sábado, junho 20, 2009

COMPUTAÇÃO GRÁFICA

Desde que, ainda na juventude, comecei a estudar anotando (década de 50 em Belo Horizonte), devo ter percorrido muitas léguas com os dedos nas infinitas linhas dos caminhos da ignorância para os do conhecimento. Comecei com a leitura da História da Civilização, de Will Durant (12 massudos volumes capa dura de centenas de páginas cada). Na medida que lia, entendia que a ação humana no mundo físico produz dois comportamentos essenciais que se opõem e complementam ao mesmo tempo: o da piedade (poesia) e o da violência (política). Sentia que a relação dos fatos narrados da antiguidade até os tempos modernos não podia passar apenas pelos olhos e pelos outros sentidos de nossa pessoa. E para evitar essa passagem instantânea e a conseqüente evaporação, comprei dezenas de cadernos de páginas pautadas e assim, ao longo de três ou quatro anos transcrevi onde encontrava nas páginas do livro, as passagens referentes aos atos humanos temperados de piedade num grupo de cadernos e os embebidos de violência em outro grupo. Resultado: 10 cadernos de 100 páginas cada, preenchidos a lápis-cópia nos versos e anversos, que estão bem ali na estante, dormindo o sono da empreitada cumprida (e comprida!). Na década de 60, quando trabalhava na CEMIG, depois de dedilhar anos a fio à máquina de escrever, passei a operar na área da mecanografia, com a máquina de cano longo, elétrica, precursora, ao que parece, do atual computador, que hoje é o debulhador e o receptáculo de toda a escrita em todos os seus desdobramentos em forma de e-mails (missivas), blogs (diários), sites (jornais, revistas), arquivos (crônicas, artigos, contos, poemas, livros de todos os gêneros, incluindo generosas enciclopédias). A tal propensão online de contatar (dar e receber) o que há no fundo e na superfície do conhecimento humano. Relutei muito em adotar novidades tão alvissareiras. Para falar a verdade, só desisti da máquina datilográfica quando ela não tinha mais conserto nem consertador. Meus filhos, que, então, já eram peritos em termos de words, windors, google, orkut e da internet de um modo geral, e de tudo o mais que comporta esse mundo virtual de nossos dias, convenceram-me aceitar e adotar esse manejo do menor esforço, que é a tal arte digital na agilização das leituras e escrituras de uma arte que antes era apenas gráfica, ou seja: mais dura e inamovível, mais demorada e inflexível. Meu filho trouxe o computador e a filha criou um blog literário, em que passei a publicar meus textos, que já somam a quase setecentos. O blog é: http://www.lazarobarreto.blogspot.com. Confesso que tive de vencer a instintiva relutância de mudar uma forma de escrita e de leitura longamente eleita – a dos jornais , revistas e livros. Mas não posso nem pensar na morte definitiva dessa forma, já não vou dizer de toda a escrita, mas de toda a leitura. O livro perto dos olhos, a cabeça no travesseiro ou na cadeira inclinada é algo realmente insubstituível. Caso idêntico é o da inaceitável substituição do cinema pela televisão, o que muitos julgavam que ia acontecer e não aconteceu. Uma coisa pode até restringir o campo da outra, mas nunca eliminá-lo. O cinema está aí, vivo e palpitante, depois de dezenas de anos. O livro, da mesma forma, não morrerá. Mas continuo leigo na técnica digital. Mal-mal recebo e respondo aos e-mails de alguns parentes e amigos. Mal-mal digito, salvo e gravo meus textos literários. Quando o trabalho exige alguma habilidade técnica, ah, deixo tudo de lado e volto ao meu feijão com arroz. Tenho um amigo e cunhado, que é perito nessa forma de expressão do pensamento. Ele mora em Manaus e seu nome é José Belém – e o texto dele que dá uma idéia da sabedoria online é o que abaixo transcrevo. INTERNET – VANTAGENS E RISCOS – José Belém. Vejo hoje, após anos a fio de acesso à internet, que seria impossível, talvez omisso e imaturo, não reconhecer tamanha transformação, evolução, crescimento globalizado, aproximação dos continentes, enfim, tudo o que a principio necessitávamos, desejávamos e porque não dizer, merecíamos. Muito bem. Comércio aquecido e multiplicado, distâncias diminuídas, tecnologia compartilhada – e lembremos também dos corações flexados, apaixonados e alimentados virtualmente. Bom seria traduzir virtualmente como pura virtude... Mas deixemos o trocadilho e sigamos enumerando descobertas e acessos. Dúvidas tiradas com um simples apertar de teclas, sites de buscas, e-commerces, sites de relacionamentos e tantos outros gêneros se multiplicando com a mesma velocidade com que se multiplicam os multimilionários, geralmente precoces – o mundo se tornou precoce, imediato e até frio: no meu entendimento posso dizer mercenário e cruel. Viremos a página e enxerguemos a outra face. Internet: acesso ilimitado à pornografia, até a pior delas que é a infantil, deixando nossos filhos expostos e muitas vezes impostos por manipuladores virtuais de comportamentos modificados, de vidas comprometidas. Já não se consome livros como antes, bibliotecas são recortadas e coladas. Hachers, piratas virtuais, novas gerações de gansgsters... É isso. Tempos modernos, globalização – nem tudo o que necessitávamos, nem tudo o que desejávamos: será que merecíamos??

sábado, junho 13, 2009

OS SENTIDOS DA PAIXÃO

Li o calhamaço (512 páginas) de diversos autores, em outubro de 1992. Uma leitura cativante é como uma fase memorável da vida: a gente assimila, dilui, arquiva na memória que é um armário fechado que precisa ser aberto de vez em quando ou constantemente. Se o leitor assimila a novidade, ele logo deixa de ser novidade, a menos que seja realmente sólida e quente. O que a consciência capta o inconsciente recolhe na parte viva ou morta do arquivo vivo ou morto. O livro supracitado está sempre ocupando um lugar privilegiado na estante, onde brilha apesar das nódoas e cáries da poluição ambiental de qualquer lugar de nossa cidade de ares envenenados. De tanto vê-lo envolvido na chusma de névoas, resolvi reabri-lo e logo as anotações saltaram das margens das páginas para meus olhos e dedos. Meu gosto de transcrever não se fez de rogado e renovo aqui a frescura das palavras de tantos autores do livro. Renato Mezan, na página 127 diz que “o narcisismo é uma parte da vida sexual de todos nós” – e lembra que Freud o incluiu entre os avatares da libido. O amor com que amamos a nós mesmos é um amor sexual, e a prova disso está na gama de fenômenos ligados ao auto-erotismo, o Renato acrescenta. Paulo Leminski, na pág. 292: “não existe nenhuma disciplina científica que tenha o amor como objeto. O amor não é estudado nem pela psiquiatria, nem pela psicanálise, nem pela psicologia social. O amor é uma coisa que você vai ter que procurar nos artistas, na televisão, no cinema, e, principalmente, na poesia”. “Às vezes a gente sai do amor” (diz Luzilá Gonçalves Ferreira na pág. 367) “como quem saiu de uma catedral, redescobrindo o mundo aqui fora com os olhos renovados. O ato amoroso, vivido em plenitude, obriga os amantes a concentrar em si mesmos tudo aquilo de que são capazes, passível de germinar com a força das plantas na primavera”. Na página 378, Jorge Coli cita o italiano Fogazzaro, autor do romance “Malombra”, cujo personagem, um exilado alemão, “confessa que foi expulso do colégio por ter amado o vinho, expulso da família por ter amado demais as mulheres e expulso da própria pátria por ter amado demais a liberdade”. Na página 463 é a vez de Sérgio Paulo Rouanet falar mais diretamente da paixão: “Ela se coloca na trilha do Iluminismo, que mais do que em nenhum outro período valorizou as paixões”. Concorda com Diderot, que afirmou: “sem as paixões, nada existe de sublime, nem nos costumes nem nas obras humanas”, e com Helvetius, que ensina que “as paixões são no mundo moral o que o movimento é no mundo físico: ele cria, destrói, conserva, anima tudo, e sem ele tudo está morto. Do mesmo modo, são as paixões que vivificam o mundo moral”. AMOR COM AMOR SE CASA. Exercitando sempre o culto da leitura das publicações literárias de nossas minas gerais, sinto-me agraciado, diante do proveitoso conhecimento da plêiade de poetas e prosadores de Mariana, através das publicações de livros, sites e do jornal ALDRAVA, que é o porta-voz na entrada de toda sintonia, de toda sinfonia dos dois lados do eterno Ribeirão do Carmo, alardeando as éclogas ecléticas e os matizes pluralistas, as pastorais e os florilégios de tanta beleza exposta. E agora os haicais, ah os haicais como os de J. B. Donadon-Leal, publicados no livro “Vereda dos Seixos”, oferecidos, apaixonadamente à musa de sua inspiração, sua esposa, a também poeta nas vinte e quatro horas de todo o dia do embelezado cotidiano. Pincei alguns, do poeta à musa, do amado à amada. Ei-los: Veludo nos lábios, pérolas negras nos olhos. Encarnação de anjos? Com seus gestos suaves. Borboleta em pleno vôo. Fugace mulher. Bolinhas de vidro: - um par de olhos na janela e eu louco por ela.. A porta na espera por ti permanece aberta. A noite é que chega! Onde anda você? Gritei desvalido ao mundo: só o vento murmura.

A JUVENTUDE E A CULTURA

Pela pesquisa genealógica que publiquei no livro “Família Oliveira Barreto”, constatei que a Mayra Belém é, além de sobrinha de minha esposa Inês Belém Barreto, pelo lado materno, é minha prima pelo lado paterno. Sua ascendência até a décima geração paterna é a seguinte: Filha de Orlando Tavares de Brito e de Lúcia Belém; neta de Isaura Tavares e Artur Brito; bisneta de Geraldo José Tavares e Maria Luiza Melo; trineta de Esmeraldina (Dona Naná) Cândida Tavares e José Pedro Tavares (Zequinha Tavares); tetraneta de Necésio José de Oliveira Barreto e Joaquina Rosa de São José; sexta geração: Antônio José de Oliveira Barreto e Maria Arcângela Tavares; sétima geração: Bernardo José de Oliveira Barreto e Josepha Maria de Jesus; oitava geração: Antônio José de Oliveira Barreto e Anna Joaquina Cândida de Castro; nona geração: Faustino José de Castro e Rosa Angélica da Luz; décima geração: portugueses que não vieram para o Brasil. Mayra: moça prendada e instruída (curso superior e de pós-graduação) em Comunicação e Publicidade. É, também, dotada de predicados artísticos e intelectuais, sendo atriz inata e cantora idem, com aplaudidas atuações nos palcos da cidade. Conhecendo-a tão bem em família, só agora soube de seu pendor e talento literários. Sabia de seu amor à leitura e escritura de bons textos, mas só agora obtive a prova de sua capacidade de transformar em poema a poesia de tantos instantes da vida. A prova é o poema que transcrevo abaixo, o primeiro que ela leva a público, através de meu blog (http://www.lazarobarreto.blogspot.com). Seu título é: ALTERIDADE - Mayra Belém. Alma virgem no campo dos sentimentos, toma para si o que é impossível negar. Abra o coração para a intimidade essencial. Cubra-se do manto da eternidade. Mas revela-se para o amor profano. Expulsa-o do seu íntimo. Reconhecendo-se dono da própria existência. Há um momento de entrega total que só se reconhece no olhar e nas atitudes gratuitas. Distante, bem distante de inverdades e fraquezas humanas a vida está inteiramente desvairada pela racionalidade necessária. Cumpra-se. Compartilhe-se. Descubra-se no propósito de outrem. A felicidade é esta. Desprovida de segredos aleatórios...

sexta-feira, junho 12, 2009

À NOITE SONHAMOS

Parece depois de certo tempo da velhice que o passado assume outra forma de ser. deixa de ser uma simples seqüência. Deixo que falem por mim as aves do terreiro, assim eu pensava toda vez que chegava à casa de minha mãe, na roça, diante da infalível pergunta dela: “Por que está tão calado?” Até quando o ser humano agüenta o peso realista da violência social que o assalta nas vinte e quatro horas de cada dia de interminável purgação, sem endoidecer muito ou pouco? “Vai vai vai”, dizia o pássaro na mangueira. O ser humano precisa mais do sonho do que da realidade.

BIOGRAFIA SUCINTA

Sempre fui sério e tímido. Nunca aprendi a dançar. As moças da juventude me flertavam. Nunca consegui aproximar-me delas. Lembro-me que era bonito e inteligente. Sempre escanteado e solitário. Do princípio ao fim dos dias de vida.

quinta-feira, junho 11, 2009

AMEAÇA (OUTRA) DE DESCARACTERIZAÇÃO

A ameaça absurda de transposição dos trilhos ferroviários é só o que faltava para aumentar o volumoso escarcéu da administração pública divinopolitana, autora, ao longo dos anos, de lamentáveis hecatombes de valiosos ícones históricos. Se Divinópolis é hoje um pólo regional em todos os sentidos, por ser uma das maiores cidades de Minas e do Brasil, sabemos que toda essa amplitude foi alcançada principalmente pela implantação, aqui, da ferrovia. Se tal façanha não tivesse acontecido, o que seria, hoje, da cidade? Uma cidade igual a milhares de outras – e nunca esse pólo regional que bem conhecemos. A ferrovia, com suas ramificações que vinham de São Paulo, passava por aqui, entroncando-se com a linha que vinha de Belo Horizonte – e daqui estendia-se aos rincões do Sul de Minas, do Triangulo Mineiro, do Vale do Jequitinhonha, atraindo as fontes de riquezas da modernidade. A industrialização com o cabedal da mão de obra especializada, a educação com a variedade de cursos, a comercialização com o trânsito de seus bens, a acumulação do capital e do trabalho numa economia de mercado consistente há quase um século.... Em nome de toda essa virtuosa herança, apelamos para a consciência dos presuntivos donos do poder público municipal: não tirem os trilhos de onde estão, mesmo inativos eles representam, sempre, um meio alternativo de transporte, de muita importância no passado, no presente e no futuro. Atentem para o fato inquestionável de que as cidades e regiões populosa como as de Belo Horizonte, Rio de Janeiro, tantas de Portugal, Alemanha, França, Bélgica, Itália, são beneficiadas pela ação das bucólicas e eficientes locomotivas no trabalho e no lazer da indústria e do turismo. Para melhormente conceituar o que acabo de escrever, transcrevo trechos (páginas 63 e 64) de meu livro “Memorial de Divinópolis”, publicado em 1991: “A mão de obra industrial que veio com a estrada de ferro criou uma potencialidade empresarial que floresceu nos anos seguintes. Os técnicos do século XX viraram a página das provisões de cargos e ofícios. Da roça ainda vinham os balaios, as gamelas, o fumo de rolo, o sabão preto e a rapadura; do litoral os tropeiros não mais traziam a última moda do vestuário, o último passo de dança. Os especialistas das novas modalidades chegavam de São João Del Rei, de Ribeirão Vermelho, de Cruzeiro, de Paracatu, de Carangola. O ferroviário era o homem lido e corrido. Estagiava nas estações, perpassando a escala de serviços, perfazendo o rodízio geográfico das temporadas. Podia vir de Passa Quatro ou de Ibiá ou ir daqui para Perdões ou Azurita e depois retornar com alguns anos a mais nas costas, alguns filhos nas cadeiras, algumas promoções na carteira de trabalho. A RMV (Rede Mineira de Viação) inaugurava na região a sistemática funcional de uma grande empresa, despertando a consciência profissional dos trabalhadores, transformando-os de simples jornaleiros sem vínculos empregatícios a homens de direitos assegurados em contratos coletivos de trabalho, promovendo-os, por assim dizer, de roceiros a operários. O ferroviário tinha diferentes funções, cargos e salários: feitor, mestre de linha, agente, telegrafista, guarda-chave, foguista, maquinista, torneiro, frezador, soldador, fundidor, caldeireiro, montador, eletricista, bombeiro, serralheiro, carpinteiro, desenhista, pedreiro, etc. Até então a cidade desconhecia uma gama tão rica de habilidades funcionais, agora a seu serviço nas horas vagas da labuta na Rede Ferroviária. O nosso conceito de cidade operária nasce aí. Tempos depois, na implantação do parque siderúrgico, a mão de obra disponível não dependeu de dispendiosas reciclagens e deslocamentos. A sua Escola Profissional, que funcionou de 1942 a 1972 (foi precursora da atual Escola do SENAI), tinha a finalidade de formar artífices para seus próprios quadros funcionais, mas a capacidade formadora era maior do que a demanda de novos técnicos: então muitos iam trabalhar nas indústrias locais e nas de outras cidades. Mas chegou-se, depois, a um ponto que praticamente todos os encarregados de serviços gerais e chefes de oficinas eram ex-alunos da citada Escola Profissional. A Oficina da estrada teve sua construção iniciada em 1910, foi concluída em 1917 e no ano seguinte era administrada por Aquiles Lobo, Manoel Carregal, Sideney Martins, Pedro Silva e Oswaldo Fernandes. Sua área construída media 106.595 m2, da qual 30.780 m2 eram cobertos. Foi considerada uma das maiores e mais bem equipadas da América Latina, montando, desmontando e reparando todas as locomotivas a vapor que percorriam os trilhos das chamadas estradas de ferro de Minas Gerais. Fabricava peças de reposição e até as de requisição informal, para atender emergências da própria ferrovia e também as carências dos empregados em suas moradias na cidade. Os técnicos conseguiram renovar o processo de fabricação de rodas fundidas, criando o know-how aproveitado depois pelas ferrovias de todo o País. O Sr. João Morato orientou a fabricação de locomotivas (aqui mesmo): uma de quatro cilindros, em 1920, que não deu certo; e outra em 1941, chamada de “Carmem Miranda”, que deu certo – e passou a rodar nos trilhos das linhas então existentes. No ano seguinte foi construída a que chamaram de “Dircinha Batista”. “A gente fazia a maioria das coisas por criação da gente mesmo – e dava certo”, ele, o João, chegou a dizer. Em1942 a Oficina da cidade de Cruzeiro (São Paulo) foi desativada e 90% do seu pessoal foi transferido para Divinópolis. O número de empregados, só na Oficina da Rede, subiu de 650 para 900 – e o número de Turmas aumentou de 22 para 35” (tudo isso na área administrada pela Agência de Divinópolis, agora ameaçada de extinção.

terça-feira, junho 09, 2009

O OPERÁRIO DESEMPREGADO (*)

“Deus fez o homem à sua semelhança; Ele o criou à sua própria imagem” – Gênesis 1-27. Vergado ao peso dos ásperos tempos, ele se vale da ferramenta que é o seu corpo e fita, desencantado, o vazio circundante. A velhice prematura desfigura-lhe o rosto, que sofre a invalidez das pernas e das mãos desocupadas. Quem terá sido o consciente malfeitor que sufocou sua indignação, qual foi a máquina que assim o amansou no curral de sua mísera favela? Quem é o responsável por descolorir os olhos de sua esposa e de seus filhos indigentes? Quem apagou o antigo clarão de sua mente, agora tão esbodegada? É esse o ser que Deus criou para espelhar a beleza de Sua imagem, a verdade de Sua semelhança? Para proteger os elementos da natureza e no caminho das estrelas aventurar-se? É essa a criatura destinada a captar o tempo e esgotá-lo, sem esgotar-se? É esse o sonho de Deus, que virou o pesadelo de Deus? Da sacada ao último vórtice do inferno não há visão mais terrível do que essa, mais prenhe de denúncias contra o erro, mais prenhe de maus presságios contra o abuso, mais prenhe de ameaças contra o mundo inteiro. Um abismo se abre entre ele e Platão. O que vale o frêmito das plêiades em face ao atual desamparo e desemprego e luta inócua dele, pobre coitado? O que vale o rasgo fosforescente da aurora, a gestação poética das rosas num jardim a ele hoje interdito? Por esse vulto sem aura os tempos repressivos espionam. E, esquálido a lutar contra o imobilismo, ele é o exemplo cabal da morte em uma vida assim inerte. Por seus lábios murchos e descorados, toda a humanidade traída e deserdada clama surdamente aos juízes da terra, um clamor com o timbre da profecia ameaçadora. Ó empresários e políticos de toda parte: o fruto de vossa gestão administrativa é esse homem encarquilhado, tão desfigurado ao desqualificar-se? Quando devolvereis a esse trapo vivo a humanidade, a esses olhos mortiços a luz, a esse espírito abatido a substância? Quando a música entrará de novo em seus poros e o sonho em seus desejos, desagravando as infâmias, as perfídias, as desgraças? Ó especialistas do enriquecimento ilícito, ó puxadores do cordão da corrupção institucionalizada: como o futuro se dará com o pauperismo desse tipo de servilhismo tão sub-humano, quando com ele, no crepuscular apocalipse, se defrontar? Que respostas terá para suas perguntas quando o desespero mover sua revolta? O que estará reservado aos privilegiados de hoje (os mesmos que o reduziram à última baixeza de seu atual estágio), quando esse homem, rompendo o mutismo secular replicar bem alto, com a força que ainda lhe restar? 

 (*) O texto acima é uma versão em prosa, em termos de paráfrase, do poema “O Homem Com a Enxada”, que Edwin Markhan (1852-1940) escreveu, depois de ver o quadro famoso (de título idêntico) do pintor francês Millet. A tradução do poema em língua portuguesa é de Oswaldino Marques, publicada na edição bilíngüe de “Poemas Famosos da Língua Inglesa”, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, RJ, 1956.

O LIVRO DE POEMAS

O tronco da sucupira que tomba no cerrado fratura, no âmago, a extensão da mata virgem. A história lendária e mítica do trabalho rural. A história sangrenta e vária da população urbana. Tudo que tenta mover-se neste livro brotou do chão como um pé de romãs, alastra no chão como os pés das pessoas na cadência das enxadas no eito da roça: o círculo de ecos a vitamina da fé.

AS INTERROGATIVAS EXCLAMAÇÕES

O que há de bom entre o sanhaço e a andorinha e de mal entre o porco-espinho e a capivara? Alguma antipatia entre o mico-estrela e a borboleta, entre o caxinguelê e a cotovia? O que há de amável entre o arco-íris e a chuva temporona? E entre o pomo de Adão e a maçã de Eva? E qual é a maldição que paira no fatal encontro da virgem inofensiva e o tarado monstruoso? Quantas peras já caíram dos pés de romãs? E quantas gotas de chuva do sol plúmbeo? O amor é a folha rasgada de uma carta não remetida? A juriti e o curió não se dão as asas? Para qual das galinhas de nosso terreiro o galo do vizinho manda seus melódicos, clamantes apelos nas madrugadas serôdias? O que há em comum entre a puta que pariu em meio às fezes e urinas e o gigolô desalmado nas ruas emporcalhadas da zona boêmia da mais triste cidade? Por que estão nos confins do desamor, o gato no muro e o cão na calçada? Até quando, até quando o homem e a mulher não cansarão de procurarem, debalde, um ao outro?

domingo, junho 07, 2009

O DIA DESTRUIDO

O dia ignóbil chega aos becos do arraial. Traz em seus ponteiros o enfeitiçado que vomita bílis, torresmos, rãs e cavalos de maminhas. E também as aldongas e domingas com seus ungüentos e poções e ervas daninhas orvalhadas, que curam quebrantos e maus-olhados, em troca de rapaduras, mocotós e algumas zombarias.... Logo depois um dos gaviões da umbela leva nas garras a casinha de bambus da Viúva Odete. Uma flor regada no sereno espeta as pétalas nos mastros de cocanha dos rituais do Reisado. O possesso, que vomitava capim azul e farelo de madeira sobre o pragmático segmento social do reles arrivismo, estaria a vituperar o imperialismo das republiquetas latino-americanas. Ou a escoimar acintosamente os sortilégios dos adivinhos, com açoites e baraços? No açougue da rua principal do arraial a rês e o suíno esquartejados (pendentes em ganchos como asas sinistras), exibem debaixo das vísceras e em torno das gorduras e do sangue derramado os fariseus contando suas trinta moedas.... No pináculo da glória nefasta, resultou, cabisbaixo, o dia ignóbil no ruado agreste do arraial, no estreito formato de uma estrela vermelha a chover os fogos das lágrimas e dos suores dos falidos amores de uma antiga paixão.

VOCAÇÃO POÉTICA

Às vezes num dos momentos mais endurecidos do ineditismo, o escritor preterido pela mídia contemporânea, cansa de tanta masturbação mental, pergunta a si mesmo se não seria preferível ir para a roça plantar batatas em vez de acumular versos em pilhas de estrofes, arquivar (soterrar) originais impublicáveis.... A pergunta fere os brios, cala fundo no desgosto do amor próprio. O que então fazer com as caudalosas palavras, o estro afinado, a inspiração sempre à flor da pele? Jogar os brindes em forma de poemas na lixeira? Embasbacar, enrustir, coçar o saco e a cabeça? Engolindo a contragosto as irônicas interrogações, o ingênuo peregrino do amor não-correspondido, trepa nas tamancas da indignação e decide: nada de desistir no meio do caminho, nada de apagar a chama dos olhos diante de uma paisagem instigante. Nada de desistir depois de tanto caminho andado. Se você plantar os grãos em terra estéril, o tempo passa. Se não plantar, o tempo igualmente passa. Então por que não semear seus abrolhos, mesmo se a terra está momentaneamente sáfara?

sábado, junho 06, 2009

ALGUNS DITOS, BEM DITOS

- Sofrer passa.Ter sofrido não passa nunca. – Leon Bloy. - Ingmar Bergman celebra os prazeres simples e aponta os tormentos complexos. – Kim Newman. - Um muro, quando cerceia, dá a miragem da profundidade. – Marcel Proust. - Ó fantasmas perdidos, chorados pelo vento, voltai! – Thomas Woolf. - Levar um pensamento até o fim é como colocar n`água um bastão: sua imagem entorta na hora, ainda que ele continue direito na sua concretreza. – Adélia Prado. - A brisa que se desprende do vento para entrar na casa, vê dentro dela o que pode ser extinto pelo tempo (as tintas, os móveis, as frutas, os vinhos), mas quedando-se na entrada de um quarto de dormir, reconhece que tudo o mais da casa pode findar e perecer, menos o que repousa ali dentro. – Virginia Woolf.

CARTA ABERTA AOS POLUIDORES

Diante da inclemência do baixo índice pluviométrico (às oito horas da manhã o sol já é uma brasa a sapecar nossos poros; ao meio-dia já resseca e exaure o líquido, agora incerto de nosso corpo – e cada frente fria anunciada já vem com sua traseira queimando). Lembro-lhes, caros inimigos da natureza, que vocês podem ajudar os ecologistas, com um cuidadinho de manhã, outro de tarde e outro de noite. Tenham piedade da atmosfera, que não mais controla a atividade solar – essa descomunal, aprazível e danosa bola de fogo, que hoje é um cobertor que começa a asfixiar todo sinal impúbere de vida na já descabelada crosta terrestre. Não joguem água fora nem lixo no rio; não façam loas à monocultura, ao desmatamento, ao assoreamento: não esmurrem a inocência das migalhas nem risquem o pauzinho de fósforo nas macegas. Tenham dó da atmosfera, que hoje não controla mais a atividade solar nas planilhas do bem estar social das nuvens, no limbo vulnerável. Tenham piedade das formigas vítimas tontas de tantos seres desumanos (elas, coitadas, que não sabem olhar para cima); não atirem pedras nas caixas de marimbondos, não esmaguem as minhocas, as tanajuras, as aranhas e siriricas: ao contrário: amontoem grãos de terra ao redor dos pés de milho e de quiabo e de abóboras; voltem, lampeiros e alegres, a andar a pé nas ruas e estradas, livrando o ar de tantos venenos: dêem um lenitivo aos próprios olhos (os ossos, as vísceras, as carnes e peles agradecerão); não sujem as fontes e correntes do que vai fluir; façam uma sincera reverência à clorofila e à fotossíntese; apague a luz elétrica quando ela começa a ferir a saúde da treva; desliguem os motores da balbúrdia inconseqüente; respirem o ar azul do verde ambiental.... Abençoem, como São Francisco de Assis, a biodiversidade: afinal de contas e de coisas vocês também merecem o beneplácito da divina natureza. Façam o possível para ajudar as pessoas de bem, que não matam as capivaras, as saracuras, os jacarés: sejam felizes de agora em diante, sabendo que somos irmãos dos vegetais e dos minerais e dos outros animais do planeta. Não deixem que as hordas de vândalos cortem as árvores de nossa vida, plantadas na naturalidade de seus hábitos alimentares e respiratórios, bem ali nos quintais, nas ruas e na vastidão territorial, em todos os quadrantes e círculos, plantadas para salvar o mundo do esturricador, do finalíssimo apocalipse, que já se anuncia nos estrépitos de tantos avisos prévios.

TEMPO, TEMPERO

Não tenho mais a juventude. Não posso mais jogar futebol? O passado avança no futuro, o futuro que retroage e inquieta. Cito em voz baixa a metáfora desta mutável decadência. Tento controlar remotamente os pontos de atrito e de coesão, entre a infância e a velhice. Não tenho mais noites a perder. A vida é mesmo uma criança: gosta, mas tem medo.

AMOR E SEXO

A junção dos lábios bucais em linhas horizontais abre o parêntesis ( e a dos lábios vaginais em linhas verticais fecham o parêntesis ). No espaço e no intervalo do diálogo a linguagem do amor desabrocha, o mundo acaba e recomeça.

AS PARTES DA CASA

Eu estava longe e doente e pensava sobre o que me restava lá em casa: a escassa luz da natureza nas paredes, a casca de laranja a torrar no sol do quintal. Um choro antigo de criança, sim. E também o riso nas frestas e simetrias. A flor egressa do jarro na pia da cozinha, a árvore que retém a chuva e o fogo. O pano de chão no rodo, os pios alados dos curiós no lado de fora, a solidão na insônia, enfim desligada das outras coisas de dentro e de fora. São as partes da casa. Também você, mulher casada comigo, com tudo que é seu em você (os passos na sala, os ruídos no quarto, a bunda apertada na calça inelástica), faz parte da casa. Adrenalina, queira ou não queira.

OS TRAÇOS PESSOAIS

Ele e eu, porventura, somos o mesmo? Sei que ele voltava de longe, ao chegar onde eu estava, arrependido do erro que não cometera. E farto de tanto desamor, ele quebrou a cabeça nas palavras cruzadas das simplórias mamparras. Malgrado a zoeira social, ele consegui decodificar o silêncio da solidão, que se refez, redondamente. Como sufocar as injúrias sofridas? Afinal de contas e de dívidas, os rogos de sua inocência poderiam ser levantados? Ele estava arrependido (ao regressar de muito longe de si e do outro) dos erros que não cometera nos dias das indelével desventura gélida, intrínseca, de dentro e de fora de sua pessoa descabida.

sexta-feira, junho 05, 2009

SITUAÇÕES INVOLUNTÁRIAS

Os versos que se perderam na surdina, entre o clarão e a névoa dos instantes lembrados e não colhidos... A lembrança é coerente, o olvido é indeciso. O som de um violão ou de uma flauta pode ser reconhecido (audível, palpável) numa voz humana, se bem afinada. Assim como os olhos que flertam e não simplesmente olham. A escuridão do tempo extirpa até a memória do antigo amor, que julgávamos eternizado? A crosta terrestre boiando sobre o magma... A colisão dos asteróides aproximados... O encontro fatal das placas tectônicas do subsolo... O vulcão a explodir, a liberar seu gás carbônico, seu dióxido de enxofre, a brasa viva... Viver é muito perigoso, mesmo! O medo é o novo nome do país? Se saímos de casa, somos assaltados; se ficamos em casa, estamos aprisionados. O vento sacode as árvores do quintal: pode ser o sopro de nossos obsessores da baixa atmosfera, que azucrinam nossas idéias, aguçam os nossos males, disparam infartos e derrames contra a nossa debilidade? Se ainda estamos neste baixo astral de terra magoada, amassando o barro do dia enfadonho, expiando culpas no cartório e pecados na sacristia, é porque não somos flores que se cheirem. Somos o ranzinza caído e pisoteado: o torpe vencedor ou o inocente vencido? O dia longo neste envoltório de gazes densos atravessa o rio das fezes e das urinas... Por que a morte definitiva não vem logo de uma vez? Em seu lugar vem o tempo retrógrado, uma eternidade em pedaços esfarrapados.

O CARNAVAL EM SEUS MÚLTIPLOS PLANOS (*)

A leitura do livro organizado por Maria Laura Cavalcanti e Renata Gonçalves reafirma, a meu ver, uma das constantes comportamentais do brasileiro: descontraído, às vezes inibido e até insípido, irreverente e malicioso, descompromissado, expansivo e ao mesmo tempo recalcado, desnutrido de outras complacências na maior parte do tempo – e mesmo assim sabe, naturalmente, aproveitar a licença poética da carnavalização periódica que tanto o influencia, mesmo na dureza do cotidiano de toda sua vida. Exemplo da perfeita descontração narrada na letra do samba de Assis Valente: “Vestiu a camisa listrada e saiu por aí. Em vez de tomar chá com torrada, ele tomou Parati. Levava um canivete no cinto e um pandeiro na mão, e dizia pro povo que sorria: “Sossega Leão, sossega Leão!” Tirou seu anel de doutor para não dar o que falar. Saiu dizendo: “Mamãe eu quero mamar, mamãe eu quero mamar, mamãe, EU QUERO MAMAR!!!”. Na Apresentação das Organizadoras, lê-se na página 10: ( nas mãos do carnavalesco) “o rito trabalha – agrega, desagrega, transforma e reagrega pessoas e grupos; inverte, relativiza ou acentua papéis sociais; suspende, transcende ou espelha, ainda que de modo distorcido, valores críticos. (...) O problema dos rituais, já nos dizia Marcel Mauss, conduzindo-nos ao cerne da vida simbólica, é o da multiplicidade dos sentidos simultâneos”. Depois de um necessário retrospecto até o século XIX dos festejos de Nice, de Nova Orleans e de Montevidéu, calcados em bases lúdicas e musicais como também turísticas, os autores assumem o trabalho de esclarecimento dos cruciais e gloriosos caminhos do carnaval carioca, sem duvida alguma o mais movimentado e cultuado do mundo. Toda a relevante e extensiva temática da estética multifacetada, dos influxos recíprocos entre as culturas tradicionais e hegemômicas, as glosas épicas e os esquetes cômicos, tudo que paira no ar da festividade passa no crivo dos autores: as decorações de ruas e de salões, os préstitos prenunciando a expansão das Escolas de Samba, as generalidades e os pormenores, os adereços e a uniformidade. Foi a partir de 1982 que as decorações das ruas assumiram o grandioso, o por assim dizer fabuloso espetáculo do Sambódromo. Surge então o tempo risonho e festivo, de tolerância e renovação no qual, segundo Roberto DaMatta, “o mundo parece abrir mais portas do que aquelas pelas quais efetivamente podemos entrar”. “A cidade do Rio de Janeiro tem, em suas Escolas de Samba, um importante ponto de convergência e sociabilidade de diversificada amplitude” – afirma Nilton Silva dos Santos, na página 153. O equilíbrio entre a leveza e o pesado, o samba em pé e o visual das alegorias e fantasias, deixa o espectador atônito, embevecido, cheio de risos no coração e aplausos nas mãos. “Os passistas são, ao mesmo tempo, mágicos ou invisíveis, estrelas ou coadjuvantes” (pág. 195). “As mulheres devem sambar na ponta dos pés e rebolar muito, elas não devem pular nem colocar a mão no chão para enfatizar sensualidade. Os homens sambam com o pé inteiro no chão, até mesmo com os calcanhares, podem executar malabarismos no solo, mas não devem rebolar, sublinhando agilidade e destreza” (pág. 207). “O samba é o tempo de cantar e de dançar as mágoas da desilusão amorosa ou de dificuldades conjugais de modo festivo” (pág. 214). “Ao se fazer contente, quem samba pode tornar o outro feliz também” ((pág. 216). “A principal característica do samba do passista é a vivência da tensão entre a contrariedade e a alegria, criando ambigüidades de intenções e sentidos, ao mesmo tempo em que cria potencialidades de relacionamento” (pág. 217). Renata de Sá Gonçalves afirma com a mais lídima propriedade, na pág. 223: “Técnicas corporais distintas compõem um repertório coreográfico que engloba todos os passistas, os casais e mestre-sala e porta-bandeira, a comissão de frente, as ritmistas, as baianas, os componentes das alas coreografadas, além dos demais integrantes, como os diretores da harmonia, que gritam, organizam e brincam o carnaval”. Em cima dos suntuosos carros alegóricos, voltados para a visualidade e a exuberância posicionam-se os “destaques, com fantasias e esplendores grandiosos”. Ronald Caly dos Santos Ericeira, na pág. 254, fala sobre a preeminência dos sambas-enredo: “percorrendo a bibliografia disponível observo que os sambas-exaltação ainda não foram examinados atentamente pelos pesquisadores acadêmicos ou folcloristas”(...) “Tinhorão (1997) cita a marcha-rancho, a batucada, o batuque, o samba-canção e a bossa nova como variações que aconteceram no ritmo original do samba a partir dos primeiros anos da década de 1930. Em suas assertivas, cada segmento social teria adotado predileções por um estilo de samba: os negros e suburbanos pelo samba do morro, que abrange o samba-enredo; a classe média baixa pelo samba de gafieira; e as camadas altas e eruditas pelo ritmo romântico do samba-canção. O autor não menciona o samba-exaltação como um subgênero do samba”. A fonte de financiamento da preparação das 12 Escolas do Grupo Especial para os desfiles no Sambódromo é exemplificada nas páginas 106 e 107: vendas de ingressos, 57%; transferência do governo, 21%; contratos a crédito (contabilizados), 11%; contratos a créditos (não contabilizados), 11%. Nas páginas 191 a 123, a antropóloga Maria Laura expõe detalhadamente o assunto no capítulo “Festa e Contravenção: os Bicheiros no Carnaval do Rio de Janeiro”. Possuída do descortino e da acuidade que tem demonstrado em seus trabalhos sobre a cultura popular brasileira, ela aborda “o sentimento de desconforto geral diante da inédita denúncia” (de que) “uma das grandes escolas de samba teria subornado jurados do desfile de 2007”. (...) “Mais do que isso”, ela acrescenta, “essa suspeita dera origem a uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Câmara de Vereadores do Município, a CPI do Carnaval, e acoplava diversos problemas de ordem criminal extra-festiva”. O texto da página 92 e seguintes fala do “sujo na festa da beleza, do sério na festa da brincadeira, entrando numa zona em que o perigo, que é sempre também simbólico, torna-se mais ameaçadoramente real”. O texto fala também da “profunda ambivalência provocada pela ostensiva presença, a um só tempo produtiva e poluidora, da rede clandestina do jogo do bicho no carnaval carioca”. A autora, em destemido posicionamento intelectual, vai fundo no esclarecimento dos meandros escusos dessa organização criminosa, expondo à luz da verdade comprovada pela CPI o que na treva medrava, obscurecendo o belo renome de uma já histórica manifestação popular (de tão fina arte, de tão arraigada cultura legítima, de tanta contaminação efusiva de reconhecido valor estético que visa alcançar a beleza e a verdade do ser humano subjugado ao longo do tempo às intempéries de um realismo às vezes difícil de assimilar). Trabalho assim fiel à verdade dos fatos e à beleza dos sonhos merece os mais calorosos aplausos da imensa parte da população que ama a arte popular e que é amada por seus honestos e verdadeiros produtores. 

(*) Autores do livro publicado pela Aeroplano Editora (FAPERG) Rio de Janeiro, RJ, 2009, organizado por Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti e Renata de Sá Gonçalves. Ambas participam da coletânea com os textos supra mencionados. Os demais participantes são: Felipe Ferreira, autor de diversas obras sobre o carnaval; Fred Góes, idem, idem; Liliane Guterres, idem, idem; Helenise Monteiro Guimarães, doutora em artes visuais; Ricardo José de Oliveira Barbiere, mestrando em antropologia; Nilton Silva dos Santos, doutor em antropologia; Aline Valadão Vieira Gualda Pereira, mestre em artes; Simone Toji, mestre em antropologia; Ronald Clay dos Santos Ericeira, doutorando em antropologia; Gabriela Cordeiro Buscácio, mestre em história; Nilton Rodrigues Júnior, doutorando e mestre em antropologia.

terça-feira, junho 02, 2009

FILMES E LIVROS

Ensaio Sobre a Cegueira. Filme de Fernando Meireles, baseado no romance de José Saramago. A tela alternando na escuridão e na brancura, tateando na procura do “clima” da cegueira generalizada das pessoas na cidade metropolitana. Aos poucos surgem as constatações e ilações do espectador interessado na apreensão do que se quer dizer: as necessidades básicas e os instintos primários se digladiam; não há sensualidade na violência, o sadismo é um aborto da natureza; o viés erótico seria o da limpeza psíquica e não no afundar-se no lamaçal social; o masoquista é um abstêmio nato, que insiste em se clonar, copulando. A cegueira não leva à parte alguma, rodopia na solidão, como uma piorra no ar da escuridão. O sofrimento é algo interminável: quando começa na infância, vai com a vítima até seu último suspiro. Assim é que o mundo acaba para quem morre. O estômago, órgão físico, é mais carente que a libido, órgão abstrato. Entre os cegos não há feiúra, ou tudo é feio. Shakespeare já dizia que “não pode esquecer, quem cego ficou, o que os olhos viram”. Se o pior cego é o que não quer ver, o melhor é o que quer ver, sem ver? Contos da Lua Vaga. Direção de Kenji Mizoguchi. Fábula do século XVI no violento Japão feudal. Drama, fantasia, suspense, insinuação sexual, violência imoderada. Os letreiros são imagens. A chibata é uma palavra existencialmente japonesa? A alma não é espiritual, é apenas corporal. E é sempre noite na miséria cotidiana. A violência produz alguma beleza, quando luta contra a morte? Sim, sim, desde que não entre na carne até à medula. “O nosso mundo é um domicílio temporário”, canta a camponesa em sua lavoura de cada dia. Linda como é, mesmo assim apesar dos infindos e infinitos percalços. O adeus de uma criança é um parágrafo do inclemente texto da eternidade. “O amor é a seda mais fina, que pode mudar e enfraquecer”. A fonte para o banho do amor é o corpo de cada um dos amantes. Rosto a rosto, sexo a sexo: a felicidade momentânea! Depois vem a promiscuidade da gandaia – e a alternativa mais exígua: o valor da vida ( o amor) é o preço da morte, cuja sombra paira no rosto das pessoas. A vida é uma viagem sem volta? A criança é uma lágrima cintilando nos olhos do pai e da mãe? Depois vimos em DVD os outros filmes (a Delta Locadora da Praça da Catedral tem mil e um dos clássicos do cinema desde a década de vinte): “Um Barco e Nove Destinos”, “Suspeita”, Sabotador”, “Agonia de Amor” (todos do mestre Hitchcock), “Alma em Pânico” (de Otto Preminger), “Ama-me Esta Noite” (de Rouben Mamoulian), “Trágico Amanhecer” (de Marcel Carné): ah, o arroubo dos sinos de bronze, a escadaria da morte, sempre descendo com seu tiquetaque nas portas e janelas. Ah, a mulher é uma árvore florida, as pessoas apaixonadas são as mais vivas, afirma o roteirista Jacques Prevert. Jean Gabin tem um olho triste e outro feliz? E a Arlety, a cândida donzela em noite pecaminosa: nenhum anjo é mais puro nem mais belo. Depois, na mesma semana, vimos “Grandes Esperanças”, de David Lean e “Correspondente Estrangeiro”, do nunca demasiadamente visto Hitchcock, com a minha namoradinha da adolescência (Laraine Day), personagem de meu romance inédito “Tentação Noturna”. É sempre noite tenebrosa sobre aquele tempo de guerra insana. Os olhos na escuridão são os únicos pontos luminosos do cenário. A câmera sem flash só capta vultos de pássaros benignos, também noturnos. Os Livros, Ah, Os Livros! Só vou falar um pouco (o tempo e o espaço escasseiam, na medida que passam, ou são preenchidos), sobre alguns dos livros de Lya Luft (minha esposa adora a obra dela – e tenho o prazer de lembrar que participei com ela de um Seminário de Cultura em Brasília há muitos e muitos anos). Ela escreve de tal maneira tão bem que consegue fazer do próprio cotidiano uma aventura singular e da família toda a humanidade. Assim é e assim está em “A Asa Esquerda do Anjo”: “a vida em casa de nossa avó transfigurava – eu acreditava que o mundo podia ser belo”. Assim acontecia toda vez que a mocinha Anemarie chegava do internato. O olhar perscrutador da avó atingia os cantos da alma que a menina preferia esconder. Ela inspirava compaixão “porque devia ter sido menina e bela.... E agora? Que água tivera coragem de se derramar em terra tão seca?” “De noite fantasmas, de dia, dúvidas”. É assim que ela substitue os fatos reais em pesadelos mentais (o conto agora é “No Fundo das Águas”). As desavenças, os achaques, os dramas e tragédias do dia-a-dia mesquinho transformam-se em sortilégios, duendes, visões tenebrosas, simbolismo nevrálgicos, realismos camuflados em obscuridades: o supernatural inaceitável em sobrenatural inexplicável. Em “A Pedra da Bruxa”, o enterro simbólico dos objetos do filho desaparecido na montanha. História triste como o silêncio da morte – para quem já o sentiu, ouvindo-o. E depois, na história do anão: como ela sabe figurar lágrimas em poucas palhetadas! É uma literatura para inundar o coração de uma chuva que depois desanuvia, sem desaparecer. Sensitiva, compassiva, pertinente, nela (Lya Luft) a imaginação é um lugar comum, um toque ao mesmo tempo intuiutivo e premeditado. O conluio afetivo e surrealista da meninazinha a confabular com a vovozinha: algo tão realisticamente fantasioso que não se distingue a coisa real da imaginada. A vida e a morte, felizes. Os personagens que mais belamente brotam de suas páginas são as crianças mimosas e mimadas, especulativas e autodidatas, sábias na ingenuidade e na pureza das inexplicáveis convicções. E ao lado das crianças alvissareiras, vêm as velhas e velhos moambeiros, superticiosos, enfáticos na já desvalida, senil sabedoria. Os personagens jovens e maduros perfazem os elos de ligação: sofrem de utilidade, como diria Vinicius de Morais a respeito dos dentistas. Dão a impressão que só vivem para fazer o resto da humanidade sofrer. E acontece de repente, ao longo da leitura, o viés comovente, umedecendo os olhos do leitor antes enxutos e espertos e expectantes. Pronto, ponto final. O leitor fecha o livro e vai despistar a emoção, entreter a consciência com algo mais suportável, sabendo, contudo, que quando recomeçar a leitura terá novamente que arcar com o ônus (?!) do deleite da ternura humana na tristeza e na alegria da vida. A verdadeira literatura é assim mesmo: cara à sensibilidade e à inteligência – e não deixa por menos.

segunda-feira, junho 01, 2009

DIVINÓPOLIS DE PARABÉNS

A cidade, hoje, polariza em termos de qualificação urbanística, toda a região centro-oeste de Minas, privilegiada pelas condições antropogeográficas de potencialidades climáticas favoráveis ao binômio existencialista da produção e do consumo. Mas já teve seus dias primitivos, antigos, como veremos. A Serra Negra (hoje na divisa do município de São Sebastião do Oeste) atraiu os primeiros colonizadores da região, em virtude de sua fartura aurífera. Também na Cachoeira do Caixão (barra dos rios Itapecerica e Pará) foi encontrada uma boa jazida de ouro em 1723. O próprio Rio Itapecerica foi muito aurífero nos velhos tempos. Caudatário do Ribeirão Vermelho (vermelho de tanto ouro) da Vila do Tamanduá (hoje Itapecerica) e também do Córrego do Ouro, no Distrito do Desterro, (hoje Marilândia), onde ainda existe uma região rural com o nome de Lavrinha, topônimo específico da atividade mineradora. Mas foi a partir da Serra Negra que se estabeleceram as sesmarias do último quartel do século dezoito – e o próprio Fundador de Divinópolis, MANOEL FERNANDES TEIXEIRA, possuía terras que vinham de lá e iam até à referida Cachoeira do Caixão. Certamente filho de outro Manoel Fernandes Teixeira, sertanista e militar, que servia na Bahia em 1680, ele deixou doze filhos, um dos quais com o mesmo nome, quando faleceu em 1783, treze anos depois de ter formalizado na Vila de Mariana a doação de casas e terras ao Patrimônio da Capela do Divino Espírito Santo e São Francisco de Paula na paragem chamada “Itapecerica da Freguesia de Pitangui”. A Catedral de hoje é a terceira reconstrução, sempre aumentada e melhorada, daquela Capelinha, no mesmo local. O lugar era o mais indicado para se implantar o povoado que cresceria aos poucos, transigindo depois para a condição de Arraial e depois para a de Vila, termo que hoje corresponde ao de Cidade. A grande quantidade de nascentes de água acenava com o potencial aurífero, que não foi confirmado depois. Mas servia de pouso dos tropeiros, uma vez que no local entroncava o caminho de São Paulo para Sabará (a direita) e para Pitangui (em linha reta até ao Triângulo Mineiro). Todo o século dezenove transcorreu na fé e na paciência dos santos ao redor da Capela, cujos oragos constituíam a devoção dos fiéis. A povoação viveu em compasso de espera até desabrochar nos albores dos novos tempos do chamado século da velocidade, o Vinte da abrangente modernidade. Em 1905 o Arraial do Divino Espírito Santo das Itapecericas ainda era bem atrasado, pagava menos impostos e continha uma população numericamente inferior à do confrontante Desterro. A estrada de ferro já beneficiava as duas localidades, mas o ramal de Belo Horizonte destinado ao Triângulo e ao Sul de Minas, ligando Minas a São Paulo, só veio instalar-se aqui em 1910, quando então inaugurou um período proeminente no lugar, que logo passaria a chamar-se Divinópolis, com sua vida municipal própria. As décadas de 20, de 30 e de 40 foram marcadas em todo mundo, com os conseqüentes reflexos nacionais, por impasse políticos e recessões econômicas (as duas grandes guerras e as sombras ameaçadoras do nazi-fascismo e depois do comunismo afetavam humanamente todo o planeta). Assim Divinópolis cresceu moderadamente e só em meados da década de 40, com o benefício da transferência da Oficina da Rede Mineira de Viação da cidade de Cruzeiro (SP) para cá, juntamente com a implantação da escola Profissional da própria RMV, é que o progresso realmente abriu suas possibilidades. O número de empregos mais que dobrou e também o número de Turmas, Pés de Estribos e Estações de menor porte ao longo da linha (férrea) tronco e dos ramais ferroviários. A partir de então foram surgindo siderurgias e fundições, as fábricas e oficinas, uma arquitetura urbana mais estilizada, uma rede escolar mais atualizada (os Franciscanos instalam o Convento, as Irmãs e Caridade dão nova vitalidade à escola Normal, um Centro de Treinamento é instalado na Usina do Gafanhoto e logo o Colégio São Geraldo passa a ser considerado um dos melhores de Minas Gerais). Assim Divinópolis entrou na modernidade tecnológica, trampolim para o progresso dos anos 50, que não teve mais solução de continuidade até os dias de hoje. Agora Divinópolis é uma das maiores cidades do Estado e desfruta de uma tendência progressista incontestável, em virtude não só de sua situação climática, localização geográfica, sistema viário múltiplo (e multidirecional), fontes de abastecimento de água e de energia elétrica, mão de obra dinâmica e especializada (graças sobretudo à vinda dos técnicos ferroviários não só de São Paulo como da Bahia), qualidades estruturais que geralmente estabelecem a boa unidade municipal. É uma cidade democrática e cosmopolita, socialmente estruturada, com elevado nível de produtividade em áreas economicamente diversificadas, tudo propenso ao acolhimento da espontaneidade e da cordialidade naturais do ser humano sadio numa circunstância possivelmente sadia. Bem haja, pois!