sábado, julho 28, 2007

IMAGENS

As flores murchas na grama verde. A glória de todo escritor seria dizer o que Shakespeare diria. As flores são iguais, na conciliação: Diferentemente de nós, humanos. A imagem comida é ainda íntegra: Não foi comida, se ainda é imagem. As árvores são verdes nas copas porque porque pisam em muitos verdes no chão. As mulheres bonitas são mais bonitas dentro de belos vestidos, e são mais lindas ainda quando nuas, nuazinhas fora dos vestidos. Assim é que são mais belas porque porque assim são mais imagináveis e imaginadas. E foi assim, descendo pelos caminhos que sobem, que me vi imenso e imerso no espelho de um livro afundado nas águas do barro e dos olhos doídos.

ALGUNS ASPECTOS DE CARMO DA MATA

Quando alguns dos patronos da Semana de Arte Moderna de 1922 (primeiro rebento da modernidade literária brasileira) passaram de trem no vale da encosta da erguida e ensolarada Carmo da Mata, em 1925 (1), Mário de Andrade começou a mentalizar o poema antológico “Noturno de Belo Horizonte”, registrando a aguda impressão que lhe deu “o campo de futebol em Carmo da Mata”. Certamente ele não viu apenas o retângulo gramado na várzea do Rio Boa Vista, mas também os jogadores de gorros e chuteiras, joelheiras e caneleiras, a bola de capota voando às vezes mansa e rasteira, às vezes alta e chispada, como se fosse um pombo sem asas, como costumam dizer os folclóricos locutores esportivos. É claro que no relance visualizou, além dos jogadores, o árbitro, os torcedores entusiasmados, toda a quentura da porfia, a arte de driblar e chutar, defender e atacar. A bela arte esportiva do povo carmense e brasileiro. Eu mesmo muitas vezes passei e continuo a passar, antes de trem, agora de automóvel, na mesma estrada que margeia a habitada e expressiva encosta da antiga Mata do Barreto, berço esplêndido do Padre Francisco de Paula Barreto, um dos homens mais importantes da região no período da transição dos séculos 18 e 19 – e de suas oito irmãs (bendita prole de Antônio e Joanna!), que naturalmente encantavam os rapazes daquela época, progenitores de uma população sempre bonita e ajuizada, que ainda hoje brinda a cidade e seus extensos arredores da bela exemplaridade do que há de melhor em qualidade humanística. Elas se chamavam: Joaquina, Antônia, Anna, Maria, Felizarda, Maria Bernardina, Leonor Joanna e Mariana- que depois se conjugaram com os filhos das outras famílias pioneiras: os Martins Fernandes, os Afonso Rodrigues, os Friaça, os Ribeiro da Silva, os Castro, os Diniz, os Amaral, os Carvalho, os Notini, os Vitoi, etc: os sorrisos e olhares, suspiros e palavras de amor e ternura que ainda hoje pairam na verdura do solo, na azulura do céu, na brancura das nuvens, no sonho das renovadas pessoas de todos esses tempos. Berço esplêndido também do renomado Dom Alexandre Gonçalves Amaral, Arcebispo de Uberaba, o mais jovem (quando sagrado) e o mais idoso (quando aposentou) na História da Igreja Católica, o único que enfrentou, naquela época, o absolutismo da ditadura militar com desenvolta severidade, e que hoje é o nome da principal avenida da cidade, assim como Padre Francisco é nome da principal avenida da cidade de Oliveira. E ainda hoje quem por ali passa nutre-se das mesmas impressões telúricas. Vislumbra as imagens das coisas e dos seres, dos amigos e parentes e da magnífica imagem de Nossa Senhora do Carmo abençoando as lembranças não só de Dom Alexandre e dos padres Francisco Barreto e Galdino Diniz, mas de todo o povo e também das mulheres formosas como os próprios nomes: Diamante, Felicidade, Altiva, Francelina, Celicota, Umbelina, Josefina, Eponina, Zilá, Patrícia, Duzolina, Sinhá, Zizinha, retratadas na lembrança como se fossem antológicas exemplares de poesia viva no belo livro de Lineu de Carvalho, “Família Notini”. A mirada é longa no vigor da memória, mesmo passando depressa, transportado pela rodovia ou pelo trem de ferro da baixada. As casas subindo e descendo os morros e ruas ajardinadas no rebanho da clorofila, no ressentimento perfumado das doces essências das rosas de Dona Vera, lá do Campo de Sementes, de onde uma vez levei mudas de laranjas e mexericas que ainda hoje florescem e frutificam no quintal de Marilândia. A igreja no alto, o cemitério à direita de quem sobe, as casas felizes, de tantos parentes e amigos. Do caprichoso calçamento o chão parece respirar, aliviado. À guisa de arremate, vale sugerir a citação das esotéricas, surrealistas, maravilhosas imagens da prosa poética de Murilo Rubião, muitas instintivamente captadas na paisagem carmense, onde ele viveu algum tempo. Lembro-me dele, numa longa conversação, a dizer-me sobre a importância do romance “Dom Quixote”, de Cervantes “Quem não leu, tem que ler”, ele assegurava. E eu, que ainda não tinha lido, passei a ler e reler as mil e tantas páginas do fabuloso livro. E sinto-me ainda como que no início do caminho do conhecimento, como se ainda morasse infantilmente em Marilândia, um lugar no meio do caminho de Carmo da Mata, terra de tantos sonhadores e realizadores de alta estirpe humana. (1) – Ver o livro “Aventura Brasileira de Blaise Cendrars”, de Alexandre Eulálio e Carlos Augusto Calil.

AS IDÉIAS DE HOWARD GARDNER

A Revista VEJA é uma espécie de farol lúcido e pertinente dos novos tempos brasileiros. Leitura imprescindível para quem não está aprovando a despenhadora voragem dos novos tempos de nossa nacionalidade tão desgovernada. À guisa de aperitivo informacional, passo aos amigos um pequeno arranjo de trechos lidos no último número. Fragmentos da entrevista concedida pelo psicólogo americano (supracitado) à jornalista Mônica Weinberg, na edição de 25/07/07: “A inteligência é o resultado de dois fatores: a genética e a experiência de cada um. (...) O mundo está cheio de gente que se destaca no pensamento lógico, mas não tem inteligência suficiente para expressar uma idéia com começo, meio e fim. (...) A mente é composta de múltiplas capacidades independentes entre si. (...) Oito tipos de inteligência: a linguística, a lógica, a espacial, a musical, a corporal, a naturalista (habilidade de compreender os fenômenos naturais), a intrapessoal (a de reconhecer os próprios defeitos e qualidades – e tomar decisões com base neles) e a interpessoal (a de interpretar as intenções alheias e de exercer a liderança”).

terça-feira, julho 24, 2007

PALMAS PARA A DOR E A TRISTEZA?

 Adendo para minha coluna do jornal MAGAZINE, Divinópolis, MG. 

Os últimos dias da vida brasileira estão indelevelmente marcados pela constrangedora contradição, descaradamente explícita no primeiro plano do cenário nacional, em termos de comunicação pública e notória. Enquanto uma parte da população chora a morte cruel de centenas de cidadãos, outra parte pede licença à própria consciência para aplaudir o sucesso dos esportistas brasileiros no momentoso torneio pan-americano. Fica claro, no entanto, que a dor e a tristeza da miséria política ofuscam a alegria e o entusiasmo da riqueza esportiva dos atletas e torcedores, que, no entanto, são vítimas também, do mesmo desmando político. Seria até mais lógico se o próprio PAN confirmasse a apoteótica vaia (acontecida na noite da inauguração) da insatisfação popular através de um gesto bem à altura da tragédia aérea: a interrupção definitiva do torneio, em protesto à criminalidade impune que hoje impera no país, vergonhosamente.

CARTA A UMA JOVEM POETA

Prezada prima Stella Tavares, desculpe se utilizo aqui, como epígrafe, uma símile do poeta Rainer Maria Rilke, sem a pretensão de igualá-lo (é claro), nem mesmo de imitá-lo. Uso-a como se desconhecesse a bela obra do poeta alemão. Feito o intróito, vamos entrar logo no tema da carta. Você já instaurou um clima e uma linguagem, como certamente aconteceu com muitos escritores talentosos e geniais distanciados histórica e geograficamente e mesmo com alguns modernamente aproximados. O que consegue com pequeno-grande livro O ADESTRADOR DE SENTIMENTOS é meio-caminho andado na sua auspiciosa trajetória literária. Não fuja dele, que é seu, com todos os direitos precocemente adquiridos. Ele se bifurca como num jardim de Borges e você terá toda a biodiversidade para tatear, palmilhar, viver e escrever, revivendo e descrevendo. Comecei a ler, assinalando, como sempre faço em minhas leituras, as partes mais salientes, o que logo parei de fazer, ao constatar que ali as partes não se desligam do contexto, que ali nada se perde, tudo se enovela na densa e espontânea criatividade. Todo o grande-pequeno livro é uma grande citação da pertinente, surpreendente autora chamada Stella Tavares, filha de Raimundo José Tavares e de Maria do Rosário, irmã de Tereza, de Fátima, de Dora, de Antônio, de José Pedro, de Regina e de Régis (os dois últimos do segundo casamento do pai, então viúvo, com Dona Antônia): todos, todos mesmo, possuídos do chamado bicho-carpinteiro, que teima em construir dentro de cada um novas vidas, novos mundos, uma vez que a criação de Deus existe é para isto mesmo: para ser continuamente recriada. O ADESTRADOR DE SENTIMENTOS é um dos livros mais estimulante e inquietante que tenho lido ultimamente. Tenho lido pencas de livros expositivos e de teses e relido os de ficção e poesia (prosa e verso) – e sinto-me dentro das folhas de seu livro, sinto que ele é um pouco de tudo e, portanto, é muito, muito em si mesmo. Como se estivesse lendo parábolas e teses, poemas e crônicas, diários e romances, reportagens e artigos de fundo de uma vida ao mesmo tempo sedentária e viajante. Não sei como você se acomoda e leva uma vida normal nas três atitudes humanas fundamentais (pessoal, familiar e social): como pode uma moça razoável, uma esposa e dona de casa, ter e conservar dentro de si fogueiras de sol e fúlgidos espasmos de luas entre nuvens? Como pode assim amansar a genialidade introspectiva sem desafinar, sem exasperar? Ah, deve ser assim mesmo. É assimilando a própria sabedoria genealógica - que lhe veio de graça, sem ser chamada e que por isso jamais pode ser expulsa, que já se inoculou no cerne e na carne de seu espírito – e é assim que você vai revelando a significação dos matizes e dos arroubos das retrospectivas e perspectivas existenciais de sua floricultura, de sua lavoura poética. E a primeira colheita encanta e alimenta tantas almas e corações sequiosos, atribulados e cooptados pelos divulgados folhetins da banalização midiática, que pretende transformar o que vê e toca numa espécie de feira de vaidades, numa espécie de “sol nulo dos dias vãos”, como diria o poeta Fernando Pessoa. É uma bênção a florescência e a frutificação do “manso pulsar” da obra da ao mesmo tempo retraída e fulgurante Stella Tavares. Bem haja, pois. Parabéns e abraços do primo Lázaro Barreto.

sexta-feira, julho 20, 2007

ESTA BIBLIOTECA É UM COLÉGIO (*)

Para Emerson a biblioteca é uma espécie de câmara mágica, onde sob o efeito do encantamento estão os melhores espíritos da humanidade, que esperam o nosso olhar e a nossa palavra para sair da mudez e do quietismo. Quando abrimos um livro, ele desperta e nos diz o que disseram as melhores pessoas que a humanidade produziu. Jorge Luís Borges, mesmo depois de ficar cego, continuou a convivência com os livros que enchiam sua casa de todas outras casas do mundo. Amando-os assim, de olhos fechados, era como se continuasse a lê-los todo o tempo, desde o dia em que foram escritos. Assim ele era (e é) o grande escritor porque era um maravilhado leitor. Ah, os livros, quê súbita lembrança de amor e carinho! São como os amigos que trazem a felicidade, a inquietação da felicidade a quem abre suas páginas de lágrimas e sorrisos. E é assim, penso: que o leitor é que enriquece o livro, como se continuasse a escrevê-lo, lendo-o e vivendo-o. O jardim das veredas que se bifurcam em ruas, praças, avenidas, caminhos, trilhos, aléias que abrigam os bons e os maus momentos das pessoas, os cursos de água doce, os vagalumes, os poentes, as dinastias, os paraísos perdidos, os novos futuros, os mantimentos da alma, o invisível labirinto dos símbolos. O crepitar de antigas friezas. A biblioteca Ataliba Lago é um colégio de bom tamanho, no qual o corpo docente é mais numeroso do que o corpo discente. Mais de mil professores (os livros) para cada aluno (o leitor). Uma mão na roda, pois. Quilômetros de páginas do conhecimento e da imaginação ao alcance das mãos, dos olhos, dos corações e da mentalidade dialética. A biblioteca é um jardim em que (parafraseando Borges) os labirintos se bifurcam em ruas e caminhos, cada uma das direções levando e trazendo os ares das graças e dos entendimentos das artes e ofícios da literatura, da religião, da história, da profecia, da ética, da estética, da etnografia, da geografia, da matemática, da biologia, do teatro, do cinema, da música, do jornalismo, da sociologia, da etnologia, da antropologia, da biografia, de tudo e de toda a vida que faz do mundo uma coisa viva, que faz até da pedra um ser vivo. Na teoria e na prática. A Biblioteca da Abadia, que Humberto Ecco edificou no romance “O Nome da Rosa”, mergulha sua origem na profundeza dos tempos, e de lá os monges copiavam os manuscritos entre as folhas dos saltérios com ricas iluminuras e aparas e esboços de miniaturas em pergaminhos fartamente ilustrados com as figuras dos centauros e dos dragões, das sereias voadoras e dos animais com mãos humanas nas costas, e as quimeras bicéfalas e asas de borboletas. A biblioteca de Divinópolis é também assim em nossos dias, na plenitude da realidade dos doces pássaros da juventude imemorial. A da Abadia, reserva de saber, era ao mesmo tempo a Jerusalém Celeste e o Mundo Subterrâneo. A do Ataliba Lago (a nossa), também guardiã da sabedoria, não pode ser ameaçada (como desgraçadamente foi a de Alexandria) por nenhuma força terrena. Pois é só abrir um livro para ver as folhas repletas de flores e frutas, cada página vira um relicário de promessas e lembranças – o vocabulário “fúlgido de gemas encastoadas no tecido mais devotado das escrituras”. Não sou medidor de desempenhos funcionais, mas penso que se todos os órgãos da Prefeitura seguissem a funcionalidade da Ataliba Lago, ah, então estaríamos diante de um serviço público que realmente serve ao público. São mais de 70 mil livros disponíveis a quase sete mil usuários inscritos (de carteirinhas), que levaram para casa, a título de empréstimo, quase cem mil livros nos últimos dezoito meses. Sob a eficiente coordenação de Márcia Aparecida Cecílio, 22 funcionários e 5 estagiárias atendem a contento os leitores e pesquisadores e estudiosos nas salas de estudos, nos setores de leitura e pesquisa, nas áreas de videoteca, da hemeroteca, das exposições etnográficas, da sala de multimeios (local da hora do conto, da noite de poesia, das palestras e lançamentos de livros), e no centro de memória, onde estão as obras raras e preciosas. Estive lá na semana passada, pesquisando os deserdados da Inconfidência Mineira, que ainda sobrevivem em nossa região: os Ferreira Marques, os Gurgel do Amaral, os Abreu Vieira, os Oliveira Lopes, os Ferreira de Souza, os Teixeira de Carvalho, os Rodrigues Costa, os Teixeira Coelho, os Rabelo, os Resende Costa, os Álvares Maciel, os Costa Guimarães. Toda pesquisa é boa porque sempre apresenta um resultado objetivo ou subjetivo. No meu caso, sei que estou apenas arranhando a superfície de um território que se perde de vista nas planícies, montanhas e subsolos. Mas o resultado mais imediato foi gratificante. Em apenas dois dias consegui esquadrinhar muitas possibilidades e descobri muitas jóias, algumas afloradas, outras ainda recônditas (históricas e proféticas). E ali naquele local de encontro de tantas almas, na área específica da literatura, ah, a literatura: aceitação pacífica dos paradoxos, folguedo nupcial dos contrários, convivência sutil no afã de entrelaçar os cipós das mesmas flores enfeitiçadas, e de copiá-las no jardim das incertezas, no jogo dos contrários e não das contrariedades. Assim mesmo, é assim mesmo a vida nossa de cada dia no mundo dele mesmo, com o que ela nos proporciona todo dia. 

 (*) Texto publicado em um jornal da Prefeitura (em 2003) e aqui agora corrigido e revisado.

terça-feira, julho 17, 2007

COMPLEXIDADE NECESSÁRIA

Alguma ocorrência inusitada. Considerar, por exemplo, que comer é um ato impudico. Mulher beiçuda não come, e alguém pensava, quando era bobo até falar que chega. Se uma mulher entra num curral, por que um boi não pode entrar dentro de uma casa? Coisa assim tantã era daquele sujeito que um dia você foi e/ou eu fui? O que não somos hoje é o que melhor seria de nós? Ah, bem, pois. Toda pessoa idosa, desde que não seja débil mental, nada tem mais a aprender na vida, só a ensinar, não é mesmo, seu lavador de cérebros? De coisas simples e até espúrias podem resultar, num dia propício um espetáculo incisivo e interessante como acontece nos filmes de Bergman, Cassavettes e Almodovar. É juntando fagulhas que a procura do fogo não se apaga nas neves da memória, nas insípidas premonições, nas premissas de uma dor de um ardor, de um amor que não acaba. A mãe tinha morrido mas jazia ali, sombra tamanha a zanzar pelos quartos da casa, a varrer o corredor dos outros cômodos, a conversar sozinha na janela que dá pro arvoredo do quintal, a beijar com os olhos a nossa furtiva presença adoentada. Ela morrera, mas não para sempre, mas não nos instantes fugidios passados na copa e na cozinha, quando ela olhava e ria, aprovando o amor de nossas saudade dela. Na situação controvertida, cada membro da família se virava como podia. Mesmo depois que os filhos e filhas passaram a morar noutras lugares, cada um e cada uma com os respectivos cônjuges, ela não se regalou nem contraiu: enfiava seu corpo ágil, debaixo das camas, enquanto fazíamos “bobagens” com nossos cônjuges. Ela (Ela é o seu nome verdadeiro) vivia assim depois de morta, bem solta no ar vago das casas de família – e deve ser ali num dos desvãos noturnos que Almodovar colheu-a no ar e depois a plantou no chão fértil de seu filme. Afinal (assim penso): ela é a mãe que nos espreita desde quando não tínhamos nascido? A mãe queridinha que foi embora muito cedo – e que por isso volta sempre muito tarde da noite? Se ela nos ama tanto, como deixar de amá-la dia e noite? Ela não xinga nem admoesta, aprova as artimanhas com a mesma predisposição otimista. Sabe das coisas, depois da vida. É assim também na ficção de Guimarães Rosa? O leitor chega no Urubuquaquá tal como o próprio autor lá chegou, um dia, no imenso território do fazendão do Velho conhecido como Cara de Bronze, pesquisado por todos e conhecido por ninguém. O leitor (como o autor) fica bobo de ver o que vê: o quinhão das lonjuras ali bem perto. Durante horas e páginas, eles (o autor e o leitor) ficam só vendo e ouvindo o tagarelar da peãozada, o mugir, o cricri, o estalar e as incontáveis ressonâncias dos seres vivos (animais, vegetais, minerais), tudo amealhado no ziguezague da cantoria, dos diálogos, dos solilóquios. Com o passar das páginas e dos dias, o leitor toma a fé e a palavra e o entendimento do Guimarães Rosa – e passa a gostar da prosa e do verso das pessoas, dos bichos, das coisas, do vento e do silêncio. Foi assim que aconteceu comigo por volta de 1956 quando li o CORPO DE BAILE, livro que continha essa novela. E é assim que volta a acontecer comigo, quando agora releio o texto, provocado pela intercessão crítica de Lélia Parreira Duarte, a escritora que no Brasil mais entende da escrita maravilhosa de Guimarães Rosa. E o sentimento de estar diante de uma porta trancada, transformou-se no de aspirar uma amplidão sertaneja dos gerais daquele tempo sem desmatamento, sem monocultura, sem MST de hoje em dia. Transido e embevecido, não resisto: tenho que transcrever o que está dito na página 105 da sétima edição do “No Urubuquaquá, no Pinhém”, Editora Nova Fronteira (1984): “O vaqueiro José Uéna: - um mel se sente é na ponta da língua...O desafã. Por exemplo: - A rosação das roseiras. O ensol do sol nas pedras e folhas. O coqueiro coqueirando. As sombras do vermelho no branqueado do azul. A baba de boi da aranha. O que a gente havia de ver, se fosse galopando em garupa de ema. Luaral. As estrelas. Urubus e as nuvens em alto vento: quando eles remam, em vôo. O virar vazio por si, dos lugares. A brotação das coisas. A narração de festa de rico e de horas pobrezinhas alegres em casa de gente pobre...”. Citação que vale como um penhor de gratidão aos afagos e bênçãos dos tempos da roça de nossa eterna infância. O que lemos e ouvimos é a contação roseana da vida dilatada e detalhada, não criada mas promovida pelo enigmático dono do Urubuquaquá: tudo o que de humano que existia ali era obra e graça do poderio mandonista dele. Tanto o milho das roças como o leite das pastagens, bem como o predomínio do imaginário sobre uma menosprezada lucidez, tudo era responsabilidade dele. Dele, o moribundo desnomeado e conhecido pela alcunha de Cara de Bronze, que mesmo tirânico no procedimento deixava tudo correr e viver, enquanto agonizava, lá nos cafundós das intrincadas veredas distanciadas da civilização e aproximadas do viveiro provavelmente original.

sexta-feira, julho 13, 2007

MESA, PLENÁRIO E BASTIDORES (*)

Congresso Brasileiro de Escritores (1985- Estado de São Paulo, SP).  

A imprensa paulista não morreu de amores pelo Congresso Brasileiro de Escritores, mas isso não surpreende: ela, que sempre destaca em caixa alta os artistas da música e da televisão, os jogadores de futebol, os políticos e empresários bem sucedidos, e que reserva o mísero corpo 8 do pé da página aos escritores, só gosta deles quando consegue transformá-los em editores, redatores e repórteres. 

Realmente, aconteceu de tudo no Congresso, mas isso era previsível e inevitável: da heterogeneidade social do povo brasileiro não podia resultar uma homogeneidade cultural. Ademais, isso do pau quebrar entre intelectuais é comum. Só há consenso e harmonia onde há passividade – e todo intelectual que se preze é um descontente e tem uma visão pessoal das coisas. 

O que sobressaiu nitidamente – e isso é sintomático em nosso tempo – foi a ascendência do cientista social sobre o literato. Enquanto um não se fez de rogado e deu o melhor de si, o outro omitiu-se inexplicavelmente, deixando a peteca cair do seu lado. As melhores exposições foram creditadas a Florestan Fernandes, Alfredo Bosi, Muniz Sodré, Octávio Ianni, Eduardo Vieira Manso, Carlos Nelson Coutinho, Fernando Henrique Cardoso, Francisco Welffort, Fábio Lucas, Lygia Fagundes Telles e José Paulo Paes, sendo que, a rigor, apenas os três últimos (crítico, ficcionista, poeta) podem ser considerados escritores-literatos. Os demais são escritores-cientistas sociais. 

O cenário do Congresso apresentou três planos distintos: a mesa, o plenário e os bastidores. A mesa, em todas as sessões, era formada de grandes nomes pinçados do ensaismo (professores, sociólogos, antropólogos), da diretoria da União Brasileira de Escritores – UBE (novos escritores paulistas de grande força) e da literatura propriamente dita, a que mais se envolve com os deveres da criatividade. Estes, em menor número, se deram mal (Geir Campos defendendo os livreiros, José Loureiro pregando o sindicalismo), com exceção dos três já citados. O plenário configurava um mosaico de projeções regionais, eivado, em linhas gerais, de um primarismo intelectual (influência ainda pendente do autoritarismo institucional?) que tinha duas faces principais: os acadêmicos e os neófitos. Os primeiros misturavam-se entre os românticos e alienados, cooptados pelo sistema, e os ressentidos e zangados, refutados pelo sistema. Os neófitos (a grande maioria do plenário) definiam-se à primeira vista pela sede de estrelismo de uns, traindo a indecisão entre a oratória e a escrita, e pela consciência de sofrida marginalização de outros, tudo mesclado com freqüentes aparições retardatárias de êmulos ideológicos da contracultura (que teve brilho meteórico nos anos 70). Nos bastidores pululavam os escritores consagrados, transformados em críticos do Congresso. No balcão do cafezinho, no bar da cerveja gelada e no reduto da imprensa, eles vendiam caro sua participação no conclave, esnobando, muitas vezes, o pessoal do plenário. Muitos integravam as comissões de redação dos projetos de resoluções, que pecaram , com exceção de apenas uma (a encarregada do tema “Os Problemas, os Direitos e a Organização dos Escritores”, que foi aclamada irrestritamente), pela copidescagem apressada. A do tema “O Escritor e a Realidade Nacional” comprou a maior briga do Congresso, lavrando uma simples ata em vez de redigir a resolução. Vaiada pelo plenário e solicitada pela mesa para justificar-se, alguns dos membros acirraram ainda mais a indignação declarando que apesar de serem ficcionistas não conseguiam inventar um texto que fosse o resultado do material, de baixíssima qualidade, que tinham em mãos. Aí a coisa ferveu. Fábio Lucas, com a serenidade lúcida e dinâmica com que se portou em todos os momentos do Congresso, sugeriu que o plenário constituísse nova comissão, o que foi logo feito. A redação posteriormente resultante não foi muito apoiada, mas pelo menos configurava o corpo textual de um projeto. Ficou, pois, evidenciado que a primeira comissão pecou por descaso e comodidade, já que o nível das exposições e debates foi mais ou menos igual em todo o temário. Ademais estava claro para todos, naquela altura, que se o nível das apresentações não primava pela boa qualidade, isso poderia ser debitado, em grande parte, à ausência e à omissão dos chamados autores consagrados. Eu mesmo tinha enviado uma proposição, tentando, com a mesma, interpretar a prevalência do cientista social sobre o escritor (constatada até no transcurso do próprio Congresso), na qual falava da dificuldade que o escritor tem de exprimir a realidade nacional porque está mais perto de uma pequena burguesia ascendente, que pode comprar e ler seus livros, o que não acontece com os cientistas sociais, que geralmente são professores e pesquisadores em constante e intenso convívio com a massa estudantil e outros importantes segmentos sociais. Uma proposição que até podia ser contestada, mas que merecia, talvez, alguma atenção. Foi simplesmente ignorada, o que aconteceu também como as lúcidas exposições de Alfredo Bosi, Carlos Nelson Coutinho e Décio Pignatari, que falaram das transformações pelo alto da sociedade brasileira, dos intelectuais ligados às classes dominantes, das influências das tradições não-verbais da poesia, da substituição das vanguardas européias pelas subvanguardas latino-americanas. Os três planos montaram, afinal de contas, um painel que se não refletiu a melhor imagem do Congresso, pelo menos revelou momentos maduros e potencialmente criativos. Lembro-me de alguns, que cito de memória: cabe ao escritor combater o uso anti-social do Estado (Florestan Fernandes); a prevalência do eixo Rio-São Paulo aborta a renovação e a diversificação da criatividade nacional (? Paranhos); as crianças brasileiras vão à escola mais para comer do que para aprender (?); a China vendendo fuzis para Pinochet do Chile; a maioria dos escritores capitulou vergonhosamente ao tacão ditatorial (Cláudio Abramo); a obra literária é a inconformação com o que existe, não corrobora o estabelecido (José Paulo Paes); a cultura é hoje a reprodução do capital (Muniz Sodré); a televisão, que cria uma multidão solitária e passiva, foi a cara colorida com a qual a ditadura se apresentou ao público (Octávio Ianni); o escritor defende todo mundo e ninguém defende o escritor (Jaime Pereira); todo mundo corre para que o Banco não quebre e ninguém corre para evitar que a educação quebre – e ela quebrou (Fernando Henrique Cardoso);neste País, ao mesmo tempo atrasado e moderno, a televisão tem que ser entendida como serviço público e não como órgão de mercado de consumo (Francisco Weffort); a obra de arte é a negação da morte, temos que ser solitários e solidários (Lygia Fagundes Telles); o Brasil está cheio de políticos sem consciência estética e de escritores sem consciência política (?) ; em 1945, enquanto lutávamos lá fora contra o fascismo, tínhamos aqui o fascismo no governo e nas instituições; agora demos até mesmo oportunidade ao presidente da República para tornar publicamente a decisão de consolidar a democracia brasileira (Moacyr Scliar). 

(*) Texto publicado no Suplemento Literário do Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, em 25/05/1985.

quinta-feira, julho 12, 2007

SAUDOSA PREMONIÇÃO?

Aqui estou a ler os próprios pensamentos nas ciladas armadas por tantos algozes, sob a mira dos próximos dias e sítios, a escolher entre um passeio à Santa Rússia da ficção realista ou uma necessária endoscopia do esôfago de Barrett. Ninguém consegue fugir do destino, mormente quando ele é ao mesmo tempo pérfido e necessário. Já sei que vai ficar na vontade ver de perto a vida pregressa de onírica insônia: as almas mortas do Gogol irônico (nas copiosas refeições dos filés de esturjões defumados, regados nos “cálices de vodca cor de oliva escura”) (1), os humilhados e ofendidos do Dostoievski compungido (a vida intensa que perfura a cápsula mortal, a angustiosa recordação da casa dos mortos), o apaziguado Tolstoi de outras guerras estúpidas (“que segue lavrando a terra, lá na recurva trilha, onde repontam novas estrelas”) (2), e depois Lenine queria que o comunismo existisse para o ser humano e depois Stálin queria que o ser humano existisse para o comunismo e depois Evtuchenko a exorcizar “o caos sangrento do funeral de Stálin” (3). E aqui estou a ler os próprios pensamentos incapazes de mover-me as pernas. 

(1): Do romance “Almas Mortas”, tradução de Tatiana Belinsky. 
(2) Do poema de Vachel Lindsay, tradução de Oswaldino Marques. 
(3) Da “Autobiografia Precoce de Evtuchenko”, tradução de Yedda Boechat.

ILAÇÕES DE LEITURAS III

A idéia precede a linguagem, que se rebola para exprimi-la. Mas antecipa ao símbolo que, encontrado pela idéia, representa a origem da comunicação, que pode ser boa ou não, dependendo da linguagem empregada, que pode ser boa ou não, dependendo da capacidade articuladora do comunicador. Marilene Diniz Valério exprime tudo isso, muito bem, na página 103, citando Kant, Hegel e Paul Ricoeur. E assim revela a importância dos símbolos nos sonhos de uma pessoa, que só podem ser analisados, como ela acentua, se se “levar em conta a história” da pessoa que sonhou. A leitura dela e nossa, dos intrincados arrazoados filosóficos, segue fluente na parte dela e morosa na parte de nossa leiga participação. Mas nas páginas 122 e seguintes, sobre o estudo de Freud sobre o luto e a melancolia, as ilações do leitor são mais instantâneas e definidas. O “trabalho do luto”, ela escreve, “ocorre como uma desconexão”... “das amarras que nos fazem sentir a perda de um objeto de amor como a perda de nós”. Experiência que todo ser humano está sujeito, e que pode levá-lo até à uma doentia fixação. Mas, ela acrescenta, “desde que a realidade nos revela que o objeto amado não existe mais” ... “Eros exige, através de outras satisfações narcísicas, que nossa libido se vá desatando daquele objeto amado” (...) “e quando se conclui o trabalho do luto o “Eu” fica outra vez livre e desinibido, aberto a novos investimentos”. E assim “o inconformismo, a tristeza, o desespero”, vão desaparecendo, possibilitando, assim, “à libido criar outros laços amorosos”. Mas sabemos que o sofrimento pode adormecer, mas sempre volta, mesmo subrepticiamente, sobrecarregando a memória de dor e desventura. A metáfora alude a uma relação de palavras referentes a semelhanças subentendidas e não de todo evidenciadas. Usa-se geralmente para aliciar o leitor ou ouvinte para um conluio mais familiar numa oração mais amistosa, mesclando o conceito com a imagem. Na página 127, a autora pergunta: “emerge o sentido da metáfora diretamente do significado das palavras ou transcende para o objeto e o conceito?” A metáfora não pode ser genérica nem atemporal, ela afirma, “posto que pertence à instância do discurso e só com relação a essa instância adquire sentido”. Assim a metáfora fica inadequada para as orações e discursos científicos e jurídicos e belamente recomendada para as orações e discursos do linguajar popular e da literatura em todas as nuances de seus ramos de prosa e verso. O livro VEREDAS DO DISCURSO E DA VIDA”, de Marilene Diniz Valério, é desses que ficam de pé na estante, dono que é de suas palavras abertas para o entendimento da temática nele tratada: é largo e profundo nas indicações que a linguagem propicia ao adentramento na filosofia, ou seja, na convivência amistosa do ser humano com a problemática do mundo e da vida, nebulosamente cativante. Assim, vira e mexe, ela agracia o leitor com jóias pensamentais, como na página 137: “I.A. Richards considera que as palavras não têm significação própria, mas que só no contexto, na situação discursiva, adquirem sentido”. E sobre um poema de Federico Garcia Lorca, na página 150: “A sonoridade das palavras, o tom de lamento, a entonação dos versos e as metáforas dramáticas têm a ver com a mensagem por si mesma, isto é, constroem uma opacidade para os signos e realizam a função poética do texto”. Em suas Reflexões Finais (página 233), ela declara que o estudo da obra de Paul Ricoeur representou “um risco e um desafio”. Risco porque não podia nem queria “reduzir e empobrecer a obra do filósofo através de possíveis infidelidades em relação ao pensamento do autor”. Desafio porque, “não sendo oriunda da área da filosofia”, teve que esforçar-se muito para alcançar os “conceitos e categorias e a apropriação do discurso filosófico, bastante estranho” para ela - e também para o resenhista que se empenhou no sentido de pelo menos aproximar-se da dimensão do trabalho refinado dela, Marilene. “As palavras não são apenas palavras, as coisas não são apenas coisas. Há uma inteligência ou uma sensibilidade envolventes” – eis uma citação de um livro que comecei a escrever em 1999 e que até hoje não conclui, justamente por não conseguir enfrentar o desafio da linguagem filosófica no sentido de manejá-la literariamente. A leitura atenciosa do livro de Marilene, vai continuar esclarecendo-me muitas dúvidas. Tenho certeza.

segunda-feira, julho 09, 2007

NOTAS RÁPIDAS, RASTEIRAS E VOADEIRAS

- A voz das Coisas: “O belo é uma promessa de felicidade... Existem tantos estilos de beleza quantas visões de felicidade” – Sthendal, recentemente citado na revista VEJA. As matas ciliares são as catedrais góticas da natureza: exprimem um estado de espírito de quem, naturalmente, as projetaram e edificaram (as boas graças do bom gosto de Deus) e suscitam igual predisposição poética espiritual de quem (nós, seres vivos do planeta) se beneficiam ao vê-las e adentrá-las de corpo e alma. Cansado de tanto ver o mal surrando o bem nas disputas politiqueiras, nem opinei sobre o duelo momentoso do esgoto de nossa cidade ir para a competência da COPASA ou ficar na incompetência da Prefeitura. Graças a Deus que o bem saiu vencedor, assinalando a perspectiva de agora o Rio Itapecerica ser salvo da imundície que o inunda e nos atola, há décadas. Digo assim porque sinto que ao longo do tempo os melhores órgãos prestadores de serviços públicos, que cumprem religiosamente suas obrigações no município, são a COPASA e a CEMIG (quem se lembra de faltar água e/ou luz de forma constrangedora como geralmente faltam tanto nas outras incumbências dos outros poderes públicos?). Ao que tudo indica, pois, o Rio Itapecerica será finalmente salvo de sua prolongada agonia. 

- A um amigo que repelia certa dificuldade de leitura de meu romance “CANTAGALO – A Bacia das Almas”, de ação romanesca ambientada na antiga zona boêmia de Divinópolis, respondi que de caso pensado procuro sempre evitar nos meus trabalhos as estruturas padronizadas das narrativas calcadas de previsibilidades, exaustivamente repetidas e, por isso, infantilizadas à exaustão. Creio que a cultura, como um monte de informações imóveis, não interage onde é lançada, onde pode até ter cabimento, mas que ali fica isenta de seqüência e dinamismo. O possuidor e o promotor da cultura têm que saber processá-la, dar algo de si ao quinhão dela, se não como acréscimo, pelo menos como ilustração. 

- Ninguém me tira da cabeça que a palavra carnívoro não seja sinônima da palavra assassino. Só o urubu, que se alimenta de carniça, não mata para comer, não é mesmo? 

- Lendo o romance “SALAMBÔ”, de Flaubert, sinto-me como se estivesse passando dentro de uma floresta, sentindo a biodiversidade generosamente preenchendo as lacunas do chão e do ar, deixando transparecer aqui e ali as nesgas de céus mutáveis, coloridos de azul ou de verde, de brilhante ou de negrume, e também os escorregados altos e baixos das serras apinhadas de preciosidades, os rios repletos de peixes e de sereias, os caminhos ocupados de guerreiros apaziguados, de nativos saudáveis e bonitos. E depois como que chegando à cidade miraculosa, de mágicos tentáculos e de guirlandas sobrenaturais, atavios e prodígios de mobilidade –os arpões e fisgas e baionetas em jarros de begônias e madressilvas, a equipagem e os estandartes da ácida luta dos que dão mais do que recebem e mesmo assim reanimam a esperança de melhores dias. E no contraponto da faina, o lazer dos privilegiados com seus anéis dourados, seus eletrodomésticos automáticos, suas viaturas blindadas, sua luxúria sexual exibida a céu aberto. Como se o mundo fosse uma beleza e a vida uma felicidade. 

- Os últimos cinco anos são os piores da História do Brasil? Sei não, mas..., vou mencionar só um item das trapalhadas governamentais: o dos meios de transportes. O transtorno começou com o descaso pelas estradas de rodagem e o conseqüente aumento do índice de acidentes nos quatro cantos e no imenso miolo de nosso território. Primeiro a buraqueira, a descolagem asfáltica, o desleixo das sinalizações, as enfumaçadas fogueiras das margens: tantos anos de atropelos, dramas e tragédias, sem contar o stress das pessoas, o prejuízo na conservação dos veículos, a interdição das passagens, proibindo até mesmo o ir e vir das pessoas, isolando-as onde estão porque não podem mais se locomover como antes. Com isso o conceito e a imagem da existência dos sertões em toda parte voltaram, agora com o agravante de não mais existir a alternativa de viajar de trem de ferro ou de avião (aquele não existe mais, este está caindo aos pedaços). E depois vem a sobrecarga dos prejuízos emocionais e financeiros: não se pode mais visitar os amigos e parentes distanciados; fazer negócios, turismo e recreação, tudo ficou impossibilitado por causa de tanta dificuldade. E o pior é que ainda tem gente jactanciando com os dizeres mais descabidos, tipo “nunca neste país..., etc e tal”. Lembro-me que havia um humorista que gostava de dizer “me engana, que eu gosto”. E quem pode gostar de um quadro tão horrendo assim? Até parece aquele “o som e a fúria”, mote de Shakespeare usado por Faulkner no título de um de seus grandes e belos romances.

AQUECIMENTO GLOBAL

Diante da inclemência do baixo índice pluviométrico (às oito da manhã o sol já é uma brasa a sapecar nossos poros, e ao meio-dia já começa a ressecar e exaurir o liquido, já também incerto de nosso corpo; e cada frente fria anunciada já vem com o traseiro queimando), nunca é demais lembrar aos leitores que cada um pode ajudar na empreitada dos ecologistas, com um trabalhinho aqui, uma palavrinha ali, e que sobretudo cada um tenha dó e piedade da atmosfera, no atual descontrole da atividade solar (essa bola de fogo que hoje é um cobertor em tempo de asfixiar todo sinal de vida na já descabelada crosta terrestre). Nosso mestre imaginário, de boa índole e de recatada argúcia, aconselha veementemente: não jogue água fora nem lixo no rio. Arregace as mangas da camisa para lutar contra os males da monocultura, do desmatamento, do assoreamento. Não esmurre a inocência das migalhas que ainda brotam das umidades, nem risque o fósforo nas macegas perto ou mesmo longe da própria casa, tenha dó da vegetação que depende dos animais que dependem dela e dos minerais que alimentam o círculo das infinitas farturas e carências. Tente, com os dons e dotes de uma pessoa de boa vontade, reabilitar a atividade solar em suas saudações dos amanheceres e anoiteceres, bem lá entre as nuvens no limbo azul dos poemas de nossas visões e visagens de eternidade – isso para que o bem estar social de todos os seres fique assegurado, agora e sempre. Não atire pedras nas caixas de marimbondos, nem esmague as minhocas, as tanajuras, as siriricas: ao contrario, chegue terra aos pés de milho e de quiabo; volte a andar a pé nas ruas e estradas de nossa terra natal; dê um lenitivo aos próprios olhos, pois que assim os ossos, as vísceras, as carnes e peles agradecerão; não suje as fontes e correntes do que vai fluir; faça uma sincera reverência à clorofila, outra à fotossíntese. Apague a luz que fere a saúde da treva, economize energia, desligue os motores da balbúrdia inconseqüente, respire o ar azul do verde ambiental. Abençoe (como São Francisco de Assis) a biodiversidade: afinal de contas e de coisas você também merece o beneplácito divino. Seja feliz de agora em diante e deixe de ser bobo: contemple os milagres da natureza, sabendo que você também é um deles. Infelizmente estamos agora conscientes de que os países pobres não podem enriquecer ao nível dos países ricos, porque, se isso acontecer, vai ser necessário aumentar a produção de energia a tal ponto que o aquecimento global vai também aumentar a ponto de impossibilitar a presença da vida no planeta então já de todo em estado de literal ebulição. E os estadistas do mundo inteiro?: De braços cruzados, como palhaços vendo o circo pegar fogo? O que vemos nas acirradas discussões dos plenários internacionais é a perplexidade inoperante (para não dizer culposa e passiva) da chamada classe dirigente, como que a evocar, famigeradamente, a nefanda teoria do “quanto pior, melhor”, que pode ser traduzida na linguagem popular de quem hipocritamente pergunta e ao mesmo tempo responde: “de quem é o mundo? Não é meu nem seu. Então foda-se o raimundo”. Se sabemos que o excesso de energia hoje acionada é que está causando o aquecimento global, é porque sabemos também que sua produção precisa diminuir e não mais crescer. E se é a riqueza dos países que causa o aumento da produção de energia, logo a solução mais plausível é o entendimento das partes (ricos e pobres) para chegar ao consenso do equilíbrio, ou seja: forçar de toda forma humanamente possível que as nações ricas repartem a atual riqueza delas com as nações pobres, de forma a equilibrar a balança ecológica planetária. Isso parece um absurdo? Mas é, ao que tudo indica, a única forma de resolver o problema, empregando a sensatez mais racional das classes dirigentes nacionais num internacional e vivo e piedoso exemplo de amor ao próximo, pregado tão religiosamente em todo mundo. Um amor deveras profundo e não supérfluo, como o que parece vigorar atualmente nas relações públicas das políticas ineficazes, e que parece estar tomando as feições de um ódio muito insano, a lembrar outra jóia metafórica do rifoneiro fatalista: “cada um para si e o diabo para todos”. Que assim não seja, ou melhor, que haja Deus assim na terra como no céu.

sábado, julho 07, 2007

LEITURAS CRIATIVAS

1 – “Diário de Um Sedutor”, de Sören Kierkegaard, tradução de Jean Melville, editora Martin Claret – São Paulo, SP, 2002. Página 40: “Ela escondia-se em si mesma, brotava de si mesma, como o vôo do abeto, mesmo preso ao solo. Um enigma que enigmaticamente possuía a própria solução”. Pág. 56: “O desdém que as jovens têm dos rapazes embaraçados é enganoso porque intimamente elas se sentem homenageadas diante do embaraço deles”. Pág. 60: “Tratando-a como a uma criança, eu sabia que a sua femininilidade podia erguer-se em toda sua pureza e encanto”. Pág. 70: “Amar apenas uma é pouco, amar todas é uma imprudência. Mas é preciso encerrar na alma todas as energias do amor e amar muitas. Nisso está o prazer, aí está o que é a vida”. Para o sedutor de Kierkegaard as amadas “nunca foram senão estímulos – e lançava-as para longe de si do mesmo modo que a árvore deixa desmoronar a folhagem: ela remoça enquanto suas folhas fenecem”. A arte de amar, segundo o filósofo, aqui revestido de um simples e ingênuo sedutor é: “só desejar o que possa ser dado livremente. É preciso aprender a natureza do amor, ser um esteta, um erótico, um sedutor inábil. O essencial é ser amado por quem amamos. Introduzir-se como um sonho na imaginação de uma jovem é uma arte, sair dela, uma obra prima. Mas esta depende daquela”. Mas quando o amor poderia armar-se dessa frialdade racional? pergunto, ensimesmado. “Um rubor leve e fugidio, como uma nuvem sobre os campos, passa por ela e se esvai lentamente. Será desejo, esperança, amor, tremor? A cor do coração é o vermelho”. 

2 – “A Consciência de Zeno”, de Ítalo Svevo, tradução de Ivo Barroso, Biblioteca Folha, São Paulo, SP, 2003. Logo na página 16 o personagem se abre feito uma mala de mascate: “Contei-lhe sobre o meu problema com as mulheres. Uma só não me bastava, nem mesmo muitas. Olhava-as com insolência pela necessidade de sentir-me brutal. No pensamento despias-as todas, deixando-as apenas de sapatos, tomava-as nos braços e só as soltava quando tinha certeza de conhecê-las bem”. A libido (depreende-se do que está nas páginas), como a sensualidade, está no ar, pode ser colhida através de uma mulher que desperta ou não desperta o desejo do homem, porque muitas vezes é o desejo do homem que cria numa mulher a mulher sensual, que pode ser assim para uns e não para outros homens. O autor deixa entender, nas entrelinhas, que a civilização está a dever à humanidade um sistema social mais flexível, no qual se pode aceitar e absorver as inevitáveis infidelidades sentimentais e sexuais, entre namorados, amantes e cônjuges. No passar das páginas ele diz, também, em outras palavras, que a terra gira e não entontece. E se não acabar com o amor dos cônjuges (que veio do namoro e do noivado), o casamento pode ser considerado feliz, o que, para ele, é uma raridade museológica. O personagem principal do romance queria na verdade, não apenas uma das três irmãs (Ada, Alberta, Augusta): ele queria todas as mulheres do mundo. O que talvez seja o querer de todos os homens do mundo, ele acrescenta. 

3 – “VENEZA de Vista e Ouvido”, de Lélia Coelho Frota, Coleção BeloBelo, Rio de Janeiro, 1986. Apresentação de Alexandre Eulálio, versão italiana (inclusa) de Luciana Stegagno Picchio, vinhetas de Maria Leontina. Uma edição em tiragem de 100 exemplares em tipos da família Times Roman, corpo 10 e obedecendo ao Projeto Gráfico de Cecília Jucá de Hollanda. Os exemplares numerados e assinados pela autora, em tiragem fora do comércio. Amavelmente a Autora dedicou-nos (a mim e à Inês, “afetuosamente”) o exemplar número 21, um privilégio que sem dúvida não merecíamos na data da publicação, nem agora, fruto da belíssima bondade dela (que era muito amiga de Drummond e, na época, Diretora da FUNARTE, que procurou-me quando esteve em Divinópolis para estudar a obra escultórica de GTO, o que resultou na escritura de um livro e na feitura de um filme, ambos antológicos como representação e interpretação da obra de nosso genial artista primitivo e criador, como ele próprio se definia. 20 anos depois, relendo o livro, repeti o sentimento de que já tinha visto e ouvido Veneza, antes de conhecê-la no ano passado, quando lá estive. Sim, quando lá estive, a sensação é de que já a tinha visto e ouvido em sua imaterialmente quase tangível.É nesse ponto que pode surgir uma possível tese de permanência da leitura criativa, que abala o leitor, fixando-se nele, inconscientemente. Ali estavam a mesma visibilidade, a mesma sonoridade. Ali estava, revendo o livro agora, o Tintoretto a projetar a Santa Maria Madalena no tempo e no lugar, e que Lélia, assim a representa: “Santa Maria Madalena irradiante, lê, sentada junto à grande árvore cantante. (...) Olha para onde , livro lido, a sua face redonda de mocinha?” É assim que tudo fica assim tão Veneza, tão eterno: “os céus descem a nosso olhar horizontal”: eis uma imagem literal captada em qualquer uma das paisagens venezianas. As pessoas e os pombos estão mais no céu, num céu que pousou ali com seus “anjos e cavalos sobre as nuvens”, no meio das procissões de Bellini, ao som da flauta de Mozart “a abrir caminho para o coração/ da floresta orquestra”. E aqui ou ali, em toda a visão circundante o que mais captamos na perfeição arquitetônica é o som dos instrumentos como “arcos propiciatórios, caixas brilhantes, ondeadas de cordas, metais reluzentes”, a beleza mais lídima, por assim dizer, celestial, “que faz descer da cúpula do nada o som, aterrissando nas arcadas”. Eis aí a Veneza dos verões de Vivaldi, dos trajetos e acordes de João Sebastião Bach. A Veneza que vislumbramos em 1986, no livro dela, a que vimos em 2006, ao vivo e a cores, e a que agora revemos, revivemos, com o coração na mão, ao “Abrir ou fechar os olhos para a música? No escuro é mais táctil. O seu rosto abstratíssimo. Com o Braille do invisível é doce mergulhar na sua água aérea”.

SENSIBILIDADE À FLOR DA PELE

Foi bonito ver a moça no sorriso do coração (do coração ou da libido? De ambos?). Toda em si, de contente (a felicidade no passeio da rua, ao meio-dia?) ao encontrar e abraçar o namorado: Alguma lente lá do céu eternizou-a naquele instante de extrema poesia? Uma pessoa assim tão feminina, de feição anímica tão fina, contraria a assertiva de Ricoeur: ela já era antes de ser e vai ser depois de ser. Não teve principio nem terá fim: Seu tempo incólume. Seu espaço incólume. Sua origem é um apanágio. O nome dela é um dos nomes do amor. E também o amor é um dos nomes dela, incólume e bela, ela. O que de melhor havia nela, que ela carregava naquele íntimo instante? A pessoalidade só dela? A sensibilidade física e química só dela? Acima da libido que atrai e exaure, ela bem no meio da rua equânime, levava dentro e fora de si uma sensibilidade levemente adiposa? Lívida e no entanto efervescente. Lírica e no entanto concentrada. Ao mesmo tempo loura e morena. A sensibilidade em si contida: Nos transeuntes não, na rua não: Só nela sim, só nela um sino tocava, que só ela ouvia.

sexta-feira, julho 06, 2007

A MATA CILIAR

Como pode o rio nosso de cada dia, viver sem a mata marginal? Os nossos olhos prescindem dos cílios? O pássaro sem o galho para aninhar, procriar, cantar? Como pode a vida sem a água viver? Ela desce, os peixes querem subir. O sono sobe, os olhos querem dormir. O coração de uma pessoa quer ouvir, as cachoeiras de outro coração, de outro rio? Ela é quase todo o nosso corpo, quase toda a nossa redondinha terra. Como poderia enxugar a si mesma? Ou subtrair do azul o verde mais antigo? As gotas de clorofila de nosso olhar. As virgens fontes da alma. As verdes fontes da alma. Dois terços do mundo, ela é. Dois terços de nossa pessoa, ela é. A refletir os rostos dos amantes, ela canta e transborda. A água nossa de cada dia, sempre nua onde estiver. A empregar seu vigor e dar sua luz, a dizer baixinho que os canais de fuga, os vertedores, as comportas, são dons e apetrechos das usinas do cérebro e do coração. Entrementes, de longe ouvimos os insidiosos passos de urubu malandro do facinoroso lenhador. Sem fazer o sinal da santa cruz (penitenciando-se), ele esmerilha as ferramentas ferozes. Sái de baixo, sombrinha, que te esfolo! Assim a água nossa de cada dia pára de cantar. Mais suja do que nua, ela agora não canta mais. Nem mais espelha a mata ciliar que tomba, que agora tomba, que tomba entre tantas outras mutilações brasileiras. Ela chora em vez de cantar? Nós choramos em vez de ouvir?

quinta-feira, julho 05, 2007

ILAÇÕES DE LEITURA II

O Ego algemado de um lado pelo Id e do outro pelo Superego, não pode pular nenhuma cerca, só lhe resta imaginar, fantasiar, sonhar. Freud, junto de Marx e de Nietzsche abriram, segundo Ricoeur, três brechas teóricas para que a filosofia moderna respirasse mais livre e amplamente. As três, nas palavras de Marilene Valério Diniz: “A psicanálise, porque demonstrou que o discurso racional oculta o discurso do inconsciente, a fala sem disfarce que põe em evidência a verdade psíquica do sujeito. O marxismo, por demonstrar que muitas crenças, muitas situações e “verdades” dadas como absolutas e incontestáveis não passam de ideologias da classe dominante, construídas com o objetivo de manter seu domínio. E a filosofia de Nietzsche, que buscou restaurar a força do homem, sua capacidade de transformação constante e sua potência criadora”. Assim, em poucas palhetadas, a autora traduz o que o filósofo francês descortinou para tanta claridade de nós, estudiosos de tudo que nos afeta. Vemos que, assim, os três teóricos descartam conceitos até então considerados axiomáticos, substituindo-os por instaurações de conceitos momentaneamente polêmicos, preenchendo assim os vazios doutrinários das realidades dos novos tempos. Freud ao afirmar que as pessoas não são iguais: Marx a dizer que são; e Nietzsche a formular os possíveis aprimoramentos comportamentais do ser humano, com um entusiasmo mais repleto de exageros do que mesmo de heresias. A lingüística dos signos – a semiótica – e a lingüística dos sentidos – a semântica -: eis o desdobramento defendido por Ricoeur (pág.90), baseado numa teoria de Émile Benveniste, para defender que o discurso é um evento da linguagem. A interpretação crítica de um texto, seja do ramo documental ou do fictício, exige redobrada atenção para o excesso de significações, já que como referia T. S. Eliot, o bom texto literário, em prosa ou em verso, possui sempre vários níveis de significações. Sentimos, assim, ao ler os bons autores, o poder de raciocinar em bloco e o resultado de obtenções ciclópicas de seus trabalhos que afetam em sincronia os sentidos mais vulneráveis do leitor, mormente os fisiológicos (olfato, gustativo, libido, afetivo, repulsa, devaneio, recreativo), responsáveis pela sedimentação intelectual. O maior mérito da consecutiva escrita de Marilene é o de chegar ao leitor atraindo-o com os bons modos de uma oferta que é, ao mesmo tempo, uma solicitação. Assim o leitor participa do chamamento, com a sensação , por exemplo, de que um Jorge Amado não é mais o rotundo apelador ideológico, mas que se tornou repentinamente possuído da magnânima, deleitosa finura de um Machado de Assis. No terreno da arte nada é impossível. É assim que a filosofia pode oferecer uma leitura mais literária e instigante. Na página 94 ela diz que “não há dúvida de que o homem é um animal diferente dos outros animais por sua capacidade de representação”. E é assim mesmo, representando, que ele exorbita da igualdade, tornando-se às vezes melhor e às vezes pior do que os outros animais. Seus dons de manipular símbolos facultam-lhe o poder de romper limites e de transigir, bisbilhotando e pesquisando em todas as áreas do tempo e do espaço, valendo-se de armas e ferramentas materiais e imateriais, podendo ser visto no fundo do mar, no alto dos céus, no meio das matas, nos túneis do tempo, desempenhando uma maleabilidade interdita aos outros seres vivos. O mérito dessa faculdade humana vem sendo cantado em prosa e verso desde os tempos mais remotos. Mas creio que chegamos num ponto histórico da humanidade que esse mérito já está sendo questionado, tendo em vista o estado danificado, para não dizer doentio (quase agônico?) da vida planetária tão agredida pela predatória poluição, obra do engenho humano, agora assim considerado miseravelmente corrosivo e corruptor. Os elementos estruturais da escrita filosófica, nebulosos pela diversidade dos enfoques e do hermetismo acadêmicos, podem ser apresentados mais claramente discerníveis, como prova esse livro de Marilene Valério Diniz. Parece-me que ela parte do pressuposto de que o trabalho deve alcançar o leitor e que o leitor nem sempre está habilitado, em termos de paciência especulativa e de aptidão intelectual, para instintivamente amá-lo, assimilando-o. Assim, quando a linguagem específica da disquisição perde o ranço da preciosidade acadêmica, torna-se mais digerível e até mesmo familiar. É assim que a chamada cultura livresca pode, aos poucos, ser felizmente assimilada pelos diletantes da cultura geral, até então confinados nos quadrantes da chamada cultura popular, que é, em suma, a simplificação do que se consegue a duras penas através da sabedoria humana mais genérica e complexa. E é assim que, muitas vezes, a gente sente na linguagem caipira dos verdadeiros roceiros (ao vivo em qualquer nesga sertaneja ou nos livros de Guimarães Rosa) as ressonâncias verídicas dos postulados de Sócrates e de seus epígonos.

quarta-feira, julho 04, 2007

A JUVENTUDE INTELECTUAL DIVINOPOLITANA

No panorama histórico da cidade ao longo do tempo, constatamos o brilhantismo invulgar de duas inegáveis constantes, a da arte e a da cultura. Cito de memória os escritores de obras com repercussões extra-municipais como Adélia Prado, Osvaldo André de Melo, Fernando Teixeira, Lindolfo Fagundes, Antônio Franco, Sebastião Milagre, Mercemiro de Oliveira, Yara Etto, Gentil Ursino do Vale, Bernardino Leers (ofm), Joaquim Coelho, Ataliba Lago, José Dias Lara, Jadir Vilela de Souza, Rosa de Freitas, Carlos Antônio Lopes, Célio Paduani, Everton Vasconcelos, Marlene Moreira, Jeanne France e Outros; artistas plásticos como GTO, Mario e Geraldo Teles, Heraldo Alvim, Valdir Caetano, Regina Martins, Hevecus, Celeste Brandão e outros: cada um na sua especialidade recria em termos humanos o que a natureza, em termos divinos, também recria. E a obra deles, como a da natureza, é dinâmica, não se contém no nascedouro, espalha seus polens e sementes em toda circunferência do contexto mais vívido. A existência desses excepcionais valores humanos seria como de fogos-fátuos, ao longo do tempo, se não surgisse uma consciência intelectual que visasse uma possível perenização nos anais do reconhecimento público. Essa consciência surge, principalmente nos últimos anos, com o enriquecimento do ensino superior na cidade, liderado pela figura devotada ao bem comum, que o aperfeiçoamento cultural pode e deve concorrer mais efetivamente no aperfeiçoamento existencial da comunidade humana. Falo do Professor-Doutor Pedro Pires Bessa, que não cansa de trabalhar a favor de um melhor iluminamento sobre esses valores intelectuais. A consequência é óbvia: uma nova plêiade de valores está instaurando um clima de seriedade profissional na predominância cultural do comportamento social das pessoas, em geral beneficiando a vigência da beleza e da verdade nas relações humanas. 

Foi uma prazerosa surpresa receber agora das mãos de Talita Calazans Costa de Moraes e de Camila Alves Êvo, o pequeno-grande livro de 108 páginas, intitulado “A Cabeça de Ouro do Profeta” (em homenagem a um livro meu, do mesmo nome), que as duas moças e Bianca Pereira Gontijo, Geraldo Luís de Freitas e Cibelly Aparecida Corrêa escreveram, depois de uma percuciente e carinhosa pesquisa nas obras publicadas em livros e inseridas no blog deste resenhista. Todas as autoras e o autor são do Curso de Letras da FUNEDI-UEMG, orientado pelo Professor-Doutor Pedro Pires Bessa, que organizou vários grupos de alunos, cada um deles incumbido de pesquisar e de publicar os lineamentos predominantes nas obras de muitos outros autores, entre os supracitados. De minha parte, só me resta agradecer, comovido e feliz, pela imerecida homenagem. E nada mais posso falar, sabendo quão imodesto, indiscreto e ilegal é advogar em causa própria. O mérito é todo da jovialidade sensitiva e intelectual do talentoso quinteto, e não meu.

segunda-feira, julho 02, 2007

ILAÇÕES DE LEITURA

O ser humano é um dos seres vivos do planeta e do universo que, em seu contexto, possui um punhado de poderes: mentalização, expressão, dominação, muitos outros, e que no entanto é também possuído de uma grande restrição quando pretende romper os limites de sua contextualização. Apesar de toda sua racionalidade, ele jamais consegue interpretar a realidade do contexto dos outros seres que estão bem vivos em outras realidades. A doutrina estruturalista é a que atribui ordem às partes, cada uma em seu contexto de valores autônomos. Se cada uma das espécies vivesse assim em suas esferas sem atritar as outras em outras esferas, o equilíbrio significaria a felicidade universal. Mas a demarcação de territórios e a distorção mental que leva ao sentimento de superioridade de uns viventes e de inferioridade de outros, são as principais causas da luta pela sobrevivência, na qual o ser humano tem levado vantagem, uma vantagem desonesta e perigosa, que só pode levar ao fatalismo da desintegração de todo o equilíbrio da natureza planetária. O quinhão intelectual do ser humano leva-o ao entendimento das coisas tangíveis, para amar ou odiar, para plantar e colher, nascer e morrer. O quinhão emocional outorga-lhe o recurso da imaginação, que o distrai e aborrece diante da impossibilidade de atravessar a neblina da solidão. É mais ou menos assim que entendo, preliminarmente, a Viagem de Marilene Valério Diniz pelas Veredas do Discurso e da Vida na construção de uma identidade para o ser humano em estado de solidão mesmo nos percalços de uma convivência nem sempre pacífica entre seus semelhantes e dessemelhantes. O livro dela, recentemente lançado em Divinópolis, é “VEREDAS DO DISCURSO E DA VIDA: Estruturalismo e Subjetividade na Obra de Paul Ricoeur” – impressão na Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007. Constato, logo na leitura das primeiras páginas, que o uso da língua, (que tanto facilita nossa vida), traz em si a linguagem, algo que ao mesmo tempo esclarece e ofusca nosso entendimento, mas impedindo-nos, assim, de cairmos no tédio da plenitude que paralisaria a convivência fértil, como assegura Ortega Y Gasset, citado na página 29, na qual ele acrescenta que “um componente da língua relaciona-se com os demais por presenças e ausências”, gerando aí a necessidade dos vôos e mergulhos no campo cognitivo da necessária convivência contextual. “Rever as ciências que conseguiram desenvolver o estruturalismo como um método heurístico de investigação científica, a lingüística, a semântica e a antropologia estrutural – permite-nos depreender alguns pontos importantes”, - a autora diz na página 53, depois de citar Lévi-Strausss, quando ele fala de “um conhecimento do homem que associe diversos métodos e diversas disciplinas e que nos revelará um dia as molas secretas que movem este hóspede, presente sem ser convidado aos nossos debates: o espírito humano”. Sempre que leio os postulados e perorações de Heidegger, considero-o aborrecido e contraditório (por que foi logo abraçar o nazismo em certa fase de sua vida?) e nunca consigo prosseguir na leitura, como se rejeitasse um caminho esburacado e espinhoso. Por que seguiria se vejo outras alternativas mais límpidas e aceitáveis para caminhar por onde quero e preciso? Percebe-se que Marilene depura o arrevesamento (que sinto nele) e elucida a questão do ser e do não ser, como está na página 56: “Que é o ser? Qual o sentido do ser? Como se situa o ser, sendo no interstício entre nascimento e morte? Na fatalidade de nascer sem nenhuma possibilidade de escolha e ter de enfrentar o morrer com a única possibilidade de escolher quando e como, no caso dos suicidas – porém às vezes nem isso é possível, há lugar para uma subjetividade?” A pergunta fica vibrando no ar da leitura. E a resposta da autora é o reenvio do leitor ao redemoinho existencial: “Toda pergunta articula um saber, um não saber e um desejar saber”. O leitor (eu) desacostumado com a linguagem acadêmica (que prevalece como norma na apresentação de teses), repleta de tropos, signos, símbolos, tantas portas abertas para o acurado estudo do estruturalismo e da subjetividade para conseguir uma plausível construção da identidade, tendo à mão os recursos heurísticos da hermenêutica, da semântica, da linguística, da fonética, dos paradigmas e dos sintagmas, todo um instrumental vocabular, para enfim concluir (no meu humilde entendimento) que toda “intriga romanesca” ( e obras de Virginia Woolf, de Thomas Mann e de Marcel Proust são exemplarmente citadas) “é um sistema de relações estruturais entre as ações, os personagens, os signos e os símbolos”. A estrutura, ah, sempre a onipresente estrutura nas ações e nas situações! É assim mesmo. Mas pouco familiarizado com temática tão propalada nos meios culturais especializados e tanto ou quanto obscura no quadro de leitura dos praticantes de espicaçadas literaturas, sinto-me como um resenhista-aprendiz que, temendo decepcionar os leitores da coluna, promete logo sua intenção de continuar lendo aos poucos esta obra de certa forma hermética e, de outra forma e ao mesmo tempo, instigante. Quero dizer que voltarei à leitura do livro, devagar e sempre, pois obviamente todo mundo neste mundo sabe das coisas, só não sabe o que ainda não teve oportunidade de tomar conhecimento. Até breve, pois.

ANEDOTAS POPULARES

– Quando o homem chamado Claro foi à casa do compadre, sabendo que ele estava ausente, para adulterar a comadre Priscila, e estava lá com ela, no bem-bom do leito conjugal, ouviu o alegre latido do cão da casa anunciando que o dono chegava. Ele, mais que depressa, meteu-se debaixo da cama, nuzinho da silva. Esperou o que ia acontecer e teve que engolir o dissabor de ouvir e sentir o bem-bom do casal mesmo em cima da cama que o escondia. Terminada a primeira cópula, o marido acendeu a luz e disse à esposa: “Agora quero tirar uma foda no claro”. Aí o trampolineiro adventício, pensando que o compadre se referia a ele, saiu debaixo da cama e respondeu, enraivecido: “Nimim, não, sô!” 

– A esposa fazia greve com o marido desde o dia que ele reclamara da comida dela, que estaria com excesso de sal. E ele, jejuando sexualmente dias e semanas, ficando cada vez mais teso, insistia tanto que ela resolveu dar-lhe uma colher de chá, prontificando-se. E depois das preliminares, quando estava no bem-bom do auge, ela aproveitou para tirar uma casquinha, querendo assim que ele desdissesse o que dissera a respeite de sua arte culinária. E perguntou: “E então? Não sei temperar a comida?” Aí ele, no momento mais auspicioso da transa, elogiou os dotes culinários dela, mas quando sentia que o orgasmo chegava ao fim, fez uma reticência na palavra “mas...”, acrescentando: “Saber temperar você sabe, mas... que o arroz daquele dia estava salgado, ah, isso estava!” Ela estrilou, mas era tarde: ele estava ao lado dela, todo feliz e satisfeito. 

– Você prefere sexo anal ou oral? - a pesquisadora (ministra dando mais um fora?) pergunta ao favelado, a quem instruira como evitar filho sem gastar com preservativos. E ele, candidamente responde: “Ara, sá dona, é claro que prefiro o oral, que é de hora em hora, e não o anal, que é de ano em ano. Sou lá algum trouxa?” 

– Dizem que a oferta sexual feminina é hoje tão intensa, variada e avassaladora, que os eternos comedores de plantão estão abusando dos estimulantes tipo viagra e cialis. E o índice de mortalidade prematura deles tem aumentado, pois, como se diz, não é só Deus que mata, não. 

– O marido poupador e recalcitrante, passeando com a esposa na fazenda do parente que possuía um jumento de raça para enxertar as éguas dos outros fazendeiros, mediante pagamento, ouviu do dono os dizeres, ao apontar o animal; “É o que mais rende dinheiro na fazenda”. “E quantas éguas ele cobre por dia?”, a comadre quis saber. “Umas dez ou doze”, o dono respondeu. Aí ela apertou o braço do marido, a fim de que ele entendesse a indireta. Mas este, não se dando por achado, perguntou ao dono: “Tantas vezes com apenas uma fêmea?” “Não!”, exclamou o dono. Em dez ou mais, é claro”. Aí o marido retribuiu a indireta da esposa, apertando ironicamente o braço dela. 

– “Tem comida velha aí?”, o mendigo, na rua, pergunta ao dono da casa, no alto da sacada. “Quê é isso, meu caro. Estou viúvo faz tempo”. 

– O casal de sexuagenários chega ao consultório e o médico pergunta logo ao marido: “Vocês ainda tem orgasmos?” E ele, sem saber responder, transfere a pergunta à esposa: “Maria, ainda temos orgasmos?” E ela, sem pestanejar, responde: Não, só temos golden cross”. 

– Outro senhor de idade acompanhava o exame físico que o médico fazia em sua esposa, também de idade. Ele apalpava no pescoço e perguntava: “Dói aqui?” ela respondia que não. E ele apalpando as regiões dos pulmões e do coração, perguntava: “E aqui, dói?” Ela continuava dizendo não até quando ele apalpava as regiões lombar e abdominal, mas quando ia descer as apalpações, o marido, solícito e taxativo, interveio, dizendo ao médico: “Daqui pra baixo o senhor pergunta e eu apalpo.” 

– Perguntada por uma confidente íntima por que seus muitos filhos eram todos parecidos com o marido, tendo ela como tinha tantos amantes, a mulher sacana e voraz, respondeu: “Acontece que meu barco só aceita passageiros quando já está lotado.” 

– E na instalação sanitária masculina da rodoviária, um cara diz pro outro: “Os três melhores momentos de nossa vida são: “Mijar peidando; cagar fumando; e meter beijando”. 

– No penumbroso leito conjugal: o pai queria, a mãe não queria, o meninozinho no berço ouvia atenciosamente. O pai queria escrever uma carta (era o código que usavam para ludibriar o pequerrucho), a mãe recusava, alegando que sua máquina estava com a fita vermelha. Ele, desconfiado que ela estaria enrolando, insistiu até desistir. Foi ao banheiro, demorou um tempão e quando voltou, ela tinha resolvido, disse que a tinta tinha enegrecido, e que a carta então podia ser escrita. “Agora é tarde”, ele disse. Escrevi a carta à mão mesmo”.