1 – Aço Frio de Um Punhal, Contos de Lázaro Barreto
editora Guanabara, Rio de Janeiro, 1986.
Carta recebida do escritor Oscar D”Ambrósio, datada de 23 de janeiro de 1991, com os seguintes termos: “Prezado Lázaro: Admirador há algum tampo de seu trabalho, envio o material em anexo para que o senhor veja as reflexões que os seus contos, específicamente “Os Círculos do Abismo”, me suscitaram”. Seguem 28 páginas datilografadas, reunidas aqui, intelgralmente, conforme abaixo:
O EDIFÍCIO INTERTEXTUAL
(Análise do dialogismo entre a Divina Comédia de Dante Alighieri e o conto “Os Círculos do Abismo” de Lázaro Barreto. – Oscar D’Ambrosio.
ESQUEMA
1 – Intertextualidade: uma característica do pós-moderno.
2 – A Divina Comédia.
3 – “Os Círculos do Abismo”.
4 – Intertextualidade: paródia, paráfrase e estilização
5 – Conclusão: intertextualidade, tônica da relação Dante-Lázaro Barreto.
6 – Notas
7 – Bibliografia.
1 – Intertextualidade: uma característica do pós-moderno.
Em O Que é Pós-Moderno (1), Jair Ferreira dos Santos apresenta O Nome da Rosa, de Umberto Eco, como uma ficção tipicamente pós-moderna. O romance é situado na Itália medieval, sendo escrito como uma narrativa policial, contando os crimes, a violência sexual e a destruição de um mosteiro. As personagens buscam um livro: a parte perdida da Poética, de Aristóteles.
Quais seriam as características pós-modernas da obra de Umberto Eco?
A primeira seria a volta ao passado (Itália, 1327)
A segunda: utilizar uma forma antiga e gasta (o romance histórico).
A terceira: usar a narrativa policial (gênero de massa).
A quarta: a intertextualidade (referências ao romance histórico, à narrativa policial; e o fato de ser um livro sobre outro livro – a Poética.
A quinta: o ecletismo (misturar o histórico documental ao divertimento – o policial, a ironia).
A sexta: a paródia ( o nome da rosa é um pastiche de romance histórico, o gênero é retomado de forma lúdica.
A sétima e última: a entropia (desorganização) do mosteiro, algo que reflete a desorganização da sociedade pós-moderna.
Por outro lado, constatamos que a intertextualidade está cada vez mais presente na arte, na publicidade e nas campanhas eleitorais para o governo do Estado.
Entre os contistas contemporâneos, há dois exemplos de autores que tornam a intertextualidade o fio de prumo de seus textos, repletos de citações, referências implícitas ou explícitas a poetas, romancistas e músicos do passado e do presente.
Uma característica do pós-moderno não seria revisitar o passado? Realizar-se-ia uma avaliação do que foi até hoje produzido para, a partir daí, buscar-se um outro caminho?
Entre os novos contistas, merece destaque Lázaro Barreto: Aço Frio de Um Punhal (2), seu livro mais recente, é composto por 31 contos. Neles há citações a Dostoievski, Drummond, Murilo rubião, Maria Bethânia, Autran Dourado e Guimarães Rosa.
Escolhemos o conto “Os Círculos do Abismo” (3) para análise porque trata-se de uma recriação de uma das maiores obras da literatura universal: A Divina Comédia (4), de Dante Alighieri.
O objetivo deste trabalho será o de mostrar a intertextualidade presente entre o conto de Lázaro Barreto e o poema de Dante. Além disso, veremos de que forma podemos considerara o texto do contista mineiro como pós-moderno e, até que ponto, a intertextualidade é uma característica da literatura posterior ao modernismo.
2 – A Divina Comédia.
A Divina Comédia é considerada de forma unânime uma das obras-primas da literatura universal. Compreende três partes: O Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Cada parte contém 33 cantos,compostos entre 1307 e 1321.
O poema de Dante une a alma medieval e o espírito clássico. Não se limita a glorificar o amor de Dante por Beatriz, mas torna-se um poema cósmico pela variedade e quantidade de símbolos que traçam uma viagem mística no país da morte. Viagem capaz de englobar diversos aspectos do Homem e da Humanidade. Além disso, o poema é uma crônica política em que são exprimidas as idéias de Dante a respeito de Florença e das vinculações do poder espiritual (Igreja Católica) ao poder temporal (governo da Itália).
Florentino, Dante Alighieri chegou a ser magistrado em sua cidade natal. Porém, seu posicionamento político valeu-lhe o desterro. No plano amoroso, apaixonou-se pela adolescente Beatriz, que morreu subitamente, deixando o poeta imerso em terrível tristeza.
esses dois fatos (o dsterro e a morte de Beatriz) são fundamentais para penetrarmos na Divina Comédia, pois boa parte das personagens da obra são contemporâneas do autor. Por isso, há numerosos diálogos que dizem apenas respeito ao período que Danteviveu, tendo pouco valor para o leitor atual.
Em verdade, não conseguimos hoje oprazer dos contemporâneos de Dante na leitura do poema, pois o nosso deleite é roubado pelas notas esclarecedoras que nos são hoje necessárias ao tomar contato com a obra.
Mesmo assim, o poema é uma grande alegoria que funda os princípios da língua italiana, além de expor toda uma concepção de universo e da existência humana antes e depois da vida.
Nossa pretensão aqui não é de interpretar o poema de Dante mas apontar elementos que serão de interesse para comprovar a intertextualidade entre A Divina Comédia e “Os Círculos do Abismo”.
Narrada em primeira pessoa, o poema inicia-se em selva escura, da qual Dante está impedido de sair devido a três animais: uma pantera, um leão e uma loba.O poeta pede socorro a um homem, que revela sua identidade:
“fui poeta e celebrei o filho justo
de Anquises, que a estas plagas veio um dia,
depois que Tróia foi queimada a custo. (5).
Trata-se de Virgilio, autor da Eneida, obra em que narra as aventuras de Enéias, “filho de Anquises”, que funda na Itália, após a derrota em Tróia, as bases do Império Romano. O poeta subira ao nível dos vivos a mando de Beatriz.
Espliquemos melhor: ouvindo os apelos de Dante por ajuda,beatriz, apaixonada pelopoeta em vida, deixara o Paraíso e descera ao Limbo,primeiro círculo do Inferno, para suplicar a Virgilio que ajudasse Dante. O poeta grego deixa o Limbo e encontra Dante, levando-o a uma viagem pelo Inferno e pelo Purgatório. Virgilio, porém, não pode entrar no Paraíso por residir no Limbo. Às portas dessa terceira etapa da viagem, deixa Dante em companhia de Beatriz, que guia seu amante pelo paraíso. Finda a viagem, Dante volta ao mundo dos vivos.
Surge, então, uma dúvida.
Por que Dante é guiado por Virgilio?
Temos aqui um exemplo de intertextualidade do próprio Dante. Para guiar o autor de A Divina Comédia no Inferno, era necessário alguém que já houvesse descido ao reino de Lúcifer e, mais, alguém de boa índole para cumprir a missão a contento.
Virgilio é escolhido por preencher esses requisitos. Primeiro: era um grande poeta, logo seria respeitado por Dante. Segundo: escrevera a Eneida, poema em que, no canto VI, seu protagonista, Enéias, desceu ao Inferno. Logo Virgilio descreve a viagem de Enéias às profundezas da terra, sinal de que as conhecia muito bem. Além disso, na concepção de universo elaborada por Dante,Virgilio situar-se-ia no Limbo (primeiro círculo do Inferno) por ser pagão, ou seja, não ter conhecido o cristianismo. O próprio Enéias, encontra-se no Limbo com Virgilio;enquanto as figuras do paganismo consideradas pecadoras mais graves são colocadas por Dante em círculos mais profundos do Inferno.
Alguns comentários são necessários.
diversos comentadores de A Divina Comédia (6) auxiliam-nos a penetrar no universo dantesco. Os primeiros versos do poema são essenciais:
A meio caminho desta vida
achei-me a errar por uma selva escura
quando a via veraz deixei, perdida (7).
O “meio caminho da vida” corresponderia aos 35 anos, momento, para Dante, de reflexão e avaliação da própria vida e da história da humanidade.
A “selva escura”nada mais é do que o pecado em oposição a “via veraz”, virtude.
Quanto aos três animais que impedem Dante de deixar a”selva escura”, duas interpretações são encontradas. Uma, de caráter mais universal, confere aos animais a simbologia de pecados humanos: a luxúria (pantera), a violência (o leão) e a avareza (a loba). Outros consideram esses animais como símbolos de Florença, da Casa de frança e da Cúria Papal, respectivamente.
O conto de Lázaro Barreto que será aqui cotejado com A Divina Comédia faz alusão apenas à visita de Dante ao Inferno. Logo, visto o conjunto do poema do autor italiano, passemos para os círculos do Inferno descritos por Dante:
Vestíbulo do Inferno: situam-se aqueles que não podem entrar no Inferno por não possuírem faltas graves, mas as que cometeram não lhes permitem ficar no Paraíso. São os covardes e indecisos, como o Papa Celestino V.
Primeiro Círculo: após cruzar o Rio Aqueronte com o barqueiro Caronte chega-se ao Limbo. Lá estão as crianças mortas sem batismo e as grandes figuras do paganismo: Homero, Horácio, Ovídio, Lucano (merecem tratamento especial pelas suas obras), Enéias, Heitor, Sócrates, Platão, Demócrito, Euclides, Ptolomeu, Sêneca e Aristóteles, entre outros.
Segundo Círculo: local dos luxuriosos, como Cleópatra,, Helena, Páris e Dido.
Terceiro Círculo: os pecadores por intemperança. Estão sob chuva eterna, sendo dilacerados por Cérbero (monstro com três cabeças; metade cão, metade homem).
Quarto Círculo: avaros e pródigos. Rolam pesos enormes e as almas se injuriam mutuamente.
Quinto Círculo: iracundos. estão mergulhados no lago Estige.
Sexto Círculo: situa-se na Cidade de Lúcifer, assim como os três seguintes, guardada por anjos rebeldes, ou seja, demônios. Nele estão os heréticos, jazendo em sepulcros inflamados. Em um deles está o Papa Anastácio II, que explica a distribuição dos homens, após a morte, pelos Círculos do Inferno.
Sétimo Círculo: possui três giros e é guardado pelo Minotauro (metade homem/metade touro).
No primeiro giro, estão os tiranos, assassinos e salteadores submersos em sangue fervente. Entre eles, Alexandre da Macedônia, Dionísio, tirano de Saracusa, Átila, o Rei Pirro e Sesto Tarquínio.
No segundo giro, estão os suicidas (transformados em árvores) e os dissipadores (perseguidos e estraçalhados por cães ferozes.
No terceiro giro, os violentos contra deus (blasfemadores), contra a arte e contra a natureza; todos castigados por uma contínua chuva de fogo. Os sodomitas (violentos contra a natureza) recebem ainda outro castigo: manter-se em perpétuo movimento.
Oitavo Círculo: é dos fraudulentos. Divide-se em dez valas. Virgilio e Dante são introduzidos neste círculo por Gerión, símbolo da fraude, com seu rosto humano e seu corpo de serpente alada.
Na primeira vala, estão os rufiões e sedutores como Jasão (seduziu Isifília e enganou Medeia. Seu castigo é o açoitamento eterno por demônios).
Segunda vala: aduladores, imersos em fezes.
Terceira vala: simoníacos (traficantes do sagrado). São enterrados de cabeça para baixo com os pés envolvidos em chamas. Isso ocorre com três papas: Nicolau III, Bonifácio VIII e Clemente V.
Quarta vala: Mágicos, adivinhos e embusteiros. Seus rostos estão voltados para as costas. Aqui está Tirésias.
Quinta Vala: traficantes de cargos e influências: são os trapaceiros, venais e corruptos condenados a permanecer em um poço de betume fervente.
Sexta vala: hipócritas revestidos de capas de chumbo. Um deles é Caifaz, aquele que aconselhou os fariseus a condenarem Jesus.
Sétima vala: ladrões. São picados por serpentes, entram em combustão, transformam-se em cinzas e renascem.
Oitava vala: conselheiros fraudulentos envoltos em chamas. estão aqui Ulisses e Diomedes pelas ações na Guerra de tróia.
Nona vala: Promotores de cismas religiosas e semeadores de discórdias entre povos e pessoas. O castigo (a contínua mutilação a golpes de espada) cabe a Maomé.
Na décima vala estão os falsários de pessoa, de dinheiro e de palavra. Sofrem de loucura agressiva, hidropisia e febre ardente, respectivamente.
Nono Círculo: os poetas são para lá levados pelo gigante Anteu. O círculo situa-se nas águas geladas do Cocito e abriga os traidores em quatro giros.
No primeiro giro (Caína) estão os traidores do próprio sangue, como Caim e o Rei Artur.
Segundo giro (Antenora): traidores da pátria. Aqui estão Antenor (traiu Tróia) e Ugolino (traidor de Florença).
Terceiro giro (Toloméia): traidores de amigos ,como Tolomeu.
Quarto giro (Judeca): traidores de benfeitores e chefes. Os residentes deste nível estão embutidos no gelo e imobilizados, excetuando Judas, Bruto e Cássio, torturados pessoalmente pelas três cabeças de Lúcifer: uma rubra (ódio), uma branca (impotência) e outra negra (pecado).
O Inferno de Dante segue a concepção de universo de Ptolomeu, possuindo a forma de um cone invertido com base na superfície da terra e o ápice voltado para o centro. Assim, a área de cada círculo é menor em relação a anterior.
Há ainda uma propriedade dos mortos em relação. Eles podiam ler os pensamentos do poeta italiano de modo que o autor da Divina Comédia não necessitava fazer perguntas, bastando que as pensasse para ser logo atendido.
Cabe também uma explicação sobre a concepção dantesca do universo. Nela, o homem teria a opção de escolher em sua vida terrena, o caminho do bem ou do mal. Após sua morte, seria julgado e, de acordo com suas atitudes, enviado para arder no fogo eterno (Inferno), para purgara seus pecados e ascender ao Paraíso (Purgatório) ou para o próprio Paraíso, vivendo junto à Santíssima Trindade.
Feita essa visão geral do Inferno dantesco e da estrutura da Divina Comédia, passemos para o conto “Os Círculos do Abismo”, de Lázaro Barreto.
3 - Os Círculos do Abismo.
No meio da idade de minha vida
vi-me numa noite escura a enlouquecer-me
interiormente, na dúvida se a claridade podia
estar adiante ou se a perdera no passado,
para sempre. (8).
Assim se inicia o conto de Lázaro Barreto. A narrativa é em primeira pessoa e a situação inicial é idêntica à da Divina Comédia. Um homem no meio da idade da vida está imerso na escuridão.
Porém o narrador do conto não encontrará Beatriz no Paraíso. Seu trajeto será outro. Ele espera um guia que o ajudará a encontrar seu filho de oito anos de idade. Se consideráramos que todo desejo provém de uma carência, notaremos que a ausência do filho será o fator que levará o narrador a percorrer ambientes estranhos e desconhecidos em busca do seu objeto de amor.
Ao constatar a ausência do filho, desespera-se e recebe um telefonema dizendo para procurar a criança “no inferno”. Liga então ao pai, que lhe manda o guia Virgilio, “uma pessoa de confiança, que conhece as coisas”. Juntos o narrador e Virgilio começam a percorrer os arredores da cidade, passando por locais que correspondem, ao menos em número, aos círculos do inferno de Dante. Vemos como:
O capão é uma espécie de Vestíbulo do Inferno: Lá estão pessoas que purgam culpas, sofrendo de hemorragia eterna,como Lyndon Johnson, o presidente americano responsável pelos bombardeios no Vietnã.
O distrinto industrial. Patrões e capatazes cruéis. Aqui estão as reencarnações de Hitler e Mussolini em um caso de monocefalia, em cadeira de rodas.
A favela do Morro seco. Aqui está a reencarnação de Joe McCarthy (“dedurismo político”).
Contornando o pântano junto à favela, aparecem reencarnações de Stalin, Franco, Nero, Onassis, Maquiavel e Napoleão Bonaparte, entre outros.
Virgilio sugere ao narrador que ligue para casa. A esposa diz que telefonaram avisando que “o menino estava em um abismo mais profundo”. O narrador e Virgilio prosseguem a jornada.
Na Zona do Meretrício, Virgilio identifica Custer, o Marquês de Sade, os donatários de capitanias e cabos eleitorais do coronelismo republicano.
O Hospital é o outro local em que os poetas buscam o menino.
No Orfanato, a busca continua.
No Reformatório,encontram reencarnações de Herodes, Átila, Torquemada,Goebbels e Walt Disney.
Leprosário. O narrador desmaia, mas antes contempla o que em “tempos anteriores” foi o Joaquim Silvério dos Reis; além de antigos exterminadores.
Penitenciária. Há diversas celas dispostas em círculos. Todas especificam as categorias dos prisioneiros que contém. Na cela dos algozes de crianças “há nove homens hediondos”, que Virgilio identifica como ex-carrascos da Gestapo, ex-membros da Ku-Klux-Klan e ex-verdugos do tempo da Cortina de Ferro na Rússia. Há uma cela para os seqüestradores e chantagistas e uma terceira para os criminosos primários, os homicidas passionais e os dilapidadores do erário público.
Não encontrando seu filho, o narrador espera um conselho de Virgilio. Este lhe diz que apenas percorreram metade do caminho, faltam ainda “os asilos, hospícios, depósitos de presos, lares-infernais, pronto-socorros, trens de ferro suburbanos, casas populares, vilas vicentinas...”. O narrador decide voltar para casa na esperança de lá encontrar o filho assistindo a uma série de filmes violentos na televisão, “que tão bem se inserem no contexto deste mundo que acabo de percorrer nove vezes”. A alusão do percorrer “nove vezes” é um citação clara dos nove círculos do Inferno de Dante. Tanto na Divina Comédia (Inferno) como no conto de Lázaro Barreto, há descrições terríveis de padecimentos humanos. Porém, enquanto em Dante as almas são castigadas após a morte pelo que fizeram em vida, o contista mineiro apresenta a própria vida como o inferno .Seriam mais felizes os que nele não estão? As penas cometidas em vida serão pagas em sucessivas reencarnações, forma de purgar as culpas.
Sob este aspecto, a vida possui um caráter semelhante ao Purgatório de Dante, local em que os indivíduos pagam por seus pecados, mas com a certeza de ascenderem ao Paraíso. Notamos assim uma diferente concepção religiosa entre os dois textos. Dante adota o cristianismo, considerando a vida como uma oportunidade de desenvolver as potencialidades individuais. De acordo com o desempenho, após a morte a alma receberá o que merece: paz eterna, purgação de culpas ou sofrimento eterno. em”Os Círculos do Abismo”, Virgilio adota outra concepção religiosa:
“Os bens materiais, esses Deus empresta aos homens para prová-los no processo de purificação de suas almas. todo homem pode ser feliz e bom, mas se prefere ser apenas feliz, a experiência de Deus falha nele, e ele terá de volver à terra em condições adversas, para nova provação”. (9).
Concluímos daí que há dois grupos: os que são apenas felizes; e os felizes e bons. Os primeiros voltam à terra para nova provação – e os segundos? Virgilio diz mais adiante que não há morte:
“Ele (o filho do narrador) está em alguma parte e vivo, como já disse,
mesmo quem morre está vivo”. (10).
Para concluir no fim do conto: “Onde ele está, está aprendendo a viver”. (11).
O próprio narrador, ao dizer que percorrera o mundo nove meses, permite duas leituras de sua afirmação: por um lado, há uma intertextualidade com A Divina Comédia, por outro, a confissão de viver sua nona encarnação em um mundo violento. Ao invés de construir um inferno como projeção dos pecados terrenos, Lázaro Barreto mostra o mundo como um inferno, sendo que nele estão condenados a sofrer mais aqueles cujas culpas são maiores. Junto a isso, há todo um juízo de valor exercido em relação a história moderna e universal. Da mesma forma que Dante, Lázaro Barreto constrói seu conto de forma a denunciar aqueles que maiores pecados cometeram contra a humanidade e contra o país. em seu poema, Dante critica diversas figuras de Florença que lhe eram contrárias politicamente. O mesmo fez o contista mineiro com personagens execráveis da nossa história, como Joaquim Silvério dos Reis. Na conclusão deste trabalho, retomaremos estas colocações preliminares. Antes, porém discutir os conceitos de paráfrase, paródia e estilização que também serão utilizados mais adiante.
4 – Intertextualidade: paródia, paráfrase e estilização.
A pintura voltou-se para si mesma no momento em que a máquina fotográfica tornou-se um instrumento para reproduzir a realidade. Se considerarmos o signo ideológico com a propriedade dialética de refletir e refratar o real, constataremos que, na segunda metade do século XIX, a pintura passa muito mais a refratar o real do que a refletir o mundo circundante. Desse modo a função poética e a função metalingüística sobrepõem-se, deixando a função referencial em segundo plano. Abandonando a referencialidade e assumindo seu caráter de re-apresentação do real, a pintura passa pelos imprassionsitas, por Cézanne e chega ao cubismo e ao abstracionismo, momento em que a referencialidade desaparece. Algo similar ocorre com a literatura à medida que o jornalismo se desenvolve. A literatura também vai se distanciando do referente para voltar-se sobre si mesma. Nesse momento, a intertextualidade ganha importância.
Em Paródia, Paráfrase & Cia. (12), Affonso Romano de Sant’Anna procura estabelecer uma tipologia para a intertextualidade. A relação entre textos dar-se-ia através de graus de desvio de um texto segundo em relação a um primeiro (matriz). A um desvio mínimo, chamamos de paráfrase. O desvio tolerável é uma estilização e o desvio total recebe a dominação de paródia.
A paráfrase é uma intertextualidade de semelhanças. Nela, há a condensação e o reforço do texto 1. Ocorre uma ritualização, uma conformidade. Por isso, o discurso autoritário utiliza a paráfrase. A propaganda nazista, o fascismo de Mussolini e o realismo russo baseiam seu discurso na repetição. Os desvios são mínimos. A re-afirmação do similar é a regra.
A estilização possui um caráter mais subjetivo. O significado primário do texto 1 não é alterado, mas o texto 2 apresenta alterações. Há uma reforma em relação ao texto matriz, mas não uma era-criação, uma inversão de sentido. A inversão de sentido é característica da paródia. temos aqui uma intertextualidade de diferenças. Há um deslocamento e uma informação do texto 2 em relação ao texto 1. A paródia é essencialmente antropofágica, deglutidora, carnavalizante e polifônica. O termo polifonia é utilizado pela primeira vez por Bakhtin ao estudar Dostoievski. É exatamente a partir da distinção feita entre paródia e paráfrase por Tynianov e Bakhtin, que Sant’Anna realiza seu estudo. Leyla Perrone-Moisés também aborda a intertextualidade em “Textos Crítica e estrutura (13). O capítulo III dessa obra, intitulado “Crítica e Intertextualidade” demonstra que a literatura nasce na própria literatura, alimentando-se de si mesma em uma antropofagia constante em que, muitas vezes, a contestação do texto 2 em relação à matriz dá nascimento a uma grande obra.
A literatura seria uma reelaboração ilimitada de formas e conteúdos. O estabelecimento de uma rede de sentidos de um texto 2 ocorre pela apropriação livre do texto matriz e pelo dialogismo de um texto com outro através dos “gramas leiturais” (Kristeva). A avaliação do passado é feita pelo re-escrever de textos antigos. A escolha de um texto para ser re-criado é um juízo de valor. Recria-se aquilo que merece ser re-escrito. A intertextualidade é a prova de que as obras não estão acabadas por si mesmas. Sempre permitem novas leituras pelo dialogismo que comportam. É através do dialogismo intertextual que a literatura se volta sobre si mesma e se reproduz continuamente. No momento em que Lázaro Barreto seleciona A Divina Comédia, ocorre um implícito juízo de valor do autor contemporâneo ao texto clássico. “Os Círculos do Abismo” é um texto que não se alimenta apenas de sua organização formal interna. Sua leitura exige o dialogismo (intertextualidade) com Dante. e esse dialogismo é o alimento da literatura.
5 – Conclusão: intertextualidade, tônica da relação Dante-Lázaro Barreto.
entre o conto “Os Círculos do Abismo” e “A Divina Comédia” há uma intertextualidade inegável, que se torna bem clara no episódio dantesco do Inferno. Para esta análise, consideramos análogo a viagem do narrador do conto de Lázaro Barreto à do narrador da Comédia. Em ambas as obras, sujeito do enunciado e da enunciação se confundem. Ambas são narradas na primeira pessoa singular,ocorrendo ainda em ambas a identificação do narrador com o autor. Dante é chamado pelo seu nome durante a Comédia e Lázaro Barreto identifica-se como jornalista, atividade que exerceu de fato.
Como já mostramos, o conto e o poema de Dante iniciam-se da mesma forma. Os narradores estão “no meio do caminho da vida”, e caminham nas trevas. Porém, enquanto Dante encontrará Beatriz, Lázaro não encontrará o filho seqüestrado. Ambos se igualam por um sentimento de desejo, de busca, de falta. Ambos terminam as narrativas em um estado mais elevado. Dante volta à vida após ouvir previsões sobre seu futuro e após o encontro com Beatriz. Lazão retorna ao lar com a esperança de encontrar o filho perdido e com a tranquilidade de não o haver encontrado nos locais infernais em que esteve. O inferno é, então, o ponto de contato das narrativas. Embora sejam apresentados de forma igualmente terrível os infernos ocorrem de forma distinta. Sua dimensão espacial é diferente. O inferno dantesco é um cone invertido em direção ao centro da terra. O inferno de Lázaro Barreto ocorre na superfície, em locais específicos do mundo cotidiano.Além disso, o inferno do poema é revelado depois da morte, enquanto todos nós estamos imersos nos inferno do contista mineiro.
Se os narradores-protagonistas se equivalem, os seus companheiros de viagem também. Ambos chamam-se Virgilio e são muito sábio, capazes de responder qualquer pergunta formulada verbalmente ou não. A presença de Virgilio como guia na visita ao Inferno é uma alusão direta de “Os círculos do Abismo” à Divina Comédia. Se isso não bastasse, o Virgilio do conto de Lázaro Barreto cita diretamente alguns versos do poema de Dante
“Não costumamos falar com eles, apenas olhamos e continuamos a andar. A
misericórdia e a justiça os desprezam”. (14).
Porém, há diferenças importantes entre os dois textos. Atinge-se o inferno dantesco após a morte em uma concepção católica da existência. Em contrapartida, o inferno de Barreto não passa de uma concepção existencial vinculada ao espiritismo e as doutrinas que acreditam na reencarnação de almas em diversos corpos e na ascensão da alma após diversos períodos de purgação de pecados. Nessa visão, o mundo não passa de um purgatório constante de almas em busca de um estágio mais elevado. O universo dantesco, como assinalamos, coloca as almas em três planos após a morte: o arder eterno; a purgação repleta de sofrimentos, mas com a certeza de alcançar o Paraíso; e o Paraíso, morada do Senhor.
A apropriação realizada por Lázaro Barreto do poema lírico de Dante, não possui dimensão épica, mas apenas transplanta a concepção de inferno católica à concepção de inferno do espiritismo. De qualquer modo, as duas obras – o conto e o poema – realizam uma crítica aguda da sociedade e mostram claramente uma escala de juízo de valores. Dante e Lázaro Barreto colocam-se como juízes e dentro de suas narrativas avaliam seus antepassados e contemporâneos. Nesse aspecto, Dante é mais parcial, pois sua obra perde universalidade no momento em que detém sua atenção sobre personagens reais vinculados apenas as disputas políticas de sua cidade natal – Florença. Embora haja uma divergência quanto à religião tomada como modelo para elaborar os respectivos infernos, Dante e Barreto condenam aqueles seres da História Universal que cometeram atos de violência, abusaram do poder ou traíram seus amigos ou patrões.
Vistas as diferenças e semelhanças, resta concluir se “Os Círculos do Abismo” realiza uma paródia,uma paráfrase ou uma estilização da Divina Comédia. Raciocinemos pelo método mais seguro:o da negação. O conto do Lázaro Barreto não é uma paráfrase do poema de Dante. embora haja uma citação direta da Comédia, a narrativa seja em primeira pessoa e o guia da visita ao inferno chame-se Virgilio; o desvio é mais do que mínimo comportado pela paráfrase. O narrador não busca uma amada (busca seu filho) e a concepção ideológica via-religião diverge: catolicismo em Dante; espiritismo em Barreto.
O conto também não é uma paródia. O desvio não é total em relação à Comédia. Além dos elementos comuns que mencionamos no parágrafo anterior, há um juízo de valor que impregna as duas obras: o castigo àqueles que, de um modo ou de outro, contribuíram para a degradação do ser humano. O critério de julgamento é o mesmo. Certamente Dante colocaria Hitler, Mussolini e Franco no seu inferno, se os houvesse conhecido. O desvio total caracterizar-se-ia se os que sofressem no conto de Barreto fossem os considerados justos e dignos de residir no Paraíso dantesco. Aí sim, o desvio total aconteceria; a inversão de valores no julgamento de almas seria um elemento caracterizador de paródia.
Preferimos, então, considerar o texto uma estilização. O desvio de um texto para outro é tolerável e deve-se ao fator religioso. Temos, em “Os Círculos do Abismo”, uma visão particular da Divina Comédia sob um enfoque vinculado ao espiritismo. A concepção básica das duas obras é a de realizar uma crítica aguda ao homem e aos pecados que o acompanham no decorrer da História. Para Dante, as almas que fizeram o mal, arderão no inferno. Para Lázaro, serão condenadas a viver outras existências até se purificarem. Para ambos o ser humano deve caminhar em direção a um aperfeiçoamento constante. Considerando o conto uma estilização, cabe agora, conforme nosso projeto inicial, caracterizar o texto de Lázaro Barreto como pós-moderno.
Vejamos se ele preenche as características indicadas por Jair Ferreira dos Santos para O Nome da Rosa. Característica 1: volta ao passado. “Os Círculos do Abismo” não volta ao passado no plano da narrativa, mas evoca uma obra do passado: A Divina Comédia. Logo, a condição é preenchida indiretamente através da intertextualidade. Característica 2: utilizar forma antiga e gasta. O conto usa, através da intertextualidade novamente, o poema épico, forma gasta que é adaptada por intermédio do conto. Condição preenchida. Característica 3: usar um gênero de massa. O conto, conforme Alfredo Bosi, é a forma mais característica da literatura de massa atual. O ritmo dinâmico da sociedade capitalista exige leituras rápidas.Condição preenchida. Característica 4: a intertextualidade. Qualquer comentário seria redundante. Condição preenchida. Característica 5: o ecletismo. O conto de Lázaro mistura elementos históricos (personagens da História) ao ficcional (narrativa propriamente dita; busca do filho perdido no inferno terrestre). Condição preenchida. Característica 6: paródia. Jair Ferreira dos Santos utiliza o termo não da maneira de Affonso Romano Sant’Anna. Para o primeiro, paródia está vinculada à pastiche. O conto seria um pastiche de narrativa épica em versos que é a Divina Comédia. Ao falar em paródia, J.F.S. deixa de lado o aspecto ideológico, que é a pedra de toque do conceito de Sant’Anna. em termos de gênero literário, a paródia ocorre (poema épico para conto); ao nível ideológico, como vimos, o desvio é tolerável. Característica preenchida.
Característica 7: entropia.
Ao caracterizar a própria terra como infernal em diversos aspectos, o contista mineiro mostra a desorganização da sociedade pós-moderna. Característica preenchida. Assim, acreditamos ter reunido material e argumentos suficientes para classificar, dentro dos critérios explicitados nos capítulos 1 e 4 deste trabalho, o texto “Os Círculos do Abismo”, como uma estilização da Divina Comédia, de Dante Alighieri. Além disso, sendo a estilização uma gradação da intertextualidade e esta uma característica do pós-moderno, podemos considerar o conto de Lázaro Barreto como pertencente à pós-modernidade.
Além de tudo, a leitura do conto “Os Círculos do Abismo” confirma a afirmação de
Leila Perrone-Moises de que a literatura nasce na e da literatura. Pela intertextualidade
, um texto gera outro texto e dialoga com outros pelos “gramas leiturais” (Júlia Kristeva); erguendo um monumento que, tal qual no conto “O Edifício” (14), de Murilo Rubião, nunca pára de crescer.
O objetivo é desconhecido.
Os andares, novos textos.
Os operários, escritores.
6- Notas:
1 – Jair Ferreira dos Santos. O Que È Pós-Moderno. São Paulo. Brasiliense, 1986.p.57.
2 – Lázaro Barreto. Aço Frio de Um Punhal.Rio de Janeiro, Guanabara, 1986.
3 – Idem, ibidem, pp.149-65.
4 – Dante Alighieri. A Divina Comédia. Tradução de Cristiano Martins. Belo Horiozonte. Itatiaia, EDUSP, 1976.
5 – Idem, ibidem.p.3.
6 – Entre eles, Cristiano Martins.
7 – Dante Alighieri op.cit.p.1.
8 – Lázaro Barreto, op.cit.p.149.
9 – Idem, ibidem, p. 153.
10 – Ibiden. p. 158.
11 – Ibiden. p. 165.
12 – Affonso Romano de Sant’Anna. Paródia, paráfrase & cia. são Paulo, Ática, 1985.
13 – Leila Perrone- Moisés. texto, Crítica e Escritura. São Paulo, Ática, 1978.
14 – Lázaro Barreto. op.cit. 163.
15 – Murilo Rubião. “O edifício” in O Pirotécnico Zacarias. 9 edi. São Paulo, Ática, 1984, pp.35-41.
6 – Bibliografia
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Integralmente traduzida, anotada e comentada por Cristiano Martins. belo Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1976.
BARRETO, Lázaro. Aço Frio de Um Punhal. Rio de Janeiro, Guanabara, 1986.
LISBOA, Luiz Carlos. Pequeno Guia da Literatura Universal. rio de Janeiro, Forense Universitária, 1986.
PERRONE-MOISÉS, Leila. Texto, Crítica e escritura. São Paulo, Ática, 1978.
SANTOS, Jair Ferreira dos. O Que É Pós-Moderno. São Paulo, Brasiliense, 1986.
SANT’ANNA, Affonso romano de . Paródia, Paráfrase & Cia. São Paulo, Ática, 1985.
(Nota de Lázaro Barreto na data desta transcrição do original, ou seja em 06/03/2006: o texto em 28páginas datilografadas foi remetido pelo autor (Oscar D’Ambrósio, que até hoje não tive a oportunidade e a felicidade de conhecer) através de correspondência datada de 23 de janeiro de 1991, procedente de São Paulo. O suplemento Literário do Minas ia publicá-lo, mas estranhamente ouve uma reviravolta de metodologia (virada partidária de governo?) e mesmo depois de ter sido anunciada, a publicação foi vetada. Em dívida de 20 anos com o autor (a quem eu tinha anunciada a publicação), faço agora o que está a meu alcance, tentando minimamente iluminá-lo pelo menos através de frestas deste blog).