quarta-feira, julho 26, 2006

TRISTÃO E ISOLDA

Um Wagner musicalmente cadenciado e cabisbaixo, a orquestra em surdina, as vozes contidas na modulação, nada do triunfalismo e dos ribombos e veemências que André Gide tanto detestava, que o próprio Nietsche desdenhou. Ah Wagner Wagner, que lá a seu modo és um tanto ou quanto aborrecido, ah isso que é, é! Mas Tristão e Isolda é um caso à parte. O hálito dos suspiros sopra as velas dos mares na cama o deleite se faz e se desfaz em sorrisos em sonhos de amor começados só depois é que vem a parte da saciedade malsã e logo o próprio amor procura outro amor o que está farto de um já está sedento de outro os alheios espinhos golpeiam mortalmente as íntimas susceptibilidades e na vida que parecia eterna o amor imolado vira cinza aqui para adubar outro ali e assim o coração depois de cansado descansa um pouco prontificando-se e assim só a morte dos amantes conservará a perpetuidade do amor.

MACUNAIMA - O HERÓI SEM NENHUM CARÁTER

Leitor inveterado de obras literárias e de ciências sociais, só agora estou lendo MACUNAÍMA o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade (Villa Rica EditorasReunidas Belo Horizonte Rio de Janeiro 1997). Vi repetidas vezes o filme de Joaquim Pedro de Andrade, mas o livro nunca se me ofereceu nas livrarias (para aquisição) e nas bibliotecas públicas (para leitura). Só agora, num sebo do Portal do Morumbi, São Paulo, é que beneficiei-me com a ventura de adquiri-lo. E como acontece com os bons livros, estou a lê-lo devagarinho, prelibando e degustando as preciosidades lingüísticas com as quais Mario de Andrade narra as aventuras de sua saborosa tessitura romanesca. Impressiona-me sobretudo a acuidade profética do Autor ao prever no desarticulado personagem os indícios psicofísicos de outro herói, hoje guindado ao mais alto patamar do mandonismo realístico e não mais meramente fictício da nação.É só ler o livro e associar as atitudes dos dois heróis, ambos mancomunados dos manos e manas (companheiros e companheiras) nas desgraciosas e nefandas atitudes de fanar das árvores e das pessoas seus dotes e dons (as riquezas físicas do território e as riquezas morais das pessoas engambeladas e corrompidas). E fico pasmo na interrogação: é assim mesmo que a nacionalidade vai se degradar até chegar à última baixeza? Diante das trapalhadas politiqueiras de nossa caótica realidade, fico pensando na comparação dos dois heróis, ambos ao que parece destituídos de todo e qualquer traço de caráter de grandeza: seria este um pensamento obtuso de minha parte? E o pior é pensar que o atual mandatário pode ser reeleito (pode ser reeleito assim impunemente?). Votei nele três vezes. Não só votei como fiz, a meu modo e no círculo de meus relacionamentos através da imprensa local, a propaganda (gratuita e espontânea) eleitoral dele, atritando-me às vezes, por isso, com amigos contrários ao que ele representava. E para ser resumido no que vou dizer, digo que nunca sofri uma decepção intelectual tão violenta como a que sofro com a desastrada gestão dele no mais alto cargo funcional da nossa empobrecida república. Não esperava que ele fosse tão curto e grosso, que virasse as costas aos intelectuais dignos que o apoiaram e deram consistência e respeitabilidade à sua campanha eleitoral junto à opinião pública, o que sem duvid possibilitou sua vitória, uma vez que agregou o aval da classe média à intenção de voto dos trabalhadores braçais. Mas o que aconteceu é que depois de eleito, ele trocou as mãos pelos pés, pela boca e pelo traseiro, danando-se a jogar bola farrear e andar de avião pelo mundo afora, como um turista subvencionado, deixando a parte administrativa da nação nas mãos de políticos corruptos, de militantes arrivistas – e aí se viu o espetáculo mais deprimente que se tem notícia nos anais de uma já secular carnavalização brasileira, tão bem prognosticada pelo gênio literário de Mário de Andrade ao retratar o herói sem nenhum caráter, que desarticula a normalidade das propostas e das ações sensatas e leva ao paroxismo mais desaforado o lema pragmático de levar vantagem em tudo e de professar e praticar a insidiosa convicção de que os fins justificam os meios, reinaugurando assim, decênios depois, o reinado macunaímico da desfaçatez, da corrupção, do descaramento, da balbúrdia e da entrega da lei aos mandriões irresponsáveis, conseguindo, assim, o triste e lamentável espetáculo da assunção do crime organizado aos trâmites do primeiro plano de nossa boquiaberta nacionalidade. No oitavo parágrafo do Epílogo do livro estão as cabalísticas palavras marioandradianas: “A tribo se acabara, a família virara sombras, a maloca ruíra minada pelas saúvas e Macunaíma subira pro céu, porém ficara o aruaí do séqüito daqueles tempos de dantes em que o herói fora o grande Macunaíma imperador. E só o papagaio no silêncio do Uraricoera preservava do esquecimento os caso e a fala desaparecida. Só o papagaio conservava no silêncio as frases e feitos do herói.”

segunda-feira, julho 24, 2006

CORRESPONDÊNCIA COM DRUMMOND

“Em 1963 Lázaro Barreto, como muitos outros, mandou para Carlos Drummond de Andrade um exemplar de seu livro “Contos do Apocalipse Clube”, já que estava dando seus primeiros passos no mundo das letras. Tocado pela situação de Barreto, que à época residia em uma pequena cidade mineira, Marilândia, Drummond, bem a seu estilo, já comentando a obra começa uma troca de correspondências com Lázaro, que durou mais de 20 anos. Os dois jamais se encontraram pessoalmente, mas o poeta nunca deixou de remeter suas opiniões sobre os escritos do conterrâneo e, principalmente, sobre alguns poemas que permaneceram inéditos até há pouco. Sua gentileza chegou ao ponto de enviar um poema em que comemorava o nascimento da primeira filha de Barreto, de nome Ana Paula, que é o seguinte: 

Lázaro e Inês 
Agora três 
Nada comum 
Os três agora 
Formam só um 
A toda hora 
Arte de amar 
Lição de aula 
Aberta em flor 
Ana Paula. 

Fragmento de um texto publicado no “Jornal do Brasil”, em Dezembro de 1997.

sexta-feira, julho 21, 2006

AIRES, O NEGRO E O GARIMPO (*)

O livro “O Negro e o Garimpo em Minas Gerais”, de Aires da Mata Machado Filho, é uma das tentativas mais sérias e bem sucedidas de interpretar o papel do imigrante africano nas terras mineiras. Mal refeito do susto de aportar ao Brasil, sob o jugo desumano da escravatura, e defrontar-se com outra paisagem cultural, na qual não divisava um horizonte (no meio de tantos horizontes) que lhe fosse menos hostil, ele é obrigado a adentrar-se mais pelo território até chegar às montanhas de Minas, onde deveria consumir-se no trabalho que enriquecia os ociosos. Aires deve ter imaginado o ar de estranheza do homem oriundo de tão longe, diante do pio esquisito de uma ave inexistente em sua terra, da visão multifacetada dos montes e serras infindáveis, da dificuldade de andar no meio do sarandi dos cipós (verdes barbantes), que ocultavam cobras e outros bichos, da pousada vespertina debaixo de árvores desconhecidas, sob o barulho de águas correntes sobre as pedras, filtrando nas retinas estarrecidas a variedade dos pássaros, de frutas silvestres e de teias de aranhas. Mas Aires localiza o negro em seu novo mundo, munido de labancas, cavadeiras, picaretas, frincheiros, enxadas, cacumbus, carumbés, bateias, ralos e peneiras, abrindo valos e regos para o desbarranque da área destinada à cata do diamante. Fica até fácil vê-los, através da descrição de Aires, nessa faina desmotivada e penosa, entoando os vissungos (cantos de trabalho), certamente amaldiçoando, em linguajar banto, seus algozes (os donos e os feitores). Com o passar dos dias inclementes, surgem os desertores desse campo de trabalhos forçados. Eles somem pelas serras e matas, sem saber para onde seguir – só querem desvencilhar dos chamados homens civilizados. Sabem que jamais encontrarão o caminho de casa, mas preferem a companhia dos bichos e da natureza selvagens. Aí é que fundam os quilombos. É raro num município mineiro localizado na área que foi explorada pela mineração colonial, que não tenha até hoje os povoados com esse nome – Quilombo - , onde em muitos deles ainda vivem os remanescentes dessa gente sofrida, que hoje brinca de reinado,canta lá seus vissungos e se comunica, muitas vezes, ainda em dialeto crioulo. Aires descreve a herança cultural deles, tão grande que não pode ser isolada do contexto étnico do que chamamos de universo mineireiro. Seu misterioso sistema de crenças, que atravessou o mar com eles, acrescido aqui com seus espantos e temores (a ingenuidade e a submissão), diante de elementos naturais e sociais tão diferenciados. Aires anda fala dos capangueiros (contrabandistas cúmplices dos garimpeiros e quilombolas, dos quais adquiriam a preço de banana seus produtos, mas prevenindo-os da aproximação de seus algozes), das faisqueiras, da miscelânia de superstições, feitiçarias e crendices, fala também dos arraiais diamantinenses (São João da Chapada, Quartel do Indaiá) com os sobreviventes bantos e de suas cantigas de trabalho na mineração dos diamantes, do dialeto crioulo que até hoje apresenta vestígios bem vivos no linguajar comum da gene do povo de toda parte do Estado. É um livro bem esclarecedor da história de nossa cultura popular. 

(*) Resenha publicada no BOLETIM da Comissão Mineira de Folclore (da qual o autor era membro), de número 09, Ano VI, em setembro de 1985.

quinta-feira, julho 20, 2006

CONVERSA NA VENDA DO ARRAIAL

Roceiro (chegando): Ó vocês que nunca me deram nada nem intenção têm de me dar. Vendeiro: Enquanto você vem com o milho eu já vou com o fubá. Roceiro: É isso aí. Quem tem boca não manda assoprar. (ao Lenhador): E você, João Pica-Pau: cara feia não enche a barriga. Lenhador: Por causa de uma cara feia se perde uma bonita bunda. É o tal negócio: quanto maior o pau, mais bonito é o tombo. Se quer experimentar o peso de meu braço, vamos pro largo! Roceiro: Você sabe que dou um boi para não entrar na briga, mas que depois que entro dou a boiada pra não sair.... Vendeiro: O quê é isso? Vocês dois nunca combinaram. Por que estão brigando agora? Lenhador: Por bem me levam ao inferno, mas por mal, nem ao céu. Vendeiro: Vocês não amarram as éguas no mesmo pau. Mas são farinha do mesmo saco, cara de um focinho do outro. E no entanto ficam aí brigando igual cachorro com gato. Capinador (ao Roceiro): Você veio pela sombra. Roceiro: Eu não sou daqui, sou lá do brejo. Estou aqui é enxugando. Capinador: Você está com o burro na sombra. Vendeiro (despejando pinga nos copos): Vamos matar o bicho, pessoal? Carreiro (aproximando-se do balcão): Eu também sou filho de Deus. Também estou aí nessa marmita. Vendeiro (parcimonioso nas dosagens): Mas cuidado: não é só Deus que mata não. Lenhador (bebendo e lambendo os beiços): Para onde o vento der, o pau lá vai. Sei muito bem em que mato estou lenhando. Carreiro: Você não sabe é com quantos paus se faz uma canoa. Lenhador: E você? Você tem o olho maior que o bucho. O que está aprendendo, eu estou esquecendo. Vendeiro (ao Lenhador): Ainda que mal pergunte, de onde é mesmo que você veio? Lenhador (desabuzado): De pra lá do toco e pra cá da raiz, onde o cachorro cagou e sua vó atolou o nariz. Capinador (espantando um cão que entrou na venda): Sai do meio dos outros, Cachorro! Carreiro (ao Lenhador): A bobagem ainda vai te carregar, um dia. Lenhador: Bobo é ovo na boca do seu povo. Roceiro: Vocês ficam aí chovendo no molhado. De minha parte, não me importa que a mula manque, o que mais quero é rosetar! Lenhador:É, né? E comer no cu da gata, você não quer? Roceiro: Você não está com nada no balaio. E fique sabendo que um dia a casa cái. Lenhador (aos outros): coração bom está aqui no peito, o que falta é trato. Roceiro: Se pensa em quem estou pensando, pode tirar o cavalinho da chuva. Lenhador: Uns gostam dos olhos, outros da remela. Vendeiro (ao Carreiro, sobre os dois): Conversa pra boi dormir, a deles. Carreiro (a respeito do Lenhador): Ele avança na lua pensando que é queijo. Lenhador (prontamente ao ouvir): A casca é que engrossa o pau. Sabia? Vendeiro: Você pode fazer das tripas coração... Capinador (ao Vendeiro, referindo-se ao Roceiro: Ele vive com a foice nas costas, procurando quem inventou o trabalho. Quer que o mundo acabe em melado, pra morrer doce. Vendeiro: ele faz de bobo pra bem viver. Você sabe que o bobo é que pega cavalo brabo no pasto? Roceiro: E você fica aí o dia inteiro trocando cebolas com os outros....Não tem vergonha? Vendeiro: Vergonha é roubar e não dar conta de carregar. Carreiro (sacudindo a cabeça): Pobre, mesmo calado, está errado. Capinador: Na hora da onça beber água, é só pena que voa. Quero ver quem vai pagar o pato. Roceiro (acabrunhado): Quem fala de mim tem paixão. Carreiro: quem é ruim de carro, é pior de arado. Roceiro (ao Carreiro, gozando): ouvi dizer que você bateu no soldado, lá na cidade, e ainda esfolou a cabeça do cabo, é verdade? Carreiro (acenando com o dedo): Pra cá você vem bem. Mas não agüenta uma gata pelo rabo. Roceiro: eu sou você? Comigo o buraco é mais embaixo. Levo você praquele lugar onde o filho chora e a mãe não escuta. Carreiro: Você, que põe o carro adiante dos bois? Você não passa de uma bananeira que já deu cachos. Roceiro (ao Vendeiro); O que vem de baixo não me atinge. Vendeiro (aos dois): O porco falando mal do toucinho. Carreiro (ao Vendeiro): Quando um burro fala o outro murcha a orelha. (Vendeiro): Eu falava com o dono dos porcos e não com a porcada. E quem achar ruim que coma menos. Seleiro (chegando): O quê há de novo? Capinador: Muita galinha e pouco ovo. Seleiro: comer suã faz suar? Capinador: Peido de porco não é torresmo. Seleiro: Quem está na chuva é pra molhar. Capinador: quem fala demais dá bom dia a cavalo. Vendeiro (ao Roceiro, olhando os dois): Parece briga de foice no escuro? Roceiro: Eles choram de barriga cheia. Estão com os cavalos na sombra. Vendeiro: Mas se balangarem os beiços, os cachimbos caem. Roceiro (ao Lenhador): Não me olhe de banda que não sou quitanda. Lenhador: Você começa novamente a mostrar os dentes. Não demora e verá o que é bom pra tosse. Carreiro (aos dois): Não cotuquem o boi com a vara curta. Vendeiro (rindo): Está morta a égua. Morro de rir, mas não acho graça. Seleiro (ao Vendeiro, referindo-se ao Carreiro): Esse aí não come nada amanhecido. O outro ali não fecha os olhos nem pra dormir. Roceiro (ao Lenhador): Vamos fazer as pazes, como amigos e como irmãos? Lenhador (rindo, abraçando o Roceiro): Vai tomar banho na caixa de fósforo, sô. Carreiro (saindo): Eu asso no dedo se ele não meter a ripa em mim, quando eu sair. Lenhador: você já viu formiga ter catarro? Lenhador (também saindo): Cobra que não anda, não engole sapo, né? Vendeiro: eu só fico aqui. Meu pai trabalhou demais. Já nasci cansado. Juiz de Paz (chegando): Vocês estão aí, cozinhando o galo. Roceiro: Feliz é água do chafariz. Juiz de Paz (sentando-se no balcão): Essa mamata vai acabar. Vendeiro: quem trabalha não tem tempo pra ganhar dinheiro. Juiz de Paz: mas de hora em hora a coisa melhora. Roceiro (referindo-se ao Capinador): O nosso amigo aí viu a vó por uma greta. Capinador: estou atolado até ao pescoço, mas não devo nada a ninguém, nem obrigação. Roceiro: Se você não tem dó de si mesmo, que dirá de mim. Vendeiro (ao Juiz de Paz): Esses dois são a tampa e o balaio. Roceiro (ao Vendeiro): Você quer trocar uma calça velha por outra furada na bunda? Vendeiro: Você é o último que fala e o primeiro que apanha. Roceiro: Isso só vai acontecer quando nascer dente na galinha. Vendeiro: ah, sô, vai assombrar o Isidoro, vai plantar batatas. Roceiro: quem já viu banguela chupar cana? Lá fora faz um sol de rebentar mamonas. Um homem de cara amarrada montava no burro amarrado pelo rabo na estaca. Os meninos riam de orelha a orelha. Lá no chafariz uma mulher põe a rodilha na cabeça, mas não dá conta de suspender o pote. O homem feio como um embrulho de mandiocas passa por uma mulher na janela e suspira, pensando: “Ê lá em casa!....”.

A BELEZA INTERIOR DA MULHER

Desde quando a conheci e dela enamorei-me e com ela noivei e casei que vivo esforçando-me (como diria Shakespeare em “Noite dos Reis”?) para injetar minha alma no corpo dela e assim conhecê-la por dentro como já (presumidamente) já a conhecia por fora mas desde sempre meus olhos sonham morar nos olhos dela minhas mãos desejam acariciar-lhe de dentro o ventre grávido de sua vitalidade meus lábios querem beijar também por dentro o umbigo dela que já fechado por fora e assim foi assim que num belo dia seguindo pelo descampado até chegar ao pé da serra quedei-me a vislumbrar a região da mente dela a mente dela que é como se fosse a própria pessoa dela na hora mais sutil dos arrazoados das cintilações das sujeições e dos objetivos da mente que tem olhos verdes negros azuis castanhos imbuídos de pensações lilases envolvendo a metafísica nas horas vagas e a poesia nas horas ocupadas e ali bem perto dos olhos a boca com a senha das possibilidades dos assovios e cantorias e balbucios e dentadas e dos beijos na propulsão dos ímpetos nos beijos as saudações da saúde nos beijos a ânsia de penetração das palavras de amor as evasivas do silêncio repentino entre a boca e o sexo e assim a seguir entre o céu e a terra nos ondulados horizontes a descobrir os renovados aspectos e semblantes e sabores sob o transparente cortinado a rever os meandros e matizes do paisagismo mimético repleto de mimos garridos das beldades gratuitas dos seres multicelulares apinhados de seculares sensualidades ah tenho dito que não passo de um reles fazendeiro situado aqui nesta Cachoeira do Corpo Inteiro na região das chamadas Sete Léguas ao Redor onde vivo por viver sem nada criar nem destruir sempre a cuidar dos pastos e roças das nascentes e dos poentes de minha própria pessoa. De minha própria pessoa tiro a força de vontade para entrar e sair nas grutas e minas e capoeiras do corpo da amada no qual fico dentro horas e horas a folgar descansado e ofegante assim horas e horas esquecidas e lembradas atentas e dormidas a respirar e aspirar os frescores e calores dos momentos mais eternos da intimidade onde apraz-me palmilhar as várzeas e beiradas de rios e esbarrancados em seus lotes de praias e de matas ciliares ora deitado na relva ora nadando de braçadas nas correntezas e remansos de onde a seguir ponho-me a caminho das trilhas nas veredas das frondes hospedeiras já dentro da capoeira e na beira da clareira onde paro para espiar o que os olhos físicos transferem para os anímicos no sombreado das folhagens cenográficas a resvalar-me a espremer-me nos ícones feiticeiros e totêmicos dos humores perfumados na obscuridade dos ares agora gretados. Dos ares agora gretados entro na gruta onde a pátina pacienciosa vai aperfeiçoando as feições das criações e das criaturas das belezas naturais e já da porta da gruta vejo e sinto as alongadas lantejoulas pendentes do teto encurvado e meloso a sentir então mesmo ali naquele momento que realmente estou na região dos palácios da mãe da água dos poços de tantas riquezas e magias ainda a ouvir sim ainda a ouvir o gemer da floresta lá fora e o cantar dos passarinhos lá fora agora a observar o préstito nos círculos sob abóbadas de ermidas laterais e dos silenciosos turbilhões entre blocos de artefatos de argilas reluzentes (veieiro de pirites? oligisto especular?) dos remotos vestígios agora tão futuristas nas furnas e lapas adjacentes cada qual mais convidativa aqui e ali prenhe de filetes ruborizados e lembranças e perspectivas de bocainas desterros araxás nos sacrários e caraças e sossegos e sumidouros e congos e tiriricas a ver também os miúdos mares de espanha e algumas cavernas entupetadas de especiarias e também as inscrições rupestres estritamente primitivas e artesanais no caprichoso desacerto da expressão figurativa nas paredes internas do alambrado daquelas eras tão perenes e mais um passo que dou encontro as concreções estalactáticas em seus esvoaçantes cortinados e púlpitos e altares e vitrais ah oh a ascese das devoções de um certo iluminamento celestial a vazar do estatuário das súbitas aparições. A vazar do estatuário das súbitas aparições eu penso e sinto como é bom apalpar as maçãs dos peitos do lado de fora e chupar as laranjas campistas do lado de dentro contente e feliz no sombreado do pomar recoberto de orquídeas a navegar na interioridade do esbelto corpo da amada finalmente conhecendo os momentos e os lugares na inteireza multifacetada das copiosas membranas e células e microorganismos álacres e pululantes assim mesmo na profusão ágil e viva e coesa dos tecidos microscópicos as esferas os discos as varas os fusos o temperamento dos sais com os doces e os cálcios o apego das raízes e cipós nas intermediações da constelação biológica da funcionalidade logística dos segmentos intrinsecamente articulados. Os segmentos articulando toda a engrenagem na beleza harmônica da sociabilidade dos elementos e das junções multidirecionais e uniformizadas em tantas variações contendo aqui e ali os genes as enzimas as proteínas as clorofilas as moléculas os pigmentos as dobras macias as ósseas vértebras tudo a perpassar a transcorrer detidamente em rigorosa disciplina cada uma das mínimas unidades estruturais até chegar à aldeia onde vivem os cromossomos aguardando o porvir enquanto sorve mais um gole da saborosa libido para inteirar-se das energias psicossomáticas e assim mesmo sem tirar nem repor que repenetro nessa beleza interior pelos canais competentes até lá onde posso abraçar as folhas dessa roseira como se essa roseira fosse uma bainha abraçando uma cintura mesmo ali onde a cova macia do terreno recebe a semente e desenvolve o embrião mesmo ali onde as flores passam entre galhos e trompas e sintetizam os hormônios do bem estar para que assim possa a pessoa de tantos adereços e aglutinações cantar suas louvações ao Criador das Maravilhas e é assim refeito em mim mesmo depois da transida incursão e já do lado de fora da enxameada senda de mel e albores fico agora a contemplar a vivíssima paisagem dos altaneiros sítios da mente dela a mulher de olhos verdes e negros e azuis e castanhos e belos como tenho dito.

terça-feira, julho 18, 2006

QUATRO LETRAS QUE CHORAM

O amor não se desembaraça dos cordéis da inexatidão. Tem vida própria que se deixa contaminar pelas doenças do ciúme, da paixão, do ódio, que levam-no ao precoce falecimento? Tem mesmo que morrer antes de florescer e frutificar? Então não passará de ilusão infantil, uma simples engambelação? É o nudismo mais puro da intimidade, que não pode ver o sol nem ser por ele visto: é toda uma faina enluarada? Depois ou antes dele e não nele o ar é o chão e o chão é o ar, assim como o desamado a correr de si mesmo nos pastos e várzeas, enquanto os galhos da aroeira em forma de gaviões machucam-lhe a cabeça e o coração? O amado é uma forma completa de conhecimento? É nele que ao pensamento seguem, desembaraçadas, as suas palavras que desmancham os vazios, algo assim com o sabor e o calor do vinho no copo, do beijo na boca, Imagens celestiais nas águas diáfanas, Anjos sublimados rodeando as baixadas estrelas? O mergulho na macia imensidão azul: ah falta só abrir os braços e as pernas, não para sair, mas para entrar, para entrar para entrar na etérea profundeza, na entrega ao prazer das inocentes vertigens. Ah, sonhar acordado de vez em quando, no seio da volúpia nas asas da luxúria, no vôo sobre as quintessências finalmente assimiladas? É: é mesmo assim o amor amor amor?

quarta-feira, julho 12, 2006

O RIO DE JANEIRO CONTINUA LINDO

E o carnaval do Rio de Janeiro continua sendo o maior espetáculo da terra, uma reminiscência vivaz, apoteótica, grandiloquente dos remotos e esmaecidos folguedos medievais representando as façanhas e artimanhas das realezas e cortesãos, malabaristas e menestréis munidos de totens e fetiches nos aparatosos festivais ao ar livre dos dias e noites das saudações, homenagens e libações em faustoso, suntuoso exibicionismo hedonista. Brasileiramente, a folia carnavalesca é mais expansiva e estrepitosa: o chamado tríduo momesco com as dezenas de laureadas escolas de samba com seus carros alegóricos, temas-enredos, alas das baianas, dos passistas, dos puxadores e bateristas, milhares de figurantes fantasiados e serelepes em cada uma delas no Sambódromo da Sapucaí apinhado de gente nas arquibancadas, cadeiras e camarotes (dezenas de milhares de espectadores atentos e vibrantes). Uma festa genuinamente do povo. Onde já se viu espetáculo semelhante nos dias de hoje em qualquer parte do mundo, excetuando as romarias e concentrações religiosas? Estes também são espetáculos grandiosos e relevantes, mas são festas de teor mais intimista, de consciência, manifestações subjetivas e comedidas, ao passo que os ritos carnavalescos são mais amplamente manifestados, inconscientes na exterioridade coletiva da extravagância, uma espécie de licença poética por atacado, espontaneamente, socialmente concedida. Mas o Rio não é só carnaval. É o brinde visual de todas as horas, o mar que quebra na praia, bonito-bonito, como lá diz o Dorival Caymi. O cartão postal constantemente ao vivo e em cores. Os estrangeiros ficam bobos de ver, e nós, de outros Estados, também. Só o próprio carioca é que não liga tanto e muito lamenta ter perdido o status de capital federal, que aliás, moralmente nunca deixou de ostentar. Lá estão as grandes edificações das pontes, aterros, túneis, metrô, viadutos, a maioria construída antes da prevalência da corrupção política-social que hoje tanto assola o país. E ficamos sem saber como a receita pública daquele tempo produzia polpudos investimentos e hoje mal dá para algumas aplicações choradas (a duplicação da Rodovia Fernão Dias prolongou-se por mais de doze anos, causando incontáveis acidentes, graves problemas e impertinências de toda ordem). A incúria, a indecência da classe dominante..., isso é certamente o que mais provoca a precoce calvície do brasileiro que ainda não se deixou contaminar pela síndrome da falcatrua, - mas esta é outra história. Os poetas e sambistas anônimos dos morros e botecos e também os renomados Machado de Assis e João do Rio, Noel Rosa e Geraldo Pereira, Ary Barroso e Ataulfo Alves, Olga Savary e Maria Laura Cavalcanti, Lima Barreto e Lupiscínio Rodrigues, Cartola e Herivelton Martins, David Nasser e Nelson Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade e Millôr Fernandes, Vinicius e Jobim, Dick Farney e Jorge Veiga, Linda Batista e Aracy de Almeida, Carmem Costa e Nara Leão, Maria Bethânia e Sinhô, Antônio Maria e Braguinha, Martinho da Vila e Paulinho da Viola, Chico Buarque e Gilberto Gil, Jorge Benjor e Pixinguinha, Mário de Oliveira e Lélia Coelho Frota:...uma infinidade de cariocas naturais e honorários. A cidade que contém um verdadeiro universo de emblemas e carismas, as praias prioritárias e propositais, as montanhas especialmente pictóricas, os verdes indesbotáveis, os lugares assinalados pela poesia e pelo romance e pelo samba rasgado de roda, de breque e de gafieira, as ondas mansas e portentosas das águas de Copacabana, tantos detalhes sublimando (hachurando, frisando) parte por parte a copiosa leitura de um encompridamento sinuoso de orla, as curvaturas e rodeações dos morros e da sensualidade, as remanescentes e preservadas florestas atlânticas, o povo alegre e jovial, apesar dos pesares. E as barras e enseadas, os lagos, os corcovados, as candelárias e lapas, as urcas e os lemes, o pão de açúcar!, as gáveas e flamengos, ipanemas e leblons e jacarepaguás e botafogos, toda a baia da guanabara!, a lagoa rodrigo de freitas, os salgueiros e mangueiras, as tijucas e andaraís e cantos do rio, os joás, os cosmes velhos, paquetás e bangus e bonsucessos e olarias e os santos cristos, santas terezas, seus clubes de regatas e de futebol, o sintomático maracanã, o esbanjamento de uma realidade tão onírica, o sonho que não migrou para Brasília porque está há muito tombado no coração das pessoas, como um bem do patrimônio ecológico, histórico, artístico e paisagístico da cultura de todo um País que de tanto ser agredido corre o risco de passar a ser, um dia, um agressor. Mas que isso não ocorra nos próximos mil anos, não é mesmo?

CÉLINE AINDA AGORA

Céline em 1932 ia até o fim da noite (ao encontro de outra noite?) pisando nas agitadas serpentes das luzes entrava no cinema sem ver qual filme passava precisava esquecer-se nas amplas e precisas coxas das mulheres de combinação. Hoje a interessante beleza é mais embaixo exposta aqui e ali nas ruas as mesmas amplas e delicadas coxas agora embrulhadas em jeans para presentes e na mirada a contra-plongé se vê no alto delas, mostradas por contraste as cabeças frágeis desenhadas na leveza dos poros e rabiscos as imprudências da beleza impúdica, como ele diria sobre as profundas harmonias profundas. - E não se há de ver que hoje, como ele em 1932, mergulhamos a cabeça quente no frio perdão de um transe (na pior das dúvidas) humanizado, adoçando a contrapartida de outras tensões, tentando assim, quem sabe? converter ao menos uma parte do mundo num átimo de finas e abençoadas indulgências. A CHAMADA GRANDE IMPRENSA É mais dócil e conveniente morar no vazio repetitivo do que inaugurar e manter uma nova estação de eventos?

terça-feira, julho 11, 2006

NUM FILME DE ALBERTO CAVALCANTI

Sopros de invisíveis violas e flautas
assinalam as horas da tarde
nas diáfanas paredes do céu aberto.
No armário do fantasma da solidão noturna
vi mais do que podia suportar.
Os olhos, dois úberes, dois pomos –
e quem assim invisível em toda parte
vem urdir momentos tão extáticos?
Logo adiante a dispersão aglutinava
logo atrás a concorrência discorria.
Do armário fechado por dentro
saiu a mulher delgada,
trajando a imperfeição das peles,
a beleza dos lábios momentaneamente abertos.
O rosto dela se repetia nas poças da chuva
na rua enviesada, onde depois
a emoção era a fome que voltava
era a vida que voltava,
que voltava a morrer.


DEVANEIO


As árvores passam voando na janela do ônibus
A moça ideal dorme na poltrona ao lado?
O sono é aura
e nele a ninfa Eco repete os cantos lá do vale
e o jovem Narciso repete as imagens no poço
um e outro são as duas solidões do amor.

Dormindo ela se inclina para defender-se
de outros lumes inquietantes:
seus braços encostam nas nuvens?
a brasa solar refresca-lhe as partes íntimas?
o úmido batom desmaia nos lábios beijados?
a luz que circunda
o ventre aninhador
os cabelos acalmam
o que se apóia mais voa
Que mal faz se conversar pensativamente?
Que mal faço se a cantar pensativamente?

PROUST SABIA DELA

Quando namorar era apenas flertar (não era apenas namorar, era sobretudo amar) Ah! o olhar dela não terminava nem quando ela não mais olhava, nem mesmo quando ela não estava mais ali jogando-me os olhos de seu olhar, ali onde estava o corpo que era alma, fina eloqüência de supostas delícias: mesmo na ausência, ela me olhava. “Uma hora não é somente uma hora”, dizia Marcel Proust, que acrescentava: “é um jarro cheio de perfumes, de sons, de projetos e de climas”. Ela tomava banho de lua em pleno dia? Engolia o chuvisco que vinha do arco-íris? Ah! o corpo de luz que oculta na própria sombra a alma: onde li isso que tanto vi nela? E o coro dos anjos a cantar na invisível gota de um de seus sorrisos: onde li isso antes ou depois de vê-la?

BELO HORIZONTE! (*)

Onde tudo se move, o que pára, atropela! a boniteza chama e espera, a feiúra tapa os ouvidos e retrocede... O tempo passa mas não morre, passa na curva dos perigos e delícias: Belo Horizonte! se te vejo do alto da Lagoinha ou da Renascença envolvida nas verdes colinas azuis assim antiga e remoçada, o curral sobrehumano de ilíadas e odisséias a merecer os emblemas carijós e cataguases, ungida de complascências e alvíssaras (o sol quente do desejo a lua verde da ternura)... posso dizer que quem morreu por ti nas guerras que teriam rebentado em tuas cercanias, legou-te a nós, ainda com o cheiro da noite vegetal: ó ressonância de Lisboa de Roma de Londres! os climas familiares em cenários desconhecidos: mesmo a crispação quando envermelha, espalha os matizes nos residuais sombrios..., e quando o vento da Serra chega à Cachoerinha, és a roça de camândulas, a moita de uvaias...: assim nenhum governo mundano pode destruir-te, pois se o amor vem na treva da beleza, se a lua pode ser a botija de mel pendente dos ramos, como nas pequenas cidades do interior (ó ingênuas expressões de silêncios nos recessos), terás os semitons dos falares de nosso afeto nos contornos dos currais de pedras preciosas. 

(*) Fragmento do romance inédito (em versos) POR QUE CHORAS, SAXOFONE?, ambientado na capital mineira dos anos 1949-1951.

sexta-feira, julho 07, 2006

UM MÁRTIR CHAMADO TIRADENTES

Fragmento (*)   

“Aos doze dias do mez de Novembro de mil setecentos quarenta e seis annos, na Capella de São Sebastião Rio Abaixo o Reverendo Padre João Gonçalves Capellão da dita Capella baptizou e poz Santos Óleos a Joaquim filho legítimo de Domingos da Silva Santos e de Antônia da Encarnação Xavier; foram padrinhos Sebastião Ferreira Leytão, e não teve madrinha; do que fiz este assento. O Coadjutor Jeronymo da Fonseca Alvarez – Livro dos Batizados da Freguesia de N.S.do Pilar da Villa de São João Del Rei, 1742-1749, fo. 151”. “O fato de ser alferes influiu para transformar-me em conspirador, levado a tanto que fui pelas injustiças que sofri, preterido sempre nas promoções a que tinha direito. Uni as minhas amarguras às do povo, que eram maiores e foi assim que a idéia de independência lavrou o incêndio por tal forma que não se pôde apagar”. Transcrito dos Autos da Devassa por Antônio Gaio Sobrinho, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de S. João Del Rei, Volume V, pág. 102. Sua família era de fidalgos portugueses, que de São Paulo chegaram a Minas. Era trineto do Cap. Martinho de Oliveira, considerado um dos principais homens nobres de Santos, em seu tempo; seu avô materno, Domingos Xavier Fernandes, foi Provedor dos Quintos da Villa de São José Del Rei; seu pai foi Vereador e Fazendeiro em São João Del Rei. Dois irmãos eram sacerdotes no tempo em que o Seminário só estava à altura de filhos de famílias bem dotadas. Um de seus primos foi o famoso naturalista Frei José Mariano da Conceição Veloso, e outro era um dos maiores latinistas da época, o Padre Antônio Rodrigues Dantas, Professor em Lisboa e Reitor em Mariana. Seu irmão mais novo, José da Silva Santos, era Capitão de Milícias, cujo trineto é o Deputado Federal e Ministro da República, Gabriel de Resende Passos, nascido no Desterro (hoje Marilândia, Município de Itapecerica, MG). Ele não se casou mas teve com Eugênia Joaquina da Silva, o filho João de Almeida Beltrão casado com Maria Francisca da Silva, pais de: 1) Anna cc José Gomes de Moura, que viviam em Quartel Geral, MG; 2) José de Almeida Beltrão cc Maria Madalena, que viviam em Uberaba, MG; 3) Lúcio, falecido na infância, em Quartel Geral; 4) Francelina Fausta Josina cc Joaquim dos Santos Caldeira, que também viviam em Quartel Geral; 5) Carolina Augusta Cesarina cc Antônio Alves de Resende, falecidos em Curvelo, MG; 6) Elisa Lisboa Madalena do Carmo, falecida em estado de solteira em Morrinhos, Goiás; 7) Justino de Almeida Beltrão cc Emiliana de Tal, que viviam em Morrinhos, Goiás; 8) João de Almeida Júnior cc Maria de Tal; 9) Belchior de Almeida Beltrão cc Maria Custódia Zica, que viviam em Dores do Indaiá, MG. Muitos netos e bisnetos estão relacionados na Genealogia Mineira de Artur Resende. Seus pais, casados em 1738, eram: Domingos da Silva Santos (português) e Antõnia da Encarnação Xavier. Filhos do casal: 1) Domingos da Silva Xavier (1741), Padre; 2) Maria Vitória de Jesus Xavier (1742) cc Alferes Domingos Gonçalves de Carvalho; 3) Antônio da Silva Santos (1746), Padre; 4) ele mesmo, Joaquim José da Silva Xavier (1748, homiziado com Eugênia Joaquina da Silva, filha de João de Almeida Beltrão e de Maria Francisca da Silva; 5) José da Silva Santos (1750) cc Joaquina de Proença Góes e Lara (da nobiliarquia paulistana); 6) Euphasia Maria de Assunpção (1753) cc Custódio Pereira Pacheco; 7) Antônia Rita de Jesus Xavier (1754) cc Franciscso José Ferreira de Souza,, português, pais de 13 filhos, entre os quais a Josepha Maria de Jesus, solteira em 1758, de nome idêntico ao de minha trisavô paterna; e Manuel de Souza, nome idêntico ao do pai da citada Josepha, meu tetravô. Mera coincidência, eu julgo, mesmo constatando que a época e a região em que nasceram eram as mesmas: últimos anos do século 18 no vasto território da Villa de São José Del Rei. Na imensa e desdobrada Serra da Mantiqueira (que a gíria da época traduzia como sendo a Serra da Ladroeira) os corpos dos cadáveres dos tropeiros entulhavam os abismos, jogados pelos bandidos depois de laçá-los e saquear seus carregamentos de ouro e diamantes. Tiradentes, em constantes diligências policiais enfrentava as quadrilhas de assaltantes, nas mãos das quais nunca sofreu o que sofreu nas mãos dos carrascos da Coroa. Hábil, forte e resoluto, ele não fugia do perigo e neutralizava os conflitos de forma persuasiva, de tal maneira que escapou incólume da enrascada de anos seguidos na maratona daquele policiamento. No período de 1772-82, Minas era a Capitania mais populosa do Brasil, com 319.769 habitantes, seguida pela da Bahia, com 288.848. O País todo abrigava 1.555.200. O chamado Caminho Velho vinha de São Paulo pelo Vale do Paraíba, passando em Taubaté e Guaratinguetá, atravessando a Mantiqueira para chegar em Pouso Alto, Baependi, Cruzília e chegar a Ibituruna e São João Del Rei; daí seguia até Lagoa Dourada, Serra da Itatiaia, Rio das Velhas e ia até os sertões da Bahia, sendo que uma ramificação rumava para Ouro Preto, Mariana e Bacia do Rio Doce. Quem vinha do Rio de Janeiro ia por mar até Parati, subia atravessando a Serra do Mar e encontrava o braço do caminho que vinha de Taubaté, em Cruzília. O Caminho Novo partia do Rio de Janeiro, atravessava a Baixada Fluminense, passava em Simão Pereira, Juiz de Fora, Barbacena, Carandai, onde entroncava com o Caminho Velho. Os colonizadores daquele tempo eram notórias e convictas aves de rapinas que se exprimiam laconicamente através dos estipêndios da multa e do imposto que se pagava até para atravessar um simples riacho. O tal do quinto do ouro extraído foi calculado no ápice da produção e a mina podia minguar e exaurir, o minerador podia morrer de fome, mas o valor do quinto não baixava. De tal forma que o minerador passou a dever à Coroa até os cabelos da cabeça. Por isso quando veio a Derrama (cobrança à força dos quintos), veio a Conjuração, palavra em voga ainda hoje, com sinônimos igualmente dolorosos. Cabe aqui uma pergunta: não está passando da hora de se repetir diante dos credores internacionais uma nova conjuração através de nova metodologia de independência do capital estrangeiro, não apenas chefiada por um novo Tiradentes, mas contando com toda a participação de todo um povo que precisa acordar do pesadelo secular e levantar-se do catre carunchado e espinhoso de sua indigência, de sua aviltante subordinação à esta famigerada Coroa dos fundos monetários internacionais? Farto dos irônicos subsídios literários e voluntários, dos escorchantes contratos das entradas e dos dízimos, dos suntuosos enxovais para os desposórios de princesas e infantes e das aparatosas exéquias dos monarcas, da infeliz carência de estradas, de saneamento básico, de segurança pública, de serviço postal, de distribuição de renda, o colono manietado não podia erguer a cabeça e levantar a voz sob pena de incorrer em castigo análogo ao imposto a Felipe dos Santos, que atado às caudas de quatro cavalos selvagens, foi arrastado e esquartejado nas ruas de Villa Rica, sem socorro nem sepultura, sem um simples filho de Deus para ao menos acenar-lhe uma extrema-unção. Em 1789 os mineiros estavam devendo ao erário real, só de impostos dos quintos a quantia de 596 arroubas de ouro, sendo que as minas já tinham dado o que tinham de dar. Um pouco antes e logo depois sobrevieram as proibições de aberturas de novos caminhos, de fabricação de tecidos e de artefatos metálicos. Depois de ser roupeiro e mascate e fazendeiro, ainda na juventude, o Alferes passou a percorrer os velhos e novos caminhos da Capitania, em diligências policiais de grande risco, quando aproveitava as horas vagas para tirar e pôr dentes nas pessoas, tratar e curar muitas enfermidades dos desvalidos, tudo nas margens dos agrestes caminhos. Como viver num lugar onde uns poucos mandavam e abusavam de muitos, onde esses muitos sofriam de todas as invalidades, principalmente da absoluta falta de identidade como ser humano e cidadão? Como poderiam amar uma terra onde cada sítio era uma espécie de gólgota ou de um calvário? Como achar bonita a paisagem no pôr de sol e no amanhecer se o que lhes sangrava o coração vazava nos olhos? Se tinham os olhos pequenos para ver tanta desgraça reunida, tanta chibata a céu aberto, tanto esfolamento numa terra banhada de sangue de milhões de nativos, mortos e insepultados só porque não se adaptavam à escravidão pura e simples dos mandões desalmados, como alimentar ilusões? Tiradentes lutou pela identidade de cada um dos elementos do conjunto populacional, mas perdeu o esforço. E então? Fazer de conta que continuaria a viver (sob um”sol nulo dos dias vãos”como diria Fernando Pessoa), não seria muito pior? Não dispunha de paciência para acalmar a turbulenta circulação de um sangue repelido e maltratado. Longe de si a conivência com os despropósitos coloniais. Foi assim que a morte em sua vida adveio logo depois da primeira delação de um dos ex-colegas, falência que se acentuou diante da covardia dos outros, que se alimentaram de sonhos e agora defecavam as realidades – esses, os tais que jamais lutariam pela aquisição de uma identidade que só a consciência dos íntegros reclamava. Que venham, pois, ele deve ter pensado, a corda fatídica e o ignóbil trampolim e toda a judiação posterior. Penalizado pela injustiça de ser justo, Tiradentes caminha para a forca como Cristo teria caminhado para a cruz, se esta já não estivesse em seus ombros. Tiradentes perdoa e beija os pés do carrasco, recebe a alva, despe a camisa e fala: “Nosso Senhor morreu por meus pecados,,,”. Mas não disse (modéstia à parte, dele) que morria pelos pecados de tantas imerecidas pessoas.... Com a companheirada de tal jaez, ele deve recalcar a solidão da expectativa do martírio num mundo assim infestado de Macedos, Marques, da trinca de judas: Silvério-Pamplona-Malheiros, assim ele estava mesmo sobrando, podia ir sem penalizar-se. Por mais cauteloso e astuto que fosse no relacionamento inconfidente dos confrades, ele não podia pressentir as segundas intenções deles – e foi assim que sua confiança virou ingenuidade, cada amigo um inimigo, cada companheiro um traidor. Em que ponto teria errado? seu único pecado foi acreditar que a convicção moral em si mesma pudesse derrotar nos outros a ganância material. Pessoas para ele de insuspeitável ombridade não poderiam roer a corda na mais infame defecção. Até o Cláudio Manuel da Costa?, ele deve ter ruminado em suas dores mais íntimas; o Tomaz Antônio Gonzaga com a lira e o lírio e a marilia?; o Francisco Antônio de Oliveira Lopes, com os bons indícios familiares, a lisura e a candidez e a incorruptibilidade da esposa Hipólita Jacinta ...? Ah, ele entre perjuros e traições, um simples alferes de cavalaria, ele foi uma exceção no jogo de empurra dos depoimentos, e sobranceiro permaneceu até expirar no cadafalso, não para o pretendido escarmento das pessoas, mas para dar o exemplo histórico de vigorosa cidadania- que todavia não se conservou nos anais políticos até os nossos dias, ainda e muito carentes de conjurados destemidos. Como se dissesse aos inquisidores: eu assumo a culpa total e digo e repito que todos são inocentes e covardes, eu sou a cabeça, o tronco e os membros da sublevação. E vocês, colonizadores de uma figa, que se danem e se fode depois de dependurarem minhas partes em lugares públicos para brindarem os olhos e os narizes dos acovardados que fogem das próprias sombras. Vemos hoje, com isenção de ânimo, que ele não seguia nenhum idealismo patriótico, que o que mais feria seus brios era muito mais o rancor do colonizado vítima de mortífero espezinhamento que ele testemunhava desde a infância. Os genocídios dos ameríndios e dos afros, centenas de milhões de cruéis assassinatos a machadadas e carabinas, tudo isso e a sobrecarga do arrivismo administrativo da colônia que tolhia, discriminava e castrava quem não portasse os estigmas do adulador e do apadrinhado. De todos era o único que a Derrama em si não afetaria, pois nada devia à Coroa, era a bem dizer o único deles que via na Conjuração o pulo do gato, o pretexto para levantar a voz e o sabre e assim quem sabe, inaugurar uma vivência humana fundamentada nos princípios éticos de uma pátria verdadeira e não de araque, só ele na andadoria dos périplos conflituosos sabia da essência humana, do comportamento felicitado na justiça e na honradez na irmandade dos seres vivos, ele que não foi apenas a cabeça da conjuração, mas sim o corpo e a alma, ele que não possuía as datas e as sesmarias, ele tinha a consciência do possível , do necessário brasileiro. 

(*) Este artigo é complementado de 14 páginas relatando os nomes e as informações das outras 106 pessoas implicadas na Inconfidência, que aqui serão acrescentadas, oportunamente. Acrescentamos aqui, no entanto, um adendo, com a página conclusiva deste texto. 


ADENDO: Nota-se ao longo da compilação dos dados da Devassa a dissolvência dos ideais libertários, logo depois da punição dos Inconfidentes. As pessoas implicadas e as suspeitas, bem como seus familiares, trataram logo de escapulir do palco ainda quente das sentenças, ameaças e reprimendas, e logo-logo os caminhos da revolta transformaram-se em pontos de fugas - e vimos nos livros de registros dos Juizados de Paz e das sacristias das Paróquias dos sertões de várias partes de Minas os filamentos da rede de evasões principalmente do eixo Rio das Mortes-Rio das Velhas na dispersão dos donos de datas de mineração para os latifúndios das sesmarias concedidas pela Coroa em regiões desprovidas de pedras preciosas, mas ricas em potencial de lavoura e pecuária.Na região do Desterro, no oeste do Estado, que tinha começado a povoar-se em meados do século 18 com a migração de mineradores desatendidos da região da Villa de Sabará, voltou a receber novos povoadores, agora oriundos da inconfidencial região do Rio das Mortes – e os nomes de famílias que tristemente brilharam nas páginas dos Autos da Devassa voltaram a brilhar, agora tristemente exilados, nos livros de registros de batizados, casamentos e óbitos, de testamentos e inventários e escrituras de compra e venda de imóveis. Lá estão afixados, como já inventariei nos livros “Memorial do Desterro” e “A Família Oliveira Barreto”. Os nomes familiares de Amaral Gurgel, Álvares Maciel, Antônio Rabelo, Souza Pinto, Resende Costa, Ferreira Marques, Toledo, Moura, Castro, Guimarães, Vasconcelos, Costa, Martins Borges, Gonçalves Teixeira, além de outros com a inteireza nominal de : Domingos Fernandes da Cruz (casado com Mecia, filha de Bernardo José de Oliveira Barreto, trisavô deste pesquisador); José Ferreira Marques (padrinho de Josepha Maria de Jesus, trisavó deste pesquisador), Padre Carlos Correia de Toledo, Francisco Antônio Rabelo, Luiz Vaz de Toledo Piza, Antônio Ribeiro de Avelar e João Rodrigues de Macedo. Nota: A leitura do livro TIRADENTES – A Inconfidência Diante da História, de José Crux Rodrigues Vieira, BH, 1993, foi a fonte principal da pesquisa deste artigo.

CONTINGÊNCIAS

Amar é dar o que não temos a quem não quer? Lacan Lacan! é mesmo necessário exercitar a imprecisão excluir o óbvio navegar em águas mais turvas? Lacan Lacan o poeta não passa de um narcisista cego? Mas não é ele que enxerga a beleza nas névoas da obviedade, sem se limitar nas cercanias de olhos abertos na escuridão de um lugar onde o invisível não se faz de rogado e se mostra ou engalanado ou despido amplamente?

A PIOR DAS PERDAS

Nos inferninhos dos sábados à noite a zoeira metálica oprimia os tímpanos as cenas escabrosas feriam os olhos Assim a moçada etílica bagunçava o coreto do quarteirão da rua onde moro Sentia-me agredido dentro de casa: um trapo no fundo de um poço? Sentia-me assim crivado de pedradas no fundo de um poço, distante da superfície mais vívida, a perder minha própria humanidade? Abri a janela, ingenuamente, para ver se impunha algum respeito Os rapazes e as moças, airados e airadas trocavam suas carícias e recíprocos desaforos, às escâncaras desabridas A zoeira metálica oprimia os tímpanos as cenas escabrosas feriam os olhos (o que fizeram do amor, meu Deus, pensei, provocado, debochado) Aí caí na besteira de pedir para abaixarem o som foi aí que de repente um deles, de gola rolê postou-se defronte à janela onde eu estava desabotoou a barguilha tirou o pinto e mijou acintosamente torrencialmente em cima do passeio de minha casa, pondo à prova meu sistema nervoso minha dignidade, minha ombridade minha própria humanidade (ou a humanidade não é mais a mesma?).

terça-feira, julho 04, 2006

DESTERRO EM MARILÂNDIA

Alguma coisa eternamente imprecisa
apascentava os homens no arraial,
naqueles dias de cruzes de madeiras.
No inverno as vacas beatíficas
remoíam o verde do destino,
seguiam apartadas das crias,
aumentando nas árvores a tristeza.

Por que uma silenciosa catástrofe não atende
às gritantes ordens,
não abre nos altos uma goteira
de água fria para os meus pulsos?
O que faço aqui no meio dos estrepes,
em vez de apurar noutros cenários
os incautos dons da individualidade?

Assim a sofismar nos balbucios,
quando vi já eram enormes horas da noite
e eu ainda me feria nos poemas
para sempre inconclusos.