A leitura de “PAIXÃO PAGU - A Autobiografia Precoce de Patrícia Galvão” (AGIR – RJ, 2005), enfatiza espontaneamente os seguintes pontos:
- a ideologia inflexível, o tacão totalitário da expansiva revolução soviética; os abomináveis meios de um fim hipoteticamente colimado; a liderança ignorante da própria hediondez; a militância hedionda em sua obediente cegueira; o atrelamento do servilhismo com a prepotência; a pergunta: ninguém desconfiava que a imposição de um despotismo (comunista) em lugar de outro (capitalista) não seria, afinal de contas, uma barganha de cebolas?; outra pergunta: os chavões de ordens unidas não aterrorizavam nem ridicularizavam?; no caso da paixão e do sacrifício de Pagu, sobressái a galanteria obscena, assediante e estranhamente consentida de Oswald de Andrade, um notório comedor de mulheres (cuja propagação da chamada ANTROPOFAGIA não teria uma camuflada conotação de intencionalidade sexual?). Espantoso também é notar como ela suportou tanto tempo a imposição dos chefes e companheiros de panfletagem no papel de verdadeiros gigolôs da subversão da ordem, que insistiam em prostituí-la com a finalidade de obter as informações almejadas na campanha. Isso ofendia a pobre moça, que se defendia argumentando que não era nem jamais tinha sido uma prostituta, alegação que não funcionava diante do chavão dogmático de que os fins justificavam os meios. Se ela fosse uma ninfomaníaca, tudo bem, mas não era, ao contrário, depois de sofrer atos sexuais que podem ser caracterizados de estupros, ela propendia mais para a frigidez do que para o desejo.
Sabemos que qualquer teoria ideológica contém em sua roupagem uma primária probalidade que logo transige para uma também primária convicção. Mas isso não assegura o respaldo na prática, uma vez que entre a teoria e a prática se erguem os muros de Berlim, as cercas de arame farpado, os fornos crematórios, os hospitais psiquiátricos, a lavagem cerebral mo processamento da tal de autocrítica e outros procedimentos criminosos dos nefandos regimes totalitários. A teoria e a prática são entidades diferentes: uma é o fôlego do espírito e a outra, o osso do corpo. Ambas estão vivas na pessoa, mas uma é fluídica , abstratamente arraigada, enquanto que a outra (a prática) é tangível, pesadona, concretamente arraigada.Na vida nossa de cada dia o espírito até que pode empurrar o corpo na luta, mas se o corpo reclama, o espírito retrái, assim como quando ele mesmo se fere em demasia o próprio corpo também cansa de insistir e de pelejar. É porisso, talvez, que as teorias de regimes políticos de exceção não conseguem a vigência seqüencial ao longo do tempo. A humanidade é heterogênea: cada ser humano possui as mesmas atribuições físicas, mas a diferença na formação psico-educacional resulta na diferenciação entre o corpo e o espírito das pessoas em geral, ou seja, a identidade física nem sempre se coaduna com a identidade espiritual.
Na juventude já ofendida e deflorada, mas ainda imatura e solerte, ela procura encontrar pessoas e causas autênticas – e a questão social veio à tona e disso ao ativismo político foi um passo arriscado, mas consciente. Deixou-se influenciar facilmente pelos entusiastas ideológicos, experimentados e convincentes planfetarios, nos quais acreditou piamente, envolvendo-se prematura e canhestramente na linha periclitante de uma causa nobre porém utópica. O aproveitamento da alheia experiência é espontâneo, dispensa os preâmbulos da dogmatização. Surda e cega aos ditames do subconsciente, essa mola ao mesmo tempo de retranca e de propulsão, ela atingiu precipitadamente a maturidade do sofrimento (um sofrimento que geralmente vem de fora, mas que ela, de dentro, buscava?). E quanto mais tentava compartilhar apreensões, mais solitariamente apreensiva ficava. Os outros, de um modo geral, na vida rotineira, fazem sofrer muito mais do que fazem gozar? Toda aproximação exige, pois, que um pé fique sempre atrás? Temos que em ir em círculos e não retamente? A depressão que vara a noite tem que ser reerguida tão logo o novo dia desponta? Bernard Shaw defendia o celibato porque acreditava que no casamento um dos cônjuges quer não apenas o corpo mas também a alma do outro. Pagu, de repente, ficou assim como que despojada (e não desposada) na companhia de Oswald de Andrade? Se pelo menos, no caso, o possuidor não fizesse do possuído um objeto sujeito à paulatina depreciação...,como se ela não fosse mais que um bibelô sexualizado....descrente do afeiçoamento conjugal, ela acreditou que dissolvendo-se no amor ao próximo encontraria a intimidade de sua pessoa.... Entregando-se à luta pelas causas sociais, ela descuidou-se da contrapartida reacionária cada mais exigente e mais odiosa no interior das próprias células acionadas. Toda vez que ficava sozinha no calabouço funerário das refregas e desgastes, sentia, amargurada, como e porque poderia, naquele entrave existencial, continuar amando Oswald e o comunismo, se ambos, apenas usavam e abusavam dela, sem nenhum reconhecimento ou retribuição....
A fina, langorosa, nobre poesia da carta ao filho Rudá. Ela fala e repete que a visita dele para ela era a Visita da Vida: a beleza da dor, a dor da beleza, a redenção de um erro cometido não por ela,doce criatura, mas pelo destino às vezes tão cruel justamente em relação à doçura da inocência. Que vida era a dela em 1931: perseguida pela Polícia, manipulada pelo Partido. O que lhe restava? Um ridículo sofrimento, que só depois ela percebeu ser desproposital e inútil: uma sublevação frágil e restrita contra um força armada ditatorial poderosa e inescrupulosa. Mas vemos, hoje, que apesar da inocuidade, aquela sublevação pontuava o brio da nacionalidade sucessivamente ofendida em seus estatutos constitucionais. Representava a sinalização de vida salutar num corpo historicamente mórbido. Mas aqueles militantes tinham consciência desse lado nobre de seus malfadados esforços, ou apenas catalogavam fracassos na luta? O certo é que seus sacrifícios brilham sempre no mapa histórico brasileiro como excepcionais momentos de lucidez de uma dignidade infelizmente ameaçada por uma classe dirigente que ao longo do tempo só dirige a favor da própria sustentação. Mas ela, Pagu, sendo nas células sublevadas uma pessoa da classe média e não da proletária, pagou mais caro e sofria duplamente, chegando à beira do martírio, sem apoio da família, da própria classe social e (vejam só) do próprio Partido, um organismo desumano em sua encarniçada conjuntura internacional.
A atitude falsa que produz o sorriso complascente – assim começa a decomposição de uma personalidade não de toda solidificada. Sabia que o próprio Oswald a considerava “apenas a vivacidade de uma canalhice bem feita”. Canalha, era a palavra que ela não dizia a respeito dele, mas era a que certamente sentia a respeito dele. Na verdade chego a pensar que o comportamento obsceno dele não seria o mesmo de um deslavado pedófilo? Confiada no que ela acreditava ser a dele uma versão tupiniquim do existencialismo em voga na Europa, ela se deixa levar por ele como uma simples adolescente ingênua. E sem atinar que se humilhava, ela o defendia, num sufocado arroubo de grandeza pessoal e ele, assim engrandecido pelo perdão dela, mais se pavoneava na deslealdade de um algoz consciente contra uma vítima inconsciente. Mesmo ignorando a natureza e o grau das sacanagens dele, cruamente reveladas, eu sempre antipatizei com aquela obesa empáfia dele, certamente copiada em floreios absorvidos de fontes alienígenas, floreios com os quais ele enganava outros êmulos igualmente supérfluos do movimento literário de 1922. Na verdade sempre estranhei a ascendência dele no referido Movimento em detrimento a outros autores mais talentosos e de melhores consistências intrínsecas, não munidos pela farolice do “esnobismo casanovista” , que ela mesma reconhecia nele. Antes de ler este livro, ignorava o rosário de decepções (agora mesmo, folheando o livro, contei oito sacanagens dele e outro tanto do Partido contra ela, pobre desvalida, que certamente em outros ambientes seria uma bela e grande escritora) que ela teria sofrido nas mãos dele e do Partido, mas conhecendo os antecedentes de seu rumoroso comportamento já imaginava as modalidades de crueldades mentais dele castigando-a a ponto dela sentir (como confessa) nojo por ele e pelo próprio ato sexual – isso depois do tamanho da decepção na intimidade conjugal deles.
Mas livrando-se dos desmandos matrimoniais e embarcando na aventura do ativismo planfetário, o que será mesmo que ela esperava encontrar de positivo? Qual o encanto de uma pregação ideológica que não surtia efeito e que hoje, vista friamente, estava mais para um repeteco quixotesco do que para um balbucio válido no contexto dos projetos revolucionários internacionais, que todavia não dispensavam aderências mesmo reconhecendo a inocuidade da movimentação brasileira? Havia sim e ainda há e sempre haverá o campo da necessidade de uma luta revolucionária para defenestrar a letargia e erigir o dinamismo. Mas tal luta teria cabimento num país despolitizado? A liderança desatenta não teria previsto que todo esforço resultaria em perseguições, cadeias, aniquilamentos? Não existiam as boas cabeças pensantes na orientação e liderança? A ideologia política precisa ser repensada, precisa talvez aprender, com o cristianismo mais cristalino, que a única revolução humana que pode dar certo é a que não almeja nenhum domínio a ferro e fogo, mas aquele que busca apenas arrancar do coração humano a ganância, a impiedade, a violência. Nada de raeencarnações de mortandades e burocracias russas, nada de máfias que se alternam nas chamadas posições ideológicas de direita, de centro e de esquerda. Nada de nós, o povo, continuar pagando para sofrer.
Ela diz e repete que com as prisões e a obrigatória separação do filho, sua vida pessoal desapareceu. Ela que era uma pessoa doce e até ainda impúbere,tão delgada e feminina. Por que foi tão brutalmente desviada de uma possível felicidade? Ela que podia ter se devotado mais amplamente à literatura,seu primeiro amor, sua primeira vocação, e ter escrito romances e poemas alongados e expressivos – e hoje ninguém estaria chorando por ela, mas sorrindo. Mesmo chorando, no entanto, aplaudimos sua pessoa, não seu sacrifício. “Sua obra maior é a própria vida, pautada pela busca do novo e pelo combate às injustiças” – é o que está escrito numa das orelhas do livro.