim como que por encanto a situação fica desanuviada e tudo se normaliza. Percebo então que a barulheira da pretensa música é que desatinava o ambiente dentro do automóvel. 63 – As donzelas guerreiras são tão numerosas na história, na literatura, na mitologia, na religião, que talvez possa dizer que não existia etnia que não tenha pelo menos uma heroína representativa da importância feminina. Na mitologia grega, Ônfale obrigava Hércules a cardar e fiar, vestido de mulher, e ainda lhe aplicava chineladas, quando ele se atrapalhava. E mais: Electra, vingadora do assassinato do pai; Antígona, desafiando a lei da cidade; Atalanta, que luta contra o javali divino e o vence. No sincretismo religioso afro-brasileiro, a Iansã, a que roubou o raio dentro da boca de Xangô, tornando-se a senhora das tempestades. E na literatura, a metamorfose de Maria Deadorina de Bettancourt Marins em simplesmente Diadorim, sob o disfarce dos cabelos cortados, os seios apertados pelo gibão de couro. O mito é reiterado na literatura oral e livresca de todos os povos, desde a famosa balada de Um-lan, do século V na China, até à figura histórica e lendária de Joana D’Arc, na França medieval. 64 – Algum tipo de catástrofe, diz Reinaldo José Lopes, atingiu os mamíferos da América do Sul há cerca de dez mil anos. Muito mais que os portugueses e seus sucessores, a catástrofe é a que fez mais estrago na fauna: desapareceram os ursos, cavalos, megatérios (preguiças gigantes), gliptodontes (tatus do tamanho de um fusca), macranquênias (herbívoros), tigres de dentes de sabre. Só os pequenos mamíferos salvaram-se da hecatombe. 65– Muitos bairristas prosaicos esnobam minha bela e querida Marilândia, ignorando a grandeza de seu passado, quando, com o nome de Desterro, era um Distrito polarizador na região, que circunscrevia uma área territorial enorme com partes que depois perdeu para Carmo da Mata, Cláudio, Divinópolis, Pedra do Indaiá e São Sebastião do Oeste. Naquele tempo, metade do século 18 até a metade do século 20, o lugar abrigava uma população mais numerosa do que a do Espírito Santo das Itapecericas (hoje Divinópolis) e de todos os outros distritos regionais da antiga Villa de São Bento do Tamanduá, hoje Itapecerica. Tinha um Batalhão da Guarda Nacional (meu trisavô Bernardo José de Oliveira Barreto foi o Comandante, por décadas), com centenas de praças na ativa e na reserva. Tinha um Juizado de Conciliação, um Clube de Arte Dramática, uma grande produção de rapadura, aguardente, café e, em tempos anteriores, de ouro, muito ouro, nas minas da Lavrinha, do Areado, do Bom Sucesso e nos rios Boa Vista e Itapecerica. É um lugar aprazível (conserva a igreja de Nossa Senhora do Desterro, uma das mais antigas de Minas), banhado por dois rios paralelos e eqüidistantes e servido por uma ferrovia e por uma rodovia. Como se diz: lugar bom está ali, só falta é trato. Terra também do grande estadista Gabriel Passos. E dos irmãos e sobrinhos do Padre Francisco Guaritá Pitangui, deputado provincial e depois deputado geral, nos meados do século 19, quando era o pároco local. 66 – Um simples pensamento (por mais singelo e belo que seja, por mais complexo e inteligente que possa ser) é o que resulta do esforço de uma chusma de neurônios, uma chuva de pingos da mesma natureza, uma acareação de componentes, a coerção de uma força de vontade: assim chegamos ao mesmo tempo à iniciativa da finalidade, à vontade da vontade da vontade. Mas que façanha danada é esta, afinal de contas? 67 – Os alforges noturnos da bruxaria despencam dos galhos e dos troncos vivos do arvoredo tolhedor das alturas e olhador dos chãos. Uma fera espiona naquela moita fechada? Uma interrogação atrás do cipoal? As atenuantes estrias filtradas no emaranhado das folhas. As criaturas sem bojo como as borboletas e as aranhas e as siriricas são profundamente superficiais, ou seja, o âmago e a pele delas é a própria encarnação do espírito e da beleza delas. Cada coisinha ou coisona tem lá seu íntimo significado? Tem? Tem! Então por que a nossa vida é tão estreita e pequena num mundo tão largo e grande? 68 – A fisiologia vegetal em vez de catarros, lágrimas, suores, fezes e urinas, tem lá suas raízes, cernes, galhos e ramos, folhas e flores que produzem perfumes, frutas – todo um rol de fortuna botânica na variedade de suas especiarias alimentícias e medicamentosas, e outro rol de fortuna ecológica na variedade dos pigmentos, polens, clorofila, fotossíntese, tudo ali disseminado gratuitamente nos campos, cerrados, capoeiras, florestas, brejos, aguadas, roças e pastagens. O reino vegetal é, pois, mais saudável e independente do que o segmento humano que é, ao mesmo tempo, parasitário e predador. 69 – O ambientalista norte-americano, Adam Werbach, afirma que “mais de 130 espécies desaparecem todos os dias, o que é duas a três vezes acima do patamar histórico”. A causa principal? O desmatamento, que massacra a biodiversidade planetária. 70 – O que é bom e bonito não é a rigidez da magreza, mas, sim, a fofura e a leveza. 71 – Nada de ideologia e seus conceitos de esquerda-direita-centro. Minha cabeça está no centro de minha pessoa, de onde comanda os membros da esquerda e da direita, indistintamente, sem preconceitos. 72 – As instâncias da impotência desequilibram o psiquismo das pessoas solitárias, como já aconteceu comigo em fase conturbada e infeliz de minha juventude. Você procura socorro e não encontra: nem em si mesmo, nem nas outras pessoas. 73 – O sorriso é uma carta de apresentação, a luz do fogo meteórico de um poema ou de uma estrofe ou de um verso de Guillaume Apollinaire, sobre os cabelos da moça ruiva: “um belo relâmpago que durasse”. 74 – Das 40 frases de Millôr Fernandes na edição dos 40 Anos da revista VEJA, pinço três: 1): “Pois é, isso que está no congresso eles ainda chamam de evolução da espécie”; 2): “Só há dois tipos de pessoas realmente irrecuperáveis: os homens e as mulheres”; 3): “Quando uma ideologia fica bem velhinha vem morar no Brasil”. 75 – “O amor carnal eclipsa o amor celestial; não o conseguirá por si, mas, com traz em si inconscientemente o amor celestial, funde-se com ele”. – Franz Kafka, em “Parábolas e Fragmentos”. 76 – A morte: espero-a de braços abertos, tão logo termine a revisão de meus livros inéditos. O que deve levar de 4 a 5 anos. Nunca tive medo dela. Creio ser por isso que ela tem poupado minha vivência nestas sete décadas. Sete décadas mesquinhas? Pergunto-me sem queixar-me. Às vezes penso que na relação de minha pessoa com este mundo e vice-versa há uma disparidade recíproca: não nos merecemos! O que tento deixar de bom é o testemunho desate malogro, possivelmente exposto na minha intermitente obra literária. Digo intermitente porque a dor de escrever repete a dor de viver. Ainda bem não estou saindo de uma e já estou entrando na outra. 77 – A sociedade pode viver sem a crença num Deus pessoal e criador, ocidental e restrito, como afirma o filósofo André Comte-Sponville, acrescentando que o confucionismo, o taoísmo e o budismo inspiraram imensas sociedades, admiráveis civilizações, sem reconhecerem nenhum Deus desse tipo cultuado no ocidente. 78 – “O mundo, com as leis da natureza, é mais vasto, mais misterioso do que a Bíblia e o Corão, que os contém” – palavras do mesmo filósofo no livro “O Espírito do Ateísmo”. 79 – Dostoievski seduz pensadores ateus como Lukács, Sartre, Camus e Cioran ao falar sempre num além-mais além do homem, conforme diz Manoel da Costa Pinto no Caderno de Leitura da EDUSP, de janeiro-fevereiro de 2007. Na opinião do biógrafo do autor russo (Joseph Frank), “ele incorporou à literatura a idéia de que a representação realista deve incluir um mundo interior de premonições e um mundo exterior de utopias”. 80 – No Brasil atual vemos todo um povo a um passo para cair na extinção de suas latentes virtudes existenciais (da moral, da justiça, da dignidade), o que descaracterizará qualquer eufemismo patriótico que se queira inserir na combalida nacionalidade. Tudo em conseqüência do lamentável e acintoso arrivismo petista. 81 – Às vezes olhando-me de longe, vejo em mim um outro eu, ainda assim imperfeito como o que agora está com estas palavras nas mãos... 82 – Tome cuidado ao passar por alguém do sexo oposto cuja libido esteja a ponto de explodir. 83 – “O poema é o amor realizado do desejo que permanece desejo” – René Char. 84 – Tão dessemelhante é um amor de outro amor. 85 – As revelações de Rubens Fiúza no livro TIRADENTES são, até hoje, escassamente propaladas na controvertida História da Inconfidência Mineira, repleta de publicações acirrando a polêmica das interpretações. O autor apregoa que a causa principal da sublevação era legalizar o contrabando do ouro e do diamante, tirando o pão da boca do fisco português. O contrabando desviava o destino dos tesouros para os outros países da Europa, deixando Portugal apenas com os respaldos dos forçosamente declarados. Para se livrar do rigor da represália portuguesa, o contrabandismo sonhava com a independência e o fim do colonialismo. Afinal de contas o tesouro que Portugal levava, não seria também algo ilegal, uma espoliação, um tráfico, um contrabando? Não foi assim que o Brasil enriqueceu a Europa e ficou no pauperismo que vigora até nos dias de hoje? 86 – O mundo tem seus ocos escuros, seus espinheiros luzidios, suas paredes e tampas – e mesmo assim chove dentro. 87 – Na conhecida e amistosa tarde rural eu sentia a respiração das árvores que me acompanhavam da beira das estradas. 88 – A gordura que escorre no fogo, a carne que sapeca no borralho, os horríveis sacrifícios pascais. Como poderiam ter legalizado tais abominações? 89 – Sim, penso que consegui aprisionar nos meus os olhos dela. Estão aqui guardados, disponíveis para a renovação dos olhares. Mas até quando conseguirei segurar o brilho deles, tendo no meio tanta neblina, tanta distância? 90 – O transe crucial no qual até a sensualidade é afetada e até suprimida é algo que beira o mortal precipício. 91 – Todo homem que se defronta com o infortúnio, que é despojado da prosperidade material, acaba descobrindo que existe um pequeno, um remoto ponto da imaginação, que não se manifesta amiúde, onde o espírito é capaz de manter-se a salvo, embora tal ponto jamais fosse aproveitado nas épocas de fortuna e abundância. Job transformou-se em primoroso poeta assim que seus rebanhos e manadas foram tomados e carregados. Assim escreveu James Russel Lowell (1819-1891). 92 – O mundo que temos é este mesmo que temos de melhorar, continuamente. 93 – Mesmo a alegria, quando avaramente vinha, trazia consigo a parcela de angustia. 94 – O amor seria algo limpo e maravilhoso se não fossem a s sujeiras e feiúras que ele atrai, provoca e perpetra. Às vezes fica tão perto do ódio, que acontece até de confundirem-se. Mas a vida sem o amor é uma maçã sem casca, da qual se tirou a polpa – e só as sementes ficaram nas mãos vazias. 95 – Enchemos as mãos e os quartos de nossos filhos de bugigangas (tambores, bonecas, cavalinhos). Com isso desviamos dos olhos dessa criançada a face mais singela dos objetos existentes na natureza, como o sol, a lua, os animais, a água e a pedra e as árvores, que deveriam ser os melhores móveis de seus brinquedos. Raph Waldo Emerson. 96 – O isolamento dos amantes é o ponto de união deles. A paixão é algo muito concentrado, que não pode espairecer sem correr o risco de expirar ao respirar. Os apaixonados constrangem-se nas reuniões sociais, afrouxam os laços íntimos e é assim que os vínculos vão se desapertando, ambos se distanciam, mesmo estando juntos. 97 – Quem não ama Virginia Wolf? As olaias brilham no jardim, ela diz. Amor é ódio, ódio é amor, ela diz. E diz também: duas ou três mil palavras são insuficientes para descrever o que se vê num minuto. 98 – Os homens que não levam a sério as mulheres, que não lhes dão a merecida atenção: são os que mais temem o mistério que há nelas. 99 – Saudade, única dor que tem prazer, como lá diz o Almeida Garret. 100 – Há tempos que venho pensando em escrever um livro sobre um fazendeiro que conheci em Conceição do Mato Dentro. Ele confessou-me que tinha cento e tantos filhos naturais, conhecidos socialmente pelas mães e por ele mesmo como “seus afilhados”. 101 – Os poemas copiados de outros poemas provavelmente se extinguirão no tempo. O covarde certamente morrerá e será esquecido. A expectativa de grandiosidade só pode ser satisfeita de acordo com uma conduta vital e grandiosa. O enxame dos aduladores, dos imitadores, navega à deriva e não deixa lembranças. Assim falava Walt Whitman (1819-1892). 102 – A verdadeira música existe em si mesma, não é necessário que alguém a toque ou cante. É tocada e cantada no silêncio e no barulho: ela expande, deambula e exaure nos quatro cantos de sua específica dimensão, trauteando e harmonizando seus acordes e timbres, tudo colhido das esferas do mistério que a envolve lindamente. 103 – O rosto de Greta Garbo é um pensamento de Deus! 104 – Deus, em seu poder sobre todas as coisas, pode ser solteiro ou viúvo, mas enquanto criador de todas as coisas era, certamente, casado e bem casado. Só mesmo algum celibatário convicto é que boicotou o nome da Deusa. 105 – As palavras não são apenas palavras, as coisas não são apenas coisas. Há uma inteligência e uma sensibilidade, envolventes. 106 – Fugir da tristeza, deitado na cama, é mais difícil do que fugir de um cão furioso numa estrada bem larga. 107 – Como Sartre, depois do filme e já na rua, eu me sentia um pouco mais que eu, quase um outro. 108 – Os olhos dela falavam de lugares logicamente inexistentes, familiares a eles, olhos dela. 109 – As ações melancólicas dos que não se arriscam, não sobem nas árvores nem caem nas águas, dos que recebem de mãos beijadas o fruto do trabalho dos outros.... 110 – A prospecção de minha lavra: capenga aqui, afoita ali, quase sempre esbarrando num cristal inamovível.

sexta-feira, setembro 26, 2008

MORTE E LITERATURA

Literatura Comparada: Crítica e Interpretação. Leitura às vezes difícil e às vezes fácil do livro “DE ORFEU E DE PERSÉFONE” – Organização de Lélia Parreira Duarte – Editora PUCMINAS, BH, 2008, com textos dos participantes da antologia universitária: Cid Ottoni Bylaardt, Clara Rowland, Dalva Galvão, Denis Leandro Francisco, Eugênio Drumond, Flávia Nascimento, Glaura Siqueira Cardoso Vale, Helena Carvalhão Buescu, Ilda Ferreira Alves, Lélia Parreira Duarte, Luci Ruas, Maria Teresa Abelha Alves, Matilde Demétrio dos Santos, Mônica Figueiredo, Renata Soares Junqueira, Rogério Barbosa da Silva, Silvana Maria Pessoa de Oliveira, Tatiana Salem Levy, Teresa Cristina Cerdeira. Literatura e Ciência ao longo do tempo não se dão as mãos cordialmente quando fazem parceria para chegarem ao leitor. A literatura é, por natureza, legível; a ciência é, sobretudo, estudável. Uma incompatibilidade formal assim chega a distanciar o leitor literário do texto acadêmico-científico geralmente pregado e exercido pelo ensino dos cursos superiores das chamadas belas letras. Os professores e alunos afinam seus instrumentos da escrita legível no rigor dos parâmetros pré-estabelecidos pela pedagogia vigente. Lembro-me que quando fazia Ciências Sociais numa Escola Superior nunca consegui publicar um texto sequer na revista da instituição. Eram bons ou ruins demais para o paladar academicista dela? Depois, bem depois, não consegui publicar em livro o resultado de uma pesquisa financiada e aprovada pela FUNARTE, sobre a cultura popular de Minas Gerais porque a editora da universidade exigiu que eu revisasse todo o texto, de acordo com os cânones de linguagem e de formatação vigentes na sua sistemática pedagógica . “Ah, fazer algo pior do que está aí nas mãos de vocês, eu não consigo”, eu disse, aceitando o veto da editora para a publicação do livro até hoje inédito. Tendo agora em mãos o volume supracitado, organizado pela Lélia, autora que sabe manejar e legibilizar a linguagem acadêmica, a gente lê as mais de quatrocentas páginas, saltando alguns períodos e parágrafos, e chegando às inúmeras partes tentadoramente legíveis, a começar pelo texto de Denis Leandro Francisco sobre o romance “Halo da Morte”, de Milton Hatoum, onde pescamos pérolas como: “quando conseguia organizar os episódios em desordem ou encadear vozes, então surgia uma lacuna onde habitavam o esquecimento e a hesitação: um espaço morto que minava a seqüência das idéias”. Estas são palavras do romancista, que antecedem as seguintes, do ensaísta Denis: “O romance encena uma certa manifestação da dor e da melancolia, da perda como estímulo à escrita e à narração, cuja presença nas literaturas moderna e contemporânea é inegável”. O texto de Lélia Parreira Duarte sobre o livro de contos “Seta Despedida não Volta ao Arco”, de Maria Judite de Carvalho, parece ter sido escrito especialmente para o leitor mais genérico e literário: na verdade ela escreve sobre um conto como se escrevesse outro conto – e assim confirma o preceito que para criticar um poema é necessário escrever outro poema. E que a boa literatura é o que é e também o que sugere ser: a que sempre exorbita para as amplitudes dos arredores mais vivos, explícitos e implícitos, dispondo dentro das frases as palavras afloradoras do dilema existencial nas situações contextuais do cotidiano das pessoas. O texto de Matildes Demétrio dos Santos. “Paisagens de João Cabral - a Luz pelas Trevas e a Morbidez”, é, também, expositivo e esclarecedor, citando logo no primeiro parágrafo a opinião sobre o trabalho ensaístico de Maurice Blanchot, para quem a experiência literária é um desafio incessante e interminável, isso porque entre o pensar e o escrever “existe uma fenda”, um vazio aberto a multiplicar possibilidades, que o escritor tentará preencher. E logo na página seguinte a autora recorre ao poeta João Cabral de Mello Neto, para quem o ofício de escrever é uma agonia, da qual ele sempre sai suando, como se sob o jugo de uma baita picareta. Textualmente, ela conclui da experiência cabralina: “o poeta se apresenta como um personagem em movimento, buscando extrair da memória os sentidos de uma vida imaginária.” Outra tirada analítica (o que a autora faz da obra de João Cabral e da literatura em geral): “realidade e história ganham sempre contornos não habituais, extrapolando o referente... Os temas não se esgotam no livro. O escritor dá a impressão de que pode continuar, pois os mesmos assuntos passam de um fragmento para outro, emigram de livro para livro, com roupagens e sentidos diferentes, numa tensão jamais apaziguada, porque o poeta se recusa a sair de sua obra”. Não é um fechamento de artigo e sim uma abertura com chave de ouro. Falando da obra do poeta pernambucano, ela fala de toda obra literária de grande e belo valor. No texto de Fátima Salem Levy sobre a Morte, a partir de uma leitura do “diário de Kafka” sobressai uma citação do autor tcheco na página 428: “Não acredito que existam pessoas cuja situação interior seja análoga à minha; até posso imaginar que tais seres existam, mas que o corvo familiar gire sem cessar em torno de suas cabeças como ele faz em torno da minha, isso eu não posso conceber”. Na verdade as pessoas são todas iguais na desigualdade, não? Livro muito bom, no geral. Demonstra e esclarece, literalmente e nas entrelinhas, que se morremos um pouco todo dia, isso acontece para alimentar a vida que nos resta. É como a lucidez que concebe e arremata o sonho: acende e apaga a luz para comprovar o lusco-fusco dos acenos da morte, sem os quais a vida não estará voltando para dar o ar da graça na ordem do dia de cada dia. Lélia sabe da distância e do alcance da ida e da volta nas viagens para dentro das noites e dos dias no prolongado cotidiano de todas as pessoas do mundo.

quarta-feira, setembro 24, 2008

A FLAUTA MÁGICA DE MOZART E BERGMAN

Veja e sinta a abertura de um céu ensolarado e enluarado, repleto de anjos na inocente sensualidade de suas nuvens musicais... Os acordes em surdina, os circunlóquios insinuantes, as expressões faciais diferenciadas... As pessoas são lindas, movidas pelo toque da fluidez dos arroubos sinfônicos... O embevecimento da criança no rosto do idoso, as copiosas feições da benevolência, a esperança de novas saudades... As fagulhas visuais e sonoras na alegria dos faunos, na formosa mobilidade das moças e dos rapazes, no sonho realista das beatitudes: elas e eles cantam rindo, as vozes em auréolas circundam as figuras do amor dos corpos e almas aladas e aliadas. De repente cada momento é em si eterno, na permanência da recordação. O sonho com o sono se enovela. Pamina e Tamino: o amor na raiz da sabedoria brilhando no espelho triangular das vozes líricas, assegurando a vinda de cada manhã, dia e noite, noite e dia.

MORRER DE OLHOS ABERTOS

Todo teista devia amar a vida e não matá-la. 
Devia ser vegetariano. 
A natureza selvagem é pior ou melhor que a natureza humana? 
O mundo selvagem é mais feio ou mais bonito que o mundo civilizado? 
A crueldade é a morte. 
A crueldade é a morte. 
A crueldade é a morte de quem continua vivendo, bebendo e comendo (bebendo sangue e comendo carne). A crueldade quando toca seus instrumentos cessa toda a música. 
Não se entregue à outrem: é menos pior ser infeliz sozinho. 
Culpar os outros é covardia. 
O sofrimento é a negação da beleza. 
A beleza é a negação do sofrimento. 
A doença escurece a vista, apaga o fogo. 
A velhice não é o começo nem o fim. É um meio, um modo de chorar?

OUTRO FILME DOS IRMÃOS COEN (*)

Os caras hediondos o linguajar insalubre 
Assim a comédia se perpetua na tragédia 
(onde o humano e o desumano são a mesma porcaria) 
nas situações inusitadas de cabo a rabo 
A escória sofisticada dos mandões e mandados 
os miseráveis palácios da ilegalidade 
A barba salpicada da cinza dos mortos 
a fauna dos duendes sociais 
com as unhas e dentes aguçados 
na ira da ambição e da compulsão 
que levam em suas vidas comezinhas 
É assim que a comédia humana (sem ponto final?) vira tragédia. 

(*) O filme é “O Grande Lebowsky”, com Jeft Bridge.

terça-feira, setembro 23, 2008

O HOLOCAUSTO CONTINUA...

I - Na Roça. Na infância conheci os inquisidores de pássaros (assassinos inconscientes e gratuitos), os destripadores de micos tatus e jacarés, os lavradores aparentemente banais, os trapaceiros copiosamente malévolos: todos entregando-se ao sanguinário exercício de matar para viver. E ái ái dos coelhos das pacas e das capivaras, sem falar das reses e dos capados, dos cabritos carneiros peixes e pássaros na diária carnificina do meio rural. Cheguei a participar de algumas armações de laços arapucas e visgos para enforcar matar e prender passarinhos de panelas e de gaiolas (então com o coração na mão, agora com o braço a torcer) e também testemunhei, impotente impassível, as hecatombes dos parís e pescarias, das bateções do timbó venenoso nas plácidas lagoas, logo coalhadas de peixes mortalmente envenenados. 

II - Na Cidade. Na barbaridade de uma rua comercial da cidade dos fornos crematórios e dos sanguinários pernilongos, o velhote alquebrado fica horas e horas a repetir a esquisitice de ser o contumaz estripador de reses e esfaqueador de capados, a oferecer em troca de reles moedas, os frangos e galos, as frangas e galinhas, no seu caixotão em forma de galinheiro, bem ali no meio da rua, defronte a uma das portas ensebadas de sua venda de secos e molhados. Assumidamente sádico, ele fica oferecendo as pobres aves aos verazes comilões passantes. Encarquilhado de corpo e alma, sentado no próprio rabo, no tamborete ao lado do seco aquário das aves sedentas e comprimidas ao sol e à chuva dos dias aziagos, que ele oferece em troca de algumas reles moedas, enquanto relembram com os velhos amigos do meio rural os dias saudosos da roça, quando, munidos de foices e facões, de espingardas chumbeiras, de canivetes e facas e capangas, eles caçavam, depenavam, estripavam os inhambus as perdizes as juritis, as pacas os tatus as capivaras e as traíras e lambaris. Quando ali passo, aperto o passo e faço o sinal da cruz diante do mórbido espetáculo oferecido às pessoas condenadas pelo mau uso da vida, que ali ficam, mirando-se naquele espelho de aves condenadas por mais esse tipo de holocausto.

RESSONÂNCIAS (*)

De repente a poesia é de uma leveza praticável (fios de painas no ar luminoso, respingos de novas luas nos velhos escuros). Os poemas são curtos e breves, bailam nos olhos do leitor, cantam nos ouvidos do leitor, passam depressa e depressa voltam, ubíquos nas páginas da noite, melodiosos no turbilhão da noite, São rapidamente legíveis? Demoradamente plausíveis? O leitor sente que cada um vai e volta. Sente que cada um estará sempre ali no meio da noite. Bem dentro de quem ele é ele, o poema? Dentro de quem encontra ressonância! “O anjo da terra no ventre único No baú de veludo O findo ano Sem censura.” 

(*) Escrito depois de ler CENÁRIO NOTURNO (Poesia), de Andréia Donadon Leal, Editora Aldrava Letras e Artes, Mariana, MG, 2007.

terça-feira, setembro 16, 2008

PALAVRAS DO ALEGRE DESESPERO (*)

- Passar da fé ao ateísmo é passar da esperança ao desespero. A esperança é a principal causa dos suicídios – constatam os terapeutas se os psicanalistas, depois de lerem o primeiro livro de André Comte-Sponville, “O Tratado do Desespero e da Beatitude”. Por que? Porque a maior causa do suicídio é a decepção. Só teremos felicidade na proporção do desespero que formos capazes de suportar”, ele afirma. - A religião é uma ilusão por ser um pensamento derivado não de um saber – pois é evidente que não há um saber de Deus -, mas de nossos desejos! - O ateísmo provém do fato de a esperança não ser um argumento. - Crer em Deus, ousar celebrar a bondade e a onipotência dele diante de uma criança que sofre e morre, isso, aceitar o inaceitável, é covardia. - Se a ciência e a técnica podem controlar a natureza.... Quem controlará o controle? Aí cabe a famosa frase de Rabelais: “ciência sem consciência é a ruína da alma”. - Assim como o pensamento é produzido por um órgão material, o cérebro: assim é que, segundo Freud, a vida consciente é determinada pela vida inconsciente. O amor é um produto da sexualidade, que é uma parte animal – mas que depois pela educação, pela cultura, pela sublimação, produz nossa vida espiritual. Isso sem a conclusão que a sexualidade tem mais valor do que a arte, isso não. - O que faz uma civilização não são somente fábricas, indústrias, escritórios: é também e sobretudo, o que se vive de espírito, de amor, de relações humanas... São valores não encontráveis na religião. - Para aceitar a vida tal qual é, diz Montaigne, é preciso aceitar a idéia da própria morte, uma vez que a vida inclui a morte. É assim que aprender a viver é aprender a morrer. - Jamais vivemos: esperamos viver – diz Pascal – e daí vem o que o autor (Sponville) chama de seu alegre desespero. - É preciso amar as pessoas como elas são, ou não as amar. Se amá-las como não são, não são elas que você ama, são seus sonhos... É preciso esperar um pouco menos e amar um pouco mais. O homem que morreu na cruz pode não ser Deus nem filho de Deus – mas morreu na cruz em nome do amor, do amor sofredor, o amor frágil, o amor mortal. - Sponville se considera um ateu fiel porque considera fidelidade o que restou da fé quando se perdeu a fé, ou seja, a fidelidade ao espírito de Cristo, que é de justiça e de caridade. Se Deus nos abandonou, só nos resta o amor (creio ser esta, também, a convicção do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, quando ele diz num de seus belos poemas que o sangue dos bodes e dos touros seca nas páginas do Antigo Testamento e que uma nova palavra, em forma de flor: AMOR, brota nas páginas do Novo Testamento). - Quando temos Amor dispensamos a Fé porque não precisamos de Deus, já estamos em Deus; não precisamos da esperança, pois nada mais temos a esperar. De forma que só resta o Amor. Como diz Espinosa: a única sabedoria é a alegria: a única alegria é a de amar. Ilações da Leitura: DEUS EM MIM. Ficar comigo mesmo alguns minutos no intervalo de horas e horas, é o que há de melhor em mim e fora de mim: é quando me vejo inteirinho (como uma criança?) na posse dos dotes e dos dons mais íntimos, em alguns minutos do tamanha da eternidade. Subitamente revelam-se em mim o doce mistério da vida, aproximando, incorporando-se à minha pessoa. Às vezes cuido que Deus é uma sombra: estava tão perto que eu nem via. Minha sombra depende de mim para existir. Quando estou em mim Deus abre meus sentidos para a música em forma de flores. Sei que não está me seguindo nem perseguindo, que ele não é como dizem ser: ele é a luz de meus olhos, a emoção de meu encantamento, a beleza que não faz mal a ninguém. Ele não é o mesmo em todas as pessoa, e que cada um cuide bem de seu Deus. Como ele poderia ser alguém longe ou perto com seus trilhões de olhos e de pernas e de braços, para fazer o bem e o mal? Ele é apenas o AMOR das criaturas, que está em cada uma delas: o Bem livre do Mal. 

(*) Escrito depois da leitura do pequeno grande livro ANDRÉ COMTE SPONVILLE - O Alegre Desespero – Editora UNESP, tradução de Maria Leonor F. R. Loureiro – São Paulo, SP, 2002.

O ESPÍRITO DO ATEISMO III

A vontade de Deus prevalece em todos os acontecimentos, segundo a sabedoria popular, que garante que a voz do povo é a voz de Deus. Até o boi que morre atolado no brejo, é pela vontade Dele. Se a mulher perde o marido ou um dos filhos num acidente ou num desenlace repentino, a explicação dela (ou dele, se for o caso inverso) é “que Deus quis”. E ainda pergunta, suspirando no ar carregado de outros suspiros: “o que hei de fazer?” Pergunta, sabendo que “Deus está em toda parte e que a tudo pode”. Se uma pessoa de mau caráter comete uma atrocidade: se diz dele “que é ruim feito uma cobra – mas deixa estar que um dia vai prestar contas ao Nosso Senhor”. Se a mesma pessoa ímpia não consegue praticar um mal previsto, a explicação dos circunstantes é que “Deus não dá asa à cobra”. E por aí vai toda a argumentação que não resiste a uma análise mais severa. Uma vez dei-me ao delicioso trabalho de compilar essas pílulas da sabedoria popular, e constatei que a maioria refere-se ao papel de um Deus onipotente e onipresente. “Quando Ele demora é porque já está a caminho” – é outras das jóias desse articulado moinho rifoneiro. Eu mesmo aprendi, desde a mais tenra idade, a dizer: “Deus me livre!” – Diante de alguma adversidade; “Graças a Deus!” – Diante de algum benefício. “Queira Deus!” – Diante de uma boa perspectiva. “Meu Deus do céu!” – Diante de uma incógnita. “Deus seja louvado!” – Diante de uma graça alcançada. Estas e muitas outras frases são constantes no vocabulário da cultura popular. Além de citar constantemente até no pensamento, a gente mantém vida afora o automático costume de persignar ao passar diante de uma igreja, de um Passinho em via pública, de um Cemitério, e de repetir certas orações em determinados momentos, diante dos infortúnios e das venturas. Faz bem ao ego? Faz, sim e, talvez, concorra positivamente no convívio pacífico das pessoas em sociedade. Trata-se, como sabemos, de modos de ser e de estar (de viver e de deixar viver) arraigados na humanidade através das idades, tornados hábitos naturais como os de comer e de beber, de saudar e de contestar os acontecimentos na órbita das circunstâncias e das localizações. Não quer dizer que a pessoa seja teísta ou ateísta. Sabemos que de um modo geral o ser humano sobrevive através do redemoinho de crenças provisórias ou fixas, propenso à dialética ou aferrado à cegueira do fanatismo. De um modo geral as pessoas duvidam dos postulados ortodoxos, mas aceitam os axiomas seculares e dogmáticos das religiões por comodidade movida pela preguiça mental de raciocinar cientificamente. De minha parte, fico entre os apóstolos da cruz e os apóstolos da ciência. Lembro-me que o poeta Baudelaire (um dos precursores da melhor poesia moderna de todo o ocidente) usava sempre a palavra NATUREZA quando queria dizer DEUS. Na verdade sabemos que Deus é uma potência sobrenatural, até hoje inexplicada, que inspira fidelidade aos valores da felicidade, tais como os da moralidade, da dignidade, da liberdade, da verdade da beleza universal. Não é simplesmente Aquele que perdoa a Maldade e assim a justifica e (consequentemente) aprova. A humanidade, no estágio em que se encontra, não pode viver sem a ajuda dessa crença tão contestável? Temos que reciclar nossas noções a respeito, vendo o problema pelo viés científico, através do qual Deus seria (ou será) a Centelha da Grande Explosão Universal, cujas partículas espalharam-se na imensidão cósmica. Muitas dessas partículas encontraram guarida neste pedaço cósmico chamado de Planeta Terra, em cujo espaço cheio de vida “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, conforme o famoso dito de Lavoisier. Assim pontifica a Natureza com suas próprias leis de ações e de reações. São conhecidos e reconhecidos os três principais biótipos habitacionais: o mineral, o vegetal e o animal, todos a serviço um dos outros, sem a obrigação de molestar, dominar e destruir. É um organismo vivo e assim se comporta, reagindo às agressões ambientais através das temporadas de secas, furacões, terremotos, enchentes. Não é uma maledicência da Natureza, mas sim, uma resposta às de outra forma indefensáveis agressões dos profanadores dos sacrários da legítima legitima constitucionalidade planetária. Creio que o equilíbrio ecológico do planeta corresponde ao equilíbrio psicológico do ser humano. Infelizmente, agora essa Natureza (Deus) está sinalizando sua exaustão, tão dilapidada anda pela ação nefasta da irracionalidade humana.

segunda-feira, setembro 15, 2008

O ESPÍRITO DO ATEISMO II

Não é por ser ateu que o filósofo André Comte-Sonville deixa de ser um homem socialmente íntegro e individualmente saudável. Sua sociabilidade e sua individualidade não contradizem nem distanciam na vida real o cotidiano dos religiosos que cultuam a fé no Deus que incita o Bem contra o Mal. Ele professa a fidelidade aos princípios do amor entre os semelhantes e até entre os dessemelhantes: ele sabe que o amor está em viver e deixar viver e propugna e recomenda a vigência dos valores da Moralidade, da Liberdade e da Dignidade como paradigmas de uma humanidade menos preconceituosa e mais pacífica, menos atritante e mais feliz. “Se Deus existisse” (ele diz na página 92) “deveria ser muito mais visto e sentido” O “Deus absconditus”, o Deus que se esconde, não se justifica. “Se eu me escondesse de meus filhos”, ele diz, “eu simplesmente não existiria para eles. Se Deus existe, por que se esconde? Isso não seria brincar com a nossa angústia? Por que deixou que seu filho nascesse num estábulo entre a vaca e o burro e morresse pregado na cruz entre dois ladrões? Se é infinitamente bom por que criou esta humanidade infinitamente má? A própria existência do carnívoro é uma prova da inexistência de um Deus que, se pôde criar o universo e o homem, podia, igualmente, salvar uma criança e seu povo” (assim resumo o que em linhas gerais ele disse a partir da página supracitada). Segundo São Thomaz de Aquino (pagina 62), Cristo não teve fé nem esperança porque viu imperfeições nelas. No lugar de ambas elegeu o Amor, ou seja, a Caridade. Por que então (pergunta Sponville) excluir as fontes e os ápices? Jesus na Galiléia, Sócrates na Grécia, Buda na Índia, Lao-tsé e Confúcio na China: o espírito não tem pátria. A humanidade também não. O Amor, e não os milagres, é que constitui o essencial da mensagem de Cristo (pág. 65). Aí o autor cita os três graus da Crença Segundo Kant: a opinião, a fé e o saber. Opinião: Deus não existe; Fé: Deus existe; Saber: saber que não sabe se Deus existe ou se não existe. Incontáveis são as guerras e massacres de religião, todas em nome de Deus. Em nome Dele até assam seres vivos. O que tudo isso quer dizer? Quer dizer que “em se tratando de Deus, ninguém dispõe de um saber verdadeiro”. Se cada uma das partes contesta o Deus da outra, é sinal de negação de Deus em ambas (pág. 74). Não pode haver contradição entre a fidelidade (que vem da fé) e a liberdade espiritual – já pregava Montaigne. Minhas ilações: mesmo se Deus não existir, Ele merece nossas preces. Ele não importuna nem alegra o cientista. Mas a primazia da esperança é uma balela, já dizia Espinosa, que preferia “o alegre desespero do sabor amargo e tonificante”. “A ciência não sabe e nunca saberá responder se Deus existe ou não, nem como defini-Lo.” Essa impossibilidade, no entanto, não motiva a desistência de refletir sobre a questão, assim como também ela, a ciência, não sabe como devemos viver nem como devemos morrer – e mesmo assim sabemos que vivemos e que morreremos. “Ninguém escapa do mistério” (pág. 85) “de que há algo em vez de nada. Essa existência é intrinsecamente misteriosa, e esse mistério é irredutível, não por ser impenetrável, mas porque estamos dentro dele; não por ser obscuro, ao contrário, porque esse mistério é a própria luz”. Darwin vem ao caso: “a existência de Deus permanece pensável, tanto quanto – e não mais que – a sua inexistência”. O mundo, com as leis da natureza (pág. 100), é mais vasto, mais misterioso do que a Bíblia e o Corão. O silêncio diante do indizível (pág. 103) vale mais. Como refutar um silêncio? Como discutir um êxtase? O inefável não é um argumento. O silêncio não faz uma religião. Acredita-se que existem dois milhões de espécies vivas distintas vivendo no planeta, e que essa quantidade representa apenas um por cento da quantidade que já viveu no mesmo território – o que dá a entender que a espécie humana também pode estar entre as que não deu certo – e por isso pode desaparecer. Sabe-se também que as espécies não trocam genes, mesmo as das mesmas origens, como é o caso dos chipanzés em relação aos humanos. São ascendentes e descendentes historicamente, ou seja, compartilhados – mas não trocam genes. De minha parte, estando assim com o fluxo reflexivo imbricado nesta teia prospectiva, tendo nas mãos e nos olhos o importante livro do filósofo francês, voltarei ao assunto mais uma vez, com as minhas precárias ilações, que são palavras de intróito à aprendizagem da necessária laicidade, como norma comportamental diante do indiferentismo e da abominação, diante, ainda, da inveterada credulidade e do arraigado e famigerado fanatismo.

sábado, setembro 13, 2008

UMA DAS LEITURAS DE FRANZ KAFKA

A possível impossibilidade A impossível possibilidade As coisas de um modo geral estão prenhes de palavras Escondidas no íntimo do chão e da pedra e do ar No recesso de um futuro jardim Onde quer que seja que hoje ainda esteja batumado Ou descampado E que amanhã exibirá suas glicínias e orquídeas, Seus mimos de vênus que ainda não florescem ali Assim os encantos e as doçuras que ainda não existem Nas ásperas beiradas do rio serão os lindos cílios Dos olhos da água a jorrar fartamente Assim as palavras petrificadas congeladas pulverizadas ou mesmo escondidas, Insones ou dormindo nos muros e paredes, nos troncos De biloscas e nas folhas de alface ou no coração de veludo Da musa ocasional, É assim que é preciso ter a predisposição de Kafka O agudíssimo teclado farejador de Kafka A ventura dele de ver o depois antes de mais nada, De prelibar o antes depois de mais nada Antes de tudo e depois De encher as mãos de palavras mentais E esparramá-las na folha em branco Como sementes de margaridas É só virar a página e desfrutar a sombra. Sua literatura (sua vida?) É o verso, é o avesso de qualquer estereótipo até então Bolado pelos modistas de plantão, É a epígrafe adiada A carta embaralhada O casamento do pró e do contra O auge da lua de mel A gotejar dos grãos de pólen Nas férteis searas atávicas. A imagem errônea que se tinha dele, segundo Milan Kundera, de um santo silencioso que carecia de experiências e que desaparecia na sombra dos próprios movimentos, como diria Lao-Tsé. Uma espécie de “patrono dos neuróticos, deprimidos, anoréxicos, doentios, dos que desconfiam das granfinas ridículas e dos histéricos”. Um tanto ou quanto assexuado em suas incursões romanescas? Uma cena erótica pode ser descrita por ele, segundo Kundera, como o encontro de um guarda-chuva com uma máquina de costura: mas no romance “Castelo” ele é mais preciso e caprichoso: “a prolongação do coito se transforma na metáfora de uma fuga sob o céu da estranheza”. Era, sem dúvida, o inovador das abordagens, o mestre da arte de escrever diferente em seu tempo, que ainda soa um tanto diferente hoje em dia. “Sinto-me outra vez frio e sem alma; não resta mais que o amor senil pelo repouso completo”, assim diz ele, movendo “o pescoço de um lado para outro”. Amigo íntimo de Max Brod, que o protege dos percalços em vida e na posteridade, zelando seu nome e sua obra, ele amava o ambiente hebreu e musical de Praga, a música na leitura de Goethe, a finura especulativa de Kierkegaard, tendo em Thomas Mann o seu autor contemporâneo predileto. Minhas histórias são uma forma de fechar os olhos, ele diz, sempre a deixar cair algo quando vai pegar uma coisa. A moralidade mais pura, está só encontrei na aldeia natal, que hoje me chega dos tempos de antigamente, nós dizemos, repetindo suas palavras. A luz débil, porém penetrante, da música que constrói um muro em redor de mim, ele balbucia, e assim confinado sou diferente do que sou em liberdade, ele continua a dizer, até dizer textualmente: “o frustrado, com uma das mãos, afasta o desespero que seu destino lhe causa e a outra procura o que percebe sob os escombros”. Como é possível salvar o outro, se nós próprios nos perdemos?, ele continua a dizer. O tempo é a parte menos palpável da criação, ele diz o que sabíamos e que só agora nos ocorre como todo o mundo dele que agora reconhecemos como sendo também nosso. As imprecisões são precisas, as deformações são perfeitas, diria Walter Benjamim. A lúgubre e majestosa Praga dos castelos e palácios, que a escritora Pavla Lidmilová costumava mandar-me via postal em forma de momentos tão felizes, O enigmático cenário do Processo e da Metamorfose Aquela sensação de estar procurando o que não se perdeu O alheiamento entre duas afeições quase simultâneas A sombra da própria sombra inviabilizando As réstias solares Da diária noturnidade de um bom gosto (ânsia de perfeição) Hoje extinto na feira dos fazeres. A Praga que dele não desgruda: Um espaço interno do mundo, segundo Rilke? Um hospício metafísico, segundo Paul Kornfeld? Uma vetusta irrealidade, segundo Franz Werfel? As palavras que estão dentro ou detrás das paredes São as mesmas que estão dentro dos livros dele. Textos que são lidos como foram escritos: Com um pé atrás e outro na frente, ambos Temerosos de seguir ou voltar: Uma coisa medonha a pressionar? Um demo que atrai e rejeita ao mesmo tempo? A obscura divindade fica longe, muito longe Do obscuro crepitar dos fogareiros demoníacos. Kafka, atencioso menino, amargo rapaz Nunca temeu nem recusou qualquer obscuridade. Pois é, assim é a vida – a fome que antecede a saciedade, também a sucede. Satisfazer é o não-viver. Ansiosamente a procurar nos sonhos a moça desejada de seu coração. Não encontra. Quando acorda e sai para a rua vê o bando de moças e nenhuma delas é a que procura ansiosamente no sonho. Eu é que sou um sonho?, ele pensa. Uma das chaves para o melhor entendimento da obra de Kafka é dada por ele mesmo em Parábolas e Fragmentos, quando declara que fomos expulsos de um paraíso que não foi destruído (pois continuamos a viver nele) e condenados a morrer, mas não morremos, coletivamente, apenas perdemos a imortalidade - mas adquirimos o conhecimento da Árvore da Vida, o que não nos igualou a Deus, mas deu-nos a aptidão para tanto. Estou citando de memória, o que não faço com as palavras adiante, devidamente aspeadas: “o amor carnal eclipsa o amor celestial; não o conseguirá por si, mas, como traz em si inconscientemente o amor celestial, funde-se com ele”, - assim ele diz, sempre amável diante das naturais beatitudes. E ao lê-lo sentimos uma certa esquisitice, uma dúbia impressão que é só olhar para ver do lado de fora da janela a passagem lenta de uma franzida árvore silenciosa. De repente ele fala numa leitura pantanosa, da qual é difícil levantar os pés para dar um passo. Assim recalcando na vida a leitura difícil das páginas de palavras cruzadas (freudismo/marxismo/existencialismo), cada uma abrindo portas para lugares impenetráveis, de tal maneira que uma terapia introspectiva para chegar à clareza objetiva tinha que passar pela cerração angustiante das dúvidas amontoadas. Tinha que encolher, desidentificar, virar uma barata de tamanho descomunal? De tanto duvidar, ele passava a saber das coisas? Um saber fortuito a colher estrelas de dia e gatos pardos de noite? A claridade torna-se confusa e a pasmaceira frisa suas auréolas no intricado de cada texto que articula. De todas as interrogações nasce e apruma, enfim, o ser literário de sua lavra, lúcido e difuso ao mesmo tempo, como não podia deixar de ser. De 1912 a 1916 ele namora e fica noivo de Felícia Bauer e lhe escrevia cartas quase que diariamente – e nos intervalos da paixão epistolar ele tem um caso amoroso com Grete Bloch, origem de seu único filho, que no entanto falece logo depois de nascer. De 1920 a 1922 ele namora intensamente, também através de cartas, a casada Milena Jasenska, que depois morre num campo de concentração nazista. E de 1922 a 1924 liga-se, agora pessoalmente, a Dora Dymant, - quando falece num sanatório perto de Viena, aos 41 anos de idade. Sofria muito, vivia a queixar-se e a se maldizer, inferiorizando-se diante das amadas, às vezes com uma humildade até despudorada, como se cada uma fosse sua mãe e geneticamente responsável pelos padecimentos de uma doença grave e possessiva. E Milena, principalmente, se apresentava maternal e pacienciosa. Arguta e despreendida, benéfica protetora da literatura dele, que tanto enriqueceu a Literatura. Escrevia “como o passarinho que bica as migalhas..., tremendo, vigiando, espionando, com todas as penas eriçadas”. Milena também não era boa de saúde, a ponto dele troçar dela, dizendo que “em vez de vivermos juntos, temos que deitar juntos para morrer”. Mas tirar de si o amor dela era para ele difícil como transplantar uma árvore sem matá-la, ir fundo no buraco sem nele deitar raízes. Está sempre abúlico, cansado, fisicamente combalido, mentalmente inválido, literariamente nulo: assim ele pensa e chega a dizer que não ama a literatura, mas sim ao destino que ela lhe deu, ou seja, uma preocupação, um passatempo vital. A sensualidade quase sempre ausente em seus textos, o amor é mais passivo, a paixão é psíquica, nunca libidinal. Fica até difícil tracejar um quadro de moléstias no painel de sua ofegante, incisiva literatura. Ele parecia nem atentar para o corpo de Milena, não desfrutava de pulsões eróticas, mas sofria os constrangimentos, as contrafações neurológicas. É o que se deduz das cartas que,entretanto, não são partes intencionais de sua literatura. “só penso em minha enfermidade e em minha cura e ambas, em última instância, és tu, Milena”. Kafka é habilidoso não só em concatenar a disparidade dos pontos e contrapontos do enredo no absurdo ficcional como também em plasmar ali no entrecho a logicidade da linguagem ao mesmo tempo em que levanta dúvidas e arrola explicações. Numa das cartas à Milena, ele diz a respeito da insônia: “Quando se dorme mal, pergunta-se sem saber o quê, pois não dormir é perguntar. Se conseguimos uma resposta, dormiremos”. Em outra carta, ele escreve: “É muito difícil brincar de roda com fantasmas”. (Posso dizer, a propósito e entre parêntesis, que também levei uma vida de solteiro parecida, com algumas ressalvas, é claro: ele era enfermiço e algo ocioso; eu trabalhava tanto que não me sobrava tempo para adoecer; ele era criativo e minucioso, eu apenas mentalizava, não exprimia, e passava ao largo dos detalhes e desdobramentos das coisas; ele sonhava na seqüência da vivência, eu sonhava aleatoriamente, perdido de mim, sempre com seres e lugares que não conferiam com os da realidade cotidiana, íngreme e espinhosa. Em comum com ele posso ressaltar a sensação de que geralmente os lugares onde estou são parecidos com cemitérios, nos quais as lápides se erguem e os mortos jazem sonolentos. Na verdade (agora ele diz e cito de memória) a tumba que nos espera toda manhã ao lado da cama, toda aberta, com algumas flores murchadas, é o que temos a falar da vida, pois a convivência humana é sempre espinhosa, repleta de desentendimentos de toda ordem, alterações de ânimo, contrariedades, a própria benquerência comunicativa é entremeada de arrufos palavrosos, rusgas dialéticas, dissabores polêmicos. O ser humano não sabe ser feliz. Saberá um dia?). Mas dono da expressão segura e cabal, ele vai longe e a fundo na obscuridade mais cerrada, onde jazem ocultos e indormidos as inéditas verdades do desconhecimento – e logo-logo regressa com os louros que cabem em suas mãos. Quando sente que jamais poderá viver ao lado de Milena (ela casada, ele enfermo), sente que vive debaixo de si mesmo, como que debaixo de uma pesada cruz que tanto oprime-lhe o ventre, tendo assim que esforçar-se a fim de conseguir erguer um pouco a cabeça, erguendo um pouco “o cadáver que está sobre mim”. “O tormento é como um arado que sulca o sonho”, ele diz, lamentando pessoalmente e socialmente: “o indivíduo foi enviado na realidade como a pomba bíblica, não encontrou nenhum ramo verde e voltou a deslizar-se para dentro da arca escura”. 

BIBLIOGRAFIA: - Os Gênios Podem Escrever Cartas de Amor? – Marco Antônio de Menezes, Revista Status. - O Processo Onírico, - Caderno “mais!, da Folha de S. Paulo de 16/02/2003. - Franz Kafka Nunca Foi SANTO – Milan Kundera, Caderno “mais!” da Folha de S. Paulo de 03/01/1993. - O Senhor do Castelo – Modesto Carone, Caderno “mais!” da Folha de S. Paulo de 23/10/2000. - A Muralha da China, Contos e Máximas – Franz Kafka, tradução de autoria não mencionada, edição Nova Época Editorial Ltda. São Paulo, data também não indicada. - Kafka – Parábolas e Fragmentos e Cartas a Milena – introdução e tradução de Geir Campos, Ediouro, Rio de Janeiro, sem data.

terça-feira, setembro 09, 2008

MARCEL PROUST (1871-1922), A ARTE DE REVIVER

Continuar a ler Proust, depois de ocasional interrupção, é como se Chopin ainda estivesse ali ao piano, seus dedos de água de cheiro na pedra trêmula, os murmúrios de aves no sono mais lúcido, o fremir inconsciente antes e depois de cada palavra, a interrogada moça dormindo na cama almofadada, as várias albertinas na cativante, substantiva Albertina. A leitura é assim como se andássemos nos dias e lugares comuns, sentindo mais do que fazendo as coisas, encontrando aqui e ali sentimentos e pensamentos em jorros de luz e golfadas de ar, espelhando a notoriedade de um pormenor que se avoluma, um cisco tornado rocha, o viés deslumbrante do paraíso que julgávamos perdido. Umas linhas de páginas a dizer que “em todas as primaveras as flores, ao renascer, iluminavam algo mais que tumbas”; a reconhecer que “há coisas que não existem senão graças a uma criança perpetuamente remoçada”, como se a natureza fosse um ficcionista a dizer e repetir que “a única vida plenamente vivida é a literatura”; pois “a criação do mundo não ocorre de uma vez, ela ocorre necessariamente todos os dias”. A leitura de Proust tem que ser vagarosa, prelibada e prolongada no saboreio, como se estivéssemos degustando suas rosquinhas molhadas no chá.... Só o lerá quem tiver tempo disponível, nada de urgente a fazer. Uma leitura dinâmica de qualquer de suas páginas seria impossível. Ele se emaranha e emaranha o leitor nas ramagens e no torvelinho e a fluidez estaca-se a todo momento a cada linha do livro, forçando a releitura para emendar as imagens e pensamentos fracionados. Um tanto confuso? É a forma dele, a forma proustiana, muito imitada e nunca igualada. É assim que ele vai entrando no matagal e deslindando a multidão de ocorrências visuais e pensamentais, revolvendo e envolvendo as ramagens com a trepidação do solo fértil de sua imaginação e com os troncos e raízes e os galhos e folhas e a diversidade existencial de tanta vitalidade disponível na paisagem e no momento de sua analítica contemplação. Pois é no meio do cisco, entre as hastes e as copas, na folhagem pastosa e passável que encontramos, aqui e ali, a todo momento, as jóias e os lírios, os peixes que nos escapavam e que agora, como frutas, se nos oferecem. Na medida em que não pára de pensar, ele continua a falar consigo mesmo, continua a escrever as intermináveis páginas, esmiuçando as ocorrências na tentativa de explicá-las a si mesmo e, consequentemente, aos leitores. O que muitas vezes sufocamos com um simples ponto final, ele emprega a vírgula do jorro pensamental e assim revolve e dá vazão ao que o importuna e o faz sofrer, na tentativa, talvez, de apalpando a dor e examinando detalhadamente a ferida, assim em vez de sufocar ele exterioriza o sofrimento. Pois que passando o tempo, assim ocupado, a dor será atenuada na medida em que seja em si mesma explicada. “Deixemos as belas mulheres aos homens sem imaginação”, ele diz em “A Fugitiva”, para acrescentar que o que amamos “está por demais no passado, consiste por demais no tempo que perdemos juntos, para que tenhamos necessidade da mulher toda..., basta um palminho de cara, esse sinal em que resume a personalidade permanente de uma mulher”. Proust não é curto nem gordo, ao contrário, é longo e magro, curvilíneo, profundo e altíssimo, apesar de um tanto estrumbicado e ciumento, aferrado à força de vontade, quase monomaníaco. Seus livros extensos e lindos, os capítulos imensos e crepitantes, os parágrafos derramados e persistentes nas divagações, as frases longas e os períodos maiores, eclipsando e valorizando o esforço acompanhativo do leitor. Os períodos longos como cipós envolventes, que se perdem em trançados e ramagens. Às vezes perdemos o fio da meada, o deslindamento do conceito no envoltório rutilante e não meramente retórico (pois tudo tem sentido ali, até uma vírgula, um artigo indefinido, um verbo irregular), de tal maneira que passamos em cima dos versos transfeitos em imagens e conceitos, seguindo a linha racional dele que, no encompridamento do período, já não sabemos onde começa, onde chega na beirada e estaca num ponto final, que nada conclui, mas deixa vazar o que vinha e o que vai como o melado na gamela, pastoso e doce, sem pausas e reentrâncias, e que logo vai se transformar num quitute, numa rapadura, numa camada de aguardente. E a comer e a beber, o leitor se realimenta continuamente na leitura, Para falar de uma possível supressão do sofrimento do ciúme, ele debulha o raciocínio: “não pude jamais acreditar nisso, acreditar que a morte não faz mais do que riscar o que existe e deixar o resto intacto, que ela arrebata a dor ao coração daquele para quem a existência do outro não é mais que fonte de mágoas, que ela arrebata a dor e não põe nada em seu lugar.” É assim que ele diz e continua a dizer, a sobrepor coisa sobre coisa, de tal maneira que o período se torna um leque de pétalas de múltiplas significações: ao lado e além da brisa que oferece, traz ainda as ramificações adjacentes de perfumes interligados a visões, a rumores musicais, suspiros angustiados, silêncios de amor. As primeiras cinqüenta páginas do Volume VII (O Tempo Recuperado) são irrelevantes, fastidiosas? Falam dos Goncourt, de Dreifuss, dos salões aristocráticos, de toda a fauna da decadente nobreza de fim de século, remoendo assuntos datados e cansativos, como dirigir um automóvel numa estrada repetidamente conhecida. A gente vai indo sem prestar atenção nas margens, os olhos presos à pista de rolamento, pois as margens não oferecem mais surpresas, passaram a ser corriqueiras. Passamos por passar, lemos por ler, mas é preciso passar e ler para depois chegar aos pontos de interesse: no feitio de um terreno com as árvores inclinadas, quase que com as pontas no chão das encostas, e uma casa de feição atípica, zangada ou alegre em sua fachada de arabescos e alpendre de azulejos. Não podemos saltar quilômetros e páginas, sob pena de perdermos dádivas inincontráveis depois. Fisicamente, cada livro de Proust parece um tijolo inteiriço, manejável e acomodatício, mas contendo um peso formal de leveza, não de barro cozido, mas de pedras argamassadas nas preciosidades de lâminas finíssimas, cada uma contendo em sons e gravuras uma especialidade literária, a vida em suas roupagens: as várias juventudes conservadas de uma pessoa, as intimidades surpreendidas, as contendas do amor nos parques e jardins e alcovas, outros afins e achados: a poesia da mundanidade, a felicidade do defunto, o gosto e o hábito das inversões sexuais, a lógica da paixão e suas debilidades, as pessoas que não apertam a mão de um canalha, o amor que torna a pessoa mais crédula e menos soberba. Mais que um arquivo de filigranas, cada livro é um mostruário de sempre-vivas impressões: a suma validez da vitalidade em doses homeopáticas; a perpétua recriação das coisas do mundo; o olhar nublado dos nevoeiros da frieza; a frase diferente na flor de um lago desconhecido; os limitados campos do prazer e do vício; a impossibilidade de escapar da hereditariedade; os velhos corruptos, sempre reeleitos; os desapegados da vida, que a morte já fez entrar em sua sombra; o saber tardio de que os verdadeiros paraísos são os que perdemos; o mundo do desejo, que só é visto pelo espírito; as belas idéias que são árias musicais ainda não ouvidas; o nome que contém entre suas sílabas o vento veloz e o sol brilhante; o livro essencial que já existe, que precisa não de quem o escreva, mas de quem o traduza; a realidade que corremos o risco de morrer sem ter conhecido, e que é simplesmente a nossa vida; que os filhos legítimos são filhos da obscuridade e do silêncio e não do dia claro e das conversações; saber da semente que acumula todos os alimentos que vão nutrir a planta, desde o seu frescor aveludado...; considerar o tema de nossos conflitos com as pessoas cruéis; saber também que o livro pode ser um vasto cemitério de nomes apagados, e que a felicidade é saudável ao corpo mas é o desgosto que desenvolve a força da mente. Como fazer para procurar a alma dos lugares (as fadas e sombrações, os gênios e divindades, a sacralidade)? Aprendemos com ele que é só procurar. Ele podia ser lá homo ou hetero, isso seria sua condição e seu direito, mas poucos autores souberam falar da mulher como ele. Um pequeno exemplo, pinçado alhures nas páginas de O Caminho de Guermantes: “a beleza... material e inclusivamente inscrita na sua nuca, nas suas espáduas, nos seus braços, no seu talhe..., a linha deliciosa e inacabada era o ponto de partida, a geração inevitável das linhas invisíveis com que o olhar não podia deixar de prolongá-las, engendradas em torno da mulher como o espectro de uma figura ideal projetada nas trevas...”. E mais adiante: “...ví que o suave ninho de alcione que ternamente protegia o rosado nácar das suas faces era macio, brilhante e aveludado, uma imensa ave do paraíso..., os braços pareciam erguer-se-lhe sobre o peito como essas folhagens que a água desloca ao fugir..., uma proporção perfeita, no gênero daquelas que nas cores, nos perfumes e nos sabores vêm muitas vezes excitar em nós uma sensualidade particular..., fora-me preciso saber que o ato habitualmente não advertido de respirar pode ser uma constante volúpia.” Uma simples saudação acompanhada de um ligeiro sorriso dela, era para ele uma obra prima de aquarela, acrescentada de dedicatória. Às vezes um palminho de cara de uma mulher era tão intrigante e maravilhoso para ele, que ele acreditava que primeiramente a imaginação o tinha visto. Sentia ao revê-lo como se nunca a tivesse visto de outro modo e de tão perto. Mas às vezes nem notava o próprio sentimento e só depois de ter visto a Sra. de Marsantes (pág. 195 do citado livro) é que sentiu que “a verdade da beleza é tão peculiar, tão nova que não a reconhecemos como beleza”. Seu grande amor, Albertina, tinha um rosto de “superfícies uniformemente coloridas que poderiam comparar-se às carnações vigorosas de certas flores: sua pronúncia era carnal e doce, e ao falar já parecia estar nos beijando”. Albertina assim vai até chegar no ponto de inspirar mais ciúme do que amor, paixão menos trágica que a de Otelo e Desdêmona, mas de igual profundidade. Dos sete volumes da coleção, não li ainda o “No Caminho de Swann” e “Sodoma e Gomorra, que estão naturalmente agendados. Dos lidos anotei por alto o que mais me chamava atenção, sabendo, é claro, da ociosidade disso, uma vez que não podemos congestionar na memória o livre trânsito das idéias e das imagens em estado de desalinho e de estupefação. Penso que todo bom leitor merece entrar nesses lugares e nesses tempos do romance-rio proustiano. Sei de mim que mesmo sem anotar, jamais esqueceria das passagens sublinhadas mentalmente, como a do pássaro que recanta o nome de seu amor: a felicidade, como o horizonte, sempre adiante; a morte que não põe nada em seu lugar; as morenas da pequena burguesia; a importância social de um escritor; a universalidade do desejo; o amor, propagação de redemoinhos; os novos sons do violino interior; o dito: “não estrague o gosto antigo com a pincelada moderna”; açoitar as águas que engoliram os barcos; a ansiedade que vai além da beleza; “o plágio humano a que os indivíduos mais dificilmente escapam (e mesmo os povos que persistem em seus erros e os vão agravando} é o plágio de si mesmo”; o que não encontramos numa está noutras pessoas; reter a imagem fugidia; as moças do povo também são deusas; a cor de um dado timbre; as semelhanças dissimuladas e involuntárias; ficar perto do invisível e do inefável; o que Dostoievski trouxe de único no mundo; a impossível interpenetração das almas; nossa memória é uma espécie de farmácia; conservar as várias juventudes; as conquistas fáceis e as derrotas definitivas; o que já estava claro antes de nós, não nos pertence; a idéia da morte como um amor. Incontáveis anotações para infindáveis meditações. É ou não é uma bela aventura entrar e prosseguir a leitura das páginas de Marcel Proust? Ele é talvez o mais inimitável dos escritores. Qual outro começa a página e vai por ela afora como quem não quer nada com a dureza da estética linguística, os achados excepcionais, as frases de efeito, o jogo das metáforas e a pressa das ilustrações éticas, e mesmo assim, sem exibir preciosismos, vai deixando pelo caminho os naturais fulgores e perfumes, os emblemas da naturalidade existencial das coisas na torrencialidade palavrosa? Ao longo das narrativas e das descrições, o leitor às vezes pensa que está nas mãos de um escritorzinho que não sabe discernir a síntese expressional no emaranhado vocabular?... Ele é também mestre na arte de enganar: como um aprendiz de repórter de assuntos domésticos e debulhador de generalidades, ele vai alinhavrando as possíveis trivialidades e no meio delas, quando menos se espera, ele respira o brilho e depõe a segura expressão que o leitor queria e nem mais esperava. E da enganosa vulgaridade desponta a genialidade que se escondia para melhormente expressar o surgimento das coisas nas palavras, das coisas vivas em palavras que são mais que palavras, que são pensares, fazeres e dizeres. Seus personagens se equivalem na seiva, na pele e na medula. “Os criados de quarto são mais instruídos que os duques e falam em francês mais bonito, mas são menos simples e susceptíveis”, isso ele disse em carta à amiga Mme. Sert. Paul Valéry soube resumir o resultado do trabalho dele: “Por seu intermédio, a imagem de uma sociedade superficial é uma obra profunda”. Ele reconhecia que os financistas não sabem viver. Como então querem ser donos de casas e de terras e das pessoas? E logo transige do estóico verismo à lídima delicadeza do casamento das flores, que para ele é divertido, sem lanches e sem sacristia. E assim desenha o conluio da noite nupcial delas: “Tudo é simples e discreto. Nota-se apenas uma chuvinha alaranjada ou uma mosca poeirenta que vem espanar as patas ou tomar uma ducha antes de entrar na flor. E tudo está consumado!” É certo que todo bom texto não pode encerrar o assunto, logo depois de exposto. Ele se esgotará mesmo? Quando? É preciso atentar para as outras variantes e dúvidas, ilações e possíveis enigmas insuflados, o que certamente ele faz e deixa de fazer, ou seja: o caminho nunca termina por causa das curvas que ele mesmo faz ao longo de si mesmo. Em trecho traduzido por José Nava de um livro sobre Proust, André Germain levanta a hipótese de que a Princesa de Parma, personagem de Proust, seria na realidade um decalque da Condessa D’Eu, na verdade a verdadeira Imperatriz do Brasil (a Princesa Isabel), que então vivia em Paris e freqüentava o mesmo círculo social do escritor. Lembrar e esquecer são páginas lidas e relidas do livro da memória: cada uma guarda a paisagem de um dia para o resto da vida, que pode ser a da laranjeira carregada de frutas maduras ou a do pai morto entre flores murchas no esquife, ou a das mulheres mais peregrinamente belas que já se viu nas ruas ou nas praias, ou a familiar ingratidão de alguém num momento de infortúnio de outro alguém. Ah Proust, a música que amamos leva-nos perto do invisível e do inefável, não? Mas quando chegamos ao local ah, Proust, aí adormecemos. De certa forma em certos instantes chegamos a saber mais que antes (um saber que no entanto não adianta, só atrasa): se não era Deus quem nos dava a chuva, quem era? Se não era Deus, ó meu Deus do céu, quem agora vai impedir que nos tirem a chuvinha fina e a chuva grossa de nossa cabeça e de nosso telhado, sedentos? De vez em quando acontece o atordoamento estético, que pode até causar a súbita estranheza e uma lenta recuperação, como quando ele descreve a impressão de Bergote diante de uma pequena superfície de um muro amarelo num quadro de Van Meer, na qual estremeciam pequenos vultos de azul sobre a areia rósea, reavivando, no espectador, a criança atraída por uma borboleta amarela, que ela quer pegar porque amarra seu olhar. Depois de abrir-nos a alma, a música inunda-nos de impressões originais, inextensas, “irredutíveis a qualquer outra ordem de impressões”, ele diz na pessoa de Swann. O nome completo dele: Valentim-Louis-Georges-EAugéne-Marcel Proust. A asma o aflige a vida inteira. Começa a escrever “Em Busca do Tempo Perdido” em 1905. Passa 13 anos em seu quarto sem calefação e forrado de cortiços, tresandando a fumigações. Morre em conseqüência da garganta inflamada, que evolui para bronquite e depois para a fatal pneumonia. Seus personagens, ao contrário de quem pensa que sua obra é mais memória que ficção, são fictícios e despidos de chaves identificatórias na vida real, mas foram sim, como disse Manuel Bandeira, forjados, “segundo a lógica dos seus temperamentos, dos seus hábitos”. André Gide (disso nunca o perdoei, apesar de amá-lo muito) devolveu-lhe, em nome da editora, os originais do “Caminho de Swann”, sem ler, assim gratuitamente, ou por insidiosa implicância. E o que lhe diz a quiromante por ele consultada? “Nada posso dizer. O senhor é que poderá descrever a minha vida e o meu caráter”. Antes de morrer, ele dizia aos amigos: “Não devemos ter medo de ir muito longe, pois a verdade está ainda além”. Ele penou anos a fio, antes da descoberta dos antibióticos. Quando sentiu a presença da morte, disse à criada Celeste: “Você sabe que ela chegou e não me diz. Ela é grande, enorme. É muito grande e escura, está toda de preto, é feia, me apavora!” Mas, antes e depois (e sempre) todas as flores dos parques e jardins, as ninfas e aldeãs, os castelos e as casinhas, as cidades e seus arredores, tudo toma alento na obra dele, ganha corpo e espírito, tudo a fluir levemente e ao mesmo tempo solidamente de uma xícara de chá com as rosquinhas (as madeleines, que felizmente encontrei e degustei em muitas cidades da Europa, numa viagem com minha esposa, em 2006) umedecidas no chá das eternas essências. 

Bibliografia: - Idéias e Livros, Jornal do Brasil, 04/12/1993. - Ilustrada, Folha de São Paulo, 23/11/2003. - Suplemento Literário do Minas Gerais, 10/10/1971. - Letras, Folha de São Paulo, 17/08/1991. - À Sombra das Raparigas em Flor, trad. de Mário Quintana, 14ª. edição, Editora Globo. - O Caminho de Guermantes, trad. de Mário Quintana , idem, 1981. - A Prisioneira, trad. de Fernando Py, Ediouro, 1994. - A Fugitiva, trad. de Fernando Py, 1995. - O Tempo Recuperado, trad. de Fernando Py, Ediouro, 1995.