terça-feira, fevereiro 28, 2006

CORRESPONDÊNCIA ENTRE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE E LÁZARO BARRETO

A primeira carta recebida dele é de 07/10/1963. A última foi em 11/08/1986. Toda a correspondência é constituída de: 11 cartas, 15 cartões e 8 poemas especiais, manuscritos. Ao todo 34 peças, sem falar nas que extraviaram numa exposição “cultural” promovida por um colégio da cidade, apesar de todo cuidado e prevenção de minha parte. Procurei o poeta através de uma carta em 1963,depois de ler, praticamente, os melhores autores em prosa e verso publicados no País. Procurei o poeta como quem procura a poesia: com a sede e a fome da verdade e da beleza da vida e do mundo. E ao longo de nossa amizade, por assim dizer epistolar, ele passou-me, como a todos seus leitores, a arte de procurar a poesia. Nas palavras dele: “Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero, há calma e frescura na superfície intacta. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra e seu poder de silêncio. Não forces o poema a desprender-se do limbo. Não colha no chão o poema que se perdeu. Não adules o poema. Aceite-o como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço. Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível que lhe deres: trouxeste a chave?” Assim ele me perguntava, assim a poesia pergunta a todo poeta. Em 14 de Março de 1983, ele escreveu-me: “Rio de Janeiro, 14 de Março de 1983. Meu caro Lázaro Barreto: Seu poema, que o SL do “Minas Gerais” publicou, penetrou fundo no coração deste octogenário. É das coisas mais belas e magnânimas que já recebi, sem tê-las merecido. A você, num abraço caloroso, o profundo agradecimento de Carlos Drummond de Andrade. A carta, manuscrita, como a maioria das que me mandou, refere-se ao poema que o Suplemento Literário do jornal “Minas Gerais” publicou, - que aqui transcrevo integralmente: OS FELIZES OITENT’ANOS - Lázaro Barreto Há quarenta mil anos que procurava Que procurava um livro, uma sombra, Que procurava em toda parte a cósmica alegria E a eterna lágrima Da dor que eu sentia como filho de Deus E enteado do Demônio. E foi num dia de chuva, numa praça de pedra, Que encontrei Carlos Drummond de Andrade, No município de Guanhães, fração do universo Mineireiro que ele canta. Encontrei O canto, o livro, a sombra. Há quarenta mil anos que sondava a gruta Do levante espanhol e da lagoa santa, Procurava o papiro, a tábua da lei, a canção Que encontrei nas portas abertas das montanhas De Minas e de Drummond. Li os poemas do homem falando com o homem, Senti o choque e o repouso, o fluxo Que me retém na faixa do silêncio revolucionário Onde cada palavra é um corpo que povoa o novo mundo. Encontrei retraídas fichas de identificação, Delicados meios e nuances de me comunicar Através de muros e de mares: Essa boa, farta e mansa, chuva de versos, Que semeia adeuses e caminhos. Há quarenta mil anos que procurava A sombra e o fogo dessa árvore Que agora me embala e me sacode. 

O PIÃO ENTROU NA RODA, Ó PIÃO! - Romance

Fragmentos: 

Página 20: Eulália, a Professora: Qual daqueles rapazes na década de 60, em minha terra, seria capaz de fazer da garota dócil e gentil, carinhosa, sincera e vulnerável, uma mulher amarga, infeliz, desesperançada e ressentida, fazer de minha querida irmãzinha Eunice essa zumbi dos dias de hoje nesta Bemposta tão atrabiliária? É verdade que até eu mesma só vim conhecer os rapazes sedentos e arrivistas, que hoje priorizam o ter sobre o ser, alguns anos depois e já aqui nesta Bemposta arrevezada, quando passei a desviver num mundo povoado de neuroses, quando passei a desconfiar até mesmo da roupa que vestia. Ela sempre foi uma garota com problemas, como aliás todos lá de casa. Meu pai desafinava feio e acabou morrendo depois de uma bebedeira, ao voltar para casa a cavalo, de Serra Negra, numa estrada esburacada, numa noite escura e tempestuosa. No meio do aguaceiro, dos relâmpagos e trovões, ele caiu do animal e teve o corpo coberto pela enxurrada. De manhãzinha, passada a tempestade, o sol saindo na cadeia de montes da Serra Negra, o cavalo chegou à sede da fazenda (onde morávamos) e lá na beira do curral ficou a rinchar, arreiado, mas sem o dono. Nessa época eu já não morava lá, mas sim aqui mesmo neste apartamento, que então alugava e que depois comprei. O pessoal da fazenda foi atrás do cavaleiro, que jazia numa ladeira entupida de areia, cisco, barro e água – só os braços e parte do rosto do lado de fora. Deus que me perdoe, mas até hoje não entendo porque o pai abandonava suas obrigações na fazenda, seu amor à família, para satisfazer à voragem do vício. Pobreza de espírito, fraqueza da carne? Ou seríamos, na opinião dele, pessoas desprezíveis, indignas de seu amor? Uma garrafa de pinga era mais importante para ele do que todos lá de casa? Não me importo se esta queixa afeta ou não à memória de um pai que não é o primeiro nem o último a trocar a alma por uns míseros pés de cana fermentada. Eunice era a caçula e saiu puxando em tudo (na beleza, na contemporização, na lerdeza) a nossa mãe, outra vítima do machismo paterno, então vigorante e só agora tardiamente questionado pelas pessoas que apitam alguma coisa na sociedade. Mas como ia dizendo, a Eunice lá de casa era uma gracinha de pessoa, a estrepolia benfazeja dos quartos de dormir, dos terreiros e arredores, uma bênção dos anjos e do santos mais afeiçoados. Hoje, quando a vejo transformada num zumbi aqui nas ruas da cidade, a andar sem rumo, muda e patética, sem saber em qual rua seguir ou voltar, ah fico com o nó na garganta apertando toda a parte interna do corpo, toda a parte externa da mente. Ela era uma bruxinha, quando pequena: bonitinha, engraçadinha, levada da breca; a única que tinha a liberdade de fazer o que bem entendesse. Papai nunca se arrenegou dela, nunca lhe passou o menor pito. Ao contrário, ela é que mandava nele, mas mandava só nas mínimas coisas, o que era uma pena, pois se ela quisesse mandar nas coisas maiores (mudar o comportamento brigão e ébrio dele), ah, penso que ela conseguiria, pois ele pelava de medo dela, não suportava o olhar de reprovação dela e atendia até os pensamentos dela – embora tal temor o afastasse dela, pois ele não podia desmanter sua aura de mandonismo. Como se ela fosse a mãe dele. Página 60: CORO: A palavra que dormia sob os cobertores de algodão descobriu a cabeça, olhou-me nos olhos e disse algo que se cristalizou no frio da noite, e ali mesmo se eclipsou, perdendo-se na treva no quarto. Acendi a luz para flagrá-la na rapidez do som e do rabisco... Mas ela tinha sumido com o que disse, deixava-me perplexo, a procurá-la no ar, no chão taqueado, nas cortinas envelhecidas, nas paredes descoradas, no teto manchado, numa abertura qualquer, onde ela pudesse voltar para dizer-me o nome de si mesma e do que disse... Mas nada, nada dela no meu campo visual... Por que fugiu de mim, agora chamando-me de mais longe, lá de fora no mundo largo e comprido que me sufoca? Página 120 – José Antônio, escriturário e escritor: Ao fazer a faxina semanal no quarto do Goteira, resolvi mudar o guarda-roupa de lugar, arredando da parte de vidro da parede do fundo para a parte de alvenaria de um dos lados. Quando consegui e começava a limpar, vi o buraco no vidro, que abria a visão para o telhado da casa vizinha e também para um dos quartos de janela aberta do segundo pavimento da mesma casa, uma espécie de mansão de novo-rico. Ali morava o homem mais rico da cidade, o Julião, ex-prefeito da minha Serra Negra e hoje famoso empresário e comedor-de mulheres, corrupto até não mais poder. À noite, quando ia dormir e providenciava tampar o buraco com uma tira de papelão (e assim evitar a entrada de ar frio), vi um quadro erótico digno de uma mirada mais atenta, uma contemplação instigante. A mulher nua estirada na cama, lia um livro (ou revista) que a incitava sexualmente – assim pensei, vendo-a reter e passar as páginas e ao mesmo tempo bolinar as partes pubianas, revirar o corpo na cama e finalmente contorcer em completo e demorado orgasmo. Fiquei boquiaberto, fascinado, na quarta dimensão, duvidando do que via (muita banana por um tostão, como lá diz o povo de minha terra). Propenso a repetir o que via (a denodada demanda masturbatória), consegui conter o desejo, reter a respiração, extasiado. fiquei um tempão olhando-a, descontraída e satisfeita, ainda belamente pelada a ler ou reler e a refazer a descuidosa e agora despretenciosa bolinação. Quê livro maravilhoso estaria lendo? Ah, um assim é que ainda hei de escrever, pensei, motivadíssimo. Os grãos de pólen da libido, os tinidos em surdina da erupção orgástica, as cortinas balançantes da penumbra, os pássaros nas árvores do telhado, os secos relâmpagos da tensão crescente, do tesão crescente e incontido. Porra no bom sentido, alimento das expectativas, bálsamo das esperanças. Página 230 – Narrador Onisciente: O que mais desestimula a literatura brasileira é a biografia de seus escritores. Todos vivem no nevoeiro, na prática da anti-poesia, no desagrado alheio, sob o olhar censório dos parentes, amigos, conhecidos e sobretudo das autoridades politicamente constituídas. O nosso amigo José Antônio retrata bem a faina inglória coroada do genérico desdém, que o obriga a reconhecer, entre lágrimas, mas sem esmorecer, que escritor bom é o escritor morto e não o que em vida tropeça aqui,cai ali e levanta acolá. Antes de fundar, com os amigos, e dirigir o jornal literário, ele colaborava em todos os jornais da cidade e em alguns da capital, sempre manifestando o ideário a favor do que julgava ser o bem e a verdade, noticiando, enaltecendo e depreciando o que acontecia nas áreas culturais, políticas e sociais. Nem sempre era abem sucedido. Além dos erros de revisão e do corte da censura, ainda tinha que aturar as reclamações de pessoas que se julgavam ofendidas ou não completamente agradadas. Página 336 – Coro (fragmento): A cidade às vezes não passa de um palco de deslocados, os atores que não sabem os papéis que vão representar... Os pobres são mais inconstantes, mais impulsivos? Os ricos mais assumidos, mesmo na frieza e na vileza? O poder do dinheiro está em toda parte (nos pórticos fachadas pisos tetos) como obstáculos da felicidade... Como, pois, deixar de sentir a necessidade de refugiar-se nos lugares onde só se vê terra céu árvore pedra e água e bicho onde só se ouvem pios e cânticos e cânticos?

segunda-feira, fevereiro 27, 2006

OS NUMES TUTELARES

Fragmentos: 

1: - Um Indivíduo Chamado Karl Marx (1818-1883), (*). O indivíduo chamado Karl Marx desdobra a unha da fome no mapa-mundi riscado no caruncho dos séculos franze a testa, coça a cabeça, esfrega os olhos: ar puro no sul se há guerra no norte? O desespero não cheira bem as ciências humanas nasceram na Alemanha? o que mais? uma certa antipatia racial também? ele nada tem a ver com a vida dos outros mas não sabe viver sem a vida dos outros queima as pestanas nas velas e lampiões lê e escreve dias-meses-anos a fio sente que o texto só brilha se o contexto enraíza. O amor pessoal da namorada empalidece na presença do amor social dos desamados não consegue dormir sem antes fazer as pazes com os deserdados da sorte, os excluídos da ceia. A revolução russa tinha mesmo que fracassar? começou mal, foi de mal a pior? sofreu o azar de passar nas mãos peludas de Stálin? brincou de rato e gato quando não era um nem outro? queria ir muito depressa em cima do andor? alguém errou mesmo ou ao contrário todo poder político nunca presta mesmo e todo êxito dele é fugaz? É triste mas é verdade o povo continua propenso e vulnerável ignorante do passado e do futuro medíocre pusilânime reles comedor de feijão bichado: em vez de afugentar,atrái a repressão das chefaturas (é isso mesmo ou estou decepcionado e exagerando?) ...nem toda sociedade vem com o milho ...nem todo individuo vai com o fubá: não há salvação à vista? o que há é a erosão das simpatias e da credibilidade. A aurora rompe, os cavalos fremem, diz Mefistófeles, desesperado. As nuvens abençoam os cumes de granito de nossa Barra funda os planaltos ondulados do tórax e do cérebro espantam os presságios: estamos no interior de Minas Gerais, bem longe dos conflitos sociais, mas as portas fechadas ficam mais fechadas, quando uma delas é arrombada... O oprimido, coitado, quanto mais se abaixa mais oferece a bunda ao poderoso, diz o Grisaldo, a molestar e divertir na república dos funcionários ...”as ideologias de dominação social da classe dirigente são atarraxadas a ouro e pólvora”- agora quem fala é o Aleixo, a comer bolachas no alpendre da república. O misticismo oriental perdura na física e na química, transige da meditação deles para a ação nossa, é o que acaba dizendo Flávio, o topógrafo das obras. O herdeiro mental da velha linhagem dos rabinos está agora a passeiar nos vinhedos de Trier, seu pensamento a fabricar aforismos e metáforas a paixão que brilha na esperança a galgar ladeiras oblíquas por estreitos atalhos a saltar arroios despejados de fendas rochosas: até as pedras arranjam, polimorfas, os sorrisos. Assim ele revisa os utópicos Fourier e Saint-Simon, muita água a passar debaixo da ponte, ao lado de intrincadas rampas, compactas texturas as palpitações do peito freiam os ímpetos e dentro da água a luz foge da treva: o carro capitalista chega ao precipício? a locomotiva comunista já despenhou? os nômades na verdade são fugitivos? se não são,o que estão procurando? Não posso cair na tentação do pensamento abstrato, ele diz às uvas e às sombras da tarde: minha tarefa é fazer história e não meramente interpretá-la! Deus sabe como e não me conta? A filha Eleanor escreveu antes de suicidar-se: “como tem sido triste a nossa vida nestes anos...”. A família só não morria de fome porque Engels era amigo e repartia com ela o salário de seu emprego na indústria inglesa. Quando a mãe morreu,ele voltou à Trier, de lá escreve a já muito doente Jenny, confessa estar indo todo dia à velha casa, onde ela viveu em solteira,bonita e rosada: a casa o atrái mais do que as ruínas romanas, foi nela que morou seu grande amor: a moça mais linda de Trier!, a princesa da cidade, a rainha dos bailes o brilhar nos olhos, o frescor nos lábios o jardim que a circundava: onde ela ia, ele lá estava. O prazer tem arranjos complicados joga pela janelas as árias operísticas (as coivaras verdes não pegam fogo) pelo sim pelo não é assim o coração se estivesse a morrer, estaria a cantar: ela nadava a dormir sobre as ondas? os olhos trocavam de cores? e ele? também dormia sobre as ondas? escolhia então as cenas de contos de outros autores? e agora, Carlos? e agora, longe do passado e da perspectiva do futuro? e agora é até bom que na esteja a ver o que acontece: a sociedade adotou de vez o fascismo de tantos nomes terríveis? As pessoas em geral (é bom que ele não veja) , quando não estão contando vantagens ou misérias estão engolindo umas às outras? até quando? 

(*) Texto transcrito do romance em versos (inédito) BARRA FUNDA – A Evaporação dos Paradigmas.

domingo, fevereiro 26, 2006

MEMORIAL DE DIVINÓPOLIS

Publicado em 1992 em Divinópolis, MG. Fragmento. 

Página 68: Misticismo e Pragmatismo: A cidade de Divinópolis difere da maioria das cidades mineiras por seu incessante dinamismo que promove um quadro de constantes mutações na fisionomia urbana. É um processo que muitas vezes impede a cristalização das conquistas que costumam desaparecer antes de serem contextualizadas no quadro geral das tradições. Uma cidade em crescimento precisa oferecer aos adventícios uma compensação espiritual para impedir o desenraizamento do clima de fervor místico de suas origens nas povoações rurais e pequenas cidades estagnadas, onde a religiosidade ainda é mantida na fé viva da sacralidade existencial. Se a estrutura urbana é desprovida desse clima, o poder público e o clero devem esforçar-se no sentido de estender às ruas e praças os halos da sacralidade até então restritos aos recintos dos templos. A luta contra a natureza prepondera nos primórdios da civilização brasileira; depois vem a usurpação, a acomodação e finalmente a superação da natureza. São cinco séculos de porfia entre o misticismo do povo e o pragmatismo das elites. A pergunta vem pronta: a vitória do progresso significa a vitória do pragmatismo contra o misticismo? Sérgio Buarque de Holanda é de opinião que o catolicismo brasileiro “apelava para os sentimentos e quase nunca para a razão e a vontade” e que essa posição permitia aos positivistas a ereção da República e aos maçons a obra da Independência. Aos maçons o nosso primeiro imperador se entregou com tanta publicidade que “o fato alarmou o príncipe de Metternich pelos perigosos exemplos” de tal atitude. ... Quer dizer então que já se manifestava em nossa cidade uma acirrada oposição ao clero católico? Isso veio acontecer algum tempo depois. Sabemos que o pragmatismo é supra-ideológico,é o monte de julgamentos morais e de expedientes utilitários e imediatistas. O progresso é fenômeno mais norte-americano do que europeu, africano ou asiático. William James, o filósofo do pragmatismo, não parece ser irmão de Henry James, o romancista que emigrou e assumiu nova cidadania na Inglaterra. O pragmatismo é onde, como diz Augustina Bessa Luís, “o homem perde a razão de espírito ao honrar a inteligência especulativa e a inteligência carniceira”. O nosso desenvolvimento urbano foi promovido e acompanhado de perto por essa associação de pessoas portadoras de um interesse comum: a ascendência pessoal de cada um dos membros dentro do progresso econômico da sociedade. Para os novos bandeirantes Divinópolis era a terra das oportunidades. ... Para os ideólogos pragmáticos a única virtude da religião é a sua capacidade de mitigar os temores, ansiedades e frustrações das pessoas,possibilitando a manutenção de crenças e costumes favoráveis à estabilidade social. Para o Padre Vicente Soares, vigário de nossa paróquia nos anos 10, “o gênero humano só conserva sua nativa pureza no seio da luz religiosa”. Sentindo a gravidade do contraste da vida social (a violência moral da classe dirigente e a piedade viva do povo), ele tomou o partido da nativa pureza, sem prever as dificuldades que o aguardavam, a ele e aos seus companheiros, nos anos seguintes.

sábado, fevereiro 25, 2006

ESTRATÉGIAS DA REPRESENTAÇÃO EM “AÇO FRIO DE UM PUNHAL (*)

Tese de Mestrado do Professor Maurício José de Faria na PUC BH 2001, sob a orientação da Profa. Dra. Lélia Maria Parreira Duarte. Fragmentos: Página 6: “O presente estudo procura analisar os contos de “Aço Frio de um Punhal”, de Lázaro Barreto, em que o autor, através de jogos de enganos, da elaboração da loucura e da referencialidade histórica, no plano de enunciado, e do estranhamento de estratégias narrativas inusitadas, no plano da enunciação,constrói uma obra literária que questiona as estruturas de poder de um Brasil interiorano em que se reflete o autoritarismo do modelo central. Página 48: “Segundo a tese de Chklovski (1976,p.5), sobre o estranhamento, a arte usa o estranhamento para aumentar a dificuldade e o tempo de percepção das obras visto que, em arte, o processo perceptivo é um fim em si mesmo e deve ser prolongado. Alguns contos de Lázaro Barreto parecem ilustrar essas considerações de Chklovski, tal a estranheza de algumas de suas construções e de seus jogos de enunciação. Pela estranheza, a narrativa se constrói. É preciso ler literalmente e aos poucos encontrar e acatar as regras do jogo, fixando a atenção, em muitos casos, na própria construção do texto.” Página 49: “Em “Soneto Quase Parnasiano”, Lázaro Barreto constrói uma narrativa que muitas vezes conduz o real para um abismo sem retorno, guardando entretanto a solidez de uma ordem estruturada e fechada em si mesma.O autor utiliza o absurdo como se fora real,concreto. Segundo o narrador, cada pequena situação vivenciada deixa-o atordoado, meio sem rumo. Visto que o interesse parece ser exigir do leitor que transite pelo texto, alguns recursos são utilizados para causar o que vimos chamando, com os formalistas russos de “estranhamento”, termo cunhado por Chklovski. Esse efeito assinala a quebra do automatismo encontrado na apreensão e expressão lingüística de todos os dias, e abre campo para a invenção e o exercício total da liberdade de criação (Cf.Santiago,2000, p.131). Página 66: “Tanto “O Caminho da Roça” quanto “Madressilvas na Beira do Rio” lidam com o estranhamento: criam no leitor uma expectativa inicial que, a despeito do que está sendo narrado, não se confirma ao final da narrativa. Esse artifício narrativo aumenta a duração da percepção, aliando-se à valorização do corte e da minúcia, estabelecendo-se assim entre autor e leitor uma comunicação que ultrapassa o plano da narrativa e indica uma nova proposta estética capaz de criticar eficazmente a ideologia que representa.” Página 71: “No conto “Pequeno Simpósio Pediátrico” revelam-se, ao mesmo tempo e de forma organizada, as diversas maneiras de expressão lingüística de vários grupos sociais, registrando-se a linguagem dos indivíduos que constituem esses grupos. Ouve-se, por exemplo, a voz de um cronista, de um poeta, de um economista, de um repórter, de uma mãe, etc. A língua só é única na sua abstração; quando se concretiza, torna-se uma multiplicidade de manifestações do mundo. E, no conto, ela nunca é abstração, ao contrário, é realidade concreta de representação dos signos sociais,e por isso mesmo,também ideológicos (Paraquett, 1999,p.98). Página 141: “Lázaro Barreto, autor de “Aço Frio de Um Punhal”, circunscreve-se no cenário da literatura brasileira num espaço de pouco reconhecimento. O autor pertence cronologicamente à chamada geração da “crise de representação”, que surgiu logo após o golpe militar de 64. È provável que a lucidez de algumas de suas propostas, de um cidadão que viveu entre o trabalho e certa militância política – Lázaro Barreto era jornalista à época do regime militar – justifique a formação de uma consciência crítica que o induz a produzir textos às vezes estranhos, por isso, fora da norma. Esses textos falam, ao mesmo tempo, da exploração e da necessidade de fuga a uma situação, pois estar no mundo, na década de 70, época em que a obra em análise foi feita, significava a procura de uma escrita para lutar contra ou para denunciar o sistema político vigente. O autor produz uma literatura voltada para questões sociais, mergulhando assim nos problemas reais do Brasil de uma triste fase, por isso seus contos falam do homem comum, forçado a atos de fuga da realidade, do heroísmo inútil ou de covardia, diante de circunstâncias inusitadas.”

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

BARRA FUNDA - A EVAPORAÇÃO DOS PARADIGMAS

Fragmento do Romance inédito.

Página 265...: A fúria das águas vem toda noite acossa o balisamento rochoso da ombreira esquerda dilata as trincas na crista da barragem os espaldares incontidos a regurgitar na soleira dos vertedores rebenta o desvario ao longo do eixo os blocos de concreto bóiam como os bois espantosamente mortos de Manuel Bandeira... eu ia à pé nos caminhos e lá vinha outro borbotão: a corrente elétrica dos enxurros a cavar seus estirões nos declives, no mataréu o roldão das trombadas a desancar os barrancos depois o medo no céu aberto desce desce o cavalo branco a cabeça os diademas uma espada afiada a sair das bocas a golpear as nações desacreditadas cai o aguaceiro inundante, as pedras de saraivas o fogo, o enxofre sobre as ditas nações as pedras de saraivas de tamanhos mortíferos... é assim que a água modela a terra... o céu, fora do mundo, é a palmatória do mundo? as torrentes a cobrirem as mais altas montanhas avalanche bifurcada nas corredeiras, a zoar o finquete dos troncos nas funduras as raízes no ar, espumas na flor das margens a reviravolta da montoeira a carregar alimárias nada detém o estouro das fontes e represas: toda fundura é uma fábrica de terremotos? a ventania enxota os ids e egos vadios Zacarias vem de outras páginas a dizer os olhos e as línguas apodrecerão nas órbitas e nas bocas! eu lia o pequeno apocalipse na cama de solteiro: aquele que estava sentado no trono aparentava a pedra sardônica de jaspe, circundado pelo arco-íris recuperado de um fóssil: depois eu ia num jipe de tração nas quatro rodas os caminhos puídos esbarrancavam a argila porosa de basalto liquefazia as deformações longitudinais da crista os cavalos selvagens refugavam, tragados eu lamentava o retardamento dos recalques pós-construção os efeitos tendenciosos de cada trinca via em volta do trono vinte e quatro anciãos são os vinte e quatro autores do velho testamento todos de roupas brancas e coroas douradas as sete lâmpadas ardentes os sete espíritos de Deus e mesmo ali o mar de vidro fumega e derrama os quatro animais cheios de olhos na fronte e na nuca: um semelhante a leão, outro a novilho o terceiro tem o rosto de gente, o quarto de águia... agora eu seguia o vendaval de bimotor, acima do arvoredo a ver em amplidão o movente lamaçal (as festas pagãs de anos atrás, nas vias públicas?) a chispa e a fumaça do frigir dos elementos bichos nuca vistos surgem, para morrer no átimo... nessa altura das águas nas encostas os vinte e quatro anciãos prostram-se, confessáveis: “chegou no furor o tempo de exterminar os exterminadores da terra!”, assim eles exclamam no alto do holocausto. As águas represadas não acionam as turbinas? não dão à luz energia e ao frio calor? o colapso do portal do túnel, os vãos dilatados ...quem vai agora segurar o desmedido?

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

A BELA E QUERIDA DIVINÓPOLIS

Textos avulsos (alguns publicados em jornais da cidade no período de 1966 a 1986). 

O Doce Pássaro da Juventude. Divinópolis não é o Parnaso nem eu o poeta das musas. Que os deuses me perdoem a insolência de suspirar pela sagrada tocha de uma inspiração acima de minhas forças. Segundo a literatura oral da mitologia grega, as Musas eram filhas de Júpiter, freqüentavam o Olimpo, moravam no Parnaso, no Helicon e no Pindo. Deusas de um modo especial, os mortais prodigalizavam-lhes todas as honras e sacrifícios, tanto na Grécia como na Macedônia. Eram nove, todas jovens e igualmente belas, posto que diferentes no gênero da beleza. Nasceram como respostas ao humano anseio de transfiguração do trivial e do transitório. Entre as fontes e os rios, o Hipocrenio, a Castália e o Parnesso eram-lhes consagrados; entre as árvores, a palmeira e o loureiro; entre os homens, todos os poetas. Multiplicaram-se pela face da terra, musicando os passos do homem na escala cromática dos símbolos, onde ainda passeiam, às vezes claras e diáfanas e na maioria das vezes obscuras como os dados de um mistério. Se ainda não as conhece por experiência própria, tenha os olhos atentos ao percorrer os quadrantes da cidade, ao descer ou subir as ruas, esplanadas e colinas do Porto Velho: se de repente alguma coisa estremecer, não perca o espetáculo que já habitou luminosamente a vigília dos poetas, de Orfeu a Drummond. Clio era a primeira delas e presidia a História. Eu mesmo já a vi em Divinópolis, duas ou três vezes, nas tardes adjacentes ao rio e à via férrea. As pedras floresciam sob seus pés, no ar bailava uma elegia vinda da Grécia para Minas Gerais. Euterpe, a segunda, inventara a flauta e presidia a Música. Mesmo em silêncio, cantava. Ainda hoje carrega os fluidos inefáveis – e suas canções não são apenas para ouvir, mas também para pegar com ambas as mãos e abraçar com a alma e tudo. Seu riso, canto de amor panteísta, abençoa a nossa cidade. Tália, nome de flor,ela própria um jardim, se desperta para o sonho da existência, de longe as brisas acorrem, alardeando os arautos da primavera, em qualquer estação. Orquídeas e violetas são algumas pétalas de sua natureza angelical. Melpomene, a quarta segundo Hesíodo, era a musa da Tragédia e assim exprime do alto de sua gravidade comportamental, a ânsia e a ênfase do vôo para a verdade. De suas veias infladas explode sempre uma canção de sua irada formosura. Terspsicore, a que ama a Dança, mãe das sereias, preside a vocação coreográfica, liberta o corpo nas oníricas campinas da infância. Com a graça e a leveza de ninfa e sílfide, percorre toda a escala da ressonância fantástica, recupera o clima primitivo do mundo, cuja saudade, hoje, transformou-se na esperança do céu. Erato, a sexta, preside o lirismo urbano e anacreontico. Os olhos verdes na cor morena do rosto, que transcende a epiderme e se funde ao rosa para formar a tonalidade carnal de um inédito soneto parnasiano. Que Rimbaud não escreveu. Hoje, talvez, sua lira seja um volante de automóvel, mas lindas rolas ainda beijam-lhe os pés. Na tarde bíblica e rural, no sonho de uma noite de verão, no romanceiro de todas as nações, nas avenidas e ruas transversais das cidades mais humanas, elas estão sempre. O nome de cada uma é uma epígrafe da Felicidade. Polimia, a sétima, musa da Retórica, cujo nome composto significa mito e hino, apresenta-se de branco no entreato das paixões que suscita. Um branco com mil variações. Só Chopin, em noite inspirada, poderia explicar sua genealogia e sua posteridade. Urânia presidia a Astronomia – e porisso tem esses olhos portadores de luares diurnos, envolvendo com seu magnetismo as miríades celestiais. O seu cotidiano é decorado com luminárias renascentistas, mesmo sendo nossa contemporânea. Calíope, a nona (de acordo com Hesíodo, seria a primeira), tem um nome composto que em grego quer dizer um belo rosto, o que confirma a tese de que o objeto do amor só é visível de perto e frontalmente. Elas são nove ou nove multiplicado por nove mil vezes nove. Ou mais. A última é sempre a primeira. Platão queria acrescentar o nome de Safo de Lesbos, para completar a dezena. e não apenas ele: cada um de nós tem sempre uma para povoar os belos campos parnasianos de nossas oníricas particularidades. Tem ou não tem?

A CABEÇA DE OURO DO PROFETA

Edição há muito esgotada, agora revista e ampliada . Abaixo o fragmento de um dos contos. 

Joãozinho e Maria (fragmento): 

Quarto exíguo de uma grande e velha casa, avara de moradores. Uma janela de madeira aos pés da cama e outra na parede paralela, a primeira abrindo-se para o quintal nascente e a outra fechando para o jardim poente. A mesinha de cabeceira com o toco de vela no castiçal, o cinzeiro de barro com vários tocos de cigarros, dois livros em processo de leitura (as páginas marcadas com flores de magnólia). As paredes manchadas de tempo, da ação de hospedeiros diminutos, de objetos feitos pela natureza e pelas mãos da mulher, que agora está deitada de costas, a cabeça levantada no travesseiro, os pés rentes à cabeça do homem, deitado em sentido contrário. Ele (recitando poetas árabes antigos): Suaves são tuas pernas como caules de cana arrancados numa fonte. Tua cintura é delgada - uma corda no poço não é tão tênue. E o tato!, como é macio! os dedos aflautam como vermes aquáticos lisos como cobras. Iluminas a noite como a lanterna dependurada numa ermida. Ela: sou assim tão cheia de predicados? Ele (citando Catulo): Dá-me mil beijos, depois mais cem e outros cem, e ainda mais cem, e depois mais mil e um cento - e quando atingirmos as centenas de milhares, baralhemos as contas, comecemos de novo: o que é bom não pode chegar ao fim. (ele faz cócegas nos pés dela; ela faz cócegas nos pés dele). Ele: As mulheres!, de algumas gostamos das partes baixas do corpo, as formas e os volumes; de outras amamos o sorriso e o olhar, as músicas e as almas. Ela: se gostasse de minhas partes altas não teria deitado de cabeça para baixo... Ele: O pasto e a roça do cotidiano: a concretude, ali está a frase fixa, insubstituível. O pasto e a roça da fantasia: a abstração, ali está a frase móvel e múltipla. Ela: que não dá camisa a ninguém. Ele: olha quem está falando! Você às vezes se contradiz, caindo no prosaísmo que não condiz com o restante de sua pessoa. Ela: eu só ou toda mulher? Ele: o mimetismo não é apenas epidérmico, mas também anímico. Você transige de uma a muitas, muitas vezes. Isso é ótimo porque nem preciso ir longe para encontrar as outras na mesma. Agora, por exemplo, você está óssea, enxuta, deitada em seus louvores e ao mesmo tempo levantada em seus labores. Ontem, ao contrário, você estava magra e morena, os seios sumidos, os lábios molhados, os beijos vinham de dentro, mantinham o desejo nas cercanias. Amanhã, quem sabe, outra moça virá em você, quem sabe uma sua irmã desconhecida, de longe, mais fornida nos cantos e recantos, os lábios menos beijadores e mais beijados, a luz um pouco fora das palavras, esculpindo outros dedos nas flores de tua pele. Ela: é assim que pensa? enquanto esforço para me desdobrar, você, fingido na fidelidade, não se vai de mim? Ainda bem que sou ágil, né? É assim mesmo que pensa de mim? E o que penso de você? Você é sempre o mesmo nos calcanhares e nas orelhas, às vezes cansativo, sem motivos e razões. Muito errado, mesmo nos acertos, sem dizer uma palavra. Qualquer dia pego o trem e vou cantar noutra freguesia. Ele:Você fala por falar. Você pensa que a minha música é só o mi em cima do si sem dó? Não sei onde estou com esta cabeça que só pensa em você... Ela: prefiro dar o fora de mim para ver se encontro outro você na sua pessoa. Isso de ser apenas meia-pedra e meio-tijolo... Por que não se desdobra como um lençol ou como um cobertor e vem logo me esquentar um pouco? Ele: sou assim pobre nas linhas e entrelinhas? Ela: por que me escolheu entre tantas outras? Ele: eu escolhi? fui escolhido! Ela: escolhido por quem? por mim? Ele: por mim, por mim mesmo, alguém em mim escolheu você. Ela: e por que? Ele: não sei. Um sinal de luz ao longo de sua pessoa? Como o cineasta que procura a estrela que exprima a sensualidade mais permanente... e encontra num rosto as janelas do olhar no olhar a moradia do rosto que pode acolher o que cada homem procura na pessoa da mulher. Ela (senta na cama para rir...) etc etc....

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

OS HORIZONTES DO ITAMBÉ

A Cultura Popular de Minas Gerais (inédito) – Fragmentos: 

O Comportamento Popular. As normas de comportamento dos habitantes de Conceição do Mato Dentro, Serro e Diamantina, não se integram nem se complementam num bloco homogêneo, apresentando cada um características peculiares, às vezes conflitantes. Enquanto os modos (genéricos) de viver em Conceição são francamente populares e dinâmicos, desvinculados da classe dirigente local, cuja ação geralmente prima pela invisibilidade, no Serro a divisão de classes é evidente, para não dizer ostensiva (os pobres são tão desestimulados em suas iniciativas que chegam ao ponto de serem minoria populacional), tentando perpetuar, por assim dizer, um refinamento pretensamente aristocrático, notável na linguagem verbal das pessoas, sóbria e escorreita, e no apuro do vestuário e no bom gosto das moradias. Já em Diamantina o leque se abre, revelando maior variedade de posturas, naturalmente em virtude da capacidade municipal de atrair forasteiros (turistas e garimpeiros), o que evita a monotonia fisionômica da população. Mesmo assim delineia-se um traço inegável no caráter comportamental do diamantinense: seu gosto pela boemia, a curtição noctívaga das potencialidades existenciais. Se é certo o que Denis de Rougemont afirmou, que “todo amante apaixonado é um místico que se ignora”, não é menos certo o que constatamos em Diamantina: todo místico é um boêmio que se ignora. O diamantinense é o homem de igreja (sua própria casa, em geral, tem um ar de veneração espiritual) e do boteco, onde se espairece nas horas vagas. À noite, depois que os templos esvaziam, os bares e botecos enchem. Até os chamados idiotas populares, que vivem caindo de tontos nas sarjetas, falam constantemente de Deus, seus anjos e santos. “O diamantinense é um desconfiado”, disse-nos um funcionário público, adventício. È a velha desconfiança do garimpeiro (novo rico ou pobre esperançoso), acompanhada da cautela e da prudência, evocando o passado temerário, quando recebiam de Portugal, como anota Guimarães Rosa: “chusmas de policiais, agentes secretos, burocratas, tributeiros, tropas e escoltas, beleguins, fiscais e espiões, para esmerilhar, devassar, arrecadar, intrigar, punir, taxar, achar sonegações, desleixos, contrabandos ou extravio de ouro e de diamantes”. As pessoas bebem mais pelo prazer do que por vício, garantiu-nos um dono de bar, enquanto recolhia das mesas as inumeráveis garrafas vazias. A cerveja tem a preferência, enquanto nos Distritos e nas outras cidades mencionadas, a pinga, de pura cana, fabricada na região, é a preferida. As pessoas sabem beber, destravam-se um pouco, nos balcões e mesas, da sobriedade quase monossilábica de seus temperamentos, sem cair no outro lado, no excesso da indolência, da intemperança, da dissipação, da impudicícia e da gula. As pessoas que contatamos nos três municípios são autênticas até mesmo quando escamoteiam suas intenções. O lado emocional prepondera – e aí lembramos de Spinosa, para quem o sentimento possui a dimensão de existir e de ser. A alegria (o aumento da realidade) e a tristeza (a diminuição da realidade) são formas originárias das quais todas as outras nascem. Affonso Ávila observa que “primitivamente o povo mineiro era um ser alegre, expansivo, despreendido; a sua gravidade , a sua introversão, o seu apego ao bem imediato são em parte repercussões psicológicas da dura experiência do revés econômico da mineração”. Notamos que o povo de Conceição (ao contrário do de Diamantina e do Serro ) não conheceu o esplendor da mineração. Porisso é mais contingente, menos nostálgico, mais assemelhado com o povo de qualquer outra cidade mineira.

DOIS LIVROS DE POESIA INÉDITA

1 – A JANELA DOS ANOS ...página 7...: Os Vazios Cintilantes Falta luz ou falta quem acende a luz? é o Padre Zezinho, respondedor, que pergunta a própria realidade estremece acende e apaga nas vielas, quer saber se falta quem sonha ou se faltam os sonhos no coração. Ainda subsiste em nós os resíduos da divindade? onde? nos bolsos desaparecidos do corpo? nas pálidas reflexões da alma? o passado avança no futuro – os ritos africanos viraram feitiços no Brasil? a própria fé a serviço da violência em toda parte? a nau dos insensatos! o ergástulo dos excluídos! a dessacralização da natureza! é assim que se perde sem ver o amor convivial? Vamos fazer dos olhos uma arma? cantemos em voz baixa a metáfora dos vazios cintilantes – não temos noites a perder no derrame de insetos – a vida é uma criança: gosta mas tem medo. ...página 81...: A Ocultação do Cadáver Ele (movido por ciúme doentio) tirou a vida (tirou de onde não deveria estar?) do suposto (o ciúme a quanto obriga!) amante de sua amada (um Iago discreto porém solícito, que lançava olhares na direção dela para acicatá-lo). Ele deu dois tiros (pá!pá!) à queima-roupa bem ali no meio da rua, no meio da cara do rival – mas ninguém viu (o dia ainda não amanhecera? ninguém vivia naquela hora?). Assim ele teve pouco trabalho de arrastar nas sombras o corpo abstrato do presumível desafeto (e agora não sabe o que fazer com ele: esconde na moita? expõe à luz do sol?). É assim que ele esconde o poema (para protegê-lo do malogro ou da intempérie?, dos dias e lugares ferinos?), a projetar nele o que, irrevelado, já é saudoso. 

2 - POEMAS E PARÁFRASES Epígrafe de John Dryden: “a paráfrase é a tradução como latitude, em que o autor é mantido ao alcance de nossos olhos...., porém suas palavras não são seguidas tão estritamente quanto seu sentido, que também pode ser alterado” 1 – Num Canteiro de Flores (*) Esse lugar aí onde repousas a dois passos do bosque escuro onde o verde vivo da serpente assustada é ouro vivo nas mãos da fada. As trilhas que a alma segue à luz pendente o pássaro arcáico das quimeras tantos enfeites no chão trançado de sombras Esse lugar sagrado, onde repousas tornou-se mais belo com o tempo que até sofro em presumir, ái de mim! que alguma parte de teu apaixonado ser ficou infiel a mim aí nesse lugar debaixo da relva, onde repousas. Ou será que não estás mais aí e sim num lugar distante, e já me esqueceu? ou alguém ao lado de teu coração te afagas aí? e então?, por Deus, e então? Uma sombra de folha beija teus lábios? o raio de sol que penetra o seio da terra aquece teus pés e tuas mãos, mantém em serenidade teus meigos caprichos? Os brincos de flores silvestres e o pálio de auras e aragens e aromas bafejam o cordel de teus meigos anseios? Ou será que outro rapaz tomou aí a teu lado o meu lugar e ama-te aí mais do que eu aqui? Aí embaixo (como vou saber?) o intrometido não estará a enredá-la de palavras afetivas mais plausíveis do que as minhas? Pobre de mim aqui, a pensar feridas e tristezas aqui neste lugar de sombras onde estou, sob o qual docemente repousas. As luzes que minha alma procura estão nos olhos agora cerrados, estão definitivamente lacrados nesse lugar aí debaixo da relva? As abstrações ardentes de teu corpo imortal ornaram as paredes do jazigo, dilatando-as, e a orquídea que espelha a tua imagem pode conceber outra fé em teu amor? e a brisa primaveril que vem do rio pode arrebatar, parte por parte, minha lembrança em teu meigo afeto? Ah, esse lugar aí debaixo da relva! há muito ficou mais belo e afortunado, tanto que agora me faz pensar, ái de mim, que alguma parte de teu apaixonado ser me ficou infiel aí nesse lugar onde repousas.

(*) Paráfrase de um texto de Marie de France (1154-11898), citado por Will Durant, em História da Civilização (12 volumes), traduzido em prosa por Monteiro Lobato, edição da Companhia editora Nacional, SP, 1955.

terça-feira, fevereiro 21, 2006

CANTAGALO – A BACIA DAS ALMAS

Fragmentos. 

...página 9 ...: Os males de toda parte estão em cada um de nós. Cheguei à zona boêmia com um pé atrás, com os olhos pequenos para ver, como diria Drummond, tanta violência por metro quadrado, neste mundo. Era ali que ia afugentar minha solidão, que ia aninhar meu desamparo? Saia do espeto para cair na brasa? Pois era justamente ali que todas as solidões do mundo se reúnem para agarrar sua vida! Passei dias transidos, alheiados, cabisbaixos. Algum tempo depois, quando gostava de passeiar incógnita pelas ruas da cidade e ao regressar via na Praça do Cantagalo o espetáculo das casas horrendas no final da tarde – não podia acreditar que a libido e a sensualidade morassem naquelas casas horrendas. Por outro lado ficava na dúvida ao comparar as mulheres da zona com as da cidade. Ficava sem saber.Constatava que a considerada impura podia ser amável e até feliz, enquanto que a outra, presumivelmente pura, podia ser odiável e infeliz. Então, eu concluía, tanto faz tanto fez, o que não ganho aqui perderia lá, de qualquer maneira. ...página 18...: Ela sorria quando abriu a porta e acendeu a luz do quarto espaçoso e ricamente mobiliado. Estava segura de si, fechou a porta, desamarrou os cabelos, tirou os brincos e o colar. Ele ainda titubeava no alumbramento inesperado. Nunca experimentara algo parecido, emoção mais afortunada. Quem ela pensa que sou?: um criador de gado e dono de invernadas? Sou um pequeno agricultor, pouco mais que um pé rapado. Fico meio desconfiado: pois esmola demais não faz o cego desconfiar? Assim transido, o coração quase a saltar do peito, ele não sabia se prestava mais atenção nela, se dizia alguma coisa para assinalar presença. Ela está tirando a roupa?: é sinal que também tenho que tirar a minha! O que será que ela viu em mim, para me escolher no meio de tantos?... Ela tirava a roupa, peça por peça, os olhos dele não perdiam os movimentos dela –era como se uma pessoa estivesse a abrir uma mala repleta de jóias e debaixo de cada uma surgisse outra mais rara e valiosa – ele custava acreditar no que via. A sucessão de imagens nos olhos e nenhuma palavra na boca. Ela tem uns anéis miméticos, uns brincos de begônias cheirosas? Não está muito longe de mim mesmo quando se aproxima como agora? ...página 72...: Nos primeiros dias de zona meu corpo tornou-se uma escarradeira; e minha alma virou um bagaço. Todo mundo queria me conhecer, todos os homens queriam copular comigo. Chegavam a fazer fila no corredor, eu às vezes pulava a janela do quarto e ia esconder-me bem longe para descansar no meio das mulheres menos requisitadas, que faziam ponto nas sombras dos muros e dos becos. Morria de medo de contrair doença e de pegar filhos. Ensinaram-me que devia apertar com força o membro do freguês: se ele estrilasse é porque estava contaminado. Tomei horríveis garrafadas para inibir a concepção, tomava banhos intermináveis, esfregando-me com a bucha até quase dar no sangue, no esforço de extrair tudo o que pudesse ter ficado em mim, deles. Ganhava muito dinheiro, mas tinha que suportar aquele desfile de tipos nojentos, as caras obscenas, a nudez heterogênea, os pênis cheios de varizes. Abria as pernas, olhava pros lados ou pro teto, comia uma maçã, fantasiava o diabo para amenizar o bafo deles, o suor fedido, o gip-gip-nheco-nheco, a gemeção, o orgasmo escandaloso, o esporramento ignóbil. Aquilo era vida? ...página 155...: Também pudera que eu e o Tião sejamos assim como somos. O Cantagalo pesou em nossas consciências, amarrou a espontaneidade de nossas ações, inibiu a plena circulação dos nossos sentidos – devassava e publicava nossa intimidade, programava nossa vida, limitando-a como se nos aleijassem. Não sei o que acontece com as outras mulheres que saíram de lá, mas quanto a mim o apelo da mudança chegou de fora como o sol que entra na casa e transforma o cenário. O mesmo deve ter ocorrido ao Tião: o sol que atravessa a parede deve ter limpado as regiões de sombras de sua individualidade.Ele me pediu em casamento? Custo acreditar. Se fez isso é porque acredita, como eu, que a nossa saída do Canta representa uma promoção e não um rebaixamento. Se defronto na rua um ex-cliente da zona, não abaixo a cabeça na humildade nem a levanto no orgulho. Se estive lá por dez anos não foi por intrepidez ou ganância, não agi sozinha nem atraí ou seduzi ninguém. Fui uma profissional que prestava serviços contra-pagamento e nada mais. A angústia tem uma pergunta mais quente nos dias de frio: estou acaso desonrada em minha vida? Que atire a primeira pedra quem julgar que sim.

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

O DIA DO CASAMENTO (*)

Fragmentos do Romance inédito.

Página 27: Os dois no silêncio, como se não fossem casados e sim adúlteros de outros casamentos. O melhor fica para depois, na silenciosa veemência do olhar de cada um. Ela ria diante do pé de laranja do terreiro? Para a fruta ou para ele? O sorriso conjunto da pele e das vísceras, o brilho conjunto dos dentes, dos olhos, da aura, o alegre esvoaçar dos pensamentos (a licença poética de uma pausa atrevida) nos músculos da face, nas fibras e carnações, na ossatura e no sangue: é o convite para a festa de logo mais? ou já é a própria festa, licenciosa? Dir-se-ia que o corpo como um todo é um sorriso iluminado, a iluminar. Página 46 (dos originais): Não barre o caminho da alma (entre bromélias e barba de velho), só ela sabe onde vai, não aborreça a natureza, entrando e saindo dela, sem reverenciar seus altares... O amor tem a linguagem dos signos, o que diz fica subentendido, a rampa é tortuosa, a lua é um pão frio e duro, mas o silêncio bem tocado é música... de vez em quando é bom avançar um pouco no que ainda não foi lembrado nem intuído, avançar no escuro das hipóteses, adivinhar o romance controverso, arriscar a parábola esdrúxula...., mentir um par de verdades: quem sabe encontramos a claridade na escuridão do vazio?, ou alguma palavra que não precisa ser dita nem escrita para ser amada? algum sinal do novo entendimento? algum rútilo valor até hoje escondido no bojo da velha sabedoria? algo melhor para os lábios que as palavras: os beijos?! Às vezes as vozes dos outros são melhores, às vezes são como toras jogadas nas tábuas e nas folhas de zinco: riçam nas pedras... mas o coração da esposa não bate amor nem poesia: bate ira (ele pensava)..., bate ódio, ele pensava. bate ...: o quê mesmo? (página 54, dos originais): Assim foi, pois, depois da zanga recíproca na noite do casamento: depois de dias e semanas a remoerem reciprocamente a zanga inflamada, eles voltaram atrás na beleza dos olhares: - ele percebeu que ela era mais do que parecia, estava muito além do que tinha e carregava (tinha e carregava a hora cheia de coisas e as misteriosas citações do olhar).... Ela percebeu que o rosto dele mudava de feições (obscurecia e esclarecia, esclarecia e obscurecia) a toda hora e que as palavras não ditas subiam e desciam na garganta, a todo instante. A luz, se tem reflexos, tem sombras. Mas o silêncio chamava de dentro – e eles entendiam e atendiam! O inefável é uma medida de economia, não custa nada e pode ser debulhado na meditação, encher outras medidas até entornar para fora dos sonhos. Estamos mais juntos quando estamos separados, ó Tristão, ó Isolda!, isso não é lindo como a roseira na vinha entrelaçada? Quem se devota à literatura arrepende, arrepende sim..., mas tardiamente..., depois de se deixar apaixonar. Os olhos fixos na graça da encenação : toda nudez pressupõe a penumbra rosada ... mesmo no escuro o par de coxas sublimes é visível! O impulso fica mais em cima o coração do amor fica no meio fica no meio da alma e no meio do corpo.

(*) Estória dos cônjuges que brigaram na noite do casamento e nunca fizeram as pazes. Estiveram casados por mais de três décadas, tiveram uma porção de filhos – e nunca trocaram uma palavra sequer.

domingo, fevereiro 19, 2006

DOIS PATINHOS NA LAGOA I - Contos

Fragmentos do conto “A Maçã Está Bichada?”. 

Quem está levando o mundo para o buraco negro?, pergunta o goleiro Batatais, na varanda descoberta da piscina olímpica do Automóvel Clube. Ninguém presta atenção nas palavras e nos pensamentos de ninguém. Todos só tem bocas para comer e beber e olhos para ver e comer a semi-nudez das mulheres na orla branca da piscina esverdeada. A população do mundo, nesta altura dos acontecimentos, diz o becaço Píndaro, se reparte em dois blocos: o dos exibicionistas e o dos apreciadores. Eu, que já bebi muita cachaça, agora só bebo fio-dental. E você?, você mais parece um besouro a fazer brrrrr!, sem morder, sem engolir, diz, gozando, o lateral direito Biguá, que não deixa passar nem pensamento no seu campo de ação. A área da piscina é o cenário exibicionista das mulheres, ´principalmente das boazudas. Exibicionismo da sensualidade? Nem tanto. “Preferia vê-las num vestido longo no salão de festas lá mais em cima”, diz o Paulo Florêncio, capitão do time dos Casados. “Nem o fio dental daquela morena me levanta o ânimo..., aliás sou capaz de apostar se meio desta homaria toda tem ao menos um de pau duro vendo esse quase-nudismo da mulherada. Ninguém bolacha..., mas é só chegar lá fora, na rua, que qualquer uma delas, até a mais feia, que suspender a barra da saia ou mesmo rebolar um pouco com a calça esporte cavada, ah basta isso para pôr todo mundo em polvorosa”. Eu também preferia que o mundo acabasse em mulheres, camas e cortinados, numa penumbra de música em surdina. O corpo feminino tem muita semelhança e muita diferença de mulher para mulher, do bom para o melhor. Afinal o que qualquer homem precisa mais nesta vida? De uma mulher, é claro! Ninguém precisou mais de uma do que Dante; ninguém precisou mais de muitas do que Aragon. Mas acontece que elas estão saindo muito mais do que chegando. A cada instante é mais uma que some de nossas pretensões. Onde se metem na invisibilidade? Mas, olhem, lá estão as que nadam nos invisíveis rios de João Cabral de Mello Neto. O sorriso daquela do meio (entre as outras naquela roda) é uma imagem de amor a emergir da água, como diria o romancista José Saramago. Elas são mais iluminadas depois da meia-noite, no escuro do jardim vitoriano de Shakespeare. Por falar no bardo dos bardos,o erotismo mais antigo é o mesmo de sempre? Era preciso, naquela época, fechar a porta e apagar a luz? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. A permissividade marcou época nos tempos primitivos, penso, ao lembrar-me dos obscenos (obscenos?) desenhos parietais nas grutas do Levante Espanhol. Foi reprimida em alguns períodos dos tempos bíblicos, ressurgiu na decadência do império romano, foi novamente amordaçada na Idade Média e agora ressurge nas praias e piscinas, na tevê, no cinema, no teatro, nas mansões afrodisíacas da economia e da política. A permissividade é um pão barato e gostoso, um evento de êxito fugaz? Alguém que ouvia meus pensamentos fala das pernas de Ingrid Bergman e de Tippy Hendren, nunca mostradas ao público nos filmes. Ver não é tudo, ele mesmo responde: o melhor é imaginar. “Mas em compensação”, diz outro cinéfilo da roda, “as filhas delas mostram não só as pernas, mas todas as partes íntimas e profundas”. No tempo de Ingrid e de Tippy a maçã do paraíso não dava AIDS, - prossegue o pensamento rumo a nenhuma parte. Hoje o médico tem boa desculpa para encobrir a antiga ignorância, basta dizer que você sofre de baixa resistência imunológica. Ái de nós, pilheria o rapaz que só pensa e fala em ritmo de roque. Que assunto mais triste, uma das moças reclama. O que há?, rebate outro mesário: eu era bi, fui à tri, voltei a hetero..., mas o que toda mudança adiantou? A..., como se chama mesmo?, a síndrome da imunodeficiência adquirida não escolhe as vítimas, até mesmo uma pobre e inocente criança pode ser colhida. Não é de amargar? não é o frankestein clip-clip que ataca novamente? Santo Agostinho achava que o Diabo era igual a um cão amarrado, que só nos pega se invadirmos seu raio de ação. Mas agora parece que o raio de ação Dele não tem limites, a corda que o amarra é elástica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A astúcia no momento é a habilidade, é o recurso de me livrar das serpentes com as maçãs na boca, diz o Ademir da Guia, ponta de lança do time dos Solteiros, que acrescenta: e de me livrar, igualmente, das magníficas sereias com os belos cantos de suas curvas em meus moucos ouvidos, em meus loucos olhos.” Se cair em tentação, recomponha-se logo!”, - ouvimos a voz certeira, vindo do mais alto dos céus. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Na Inglaterra vitoriana as moças não podiam usar sapatos de verniz para que ninguém visse suas roupas de baixo nos reflexos. Quando eu era criança na minha terra, colocávamos espelhinhos de bolso no chão ou no soalho, onde as moças estivessem, na esperança de flagrar ao menos uma nesguinha do lance instigador de suas íntimas belezas. “Mas esse nudismo aí não me dá o menor tesão”, queixa-se o Barbatana, que se gaba de bimbar cinco vezes por noite, quando o tesão lhe dá na telha. “Cinco vezes?”, duvida o Negrinhão, tremendo gozador, “só se for quatro tentativas e uma desistência”. As cores neutras não interferem nas outras cores (a euzébia procura mudar de assunto, falando ao euzébio). Os tons que precedem são os mesmos que complementam, - ela acrescenta. Os teus braços são ponteiros de relógio, canta Orestes Barbosa, em outro tom, noutro lugar. Está na hora de ir pra cama, Fiona?, alguém lembra de ter ouvido. ela se chama Fiona? , ela quem?, alguém pergunta. A conversação enrola na mesa enorme. As palavras perdem o sentido lógico? O vale da rosa entre as duas montanhas...o que contradiz, empurra..., supérfluo ontem é essencial hoje... a mulher de Astúrias quer ter asas aos domingos. Quê patuscada é essa leréia aí? tem nego bebo aí? É o espírito que faz que um corpo ame outro corpo, ora essa, é o que sempre afirmo, e vocês não atentam! oh santo pecado da necessidade do prazer que o corpo tem! ela se chama Fiona? sabe deixar qualquer um em coma? quem aí já pegou ao menos uma das cores do arco-iris? Primeiro, o corpo é a rosa, depois a fruta: (ah o que não ouvimos na mesa de um bar!...). Primeiro deve ser amado, depois comido (se não comemos, a terra come): ...mas agora, como comer como comer a maçã se ela está bichada sob o plástico?

MEMORIAL DO DESTERRO

Fragmento, 1995.

Deus Seja Louvado (página 45). Ao par da doutrina e dos cultos sagrados, o povo elabora e pratica correções e acréscimos apócrifos, relativizando e adaptando dogmas e cânones às novas realidades e sonhos das pessoas que vivem a cultura do tempo e do lugar. Os ritos transbordam da eucaristia para a sacristia e dali para os altares ao ar livre, que são os cruzeiros das praças e das lajes de toda parte. A vida é mais ampla do que qualquer doutrina – e o homem do povo tem sempre uma saída em seus embaraços teológicos, respeitando os conceitos mais claros, interpretando a seu modo os mais obscuros e tirando o chapéu para os mistérios da divindade. “Ajuda-te que Deus te ajudará!”, é mais um dos mandamentos da lei de Deus, dito e repetido por todo mundo, como se saltasse da tábua de Moisés. Seus apelos de transcendência, sua carga mística (ora leve, ora pesada), sua pregação salvacionista, tudo isso visa adaptar o homem ao universo, espiritualizando as concreções, contextualizando as configurações. Das tradições de grupos nascem os consensos sociais. A religião é uma rede com seus buracos onde entram e saem outras indicações e outros rumos: somos todos filhos de Deus, mas cada um tem o deus que imagina e no qual acredita. O individuo se vale da religião para mitigar os temores, ansiedades e frustrações; a sociedade se vale dela para manter e fortalecer os laços favoráveis à estabilidade conjuntural. O homem tem muitas noções sobre Deus, como observa Jung. Quando está triste e dependente, Deus é pai; quando se sente desamado, Deus é amor. Goldenweiser mostra que o elemento comum à magia e à religião é a aceitação do sobrenatural com todo o fervor da crendice. A aura de religiosidade não se ausenta do lugar onde uma ou mais pessoas estejam (no mato, na rua) – e o esforço para sacralizar o próprio ser humano começa na dádiva do nome de cada pessoa, quase sempre invocando e homenageando um santo ou um anjo. Aos meninos, a dádiva do primeiro nome; às meninas, além do nome, os sobrenomes: as Tereza Cândida de Jesus, as Maria da Conceição, as Rita do Espírito Santo etc, enchem as páginas dos batistérios da paróquia de Nossa Senhora do Desterro. Em 13/04/1932 batizou-se o filho de Laurindo e Cândida, com o nome de Espera em Deus Cândido dos Santos (lembro-me dele, na infância, atendendo pela alcunha de Esperim. A família depois mudou para Betim e nunca mais deu notícias.

MEL E VENENO

Fragmentos. 1994.

1 – O Sono exangue Raramente perco o sono por causa da fome dos deserdados e da indigestão dos poderosos. Raramente perco o sono porque sendo um dos deserdados, só vou para a cama depois de muito pelejar contra os ímpios e seus escusos negócios - já quase morto de canseira e de sono. 

2 – As Águas, As Águas Enquanto me alimento da visão de teus seios dentro da roupa, desnudos sob a roupa, a noite pode despedaçar-se na montanha e tudo acontecer fora de mim. A umidade quente dos lábios a labareda clitórica da língua a seda da nuca, a perola do pescoço os seios desnudos sob a roupa. O brilho-oásis d umbigo, o reino encantado do púbis da vulva da vagina a cópula de setecentos orgasmos: quem me dera outra tarde igual!

Árvore no Telhado - Poemas

ÁRVORE NO TELHADO (1969) (fragmentos) – Lázaro Barreto


1 – Lírios, Pela Primeira Vez

Beleza é loucura.
A confluência do périplo de Orfeu
no espelho triangular das vozes líricas.

Beleza é tragédia.
A claridade excessiva é absoluta cegueira
- e que deserto é a metafísica visual.

Beleza é vitalidade,
com as flores em relação à fruta,
com os rios apensos ao mar.

A beleza é a verdade.
Luminosas raízes da árvore,
ó pássaro no interior da pedra!


2 – Marilândia

Alguma coisa eternamente imprecisa
apascentava os homens no arraial,
nos dias das cruzes de madeiras.
No inverno as vacas beatíficas
remoíam o verde do destino,
seguiam apartadas das crias,
aumentando nas árvores a tristeza.

Que silenciosa catástrofe não atende
ao apelo da noiva triste,
abrindo no infinito uma goteira
de água fria para seus pulsos?
Já eram enormes horas da noite
e eu ainda me feria nos poemas.

sábado, fevereiro 18, 2006

MONÓLOGO E PRANTO

Fragmentos. 

(Virginia, a menina): ...mas nisso atentei para a cantação dos galos: eu não disse que não sabia da missa a metade? um galo de barro, outro de madeira, tantos outros na folhagem de carne e osso... o canto vem de longe e chega aos pés da cama (deve ser do galo marrom da casa de Mariazinha), chega filtrado nas árvores da madrugada: sobe e desce o morro, esquenta os ramos, e assim atenuado é mais que um murmúrio que me aflige ao evocar o mataréu o esbarrancado, que envolvem nos perigos a casa dela. Num átimo vem a resposta do canto dele: chega o rompante amarelo do da casa de Ivone, aquele de penas revoltas e bico doce: chega tresmalhado como ele é no terreiro a batear asas e trepar nas galinhas a toda hora. Será que Ivone não acorda com o rompante? se acordou deve ter virado na cama e ouvido o bicudo aqui de casa alçando-se nas alturas e extensões, a pôr toda a força da vida na saudação do amanhecer. Ele empina o pescoço, libera a sufocação, atinge culminâncias de horizontes planos e inclinados. Ela deve ter ouvido o que ouvi: as respostas orquestradas dos outros nas quinze bandas: a múltipla derramação sonora, liderada pelo impávido galão emplumado da casa de Telinha, o cocorocó mais atinado, que empina a vibração debaixo dos pés de pitangas e amoras e limas de bicos: ele não se faz de rogado, é o rei do terreiro dispara as setas de cupido em todas as galinhas do mundo.... Fico a desejar que a Telinha espreguiçadeira, não perca a maratona de sons da linda alvorada (pois é de manhã que o dia começa nas roças produtivas): as intercalações harmoniosas, a fluência anunciante de mais um dia no mundo. Como as lonjuras aproximam-se! logo os cantos amiúdam-se: o enxame de vozes geométricas: cada quintal de casa roceira tem o seu cantor: centenas de galos afinados na comunhão dos santos de todas as partes do mundo. ...(Joamir, o rapaz)... Sou meio-sem-jeito de lidar com as moças fico sem saber onde pôr as mãos chego a bambear as pernas, se me aproximo fico sem saber o que dizer... o que há de errado em mim? os cabelos despenteados? alguma irregularidade (alguma mancha) nos dentes? sou acaso mais feio e desajeitado que os outros? ou será que ela não é flor para o meu nariz? é virgem na sabedoria e sábia na virgindade? sei que mesmo na concha há transparência e ressonância sei que ela arredonda a própria alma quando se põe a caminhar nas ruas do arraial sei que a beleza seria fulminante se se abrisse de uma vez pois só de espiar na fresta fico bobo de ver. A verdade vem da sombra e se torna beleza na luz... quando a luz apaga o sonho desperta... fico esmirrado nas cercanias da Água Fria: tenho os olhos maiores do que o estômago? quando vou rarear minhas idas ao arraial? ...(Lourenço, o velho)... A saudade é o amor, que lívido, retorna? é a necessidade de preencher a lacuna de uma separação? é a necessidade de refazer a união de uma unidade cindida? Desde que perdi a Dalva nas tormentas lá do Fundão que vivo a procurá-la dia e noite sem parar às vezes, cansado, penso que ela também me procura escondendo-se de mim nas moitas e barrancos nas anuviações visuais, nas abstratas imediações Foi assim que assumi o gosto de bater pernas para abaixo e para cima mormente nos lugares desertos e escuros mormente quando estiver chovendo e ventando o lume saltitante nas moitas reservadas que embrenha nos carrascais judaicos é nesse escuro que apalpo os tições, sem me queimar Será que sempre tive a mesma idade? um gosto a mais a cada dia que passa um fôlego a menos em cada suspiro? Os eremitas e penitentes freqüentaram em tempos remotos essas brenhas essas restingas esses breus? Os olhos arregalados dela agora os brilhos da espera demorada, os lábios gretados Ela está cada vez mais jovem e bela, mais linda do que nunca? O dia é bom quando demora a passar a roupa depois de velha dura mais Dou muitas voltas em torno de mim não abro mão de minhas licenças poéticas que são apêndices por assim dizer intrínsecos como os dedos as mãos os braços e as pernas.

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

AÇO FRIO DE UM PUNHAL

Fragmentos.

1 - A Voz Encarnada (*). A iluminação pública da rua noturna, filtrada pelos vidros das portas e janelas, banhava de penumbra o interior da casa, onde eu cabeceava, esperando a visita da mulher de toda segunda-feira depois das vinte e duas horas. De vez em quando as paredes bailavam , as emoções crepitavam...: seria a aproximação dela ou meras projeções de faróis de automóveis que passavam na rua ou então cristalizações, imagens de sons vocálicos de Maria Bethânia, suspirando nos arrepios? A mulher demorava. mas era bom cabecear assim na preguiçosa, possuído de novo satanismo, abstraído em novas encarnações, amando um novo percurso da imaginação à flor da pele pungida. Acabara de regressar dos sertões de outros municípios, lavando as mãos nos contos e poemas do levítico e do folclore, tomando o banho de água benta das canções ao mesmo tempo instigantes e purificadoras. O amor por meio de uma voz..., a voz é o amor da voz por dentro de cada parte de fora, por fora de cada parte de dentro: o sexo e o coração na mesma palavra, com os mesmos sinais de anomalias encantatórias. A voz dela nela é a impregnação e a encarnação de um calor que sopra e apaga o frio da alma desterrada. A mulher que demorava era também um mistério. tinha lá algum nome, endereço, marido, pai e mãe? Apenas chegava toda segunda, banqueteava comigo, e voltava para suas trevas. Se eu lhe pedia para ficar mais um pouco, que ainda era cedo, ela apenas respondia: cedo para quê?, para morrer? e assim ia, ou melhor, assim virava música na radiola. Em vez de ficar sozinho, aí sim é que me rodeiava de atenções objetivas (algumas) e subjetivas (muitas). Rochas se abriam como diáfanas cortinas, para dar passagem a tantas entidades telúricas, anímicas, lúdicas e oníricas, que eu tanto amo. A revoada de silvos e aragens abençoavam-me o corpo desamado pela mulher que então fazia hora comigo. A voz na radiola acompanhada do tinido de bandejas e chocalhos, tarolas e cabaças, imprimiam na janelinha mental os versos: pergunta ao poeta se ele me entende pergunta ao herói se ele me ama. Entre um samba de roda (“quê menina é aquela/ que entra na roda agora?!/ Ela tem um remelexo/ que valha-me Deus e Nossas Senhora/ que valha-me Deus e Nossa Senhora!”} e uma canção de protesto associando o carcará, que “pega-mata-e-come”, à figura igualmente voraz do enfezado tirano, ela, a mulher que demora, surge transvestida de bandoleiro e andrógino diadorim, ali mesmo no alpendre sertanejo de minha casa urbana, envolto de mimos nas almofadas sob o dossel da aquiescência do desvelo e da sinceridade. Embalados no aconchego da voz do amor recuperado, solerte e obstinado, eu sentia no ar o estrupício do gavião que chega com a notícia pedindo justiça social nos escombros da nacionalidade. Aí se erguem o corpo e a alma e, instantaneamente, o turbilhão de ecos selvagens que cavalgam na voz da cantora, abrindo porteiras, atravessando pinguelas, subindo nos morros da morte e da vida. Passado o impacto vem o alívio do intermezzo de um chamego, de um samba-canção. Mas mesmo de longe ainda se ouvia o hino dos radiadores selvagens, estribilhados por carcarás e siriemas. “Salve Estácio, Salgueiro e Mangueira, Oswaldo Cruz e Leblon”: o samba da Bahia é Carioca e vive-versa e vide-verso (“Ah que samba bom,/ ah que coisa louca/...eu também tô aí tô aí/, o quê que há?/... eu também tô aí nessa boca!...”). E agora alguém bate mesmo na porta? Será a cautelosa amante das segundas? Oh não, na verdade batem é no meu coração, com o gingado dos teremins, cilindros e coités. A voz novamente ganha o corpo ao embalo dos sinos, ao estrépito das bacias e obuses, apitos e buzinas do samba rasgado proibindo a morosa angelitude, liberando o vôo das garças e das graças das novas enfatizações de seus diálogos com o pistonista, de seus flertes com o sanfoneiro nordestino. Ninguém sabe abrir e fechar assim como ela, cantar assim como ela: com as asas e caudas, as vísceras e instintos melódicos, as veias e vias sonoras dos pés à cabeça. Assim da espiga as palavras se debulham verazes e sensíveis. Agora tento reproduzir o alcance da entonação do langor e do ardor onipresentes em cada sulco do pergaminho de azeviche. Mas não é bem assim que se colhe amendoim. Primeiro tenho que recordar o que ouvia dos passarinhos nos campos de minha terra natal, depois tenho que mentalizar a possessão erótica e... só assim...só assim a alma se despe para o corpo. Lembro que depois o cavalo rompia a subida do morro enquanto o sol dava os últimos acenos naquele pequeno fim de mundo, naquele grande fim de tarde de minha terra sem palmeiras, onde canta esta que vos tanto encanta. Justamente a que está com os seios de fora, o coração no céu da capa do disco, repleta de tutaranas e vagalumes e cajus e amoras, do lp do recital da boite barroca, do tempo que não passa nunca mais. Dois corações voluptuosos na ausência da mulher que eu esperava, a que portava, na semana passada, uma pequena mágoa nos lábios. A mulher dos olhos vistos pelos instrumentos musicais da noite mais pesada: as baterias do ódio e os violões do amor. Finalmente fecho a porta da casa para melhormente guardar os inestimáveis bens de cada canção (estive quase a dizer de cada coração) que dentro do meu antes pobre e agora enriquecido coração. 

 (*) Conto publicado em 1986 no livro em epígrafe, pela Editora Guanabara (RJ), e agora revisado (especialmente) para novamente homenagear à cantora.

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

OS CONTOS DO APOCALIPSE CLUBE

Fragmentos

Chega a Divinópolis o Bello Poeta Francês. Os carros levantavam a poeira vermelha da estrada cortada numa terra de cultura da gema, como dizem os roceiros das regiões agrestes do centro de Minas. Depois de contornarem uma das serras da cordilheira emparelhavam ao casario longitudinal de mais uma das alegres cidades do sul de Minas. Qual é mesmo o nome dela (Passa Quatro? Pouso Alto? Baependi?)? Como o povo vive em seus quadrantes e contornos? As mulheres são bonitas e dengosas? Os olhos delas movem-se quando elas andam? Os homens do lugar sabem conviver com elas, entender seus pormenores? Os carros da comitiva roncam, voam ao longo do percurso entre a vegetação e a cadeia de montanhas, nos verdes contornos sem limites. Mais de uma vez Blaise Cendrars, poeta francês que assumira o drama brasileiro dos pobres vexados, anotou que na viagem pelos rudes caminhos da década de vinte as árvores das margens viravam as raízes para o ar como os raios de uma roda vertiginosa. Ele é doido e ainda bebe?, diria quem o visse de repente. Ele era assim e assado, na graça de certa estranheza, sempre caindo na tentação da revelia, na vontade de domar a serpente estética, sempre a repetir que a vida das plantas é mais repleta de emoção do que um drama policial. Assim ele falava, trauteando um chorinho. Queria conhecer a Minas Barroca de São João Del Rei, Sabará, Ouro Preto, Mariana e Congonhas, ou seja, para ele o que seriam os anacronismos, as inverossimilhanças, as delineações formais do existencialismo mais natural deste mundo. Aqui nada embaraça a imaginação, alguém diz. Quem teria dito? De repente estavam num parque recreativo de Caxambu – e Tarsila Amaral e Olívia Penteado tomavam banho de água mineral da fonte da Princesa Isabel. A Tarsila tem o risco e o bordado no revestir e no adentrar (o que é triste dá outro sentido ao que é belo): sua boca não tosse, o nariz não funga, a saúde sempre à frente da moralidade, sempre loura como uma criança; a Olívia tem os seios apartados um do outro, como dois pássaros distintos da mesma sensualidade, que ela, constrangida, portava, como que contra a vontade. Só faltava na aquarela feminina a pureza mais primitiva, a meiguice mais criançola da Pagu, agora comendo o pão que o diabo amassou com o rabo nas hostes de um frívolo, acanhado comunismo tupiniquim. No dia seguinte, em dois automóveis, chegam a São João, onde conhecem a mulher nanica e capenga, na praça da Igreja de São Francisco de Assis, os olhos dela cheios de lealdade e confiança. Cendrars afasta-se um pouco para chorar, verter as lágrimas mais quentes da piedade. Depois todos vão a Tiradentes, onde conhecem o Lobisomem aprisionado nas muralhas do santuário das montanhas escarpadas, em negrito. Os outros integrantes da comitiva: René Thiollier, Mário de Andrade (atônito diante do sol agudamente vermelho no poente do altiplano horizontal que vai até à Ponta do Morro, onde os Inconfidentes discutiam seus planos de ação libertária) a ouvir uma vez ou outra os manjados galanteios do Oswald às damas-companheiras, antes de concluir, enfático, que o índio extinto não adorava Deus porque Deus é bom, mas adorava, sim, o Diabo, não porque seja mau, mas sim, porque é inquietante. Assim ele impressionava as mulheres mais do que as infundadas parábolas de baldada sedução. Gofredo Teles e Afonso Taunay (já picados pela mosca azul do integralismo do Plínio Salgado?) e Oswaldo Andrade Filho, abordavam as pessoas da terra, como se elas fossem de outro planeta: “nem contigo nem sem tigo: nem sem nada, nem contudo” – era assim que pensavam e conversavam, em conjunto. Nos ramos de todos os lugares os pássaros trilhavam o ar de ideogramas e epígrafes talvez apócrifas e/ou blasfemas. Uma tertúlia itinerante sob o sol e a chuva do conhecimento que alarga e aprofunda o mistério de todas as coisas. As pessoas são diferentes, o clima é mais quente e arejado, a mente abre mais as pestanas, o coração até parece parar de tão descansado. Assim eles chegavam antes de terem partido, apertavam as mãos dos desconhecidos, como se os conhecessem, episodicamente. No dia seguinte chegam a Divinópolis, de onde seguirão para Sabará, dois ou três dias depois. Blaise Cendrars, o belo poeta que havia perdido um braço na primeira guerra mundial, ficou à vontade no meio dos franciscanos, ferroviários e carroceiros. A Tarsila (tinha o sexo literalmente doce, metaforicamente verde e realmente lindo) namorava o Oswald, enquanto ouvia de Cendrars a intenção dele de ambientar na cidade um romance surrealista. Mário de Andrade recolhia as imagens para compor seus festins poéticos e folclóricos, mergulhando no(dizer dele) melhor chuveiro do mundo, do Íris Hotel, que ainda existe até hoje. Depois Cendrars proferiu uma conferência em latim sobre o romantismo de Victor Hugo para os franciscanos holandeses (que ele confundia com os jesuitas) e ferroviários em plena praça da estação. Cada linha de suas palavras era, conforme Cocteau, uma tatuagem indelével. Les négres parlent tours latin et ne travaillent pás. Isso mesmo: os morenos da ferrovia danaram a cantar em latim, entrando na greve começada pelos carroceiros da praça da estação. As mulheres da cidade deitavam sobre os trilhos, impedindo a marcha do trem de ferro. Por que Tarsila não aproveitou num quadro a óleo essa imagem da obstinação e do despreendimento femininos, malgrado o obstinado e despreendido machismo daquela época? Olívia queria conhecer os arrebaldes, os ritos de passagem do Desterro, as encomendações de almas da Bocaina, a fabricação caseira dos queijos do Buriti. Mas Gofredo Teles prognosticava a escalada da radicalização direitista da política, enquanto um frade debatia com Oswald a doutrina da antropofagia: se o colonizado come o colonizador, ah, daí pode resultar o meio-termo da nacional-democracia, vereda perigosa, que pode levar à outro banho de sangue. Blaise Cendrars levou Mário à beira do rio das itapecericas para verem os bagres saltando sobre as pedras no líquido vento das multiplicadas cachoeirinhas. Segredou-lhe que o pessoal dali não era flor que se cheirasse facilmente, dando a entender que deixava de lado muita coisa de si e mostrava só o que não podia ocultar. Sabe, fiquei sabendo de um prefeito daqui que comia a mulher de um doutor, e lá um dia ou outro ela se aborreceu e desfechou três tiros no coração dele, dentro de sua própria casa, depois de terem comido da maçâ aos dois proibida. E sabe o que o marido dela fez, ao chegar em casa? Apagou as impressões digitais da esposa na arma e desfechou mais três tiros no cadáver estendido no tapete da sala. Eta homem, heim? esse é dos nossos! Eta mulher, heim? Eta três pessoas arretadas, heim?, desabusadas, heim? Serão personagens do romance que vou escrever quando voltar para a minha Oropa-França-e-Bahia. Tarsila (o nariz escorreito na perfeita conjunção dos olhos argutos e da boca capitosa: só de encostar os pensamentos nela que o Oswald esquecia sua penca de mulheres subalternas) queria pintar as lavadeiras do Canto da Mina, mas tinha esquecido o pincel no carro que regressou a São João. Cendrars pegou o grisu e foi ao Bairro Operário da Esplanada das Oficinas para ver de perto a sistemática operativa da rede mineira de viação. Bateu inúmeras fotos nos olhos mnemônicos para revelar e montar, depois, um painel romanesco. Estava maravilhado e nem sentiu a aproximação de Mário, que estava aflito por rever Henriqueta Lisboa, musa e poeta das alterosas, cuja imagem de calafrio e rubor aproximava nos sonhos dele e depois distanciava na realidade. Ele morreu solteiro, ela morreu solteira. O franciscano argumentava: só o ensino das artes nas escolas pode restabelecer o equilíbrio entre a tecnologia e o humanismo. Olívia prenunciava o som do olhar, colhido cinqüenta anos depois em muitas moças da cidade por seus poetas inibidos e arredios. Ela se prevenia dos agouros, beliscava os braços de Tarsila, que parecia viver só de beijos e abraços. E por falar em abraços;quê falta que todos sentiam de um dos braços do belo e talentoso poeta francês.... Que parecia anotar num dos cadernos da cachola lá dele: todo autor deve ir com calma, sabendo que ninguém está a morrer por causa de sua imaginação travada ou solta. Mas se algo nascer dela, no devido tempo de sua luz natural, tanto melhor se fosse uma coisa válida e bela, que recompense o trabalho de parto que deu. E todos viam as palavras andando pelos campos mineiros até os horizontes circulares e montanheses, alçando vôo ali, aterrissando acolá, reverenciando uma curva, aplaudindo o pássaro das quimeras nas grimpas do jatobá, ali pelas bandas de Azurita, agora todos encavalados nas poltronas da primeira classe do trem de ferro que os levavam de Divinópolis a Belo Horizonte. 

(Escrito depois de ler o livro “A Aventura Brasileira de Blaise Cendrars”, de Alexandre Eulálio e Carlos Augusto Calil).

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

TAMANHO NÃO É DOCUMENTO

O intercâmbio entre o grande e o pequeno é uma viagem dos olhos nas esferas e nos ciscos. O grande não é a aglutinação dos pequenos, o pequeno não é uma redução do grande. Uma dor, coisa abstrata, invisível, pode ser maior que a montanha. Mas a fome, o desespero e a morte, sendo realidades ao mesmo tempo abstratas e concretas são grandes, imensas e suas garras desnutrem, enlouquecem, pulverizam os pequenos valores fundamentais da vida e do mundo.

domingo, fevereiro 05, 2006

VELHOS POEMAS

1 – A Janela Erótica: O vulto perturbador atrás da vidraça é da mulher com seus órgãos musicais e sexuais. O inocente exibicionismo dela custa-me os olhos da cara - é o seu ícone fugidio? O que ela contrái em seus eventuais transtornos? a nudez faz bem em certos momentos, faz mal em outros? tem um perfume que de longe inebria? e como fica então a purgação dos pecados? a amargura atrapalha a beleza? o coração está em toda parte do corpo? As outras vísceras choram de inveja no corpo esbelto? a mulher sobranceira depois se esgarça em vultos na lenta ocupação, na arrumação da casa, na penteação dos cabelos, na trocação de roupas e de peles: é uma imagem invisível daqui a pouco? uma estrela mirrada na lonjura de um céu repleto de impossibilidades? um apelo carnal agora sem força persuasiva? uma sugestão de penumbra a espantar o sono? 2 – Essas Mulheres: Sara chamava detrás dos montes Rute colhia as espigas na roça também Ester, Judite e Raquel eram doces filhas do Amor. E o Senhor nas nuvens era e é um arco retesado. 3 - O Amor de Deus. Os católicos cantavam na nave da igreja. O canto vinha das artérias anímicas de uma sereia de pernas e glândulas? Vinha despertar os instintos e as venturas. Em dado momento senti o perfume de um cotovelo a pressionar meus rins. ela o fazia por querer? Um dos seios dela cotucava um de meus ombros? senti o arrepio, a tepidez da manhã dominical nos ares dos mais íntimos pecados dela. Ela fixava o altar povoado de santos. Acompanhava, contrita, o ágape sagrado. Eu namorava seu perfil ruborizado, a fra- tura dos lábios sanguíneos e pregueados. Os católicos cantavam na igreja. Os acordes banhavam os anjos pintados e esculpidos, perfuravam os paramentos e a acústica, volviam aos peixes e aleluias das vestes que desnudavam os desejos inconfessáveis daquela santa mulher ao meu lado. Deus está mesmo em toda parte.

O OURO AZUL DA ANSIEDADE

Assim ela canta no quintal de nossa bela e querida Marilândia. Uma canção entre pitangueiras quando reamanhece na tarde doméstica? Ilíada? Eneida? Sereias aportando no meu reles quarto de solteiro? Ela canta – e não apenas ouço: eu vejo e tento agarrar e comer. Pássaro arcaico das quimeras? plumagem dionisíaca ou apolínea? Saudade das antigas jabuticabas? Promessa de futuros fervores?, ou apenas uma fruta momentânea? Ouro também!, íntima pedra, hoje madura e eufêmica. Sei sim que amar é assim: um não dizendo sim no céu das muitas e muitas incertezas? Um sim inaudível dentro da noite? Será que o amor é assim?

sábado, fevereiro 04, 2006

POR QUE CHORAS, SAXOFONE?

Fragmento do romance inédito.

Ima Sumac cantava o hino pange, língua, gloriosi córporis mysterius na procissão da Catedral da Boa Viagem até à Igreja São José na quinta-feira santa... eu seguia perto do andor e da banda sem perder um timbre cintilante... ela cantava o sangue dos céus, que foi o preço do mundo e o sparso verbi sémine ninguém nunca celebrou o tantum ergo sacraméntum assim - era mais grandioso do que em Saúde, mas eu via as pessoas de Saúde nas pessoas de Belo Horizonte... as antífonas as matinas e laudes o cibório o turíbulo os sentidos em genuflexão – (não tirei os olhos e os ouvidos de Ima Sumac)- era desejo do pai que me ordenasse sacerdote e assim pudesse um dia recitar a celebração do dóminus sit in corde tuo, et in lábilis tuis mas ele morreu cedo e minha fé fragmentou-se em outros ramos do mato. Mas a lingüiça não corre atrás do cachorro... se um dia esfriar a cabeça conseguirei obedecer-me? temo a densidade da redução os dentes pontiagudos nos maxilares a árvore da vida, o rio da morte as vontades de viver e de morrer alternam-se... por preguiça não voltamos ao paraíso, diz Kafka mas manhãs das aleluias rebentadas metade sol metade frio... revejo as moças da Espírito Santo com Tupis: Deanna Durbin em novos ritmos de andar e de vestir Ann Blytt, novas formas de beijar nas vontades Myrna Loy a xingar os macartistas, a dar de ombros... as ruas cortam pastos e palhoças empurram ao deleite do precipício a árvore que corria no cerrado, eu vi! a obscura sobra da claridade dela que alonga na sabedoria a hora de escolher uma das moças: a que aproveita a sobra obscura da claridade até morrer de velha nas novidades. O que flui, flui da aurora: a fonte é o destino... ................................................... Nosso Senhor Jesus Cristo, depois de falar e fazer ouve e sofre: mexeu na caixa de marimbondos, tem que agüentar os ferrões! são três horas de treva no Gólgota: Eli Eli Sabachtami? abandonado pelo pai pelos irmãos, expira... e agora, como podemos ser felizes? Ima Sumac pergunta “meu povo, o que te fiz eu ou em que te contristei?” o coral das vozes da Boa Viagem responde: “eu te alimentei com o maná do deserto, e tu me alquebraste de tapas e açoites”... flect ramos, arbor alta, tensa laxa víscera, ela prossegue, cantando até que se apagam as velas e o silêncio baixa sobre a nave.

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

DECÁLOGO DA SEDUÇÃO IMPERCEPTÍVEL

1 – Não seja afoito se quer equilibrar os dados do cérebro e do coração. Quem quer pegar um pássaro não chega dizendo xô. Quem quer pegar um peixe não dá varada na água. Chegue mansamente, inspecione o terreno no qual vai semear seus sentimentos. Tenha o corpo esguio e lépido para abrigar a imensa imaterialidade da alma. Se a alma do(a) amado(a) não é pequena, um certo sacrifício vale a pena, como diria Fernando Pessoa. 2 – Não seja amargo(a) se espera ternura, nem azedo(a) se espera doçura. 3 – Cuidado com o andor, que o santo é sempre muito delicado. A generosidade excessiva leva a perda do pudor – Nietische já dizia. Quem tem pressa de dar, fica sem tempo para receber. Ir pela sombra é apreciar o sol melhormente. 4 – A promessa implícita é mais valorizada – e às vezes o presente está nela, na promessa ao mesmo tempo espontânea e implícita. 5 – Cuide bem do seu corpo, ele é que abriga e conduz sua alma cheia de luz diáfana. 6 – Não se canse na expectativa nem na ação. Nem canse a quem espera que o(a) deixe descansado(a). 7 – A melhor parte do que é bom tem que ser prorrogada. Todo santo dia tem uma santa manhã. É melhor saborear pelas beiradas do que devorar sofregamente. 8 – Lute jeitosamente pelo que quer. Uma vez conseguido o objetivo, continue a lutar, jeitosamente, para conservá-lo e/ou melhorá-lo. 9 – Só será amado(a) se souber amar. Às vezes negar é uma boa maneira de conceder. Só sabe amar outra pessoa quem ama e conhece a si mesmo – e tem interesse e paciência para conhecer (aos poucos e ao menos um pouco) quem vai merecer o seu amor. 10 – É sabendo que o amor de ambas as partes pode acabar, que você aprenderá a mantê-lo nos momentos de venturas e de intempéries. Que o seu amor seja um sonho para o seu sono, um fundo musical para o seu trabalho, uma descontração para o seu lazer – e que assim, bem conduzido, possa mostrar sua bela face de felicidade. 

Com o texto acima o autor pretende exemplificar como é fácil embrenhar-se no gênero da chamada auto-ajuda, tão rentável hoje em dia. Acrescenta, todavia, neste pé de página, que a facilidade, na literatura, é o apanágio da mediocridade, e que piamente acredita, nesta altura da riqueza histórica do inventário literário, que o desafio da dificuldade deve prevalecer nas intenções de trabalho dos novos autores, como é o caso dele mesmo.