Publicado por mais de 20 anos e distribuido semanalmente em todo país, o tablóide PASQUIM é o ponto alto da história do humorismo brasileiro veiculado através da imprensa escrita de ampla divulgação, alcançando culturalmente tanto a elite como a classe proletária, agindo não só como recreação instrutiva de alto teor estético como no papel de um posto avançado de defesa das liberdades democráticas e de combate (driblando a espessa e compacta censura oficial da época) aos casuísmos e arbitrariedades do absolutismo ditatorial implantado através do golpe militar do fatídico primeiro de abrail de 1964, que durou enquanto pôde, até os primeiros anos da década de 80. O jornal chegava religiosamente a Divinópolis, onde eu já tinha sob encomenda o sempre auspicioso exemplar. Quando deixou de circular, após a queda do autoritarismo nacional, guardei zelosamente minha coleção que, no entanto, foi infelizmente desfalcada anos depois, quando tive de acondicioná-la no porão de minha casa, então inteiramente sob os efeitos de uma reforma que durou mais de um ano. Aconteceu que quando fui reguardá-la, constatei com indizível pesar que grande parte dos livros, revistas e jornais tinha sofrido uma ação de umidade e estava mofada e destruída – e a perda de boa parte de minha coleção do Pasquim foi o que mais lamentei, sabendo que jamais conseguiria substituí-la.
Mesmo assim mantenho em casa 505 números intactos, perfeitamente legíveis. O exemplar mais antigo da coleção, conservado, é o de número 6, de agosto de 1969, com Vinicius de Morais na capa, e o mais recente é o de número 640, de 07/10/1981 (uma perda de 135 números), este com a capa de um muro pichado com os dizeres garrafais: “ABAIXO A VICE-DITADURA!” Ainda hoje, toda vez que sinto a lacuna de uma rajada de ares ao mesmo tempo jocosos e espirituosos, belamente expressos, abro aleatoriamente um ou dois números colecionados - e logo o senso de humor (de amor à veracidade) das crônicas, artigos, charges, picles, piadas, dicas e entrevistas, tudo magistralmente formatado vem abrir o sol diante dos olhos, novamente deslumbrados diante do poder de resistência e de superação do engenho e da arte dos seres humanos agredidos e espoliados em seu direito de viver condignamente.
Dados a Respeito.
Seus colaboradores de carteirinha, por assim dizer: Millôr Fernandes, o cracão do humorismo inesgotável e da crítica corrosiva necessária, ainda hoje possuidor do mesmo fôlego, agora brindando os leitores da revista VEJA; Jaguar, o mestre do deboche tracejado dos atrevidos Cartuns, o exímio manipulador das Dicas e das Entrevistas; Ziraldo, outro mestre do específico e inconfundível humorismo dos Cartuns, das Piadas, das Dicas; Ivan Lessa, dono de um humor gozador mesmo tratando de assuntos gerais e ao responder cartas (que ele mesmo escrevia) sob o pseudônimo de Edélsio Tavares; Nelma Quadros, secretária administrativa, eficiente e devidamente badalada por toda a Patota; Sérgio Cabral (quem dera se o filho for tão bom governador como ele era bom jornalista!), especializado (e ponha especialização nisso) em música popular; Henfil, cartunista criador de incríveis e hilárias estórias em quadrinhos, todas propugnando o bem estar social das classes menos favorecidas; Sérgio Augusto, especialista em cinema e em crítica social, munido da elegância e da acuidade que mantém até hoje no exercício do jornalismo de ótima qualidade; Armindo Blanco, considerado assim como uma espécie de pai da turma, esbanjando facécias e artimanhas em seus enfoques humorísticos, refeitos de pitadas do mais ardiloso humor português; Paulo Francis, articulista capcioso, destemido, sagaz, famoso por sua capacidade de raciocinar em blocos; Luiz Carlos Maciel, tocando o lado zen e um tanto hippie do comportamento então em voga em todo mundo - e não de todo assumido pela Patota; Olga Savary, poeta, esposa de Jaguar, amiga de Drummond, de Adélia e deste escrevinhador, criadora e introdutora das apreciadíssimas Dicas do Pasquim; Newton Carlos, especializado em política internacional, que ele disseca e expõe com argúcia e isenção de ânimo (é bom frisar que o governo brasileiro da época dava plena liberdade para se meter a ripa nos governos dos outros países); Fortuna, Claudius, Nani, tantos outros, todos ótimos – e os inúmeros participantes eventuais, entre os quais os mais freqüentes: Iza Freaza, Albino Pinheiro, Aldir Blanc, Flávio Rangel.... Além desse elenco de primeira linha, contava ainda com Sérgio Porto, o lendário Stanislau Ponte Preta, que mantinha a sensualíssima coluna das “Certinhas do Lalau” – e que também lançou com inolvidável sucesso o FEBEAPÁ – Festival de Besteira Que Assola o País – parte chamativa do tablóide que expunha semanalmente a gozação sobre as estrepolias e os erros da classe dirigente constituída pelos políticos, empresários e respectivos capachos.
As Musas Mais Badaladas.
As estrelas preferidas da Patota do Pasquim: Nicole Puzzi, Florinda Bolkan (com sua foto ocupando toda a capa do número 114, além da entrevista de 6 páginas), Adriana Prieto, Odete Lara, Jacqueline Kennedy Onassis, Elke Maravilha, Silvia Amélia, Lucy Mafra (que, completamente nua, concedeu longa entrevista na sala da redação), Kate Lyra, Elis Regina, Elena Andréa, Bruna Lombardi, Fafá de Belém, Cely Campello, Joan Baez, Ângela Diniz, Sônia Braga, Dina Sfat, Marília Pêra, Alcione, Aizita Nascimento, Leiva Cravo, Sandra Bersot, Rita Lee, Maria Bethânia (capa do número 251), Suzaninha, Norma Benguel, Darlene Glória (capa do número 262) e, claro, “As Certinhas do Lalau”, destacando entre elas a Irmã Alvarez e a Anilza Leone. Por mal dos pecados tenho que alinhar aqui, também, os execráveis vilões da época, constantemente desancados pela Patota: Todos (?) os militares do governo absolutista, Nixon, Henri Kissinger, Roberto Campos, Delfin Neto, Pelé, Magalhães Pinto, Wilson Simonal, Flávio Cavalcanti, Roberto Marinho, Golda Meir, Paulo Maluf etc.
Capas Antológicas.
1 – A da notícia do Adeus de Pelé, com a foto do rosto dele – e um dos olhos pingando lágrimas em forma de moedas.
2 – Outra com a manchete: “Medicina Brasileira Está Muito Doente. Médicos Torturadores, Racismo, Ganância, A Incrível Corrupção, A Máfia de Branco”.
3 – A da edição número 246, de 25/03/1974, com os dizeres:
“ Nunca É Demais Lembrar:
NÓS
SEMPRE
FOMOS
(um jornal)
PROTESTANTE!!”
4 – Outra capa que fez muito sucesso: um período de três linhas, conforme abaixo (a linha do meio em caracteres minúsculos e as outras, garrafais):
TODO PAULISTA
(que não gosta de mulher)
É BICHA.
(a frase entre parêntesis só ficava legível de muito perto).
5 – A do número que publicou a entrevista com o Tom Jobim consta a chamada em caixa alta, as palavras em cores brancas sobre a superfície negra de uma das perguntas e a respectiva resposta:
“PASQUIM: “Qual a coisa mais importante do mundo para você?”
TOM: “(*) duro.Se eu estivesse compondo a Quinta Sinfonia de Beethoven e ficasse de (*) duro, largava tudo e ia correndo atrás de minha mulher”.
6 – A do número 337, em tipos enormes:
“BAIXOU O ESPÍRITO DO NATAL: O NEGÓCIO É DAR”!
7 – Ferrenha opositora ao regime ditatorial, a Patota fazia o que podia (mais nas entrelinhas, de forma indireta, por causa da tesoura da censura oficial) para criticar a situação abafadíssima da paisagem nacional. No número 78 o mapa do Brasil é estampado em forma de um palhaço com a boca aberta, a cantar:
“Eu vou fazer você ficar louco
Muito louco
dentro de mim!”
A capa remete a uma reportagem da página 4 , intitulada UM PAÍS MUITO LOUCO, estampando nove fotos de pessoas em atitudes escandalosamente neuróticas.
8 – Noutra capa, um trecho de carta de Carlos Drummond de Andrade a Sérgio Cabral, negando-se a dar entrevistas: “Há mais de 50 anos não tenho feito outra coisa na vida senão dar entrevistas: em verso, em crônica, em carta, em papo. O que penso, o que sinto, o que imagino, o que dói, me alegra, me aborrece, tudo está dito e contado por este autocontador incorrigível. E você ainda quer que eu repita o repeteco, bicho? Como leitor do PASQUIM, não quero que ele publique matéria gasta. Um abraço à Patota”.
Na barafunda de minha biblioteca do porão da casa, misturados à coleção do PASQUIM, encontrei e separei os seguintes tablóides da mesma época, seus êmulos:
- DE FATO, sete números, dos anos de 1976/77, Belo Horizonte.
- OPINIÃO, 16 números, de 1971 a 1973, Rio de Janeiro.
- VERSUS, três números, de 1975/76, São Paulo, SP.
- REPÓRTER, cinco números, de 1977 a 1981, SP.
- CRITICA, 2 números, de 1975, RJ.
- LAMPIÃO, dois números, de julho a setembro de 1980, RJ.
- JORNAL DE DEBATES, um número de março de 1976, RJ.
- ENFIM, um número de outubro de 1979, RJ.
E muitas outras publicações culturais, menos influenciadas pela linha editorial do PASQUIM, inimitável até os nossos dias, não só pela formatação, pela qualidade conjuntural dos editores e escritores , mas também pela longa continuidade, pela aglutinação de ideário, de imaginário, de fidelidade aos padrões da melhor qualidade de um humorismo acessível e agradável aos leitores em geral. A única publicação que conseguia captar e exprimir o que João do Rio (Paulo Barreto) chamava de “a alma encantadora das ruas”, expondo a verdade e, assim, mostrando uma beleza ao alcance de todos. É o tipo de jornal que não morreu, apesar de não mais dar à luz seus férteis rebentos.