domingo, abril 30, 2006

MIMO DE VÊNUS

O livro é uma casa um jardim um quintal nele os feixes de palavras são ramalhetes de flores são objetos de serventia e decorativos que ascendem e ou descendem da genealogia moral e biológica da arte ou seja da cultura material e ou imaterial cada pé de flor tem seu nome e perfume cada pé no chão tem seu gene plantado cada árvore tem sua maternidade é a vida vertical que se esgalha generosamente.... Anos a fio o hibisco do quintal lá de casa (que tem o melhor nome de mimo de vênus, que tem o melhor nome de beijo) plantado erguido no terreiro da cozinha rural espoucou seus cachos esguinchou suas corolas lançou os perfumes de auroras e clorofilas tudo assim colocado com o ar da graça a fim de que o poeta que eu deveria ser cantasse as beatitudes de suas felizes manifestações. Tudo debalde porém. Eu que o via todo santo dia, varria suas folhas e pétalas como lixo vegetal... Era só o que me faltava cometer de ruim ao longo da insônia desta vida! Eu que o via todo dia sorrindo de vermelho em sua pródiga florada e que de tanto oferecer a femininilidade de seus estilos de seus ovários e estigmas a ouvir suas habituais palavras hagiológicas seminais semióticas eu varria o chão sem dó nem piedade sem jamais colher e beijar os versos as estrofes os poemas do livro trêmulo em meus olhos e mãos aberto aos pássaros abelhas formigas fechado para o ingrato que eu então era e tanto era! Mas agora a bater no peito exclamo: Mimo de Vênus! o que mais me ficou da herança helênica é essa árvore de vermelhos beijos. Dos vermelhos beijos do amor à vida!

O SOM E A LUZ DO SUBMUNDO

François Billard, no livro “O Mundo do Jazz”, diz que até à década de 40 a maioria dos músicos norte-americanos consumia drogas leves ou álcool. “De porre você toca melhor”, eles diziam uns aos outros. Mas até hoje a boa música fica em maus lençóis se interpretadas pelas vítimas do álcool, que é ainda pior que a maconha. Beber é destruir o corpo, alguns deles diziam, mas havia entre eles a necessidade de levar uma vida diferente e de reter os sonhos no nascedouro. O alcoólatra e o toxicômano confundem calorias com o calor humano, inconsciência com ausência e quando acordam em si já estreparam de corpo e alma. “Quanto mais duro o despertar, mais frenética é a necessidade de reter os sonhos”, Billard diz. Um trago aqui e outro ali e logo terá que beber um galão inteiro para manter a euforia. Depois o vinho não bastará e alguém recomenda adicionar benzedrina na coca-cola. Aí então o mundo fica mais belo (?), as mulheres mais meigas (?), a inspiração mais generosa (?) – e é assim que se vai às pressas para o pronto-socorro do hospital, como o pistonista Bix Briderbecke interpretado por Kirk Douglas no filme “Êxito Fugaz”. Depois da década de 40 o vício como moda entrou na fauna criminal, fez seus adeptos e estragos. Sempre havia intelectuais pregando uma vida diferente e ligado à parafernália da revolta, que ligava também a um universo mais prosaico, o da miséria dos negros e das minorias numa “América que procurava encontrar sua própria expressão” através da música popular (ragtime, swing, bebop, boogie-woogie, rock’n rol e principalmente o jazz). O alcoolismo propagou a compulsão de beber que é igual a de comer, ou seja, se satisfeita, a pessoa engorda e adoece, se não satisfeita, a pessoa sofre mas cria algo de si em si. Mas o pior do alcoolismo é a herança que deixa, geneticamente: os filhos e netos já nascem com o gosto (a ressaca?) de sal ou de açúcar na boca, exigindo a satisfação da fome e da sede tornadas incontentáveis. Alguma semelhança do jazz de lá com o samba daqui? O jazz, lá, era e é uma espécie de primo pobre da música popular, enquanto que aqui o samba é o primo rico do chorinho, do baião, do xote e de tantos outros estilos e ritmos. O jazz, ainda segundo Billard, era o prolongamento da voz humana, o conjunto de cores que sombreiam a negritude cultural de um país que fartamente alimentava o preconceito racial. Para o jazzmen escrever um arranjo era compor (ou recompor) e para todos os aficcionados a parte escrita da música e a improvisação sempre coexistiram livres e brilhantemente. É preciso estar errado de vez em quando, Louis Armstrong dizia. Não consigo cantar duas vezes do mesmo modo a mesma canção, Billie Holiday dizia. Tudo isso e a odisséia subterrânea dos costumes durante a Lei Seca davam ao negro a opção de tornar-se um músico ou um marginal: o horrendo tornado belo ou mais horrendo ainda. Em termos de popularização, os músicos brasileiros são mais conhecidos nas peles dos cantores e dos compositores, enquanto que lá isso acontece mais com os arranjadores e os instrumentistas. Os ícones do jazz em sua idade de ouro (Armstrong, Charlie Parker, Benny Goodman, Jolly Rool Morton, Glenn Miller, Bessis Smith, Duke Ellington, entre outros) têm a correspondência brasileira (Noel Rosa, Geraldo Pereira, Pixinguinha, Ary Barroso, Erivelton Martins, Aracy de Almeida, Linda Batista, Orlando Silva, Ataulfo Alves, Chico Alves, Lupiscinio Rodrigues etc) na sutileza das invocações e evocações, no aprumo da conjugação da belíssima trindade da harmonia-melodia-rítmo. Dois Gêneros musicais, duas culturas, duas nações em muitos aspectos aparentadas: o jazz quase sempre improvisado e o samba, mesmo o pegado no ar como se fosse um passarinho, é quase sempre composto com letra e música na pauta com as notas e claves e o arquivístico ouvido dos executantes e ouvintes. Duas nacionalidades diferentes, duas línguas diferentes (a nossa com a predominância das vogais, a deles com a das consoantes), duas vertentes musicais que talvez se encontrem numa das extremidades. Mas o samba não deve nada ao jazz (infelizmente não podemos dizer o mesmo de outras (im)possíveis afinidades).

sábado, abril 29, 2006

SAGRADAS ESCRITURAS E PROFANAS LEITURAS

“O Priorado de Sião acredita que Constantino e seus sucessores do sexo masculino conseguiram converter o mundo do paganismo matriarcal para o cristianismo patriarcal através de uma campanha de demonização do sagrado feminino, eliminando a deusa da religião moderna para sempre” – página 134 do romance Código Da Vinci, trad. de Celina Cavalcante, editora Sextante). No capítulo das aversões e predileções ao longo de minhas torrenciais leituras, tenho encontrado mais deméritos que méritos nos propalados best-sellers, isto porque os autores que visam o sucesso fazem demasiadas concessões à leitura fácil da linguagem de lugares comuns e bonitos, palatável e digerível, priorizando o entretenimento muitas vezes através do engodo e da contrafação, virando as costas à verdadeira literatura, que é algo bem mais complexo na esfera da criatividade, que não pode ser confundida com a leviandade. O romance “Código Da Vinci, de Dan Brown, tem os ingredientes da leitura entretecedora e enternecedora, consecutiva e estimulante. Você começa a ler e não encontra o momento de parar. É uma esperta e lúcida incursão nos segredos das crendices postergadas por decisões conciliares e autos-de-fé promovidos pelas classes dirigentes das religiões seculares, que abala o coração e a mente do leitor interessado na história das relações humanas e ao quadro dos mistérios da transcendência. Faz pensar e nesse ponto aproxima-se do que de melhor uma obra de arte pode fazer para entreter e inebriar. Avistamos, tropeçando e volteando, as relíquias e símbolos, os orbes e signos gráficos e escultóricos, ressaltando aqui e ali as menções ao processo de demonização feminina (uma distração perigosa que incomoda), ao nostálgico busto de alabastro da deusa Isis, às metáforas e alegorias e hipérboles da fé, à intolerância do Opus Dei, e de vez em quando, aos sonhos e canções e sussurros das rosas. Os temas cruciais da cristandade são debatidos sob o viés de uma constatação dialética e não sectária. Ainda bem. Uma espécie de simpósio diletante, no qual as questões em debate carregam propositalmente os laivos da tensão existencial, instaurando, assim, um cenário de apreensão, um certo prenúncio de terror apocalíptico. Brown não atinge a profundidade hospitaleira de um Humberto Eco, mas suplanta os diluidores do manancial dos tesouros dos sistemas de crenças consagrados e sigilosos. Com muita argúcia, ele reabilita a imagem ponderada de Maria Madalena, repetindo que ela nunca foi prostituta, afirmando um tanto aleatoriamente que ela foi casada com Jesus Cristo, revelando precisamente sua descendência real (ela era da casa de Benjamim, e Jesus da casa de David, ambos oriundos da mesma realiza bíblica, uma transposição dos divinos predicados de Isis, o mistério sob o prisma da beleza. A tentativa de conciliar as metáforas e símbolos, as alegorias e hipérboles da fé religiosa com o sentido literal do nacionalismo, é o esforço dominante do autor, que habilmente leva o leitor até à última página, sem bocejar, sem engerizar. Aí reside o maior valor da obra. Um lúcido intróito aos domínios da obscuridade. Obviamente o entrecho está repleto de idéias feitas, mas, pelo menos, desentranhadas do dogmatismo. As idéias feitas e a linguagem transparente fazem parte da mercancia livreira, que repugna, obviamente, os autores considerados “difícies” como Proust, Kafka, Joyce, Beckeet, Faulkner. É uma leitura profusa e instigante, que “agrada” mais pela linearidade silogística de prenunciadas conclusões, à moda dos chamados romances policiais. Mas ao leitor é sugerida a busca de outras fontes, já que a própria obra, sendo literária e não científica, se exime de tornar-se uma fonte crível para novas articulações. Sabemos que toda clareza no conhecimento é um tanto suspeita, já que sempre traz em si algumas nuances de nublação. E um certo desafogo logo vem quando fica claro que o autor se vale da história da civilização para afirmar que o Imperador Constantino, em 325 d.C., é que fez a colagem dos mais de 80 evangelhos gnósticos para unificar Roma sob uma única religião, defenestrando de vez o paganismo de suas múltiplas faces, aproveitando muito dos fundamentos desses evangelhos, canonizando por assim dizer o sincretismo e seu caudal ritualístico. Toda a fusão das religiões foi promovida no famoso Concílio de Nicéia. Onde estão as brisas de antanho, os mestres e mestras de outrora? E as deusas e deuses de tantas culturas sociais, em que olvido raso ou profundo estão sepultados? Eles fazem muita falta à nossa atmosfera, não? Dos deuses ficou o Deus Das deusas, nem sombra ficou. O que as afanadas divindades fizeram de mal a nós, eternos penitentes? Por que nem se fala mais neles e nelas? Por que o Sagrado Feminino foi assim censurado? Meu Deus, minha Deusa Minha Deusa, meu Deus Quem não vê o que acabou acontecendo? : a Deusa morrendo, a mulher passou a sobreviver de teimosa. É a cara-metade que só tem olhos para chorar? Só tem boca para soluçar? E então? e então o machista a posteriori virou um simples onanista? E então, feminista ressentida: que tal recuperar o aroma da brisa de antanho? Por que as religiões, tanto a cristã como a muçulmana, excluem a mulher de seus orbes? Por que as religiões ficaram nas exclusivas mãos masculinas? Por amor? Por temor? Os homens (e não as mulheres enquanto femininas) encontram na violência a política (o mandonismo) e justamente aí perdem a poesia da vida e do mundo. As mulheres (enquanto femininas) encontram na piedade a poesia, elas as piedosas mulheres rumo ao calvário, as musas no apogeu e no epílogo helênico, pecadoras no prefácio judaico, e depois e até hoje em dia: brutalmente relegadas à prisão domiciliar e aos forrós dos prostíbulos na irrisória modernidade dos novos tempos. Que trapalhada, heim? Por que ainda hoje quase toda família reserva à mulher uma prosaica, uma humilhante posição subalterna? Elas que não crucificaram Jesus e sim choraram e velaram a via-sacra Dele, nada podendo fazer a não ser chorar e chorar. As piedosas mulheres: ei-las no martírio e no sepulcro: a Maria, Nossa Senhora das Dores, do Desterro e das Graças, acima das palavras e dos sentimentos; Maria Madalena, a que sempre ficava do lado direito Dele nas reuniões, a que sempre merecia Dele um olhar especial, a beneplácita ancestral dos meronvígios, a que mais de perto testemunhou a Ressurreição; Joana, a esposa de um Procurador de Herodes, confiada no instinto e na intuição; Maria, a mãe de Tiago Menor e de José, a que Jesus havia salvado das mãos de Satanás; Salomé, a mãe amantíssima dos filhos de Zebedeu, fiel seguidora da via-sacra do Nazareno, a que comprou bálsamo para ungir o corpo Dele; Marta, irmã de Maria Madalena e de Lázaro, afadigada na lida da casa, preocupada com o ensinamento da irmã ciosa da beatitude misericordiosa; Berenice, a que anos a fio padecia do fluxo sanguíneo e que em vez de falar e de pedir, tocou na fímbria da roupa Dele, sabendo que do toque sairia Dele a virtude, e assim ficou curada para o resto da vida; Inonimada, a prostituta, que ajoelhada atrás Dele, banhou-lhe os pés com as próprias lágrimas, enxugando-as em seguida com os próprios cabelos, ungindo-O para merecer o perdão de seus pecados e ouvir Dele as enternecidas palavras do Amor. 

Bibliografia: O Código Da Vinci, de Dan Brown; Quebrando o Código Da Vinci, de Darrel L.Bock; Fragmentos dos Evangelhos Apócrifos, de Padre Lincoln Ramos; Novo Testamento, versão segundo o texto original, de Padre Matias Soares, especificamente nos Evangelhos: Lucas 7-36, 8-2, 8-3, 10-38, 24-10, Marcos 5-25, 15-40, 15-47, 16-01, 34, Mateus 9-22, 20-20, João 1-14, 11, 12-2.

UMA INFLUÊNCIA QUE EXORBITAVA

Texto inédito de uma entrevista que o escritor Lázaro Barreto concedeu a um grupo de estudantes de Santo Antônio do Amparo, em 1997, depois da publicação da correspondência recebida de Carlos Drummond de Andrade no Jornal HOJE EM DIA, de BH, através do poeta Alécio Cunha. 

Pergunta: Como foi o começo de sua correspondência com o Poeta? Resposta: Partiu de um ato consciente. Escrevi a carta como se no momento não pudesse fazer outra coisa. Mas, por que escrevi logo a ele?, porque estava tão drummondizado literariamente que a influência exorbitava do exercício literário e impregnava minha própria maneira de viver. A quem, pois, deveria recorrer? Parece que ele entendeu o problema e respondeu-me prontamente, a seu modo, incisiva e afavelmente. Pergunta: O que mais despertou seu interesse na obra dele e não na de outro autor? Resposta:Eu vinha lendo poesia brasileira e estrangeira (traduzida) desde a primeira juventude. Aos 29 anos de idade (em 1963) entendi que a literatura brasileira dispunha de duas vertentes principais, a do estoicismo e a da dissipação. De um lado, depois dos parnasianos, estavam o Bandeira, o Drummond, o Graciliano, e Outros, até culminar no João Cabral de Melo Neto, através do qual começa uma nova forma dentro mesmo espírito conteudístico. Do outro lado estavam alguns integralistas, o Oswald de Andrade, os antropofágicos e os precursores do tropicalismo, toda uma linha mimética, até culminar no concretismo, a partir do qual desponta uma nova fornada de experimentalistas. O que estou a dizer é meio-esquemático, mas na verdade nunca conseguimos escapar do dualismo, na arte e na vida, ficamos sempre entre a cruz e a espada, a poesia e a política, a piedade e a violência, a probidade e a retórica. Penso que optando pela influência de Drummond, escolhia aquela “melhor parte” de que falam os evangelhos: a purgação da cruz, a verdade na beleza da poesia, uma probidade cristã que é bem mineira e muito drummondiana. Pergunta: a correspondência trouxe-lhe benefícios, como escritor? Resposta: Claro, benefícios íntimos, inicialmente. Que depois levaram-me a uma espécie de exteriorização comunicativa, uma influência mais impulsiva e ativista, a colaborar na imprensa de Divinópolis e até mesmo na fundação, com amigos, de jornais literários, ampliando o círculo de relações e de leitores. Aos poucos, despreendendo-me do casulo intimista, sentindo-me mais à vontade, publiquei (até 1997) oito livros, dois deles de ampla circulação, publicados e distribuídos pela Vozes e pela Guanabara, com ótima repercussão crítica e de público. De forma que hoje meu trabalho visa responder minhas perguntas, preencher os meus vazios. Ainda agora (1997), que estou com cerca de dez livros inéditos engavetados, por falta de editora, estou intimamente feliz, pois são trabalhos que vieram por necessidade , tentativas de preencher lacunas e carências da vida. Mesmo que nunca sejam publicados, sinto que estão ali, gritantes de muita vida, no mutismo das gavetas. Aí é que reside o que você chama de benefício, do modo como o entendo. Se tivesse procurado outro autor, poderia dizer o que digo da influência drummondiana? Teria fôlego para escrever vinte livros e, mesmo na quadra dos sessent’anos, sentir que ainda posso escrever mais vinte, que ainda estão no limbo, informes na escuridão, me chamando? Pergunta: Por que não consegue editoras para publicar seus livros inéditos? Resposta: Vivo longe dos grandes centros, não faço lobbie, nem mesmo sei insistir numa tarefa ingrata. As poucas vezes que tenho tentado, não tenho logrado êxito. Os editores não entendem e não aceitam que eu escreva romances, contos e dramas teatrais em versos. Será que pensam que estou tentando inovar, sem base para tal? Sei que quase toda a boa literatura da Antiguidade era escrita em versos (e T.S.Eliot recomendava essa prática nos tempos modernos, alegando que até uma bula de remédio pode ser redigida em versos) – e aí ainda estão Homero, Dante, Milton, poetas que também eram romancistas. No meu caso, guardo as proporções: utilizo o verso livre apenas como forma narrativa e não com a intenção de escrever um poema longo com o nome de romance. Sei que a verdadeira poesia é lavoura de outros trabalhadores. Pergunta: Conta-nos o episódio do desaparecimento dos originais de seu primeiro livro, que mandou ao Poeta. Resposta: Ele, que tinha dado as impressões sobre os originais numa carta, escreve outra para desculpar-se, diante do desaparecimento da pequena pasta. Eu não tinha cópia, não dei a menor importância ao sumiço, uma vez que o trabalho era apenas uma inepta tentativa de construir um canivete sem lâmina e sem cabo. E foi nesta oportunidade que aprendi dele mais uma lição que, publicando a carta, fica extensiva a todos, na parte em que ele diz: “não sou partidário do óbvio em literatura, mas procuro sempre, instintivamente, uma chave para penetrar o mistério, mesmo sem pretensão de decifrá-lo”. Pergunta: Alguma carta que lhe tenha comovido mais? Resposta: A de 14 de março de 1983, com os dizeres: “Seu poema, que o Suplemento Literário do “Minas Gerais” publicou, penetrou fundo no coração deste octogenário. É das coisas mais belas e magnânimas que já recebi, sem tê-las merecido”. Daí se vê que a partir de certo tempo a correspondência literária das primeiras cartas já tinha evoluído para uma relação mais humana, traindo uma certa afinidade, também do lado dele, mestre, e não apenas de minha parte, discípulo. Pergunta: Qual foi o período da correspondência e o número das mensagens? Resposta: 07 de outubro de 1963 a 11 de agosto de 1986. A quantidade: 11 cartas, 13 cartões e 8 poemas especiais. Ao todo, 32 peças, algumas datilografadas e outras manuscritas (alguns poemas são desenhados caligraficamente e, até, coloridos). Pergunta: Algumas sugestões ou comentários dele sobre seu trabalho literário, que então desenvolvia em Divinópolis? Resposta: Sim, muitas. Ele sempre cumprimentava e até celebrava um tento literário que eu acaso lavrasse. Assim foi quando publiquei cada um dos livros (ao todo, cinco), naquela época, e também por ocasião dos lançamentos dos jornais literários que fundei e dirigi aqui, com alguns amigos.Ele elogiava porque constatava a validade do nosso afã de chamar atenção das pessoas do povo para o reino maravilhoso da literatura. Pergunta: Chegou a conhecê-lo pessoalmente? Resposta: Só através de publicações e da correspondência. Nunca fiz vida literária nem freqüentei rodas, nem mesmo em Divinópolis. Sou, como ele, um tanto introspectivo. Mas fui duas vezes à sua casa no Rio: na primeira vez, não me anunciei e houve o desencontro. Da segunda vez, fui com Inês, minha esposa, e fomos amavelmente recebidos pela esposa dele, com quem proseamos, agradavelmente, um bom par de horas. Ele estava ausente porque tinha ido visitar a filha, na Argentina. Uma sua irmã tinha morado em Divinópolis, ela informou. De minha parte, informei-lhe que não era a única pessoa de Marilândia, um simples arraial, que nutria a honra de merecer a amizade do Poeta: um primo de meu pai (o Jacy Navarro Barreto, Contador da Secretaria das Finanças do Estado de Minas e Chefe Administrativo da CEMIG) era casado com uma prima dele, a nossa prezadíssima amiga Lourdes Navarro Drummond; e também o grande homem público, Gabriel Passos, foi colega e amigo dele, na juventude de ambos em Belo Horizonte – era também um marilandense plenamente assumido (tenho provas documentais em meus arquivos). Pergunta: Você manteve, simultaneamente, correspondência com outros escritores? Resposta: Sim, com muitos, principalmente quando dirigia os jornais literários “Agora” e “Diadorim”, que eram remetidos para autores novos e consagrados de toda parte, do Brasil e do estrangeiro. As respostas choviam e o proveitoso intercâmbio era mantido, não só da redação com os colaboradores, mas entre eles próprios numa boa e criativa convivência à distância. Depois, mesmo com a cessação da circulação dos jornais (cada um teve vida de apenas dois anos, cada), algumas amizades luminosas permaneceram e atravessamos anos, como as de Ana Hatherly, grande poeta portuguesa, e Pavla Lidmilová, escritora de renome e tradutora para o tcheco de obras de Guimarães Rosa, Murilo Rubião e Clarice Lispector. A correspondência postal é também uma boa maneira de encurtar as distâncias, estreitar as afinidades e dinamizar as comunhões.

sexta-feira, abril 28, 2006

NA CASA DO SETENTA

A José Aparecido de Oliveira 

Parabéns! 
O timbre e o vínculo da poesia nas dobras da política, da política nas obras da poesia; a fé que empunha a bandeira da lutada cidadania é a mesma que hasteia e desfralda as bandeiras da natureza e da civilização. Feliz Aniversário! O assédio da beleza, o abre-alas da verdade o território enfeitado de hinos e caminhos; que pelo menos a água volte às minas para lavar o brio nos corações, não apenas no país das gerais mas em todo continente; que as carrancas do Rio São Francisco conjurem as caretas dos ímpios e corruptos que tentam envenenar os mananciais sacralizados; que os mimos da sempre-viva nas campinas onímodas façam da companhia da força e da luz uma luminária das salvaguardas locais e nacionais; que o mestre da mineiridade receba de bom grado os abraços multiplicados de seus alunos.

UMA DAS LEITURAS DE FRANZ KAFKA

A impossível possibilidade 
As coisas de um modo geral estão prenhes 
de palavras Escondidas no íntimo do chão e da pedra e do ar 
No recesso de um futuro jardim 
Onde quer que seja que hoje ainda esteja batumado 
Ou descampado 
E que amanhã exibirá suas glicínias e orquídeas, 
Seus mimos de vênus que ainda não florescem ali 
Assim os encantos e as doçuras que ainda não existem 
Nas ásperas beiradas do rio serão os lindos cílios 
Dos olhos da água a jorrar fartamente 
Assim as palavras petrificadas congeladas pulverizadas ou mesmo escondidas, 
Insones ou dormindo nos muros e paredes, nos troncos 
De biloscas e nas folhas de alface ou no coração de veludo 
Da musa ocasional, 
É assim que é preciso ter a predisposição de Kafka 
O agudíssimo teclado farejador de Kafka 
A ventura dele de ver o depois antes de mais nada, 
De prelibar o antes depois de mais nada 
Antes de tudo e depois 
De encher as mãos de palavras mentais 
E esparramá-las na folha em branco 
Como sementes de margaridas 
É só virar a página e desfrutar a sombra. 

Sua literatura (sua vida?) 
É o verso, é o avesso de qualquer estereótipo até então 
Bolado pelos modistas de plantão, 
É a epígrafe adiada 
A carta embaralhada 
O casamento do pró e do contra 
O auge da lua de mel 
A gotejar dos grãos de pólen 
Nas férteis searas atávicas. 

A imagem errônea que se tinha dele, segundo Milan Kundera, 
de um santo silencioso que carecia de experiências 
e que desaparecia na sombra dos próprios movimentos, como diria Lao-Tsé. 

Uma espécie de “patrono dos neuróticos, deprimidos, anoréxicos, doentios, 
dos que desconfiam das granfinas ridículas e dos histéricos”. 

Um tanto ou quanto assexuado em suas incursões romanescas? 
Uma cena erótica pode ser descrita por ele, segundo Kundera, 
como o encontro de um guarda-chuva com uma máquina de costura: 
mas no romance “Castelo” ele é mais preciso e caprichoso:
“a prolongação do coito se transforma na metáfora de uma fuga sob o céu da estranheza”. 

Era, sem dúvida, o inovador das abordagens, 
o mestre da arte de escrever diferente em seu tempo, 
que ainda soa um tanto diferente hoje em dia. 

“Sinto-me outra vez frio e sem alma; 
não resta mais que o amor senil pelo repouso completo”, 
assim diz ele, movendo “o pescoço de um lado para outro”. 

Amigo íntimo de Max Brod, que o protege dos percalços em vida e na posteridade, zelando seu nome e sua obra, ele amava o ambiente hebreu e musical de Praga, a música na leitura de Goethe, a finura especulativa de Kierkegaard, tendo em Thomas Mann o seu autor contemporâneo predileto. 

Minhas histórias são uma forma de fechar os olhos, ele diz, sempre a deixar cair algo quando vai pegar uma coisa. 

A moralidade mais pura, está só encontrei na a ldeia natal, que hoje me chega dos tempos de antigamente, nós dizemos, repetindo suas palavras. A luz débil, porém penetrante, da música que constrói um muro em redor de mim, ele balbucia, e assim confinado sou diferente do que sou em liberdade, ele continua a dizer, até dizer textualmente: “o frustrado, com uma das mãos, afasta o desespero que seu destino lhe causa e a outra procura o que percebe sob os escombros”. 

Como é possível salvar o outro, se nós próprios nos perdemos?, ele continua a dizer. O tempo é a parte menos palpável da criação, ele diz o que sabíamos e que só agora nos ocorre como todo o mundo dele que agora reconhecemos como sendo também nosso. 

As imprecisões são precisas, as deformações são perfeitas, diria Walter Benjamim. A lúgubre e majestosa Praga dos castelos e palácios, que a escritora Pavla Lidmilová costumava mandar-me via postal em forma de momentos tão felizes, 
O enigmático cenário do Processo e da Metamorfose 
Aquela sensação de estar procurando o que não se perdeu 
O alheiamento entre duas afeições quase simultâneas 
A sombra da própria sombra inviabilizando 
As réstias solares 
Da diária noturnidade de um bom gosto (ânsia de perfeição) 
Hoje extinto na feira dos fazeres. 

A Praga que dele não desgruda: 
Um espaço interno do mundo, segundo Rilke?
 Um hospício metafísico, segundo Paul Kornfeld? 
Uma vetusta irrealidade, segundo Franz Werfel? 
As palavras que estão dentro ou detrás das paredes 
São as mesmas que estão dentro dos livros dele. 

Textos que são lidos como foram escritos: 
Com um pé atrás e outro na frente, ambos 
Temerosos de seguir ou voltar: 
Uma coisa medonha a pressionar? 
Um demo que atrai e rejeita ao mesmo tempo? 
A obscura divindade fica longe, muito longe 
Do obscuro crepitar dos fogareiros demoníacos. 

Kafka, atencioso menino, amargo rapaz 
Nunca temeu nem recusou qualquer obscuridade. 

Pois é, assim é a vida – a fome que antecede a saciedade, também a sucede. 
Satisfazer é o não-viver. 
Ansiosamente a procurar nos sonhos a moça desejada de seu coração. 
Não encontra. 
Quando acorda e sai para a rua vê o bando de moças e nenhuma delas é a que procura ansiosamente no sonho. Eu é que sou um sonho?, ele pensa. Uma das chaves para o melhor entendimento da obra de Kafka é dada por ele mesmo em Parábolas e Fragmentos, quando declara que fomos expulsos de um paraíso que não foi destruído (pois continuamos a viver nele) e condenados a morrer, mas não morremos, coletivamente, apenas perdemos a imortalidade - mas adquirimos o conhecimento da Árvore da Vida, o que não nos igualou a Deus, mas deu-nos a aptidão para tanto. 

Estou citando de memória, o que não faço com as palavras adiante, devidamente aspeadas: “o amor carnal eclipsa o amor celestial; não o conseguirá por si, mas, como traz em si inconscientemente o amor celestial, funde-se com ele”, - assim ele diz, sempre amável diante das naturais beatitudes. E ao lê-lo sentimos uma certa esquisitice, uma dúbia impressão que é só olhar para ver do lado de fora da janela a passagem lenta de uma franzida árvore silenciosa. 

 De repente ele fala numa leitura pantanosa, da qual é difícil levantar os pés para dar um passo. Assim recalcando na vida a leitura difícil das páginas de palavras cruzadas (freudismo/marxismo/existencialismo), cada uma abrindo portas para lugares impenetráveis, de tal maneira que uma terapia introspectiva para chegar à clareza objetiva tinha que passar pela cerração angustiante das dúvidas amontoadas. 

Tinha que encolher, desidentificar, virar uma barata de tamanho descomunal? De tanto duvidar, ele passava a saber das coisas? Um saber fortuito a colher estrelas de dia e gatos pardos de noite? A claridade torna-se confusa e a pasmaceira frisa suas auréolas no intricado de cada texto que articula. De todas as interrogações nasce e apruma, enfim, o ser literário de sua lavra, lúcido e difuso ao mesmo tempo, como não podia deixar de ser. De 1912 a 1916 ele namora e fica noivo de Felícia Bauer e lhe escrevia cartas quase que diariamente – e nos intervalos da paixão epistolar ele tem um caso amoroso com Grete Bloch, origem de seu único filho, que no entanto falece logo depois de nascer. De 1920 a 1922 ele namora intensamente, também através de cartas, a casada Milena Jasenska, que depois morre num campo de concentração nazista. E de 1922 a 1924 liga-se, agora pessoalmente, a Dora Dymant, - quando falece num sanatório perto de Viena, aos 41 anos de idade. 

Sofria muito, vivia a queixar-se e a se maldizer, inferiorizando-se diante das amadas, às vezes com uma humildade até despudorada, como se cada uma fosse sua mãe e geneticamente responsável pelos padecimentos de uma doença grave e possessiva. E Milena, principalmente, se apresentava maternal e pacienciosa. Arguta e despreendida, benéfica protetora da literatura dele, que tanto enriqueceu a Literatura. Escrevia “como o passarinho que bica as migalhas..., tremendo, vigiando, espionando, com todas as penas eriçadas”. Milena também não era boa de saúde, a ponto dele troçar dela, dizendo que “em vez de vivermos juntos, temos que deitar juntos para morrer”. Mas tirar de si o amor dela era para ele difícil como transplantar uma árvore sem matá-la, ir fundo no buraco sem nele deitar raízes. 

Está sempre abúlico, cansado, fisicamente combalido, mentalmente inválido, literariamente nulo: assim ele pensa e chega a dizer que não ama a literatura, mas sim ao destino que ela lhe deu, ou seja, uma preocupação, um passatempo vital. A sensualidade quase sempre ausente em seus textos, o amor é mais passivo, a paixão é psíquica, nunca libidinal. Fica até difícil tracejar um quadro de moléstias no painel de sua ofegante, incisiva literatura. Ele parecia nem atentar para o corpo de Milena, não desfrutava de pulsões eróticas, mas sofria os constrangimentos, as contrafações neurológicas. É o que se deduz das cartas que,entretanto, não são partes intencionais de sua literatura. “só penso em minha enfermidade e em minha cura e ambas, em última instância, és tu, Milena”. 

Kafka é habilidoso não só em concatenar a disparidade dos pontos e contrapontos do enredo no absurdo ficcional como também em plasmar ali no entrecho a logicidade da linguagem ao mesmo tempo em que levanta dúvidas e arrola explicações. Numa das cartas à Milena, ele diz a respeito da insônia: “Quando se dorme mal, pergunta-se sem saber o quê, pois não dormir é perguntar. Se conseguimos uma resposta, dormiremos”. Em outra carta, ele escreve: “É muito difícil brincar de roda com fantasmas”. 

(Posso dizer, a propósito e entre parêntesis, que também levei uma vida de solteiro parecida, com algumas ressalvas, é claro: ele era enfermiço e algo ocioso; eu trabalhava tanto que não me sobrava tempo para adoecer; ele era criativo e minucioso, eu apenas mentalizava, não exprimia, e passava ao largo dos detalhes e desdobramentos das coisas; ele sonhava na seqüência da vivência, eu sonhava aleatoriamente, perdido de mim, sempre com seres e lugares que não conferiam com os da realidade cotidiana, íngreme e espinhosa. Em comum com ele posso ressaltar a sensação de que geralmente os lugares onde estou são parecidos com cemitérios, nos quais as lápides se erguem e os mortos jazem sonolentos. Na verdade (agora ele diz e cito de memória) a tumba que nos espera toda manhã ao lado da cama, toda aberta, com algumas flores murchadas, é o que temos a falar da vida, pois a convivência humana é sempre espinhosa, repleta de desentendimentos de toda ordem, alterações de ânimo, contrariedades, a própria benquerência comunicativa é entremeada de arrufos palavrosos, rusgas dialéticas, dissabores polêmicos. O ser humano não sabe ser feliz. Saberá um dia?). Mas dono da expressão segura e cabal, ele vai longe e a fundo na obscuridade mais cerrada, onde jazem ocultos e indormidos as inéditas verdades do desconhecimento – e logo-logo regressa com os louros que cabem em suas mãos. Quando sente que jamais poderá viver ao lado de Milena (ela casada, ele enfermo), sente que vive debaixo de si mesmo, como que debaixo de uma pesada cruz que tanto oprime-lhe o ventre, tendo assim que esforçar-se a fim de conseguir erguer um pouco a cabeça, erguendo um pouco “o cadáver que está sobre mim”. “O tormento é como um arado que sulca o sonho”, ele diz, lamentando pessoalmente e socialmente: “o indivíduo foi enviado na realidade como a pomba bíblica, não encontrou nenhum ramo verde e voltou a deslizar-se para dentro da arca escura”. 

BIBLIOGRAFIA: - Os Gênios Podem Escrever Cartas de Amor? – Marco Antônio de Menezes, Revista Status. - O Processo Onírico, - Caderno “mais!, da Folha de S. Paulo de 16/02/2003. - Franz Kafka Nunca Foi SANTO – Milan Kundera, Caderno “mais!” da Folha de S. Paulo de 03/01/1993. - O Senhor do Castelo – Modesto Carone, Caderno “mais!” da Folha de S. Paulo de 23/10/2000. - A Muralha da China, Contos e Máximas – Franz Kafka, tradução de autoria não mencionada, edição Nova Época Editorial Ltda. São Paulo, data também não indicada. - Kafka – Parábolas e Fragmentos e Cartas a Milena – introdução e tradução de Geir Campos, Ediouro, Rio de Janeiro, sem data.

quinta-feira, abril 27, 2006

A OLHAR PARA O CÉU

“Não façamos da lei espantalho, arvorando-o logo de início para espantar as aves de rapina, deixando-o, depois, imóvel, até que o hábito faça dele seu poleiro e não o objeto de seu terror” (da peça “Medida por Medida”, intróito do segundo ato, trad. de F.Carlos Medeiros e Oscar Mendes, Edit.Abril, 1978, São Paulo, SP). Galhardo maneiroso satisfatório fabuloso amando Deus e todo mundo a fugir de Deus e de todo mundo (uma de suas lépidas maneiras de amar?) escapando daqui e dali para encontrar esta, aquela e outras mulheres: a graça na graça do melhor de si mesmo: dava a vida pela que estava em seus braços, mas se ela sumia de vista, ele não sofria um tiquinho sequer. Assim ele era, como sempre estava: a cara mais limpa do mundo, a perdoar as próprias possíveis culpas: “ainda ontem ele morria por mim, e hoje nem me reconhece mais”, queixavam a donzela e a dama na quentura e na frieza daqueles airados dias. Uma querida amiga (minha), Ana Hatherly, poeta portuguesa casada com um nobre inglês, disse-me em carta que estivera na casa onde ele viveu em Stratford do Avon, e ficou a imaginá-lo grandalhão e espigado a passar de um lado para outro sob as portas baixas do interior da casa, lépido e fagueiro, com tantas idéias nas palavras ansiosas para ocuparem seus lugares nas linhas dos sucessivos cadernos pautados. Lá no norte de Avon, distante das alheias hipertrofias, na intimidade de uma infância permanente, ele reunia e arquivava os arrepios e os impulsos e os desafogos no meio dos ritos de passagem da cultura popular daqueles tempos naquelas regiões. Assim na linha divisória da juventude, ele aos 18 anos em 1580 casa-se com a jovem Ana Hathaway (nome quase idêntico de minha amiga portuguesa), então anônima e predestinada, boa e afável companheira e inspiradora, que lhe deu três filhos, um dos quais morre aos 11 anos de idade, forçando-o a iluminar-se no ímpeto e no estro para escrever HAMLET, um sobrehumano arroubo de arte, prenunciando aí o prodigioso surto de fervor criativo, os albores da plantação e da colheita de tantas obras-primas como OTELO, REI LEAR, MACBETH, que o século quinze viu as primeiras representações e ninguém jamais verá as últimas. Foi assim que o teatro elizabetano refloresceu nos umbrais da Europa católica a cultura clássica através do olhar anglicano do impávido Shakespeare. Ele tirava do escuro o vulto luzidio que tomava conta do palco e sacudia as platéias.... Abrir seus livros, ver deles os filmes e peças é ver e ouvir mensagens dos páramos, é sentir voar do peito o coração levemente, docemente abalroado... Assim nele é o amor: a hera fêmea que se enrola nos dedos da casa do olmo, as negras liberdades da virtude, os sulcos sangrentos do chicote que enfeitam o corpo como se fossem rubis... O nome do amor no céu da boca a Rosalinda a pendurar odes nos espinheiros elegias nos sarçais, manhas nos modos... Ele que em Londres foi guardador de cavalos freqüentador de tavernas, nele jorra a fonte dos poemas que alimentam a posteridade de tantos criadores de poemas. Quando as aves da mata se acasalam, aí começa a dissonância harmoniosa do trovão com o relâmpago na etérea moradia de mais um nume tutelar... O fino amor que ouvir com os olhos deve quando a moça embalsama os ares noturnos com os olhos aurorais e a essência dos rosais. Mais que os reis e rainhas, ele legou-nos o que há de melhor no histórico império britânico: trinta e sete peças!, dezenas de sonetos!, tudo aureolado e vívido nos sobejos e nas significações... Quem um dia disse-me que ele não foi meramente um ser normal, mas sim um exemplar da espécie humana interligado aos fenômenos da natureza? Pois é. Tal é como só podia ser quem fez da sombra ambulante da vida uma luz que amplia a visão do mundo. O leitor quer um exemplo de acepção mais que recente? Bárbara Heliodora, profícua estudiosa de sua obra, disse dele que ele a tudo pode perdoar, menos um mau governo. Como epílogo e brinde ao leitor insiro aqui o Soneto dele, que fala do tempo (do TEMPO!), traduzido pelo também poeta Ivo Barroso: “Tempo voraz, ao leão cegas as garras E à terra fazes devorar seus genes; Ao tigre as presas horrendas desgarras E ardes no próprio sangue a eterna Fênix. Pelos caminhos vão teus pés ligeiros Alegres, tristes estações deixando; Impões-te ao mundo e aos gozos passageiros, Mas proíbo-te um crime mais nefando: De meu amor não vinques o semblante Nem nele imprimas o teu traço duro. Oh! permite que intacto siga avante Como padrão do belo no futuro. Ou antes, velho Tempo, sê perverso: Pois jovem sempre há de manter meu verso.

quarta-feira, abril 26, 2006

Paráfrase de citações autobiográficas de Edgar Allan Poe. 

Menino diferente que eu era não conseguia ver as coisas como os outros viam, não podia tirar minhas paixões das fontes que os outros meninos tiravam as deles. Era outra a origem de minha tristeza, outro era o canto que jamais destrancaria dos porões e sótãos de minha penitência. Os passados sofrimentos não passaram, não passam, não passarão!, estão sempre nas próximas moitas. O que amei, amei sozinho. A carga de sofrimento que carregava só podia ser descarregada na sepultura? Assim na infância e na juventude (e na maturidade que nunca veio) ergueu-se no bem e no mal dos abismos o cadeado de mistérios, que um dia abrirá, apesar dos pesares, libertando esta pessoa, em forma de nuvem que ainda só e só e mais só se alteará no amplo azul, como um demônio a revelar que mesmo depois da morte minha alma estará dentro de mim nos tristes e solenes sonos junto aos vermes – e antes que o pó ao pó retorne o túmulo será meu lar – e as horas corrosivas serão minhas compungidas companheiras.

BILLY WILDER, AUTOR DE BONS FILMES

As raízes austro-alemãs de suas flores e frutas européias os dias furtivos sombreados de noites fechadas a Marlene Dietrich da magreza fortificada a consciência estava no instinto, começava nos poros a repelir o nazismo fosse lá o mal que fosse: era preciso distanciar para não desvincular, não infidelizar o passado de bons feitos... Greta Garbo era mais um motivo para discernir os albores de outras plagas Europa França e Hollywood, hélas! a escolha da essência, a repulsa da excrescência (As Cinco Covas do Egito, Ninotcha) o companheirismo de Franchot Tone Lubstich Preminger Zinnemann! Stroheim, hélas novamente! ninguém esquece de Pabs Murnau Viene Lang e depois para arrematar a florada do culto europeu da beleza e da sensualidade vem de lá (da França? da Escócia?) a nudez da cintura para cima de Genevieve Page (a cena maravilhosa, criminosamente censurada): as duas mamas expostas a induzir a conduzir e alimentar o brilho dos olhos o vigor da libido a sensualidade o motor incansável da vida ativa o frêmito dos violinos na tela onírica da mais esplêndida realidade. Além de artesão e artista, ele ainda era político e administrador. Aquela pessoa que mentaliza, vai fundo em si mesmo e coteja o que de lá traz à tona no compêndio dos seres agora animados nas três dimensões da superfície, isso depois de depurar o que é íntimo e o que é social – e só então começa a trabalhar nas linhas geométricas do roteiro abalizado e viável. E só Deus sabe como tem que purgar os males da deficiência e da vulnerabilidade. E seguir adiante sem desviar, sem tropeçar, sem parar. Do ajuntamento dos dados da pesquisa toda sua, de ocasional metodologia, ele esboça o embrião e o esqueleto do que será o provável corpo da obra. Porisso ele é considerado mais roteirista que diretor de filmes, afirmativa que não visa desdenhar o seu lado diretor e enfatizar o lado roteirista, mas que quer dizer que ele privilegia a obra de arte em si, como se cada filme fosse uma escultura, uma peça teatral, uma catedral, um romance, um poema lírico ou épico, ou tudo isso ao mesmo tempo, no mesmo lugar. Não que pretendesse bolar e produzir os chamados filmes de arte. Ele bem sabia que a parte industrial-comercial do cinema estava lá de olhos gordos na dianteira para fiscalizar e supervisionar toda a feitura e evitar o possível colapso financeiro do investimento. Aí, pois, entrava seu lado político e administrativo. Político no sentido do bom desempenho nas artimanhas das relações públicas com os financiadores, os técnicos, os intérpretes (incluindo aí os extras), os montadores, os músicos, os publicistas, os jornalistas etc. E o lado administrador cuidava do bom entendimento das partes no trabalho ao mesmo tempo coletivo e pessoal, visando o resultado contentatório dentro do universo fílmico, incluindo aí as tomadas externas, o aproveitamento contextualizado de todos os envolvidos no projeto, a montagem ideal das pontas com os meios e os fins. Wilder foi roteirista a vida inteira, na parceria primeiro com Charles Brackeet e depois com Izzy Diamond. Mais que diretor, ele era uma espécie de romancista de cinema, artesão autodidata mental e braçal ao mesmo tempo, constantemente mobilizado no espírito da equipe, sem abdicar da mentalização, da inspiração e da criatividade. Hoje o roteirista quase não tem o que escrever (isso ele mesmo dizia aos 94 anos de idade), no meio da parafernália de explosões, no meio de tantos efeitos especiais. O filme está virando uma brincadeira, uma virtualidade, uma infantilização da violência de ação, a funambulesca saraivada de projéteis, uma acelerada reprise de fotogramas nas pupilas sem coração dos aficcionados dos videogames. Nascido em 1906, na Áustria e jamais morrido em qualquer parte do planeta. Casado com Audrey Wilder, adorava Audrey Hepburn, estrela de luz eterna de seus filmes Sabrina e Amor na Tarde. Outras obras-primas dele: - Pacto de Sangue, com Fred MacMurray e Bárbara Stanwick. - Farrapo Humano, com Ray Milland e Jane Wyman. - Crepúsculo dos Deuses, com William Holden, Glória Sanson, Erich von Strohein e Nancy Olson, a deliciosa estrelinha do beijado nariz. - A Montanha dos Sete Abutres, com Kirk Douglas e Jan Sterling. - O Inferno 17, com William Holden e Otto Preminger. - O Pecado Mora ao Lado, com Marilyn Monroe e Tom Ewell. - Testemunha de Acusação, com Tyrone Power, Marlene Dietrich e Charles Laughton. - Quanto Mais Quente Melhor, com Marilyn Monroe, Tony Curtis e Jack Lemmon. - Se Meu Apartamento Falasse, com Jack Lemmon e Shirley MacLaine. - A Vida Íntima de Sherlock Holmes (o único que infelizmente não vi), com Robert Stephens e Genevieve Page. Estes e tantos outros em tantas fases, entre os quais os que fundamentou através de seus buriladíssimos roteiros. Arrebatou seis Oscar’s, além de vários outros prêmios. “Trato da corrida de ratos e da condição humana, das pessoas que não são ratos e vêem-se presos na corrida”, ele disse à biógrafa, acrescentando: “alguém que odeia outras pessoas é a si mesmo que odeia...”. Muito feliz no terceiro ato de sua vida, ele só fez bons filmes, uns atrás dos outros, e reconhecia que só dirigia filmes porque temia que outros estragassem seus roteiros.

terça-feira, abril 25, 2006

O SOM DE NEGROS EM CUBA (*)

Quando chegar uma das luas cheias de teu olhar ao som dos nativos de Cuba no Caribe irei a teus lábios escalando teu corpo de formas emboscadas. Quando os pingos da água na folha do inhame forem rosas de maio de doze pétalas cada irei a teus lábios. Irei a ateus lábios pelos cinco caminhos da beleza de teu rosto: os olhos, fontes de auréolas o nariz dos merecidos beijos os lábios que comprimem e reviram os dentes de imprecisas romãs a língua, pétala clitórica, fita de palavras imprevisíveis. Irei a teus lábios. Sempre digo que irei a teus lábios, ó lenitivo das horas montanhosas! ó manacá na serra das hortênsias! Sempre a ler a caligrafia das rugas rubras irei a teus lábios. A seguir as incisões da água e do vento na pedra (esse livro de folhas coladas) irei a teus lábios. sempre digo que irei a teus lábios no calor temperado de folhas verdes. 

(*) Paráfrase do poema de Federico Garcia Lorca.

MURILO RUBIÃO DE MAL COM DEUS?

Nascido em Carmo de Minas, vivido em Carmo da Mata, antes de fixar-se em Belo Horizonte e empenhar sua palavra na vida literária, ele captou e absorveu o clima das altitudes carmenses no que elas têm de transcendência e de sobrenaturalidade nos austros salubres e nas visões alteradas. A ele naturalmente bastava abrir os olhos para ver e assim respirar os amplos, escantilhados e sucessivos horizontes, como se sem aluir do lugar estivesse nos píncaros dos alpes, dos andes, das canastras e mantiqueiras, a manipular as aparições dos gigantes e dos anões das várias espécies humanamente possíveis, a ouvir e ver as estórias do Padre que misturava ouro moído aos alimentos só porque não queria deixar a fortuna para ninguém, de mal que estava com a humanidade enfadonha e ranzinza; e também a do homem de pele solta na carne e nos ossos, igual a de um gato, que podia, se quisesse, virar o rosto para a nuca, os dedos dos pés para os calcanhares. Numa terra assim pródiga de encantamentos era canja pra ele prestidigitar a ordem das coisas, conhecer o avesso do tempo, ir ao enterro de um anão ou à festa de um ex-pederasta, bem como voar nos cabos elétricos de choque em choque até fazer das tripas coração e dos estrídulos banais a mais requintada canção romântica. Ao lado, abaixo e acima do mundo terra-a-terra existe a geografia mental dos nichos e ninhos, as ilhas de seixos paralelos e complementares, uma ou duas estórias a meio-pau, detidas aqui e soltas ali, a desobedecerem as recomendações de praxe, a desarticularem o lívido raciocínio. E no espaço viscoso do tempo maleável, ele pinta e borda os caracteres, muito à vontade nas técnicas e aparelhagens, a lucidez tentando em vão demover a gama dos comportamentos incompatíveis...: a docilidade apostando no desarrazoado, a complexidade surrando a simplicidade: ah, os duros golpes baixos e altos da gramática!, aflorando aqui e ali os preciosos achados, soterrando lá e cá as obviedades desgraciosas - é assim que bem mais cedo amanhece o dia, saído dos lençóis e cobertores do aninhado impulsionar.... A vida inteira a degustar os sabores mais requintados, sem digeri-los (para jamais escoimá-los). Lia mais do que escrevia? Muito mais. Levava meses e anos para considerar pronto e acabado um conto que no entanto sintetizava tantos outros cheios de pontos e de pontas. Duplo leitor de Machado e Cervantes, Maupassant e Mário de Andrade, acabou caindo, tardiamente, nos braços de Kafka. Mas entre os ângulos do célere e do airoso, ele preferia a diagonal de si mesmo, tentando acasalar a concisão com o esbaldamento na normalidade mais anormal do mundo, ficando entre o certo e o duvidoso, que afinal são faces da mesma carta do baralho do existencialismo de uma agridoce literatura das almas penadas e absolvidas. Em 1966 (plena ditadura militar) ele funda e começa a dirigir o Suplemento Literário do Minas, encarte do Diário Oficial, então distribuído semanalmente nos 853 municípios mineiros, quando fez pela cultura geral o que nenhum outro intelectual fez nos anos posteriores até os dias de hoje: as páginas recepcionavam os bons escritores novos e consagrados, sem criar e manter patotas com o dinheiro público – e além dessa publicação, ele, como Diretor da Imprensa Oficial, aproveitava o tempo ocioso do funcionalismo e do maquinário de imprensa para propiciar o lançamento de novos autores, cujos textos originais fossem antecipadamente estudados e aprovados por uma Comissão Julgadora acima de qualquer suspeita. Paciente com Deus e todo mundo, ele só se impacientava com a mediocridade e o bafafá dos chulos e vaidosos, e mesmo sem escrever, vivia escrevendo (a obra magra é um polpudo resumo essencial?): listava os alimentos, escolhia e remoia, mas quando ia levar à boca, a mão tremia, assim ia se fartando sem comer; entre duas alucinações ele mancava, gaguejava, assim como bom mineiro, ele falava pouco e acertado.... Celibatário convicto, amante à distância de Marilyn Monroe, Greta Garbo e Silvana Pampanini, ele recolhia as cartas, grávido de propensões, ávido de expansões (contidas lá nele sabe Deus como). Ele bebia para fazer boca de pito, insurgia apaziguava comandava; nele o insólito nunca é espantoso: o escritor o personagem o leitor, todos aceitam e aprovam tacitamente o que seria um absurdo e que não é: se o freguês tira do bolso o dono do restaurante, não é por implicância, mas porque gosta de fazê-lo. Todos seríamos prosaicamente normais se a vida e o mundo não fossem, não fossem poeticamente anormais.... Quem não admira o vôo esguio e serelepe da andorinha nas axilas e nas virilhas da mulher amada? Os olhos às vezes não regulam bem e pensam que estão vendo um boi voar: em que ponto eles estão nesse momento delicado? Suas epígrafes bíblicas são os dedos de Deus nas mãos dos homens? “Coisas espantosas e estranhas se têm feito na terra”, já afirmava Jeremias (em 5-30). Hoje não é diferente, nem jamais será. Só Deus é perfeito – o resto só vive por milagre Dele. Mas se para Ele nada é impossível, na literatura de Rubião, tudo é possível, desde que o tiú esteja no campo aberto de jogar bola e não debaixo de um seixo da laje. Sua literatura é elaborada tecnicamente, gramaticalmente correta. Como se dissesse ao leitor: sou doida mas nem tanto.Ou então como se ouvisse de um leitor: o autor está em seu perfeito juízo, eu é que estou ficando livre. Mesmo assim não espanta o leitor, não desarticula as junções, não perde o fio da meada. Se a linguagem fosse empertigada ou acadêmica toda a magia e licenciosidade das ações exauririam o nexo e o léxico do texto e logo-logo seu leitor abjuraria a leitura e ia ouvir a mesma cantoria em outras freguesias. Mas a velha tese de que todo poema (em prosa ou em verso) é um eterno rascunho se confirma em nosso querido Murilo-escritor-reescritor: seus contos são poemas que pingam nas podagens e nos adendos, na circularidade dos temas e dos tons, que pingam nos tropeços e nos descaminhos, até que depois de tanto zaranzar caem no livro como as fecundas chuvas da estação mais propícia. Sua pequena-grande obra do começo ao fim leva-nos a crer que Deus se arrependeu de (mal)criar o ser humano assim repleto de senões e disparidades.... Murilo Murilo, você não se fez de rogado para assim tão delicadamente replicar ao Criador? Cada deformação é uma revisão ou ao contrário cada revisão é uma proposital deformação, visando quebrar uma cansativa monotonia? Será que o Criador lá no íntimo de sua pontualidade crítica terá aprovado e até exultado com a rubiana malcriação que, afinal de contas e de coisas, deixa-nos todos à vontade para observar e descrever os que se viram livremente na vida, por bem e por mal, nesta feira de variedades que é o mundo? Vem à propósito uma de suas epígrafes: “Três coisas me são difíceis de entender, e uma quarta eu a ignoro completamente: o caminho da águia no ar, o caminho da cobra sobre a pedra, o caminho da nau no meio do mar, e o caminho do homem na sua mocidade” (Provérbios 30-18).

segunda-feira, abril 24, 2006

AS GÓTICAS LUMINÁRIAS EM SALAMBÔ DE FLAUBERT

Quem alguma vez não esteve a ler um livro como se estivesse ouvindo uma empolgante canção? Quem, ao ler uma página de Gustave Flaubert (1821-1880), não alonga o olhar para o céu da infância e do amor? Quem não se amofina, não se arrenega, diante dos pilares sangrentos da extinta Cartago, do monte de cadáveres nos espinheiros e ribanceiras? Quem não assume, uma vez ou outra pelo menos, o bovarismo mil vezes acalentado em nossos dias? Quem não sonha, quem não quer ganhar na loteria mesmo sem jogar? Que mal faz ao ego, ao id, ao superego querer o melhor que há?, querer ser melhor do que se é? Não faz bem ao corpo e à alma ter tudo que se deseja? A Madame Bovary, senhores jurados e juízes, é todo aquele que quer mais do que tem. E quê mal há nisso se ninguém se contenta toda vez que se entrega ao desprazer do ócio, não é mesmo? Quem pois em sã consciência vai blefar que não é nem um pouquinho bovarista? Quem tem medo de ser feliz tem coragem de ser infeliz? Flaubert foi acusado de ofender à moral política e religiosa, indiciado, julgado e...absolvido. Pois que quase todos no tribunal julgaram-se seus cúmplices, reconheceram-se bovaristas assumidos ou enrustidos. Mas passemos adiante dos monumentos literários que são MADAME BOVARY (publicado em 1856), EDUCAÇÃO SENTIMENTAL (1869), TENTAÇÃO DE SANTO ANTÕNIO (1874), BOUVARD E PECOUCHET (1881), e fartemos-nos de algumas flores frescas ente os rudes espinhos de SALAMBÔ (1862): - a boca rósea como uma romã entreaberta - um vapor sutil, qualquer coisa de divino - a cabeça degolada continuava a chorar - o lusitano a soltar fogo pelas narinas - o leão preso a uma cruz - os porcos afogueados para assustar os elefantes - uma infinita doçura a tombar sobre a terra - as cobras que tinha pés, os touros que tinham asas - as barbas em saquinhos encordoados às orelhas - a cicatriz nas sobracenlhas que se agitavam como serpentes. Amílcar, pai de Aníbal e de Salambô, guerreiro cartaginês, tinha a natureza do golpe repentino de um raio, desafiou e hostilizou a costa italiana numa guerra de 24 anos contra a poderosa Roma, que assim viu sua moeda desvalorizar e assim quase decretar a bancarrota imperial. Cartago, centro do comércio fenício desde os tempos de Nabucodonosor e de Alexandre.Produtividade agrícola fantástica: algumas propriedades mantinham cerca de 20 mil homens na lida. Solo irrigado por canais formava campos de trigo, vinhedos, pomares, hortos florestais, e criavam-se cavalos e bovinos, cabras, elefantes, todos aproveitados na lavoura e no transporte terrestre. Suas galeras trafegavam ente a Ásia e a Bretanha.... Salambô, paixão de Matho, líbio rebelde, chefe dos mercenários, que pagou caro pelo amor à semi-deusa: teve que percorrer as ruas de Cartago sob apupos, pancadas e torturas até expirar, com o coração literalmente arrancado do peito e exposto ao sol, tudo sob a vista da amada, que nutria por ele ardentes ódio e amor, amor e ódio trocando de lugar dentro dela, aos sobressaltos. Vendo-o ensangüentado nos umbrais de seu palácio, ela da sacada tomba a cabeça escoada e rígida, os cabelos destrançados indo até o piso...: foi assim que consumou-se o desencanto. Os pórticos e pilares dos templos suntuosos as arquitaraves e as torres as escadas de bronze, as filigranas de prata os capitéis e linhas de pérolas riscavam os muros entre asas de ouro e cones de esmeraldas : a síntese do apogeu do Velho Mundo estava ali? as portas de marfim os bolsos cheios de palavras do escritor que as tirava como chispas nos olhos os archotes projetavam a linha dos muros os tanques as cúpulas as paredes dos canais o aqueduto oblíquo que atravessava o istmo os conciliábulos os altares o caudal de cisternas os templos dos pontífices das sandálias e dos mantos a dialética da força bruta vai mais uma vez vencer? os prepotentes e os mercenários cairão mais uma vez no mesmo sepulcro? a ambição desmedida quer dizer castigo redobrado? a pilhagem vai indo e desmorona? quem é bárbaro, afinal de contas? o terrorismo vem de longe e vai longe perpassa os blocos perfurados os gradis seletivos as palavras erguem patamares e florilégios os artefatos intemporais marcam presenças: algo rococó um pouco barroco um tanto gótico? os rudes canecões da sanguessuga o lavabo da exatoria o fausto da exposição a céu aberto sob o sol e a chuva o acrílico exibicionista um relâmpago de gala abre o caminho do raio da miserabilidade: delenda Cartago!

quinta-feira, abril 20, 2006

VOCÊ NÃO MORRE, DRUMMOND!

E agora, Drummond? e agora que tudo mofou e fugiu, agora só falta morrer? Mas você não morre, você é duro na queda!, a lutar com as palavras, a viver delas (cada uma é um ser esquecido de quem o criou), “tatuadas de sonhos e cálculos”.... Assim cada uma flor-e-pedra a cair toda hora da janela “para incluir-se no semblante do mundo” nas imagens do parnaso da arcádia de itabira: o retrato na parede, o deserto retroativo? a sombra severa que nada dizia, a expor os tristonhos tesouros hereditários; nada dizia nem mesmo quando é expulso do colégio (precoce anarquista a portar os óculos de míope?): oh mundo vasto mundo de tantas rimas: seus ombros só o suportam forrando-se da quimera amaciante do olvido e da previsão. Com seu jeito de encolher para espichar a prodigalidade do sóbrio a sobriedade do pródigo... Um dos nefelibatas do Bar do Ponto as estrepolias no Viaduto de Santa Tereza o contraponto do horizonte tornado frio e triste a dor amenizada não nos sedativos mas sim nos estimulantes carinhos na extenuada quimera (o sorriso pairava nos lábios do eterno feminino: ah, uma forma de arte pede, pede logo um conteúdo de arte). Ah, “a úmida fita sanguínea dos lábios” assim ao embalo de lírica acuidade, a conversar com as belíssimas amigas: as extraodinárias senhoras de suas felicitações, entre as quais luzem em close: a sempre terna Dolores, que confidenciou-me ter uma irmã morando em Divinópolis; a sempre amável Lélia, que produziu um filme sobre o nosso inesquecível GTO; a sempre poética Clarice (com quem trocava revistas eróticas?); a sempre jovem e bela Lúcia (discípula de sua didática de amar o amor); a doce Olga, criadora das famosas Dicas do Pasquim; a Lygia, talvez a maria pluviosíssima criatura, sempre a chover atroz em seu destino; a poeta Adélia, que faz versos como as nuvens fazem chuvas.... Mas a vida corre para baixo e para cima: debalde filiou-se ao partido comunista, onde tentaram humilhá-lo; muito cedo perdeu a crença na política (fonte de todo escândalo chamado Brasil) e nas sacristias povoadas de dogmas e axiomas; autofinanciou seu primeiro livro, pedra de toque de toda a mineiridade modernista (a galhofa e a reverência:, a metáfora e a literalidade): tantas auroras necrológios epigramas luares o metro e a rima subentendidos, o patético vôo sobre as igrejas de Minas, as confidências os brindes os madrigais a rua do olhar na tristeza do céu as novas canções do exílio o brejo das almas o sentimento do mundo a rosa do povo ah a rosa do povo e o claro enigma e no findar simultâneo do dia e da noite o insuportável passamento da filha Maria Julieta, prelúdio da inelutável fatalidade do dia 17 de agosto de 1987...: mesmo assim voltamos a dizer que você não morre, Carlos Drummond de Andrade, você está um pouco e muito em todo ser da perene humanidade.

CHARLES DARWIN (1809-1882) E A EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES

O nome, de longe, chega perto da pessoa, que nos leva ao seio da floresta a caminho da montanha, até chegar à paragem dos nômades aos quintilhões de seres vivos trabalhando, alimentando de amor e de canções e algumas ferroadas as noites e os dias dos séculos a fio. Afoito e ressabiado, temente na audácia, enfia a cara no mato e na água entra na loca da pedreira, escava o chão, sobe na árvore agarra o bicho pela sombra anota no caderno a tiracolo as hipóteses e deduções e lembretes :apalpava a galinha como nossa vovó caipira? Queria porque queria saber das coisas: pergunta a Deus...: fazia silêncio para ouvir a resposta. Era muito sabido – mas seria o suficiente para entender o que Deus dizia?, para traduzir o que Deus dizia? Talhado para ser um pároco anglicano, quando via estava à deriva do corolário sem conseguir recompor-se na aceitação do ideário preconcebido do tacão vitoriano... ...anos a fio assim matutando, sem poder assumir o avançamento, sem conseguir recuar ou esfriar a febre dos renovados impulsos possessivos. Ah! o animal que há em nós absorve o sopro de vida, transcende o que nos flagra de vez em quando, expande em nós o sopro feliz de vida. Mutantes nas quinze bandas descortinadas: o humano o pássaro a formiga o gado a tropa, todos juntos em milênios e milênios, cada um em suas bitolas e diapasões, em suas escritas e feitios, em seus ecos e silêncios.... Alguns fundadores da citologia diziam em 1830: “os animais e as plantas são compostos dos mesmos elementos, as células”: se há apenas um código genético é porque a vida se originou de uma só vez : a síntese darwinista segundo Theodosius Dobzauski: nada no mundo vivo faz sentido fora da luz da evolução... : o lógico e o psicológico: a biologia entra fundo no primeiro e perpassa a superfície do segundo... mesmo assim concorre para a boa determinação das causas e feitos da angústia animal: a retrospectiva do nascimento a perspectiva do amortecimento. Estou ficando careca de tanta preocupação, ele devia dizer a si mesmo, quando rodeava o dogma da criação e da procriação e machucava o coração de Deus, discordando de alguns mandamentos. Não podia publicar as idéias, não conseguia sufocá-las. Durante vinte anos viveu o drama dos empaturramentos, das azias e dos enjôos, a pisar nos dormentes em brasa da ponte pênsil sobre os abismos..., só depois, longe do anglicanismo, é que desfrutou do “caos de delícias” da floresta tropical da Bahia. Aos trancos e barrancos, escondendo-se de Deus e de si mesmo, foi dando um jeito de enganar a ambos e contestar (de leve, aos poucos) o consagrado: não era isso o que fazia, meio lúcido, meio tímido?, não estava aos poucos e de leve avançando o sinal verde do livre arbítrio?, podia discordar sem ofender? Se esfriasse a cabeça e espatifasse o lápis teria sossego nos dias quentes e nas noites frias? Meu Deus, ele pensava. Estou tratando-O como um simples demiurgo?, esquecendo de Suas radiações, transcendências, sublimações? Fazia alguns dias de pausa, depois reatava os liames, arrojava o ânimo, reconsiderava as proposições. Voltava sempre à tecla inicial; o homem pode ser filho de Deus, mas é um animal; o animal pode ser filho de Deus, mas é um animal. Ambos são, pois, iguais na irmandade, não? E é assim temeroso e reverente que chegou a ser (quem sabe?) quem mais perto chegou de Deus até hoje. A careca límpida e sapiente da meia-idade, pontuda na velhice, acima da barba em neve e do olhar atento e da boca fechada a dizer e repetir: não castigue o bezerro, não monte no cavalo não mate nem coma o porco e o peixe: a dor de cada um deles é a mesma de cada um de nós.... A unidade psicossomática era então uma convicção que preludiava outras convicções... Mesmo tímido e adoentado ia sempre ia sempre às fontes da história natural por amor e não por ideologia: o que trazia de lá eram águas e alimentos não perecíveis, inteiramente palatáveis. Diante do Terremoto do Chile em 1835 ele viu a vó por uma greta: as montanhas soerguiam do solo! Em dois minutos a terra firme estremeceu debaixo de seus pés “como uma crosta sobre um fluido”... De repente o homem é muito pequeno dentro da natureza infinita....Assim passava o ano de 1832, lendo “Paraíso Perdido”, de Milton, na floresta tropical da Bahia (*), sob arroubos de prazeres simultâneos..., logo depois estuda os pólipos e algas e outros invertebrados marinhos, os besouros da entomologia, o comportamento das aves, das iguanas e tartarugas, as idéias de Malthus e de Comte, sentindo, outrossim, o remoto parentesco das espécies vivas. estuda as cracas e os macacos, fica sabendo através de Spencer da sobrevivência dos mais aptos e compartilha da teoria de Huxley, que recomendava uma boa distância que a ciência devia manter do governo e da religião. Muito depois, em 1873, estava no quintal a estudar as minhocas e as orquídeas, antes do passamento definitivo e depois de cumprir um belo destino. foi sepultado ao lado do túmulo de Isaac Newton na Abadia de Westminster, Londres. 

(*) Foi nesta oportunidade que pôde certificar-se da veracidade da seleção natural, observando os insetos no auxílio da preservação de certas árvores no momento mesmo em que rejeitavam outras, mais avassaladoras. Pois que interrompendo a proliferação de uma espécie, possibilitavam o vicejar de outra vegetação ameaçada de extinção pela prevalência da mais avantajada. Depois da Bahia, ele esteve no Rio de Janeiro, onde constatou certa leviandade no caráter do brasileiro que, tendo dinheiro, compra tudo e, não tendo, vende tudo. Acrescentou a picante observação de que lhe foi difícil manter a dignidade pessoal numa cidade carnavalesca que brindava os passantes nas ruas com baciadas de água caseira.

quarta-feira, abril 19, 2006

A HUMANIDADE INVIÁVEL DE NELSON RODRIGUES

Nelson Rodrigues é uma das pessoas mais instigantes e apaixonantes da cultura brasileira, uma pessoa que participou com o rol obsessivo de suas pulsões do processo conflituoso da instauração pública dessa cultura no século vinte através do jornalismo folhetinesco, da crônica esportiva, do teatro polêmico e dos indefinidos e intermináveis embates ideológicos. Durante anos a fio ele ia e voltava da casa para o trabalho na redação dos jornais onde polemizava consigo mesmo e com os circunstantes, impondo seu ideário-imaginário com a eloqüência e a persuasão de um ativista ferido e persistente. Progressista? Reacionário? Com o cigarro apagado na boca, diante da velha máquina de escrever, ele a bater com um só dedo a revelação do constante tumulto lá fora. Era respeitado, temido, mas também alvo de brincadeiras: quando saia para tomar café, os colegas da redação iam ver o que ele estava escrevendo e, sacanamente, acrescentavam palavras, frases, períodos inteiros no texto em andamento, e aguardavam, apreensivos, o que ia acontecer. Ele chegava, lia as últimas linhas e com a cara mais inocente continuava datilografando, como se ninguém tivesse intrometido. Li suas dezessete peças teatrais num fôlego de dezessete dias e noites. Tinha visto a encenação de apenas “Álbum de Família” (em Belo Horizonte, pelo Grupo Balcão) e “Dorotéia” (em Divinópolis, dirigida por Oswaldo André de Melo) e já vi os filmes baseados em seus textos: “A Falecida”, “Os Sete Gatinhos”, “Boca de Ouro”, “Bonitinha Mas Ordinária”, “Toda Nudez Será Castigada”, “Dama do Lotação”, “O Casamento”. Li muitas de suas crônicas da vida como ela é, alguns de seus romances folhetinescos, e também acompanhei seu purgatório político na época do mandonismo militar. Lembro com saudade dos intérpretes de suas peças, que vi em outras encenações e que fazem parte do espetáculo brasileiro de todos os tempos: Maria Della Costa, Nicete Bruno, Itália Fausta, Rodolfo Mayer, Jece Valadão, Vanda Lacerda, Joel Barcelos, Adrana Prieto, Luiza Barreto Leite, Milton Morais, Abdias do Nascimento, Cleide Yaconis, Sara Berditchevski – e também os grande atores do espetáculo futebolístico, principalmente os de seu querido tricolor carioca, o Fluminense de Valdo, Ademir, Castilho, Escurinho, Orlando, Rodrigues, Pinheiro. Tudo o que escrevia era como se dissesse no melhor sotaque carioca. Suas frases bombásticas e lapidares: “o carioca vaia até o minuto de silêncio”, “o mineiro só é solidário no câncer”, “toda mulher gosta de apanhar”, “louco é quem esquece”, “impotente como um santo”, “o casto é um obsceno”, a granfina é a única imunda limpa”. Todas, segundo ele, tem um fundo falso, mas a verdade está lá dentro. O temário circundante e universal, contingente e definitivo, as teses e as antíteses, o vai-e-vem da dialética, tudo irrompe, desabrocha e derrama em sua obra fluídica, uniforme, inteiramente assumida, mesmo no burburinho das contradições dos outros e não dele. Ele sempre estava firme em sua instabilidade. Sofria da obsessão das pulsões e não escoimava o moralismo problemático, insolúvel, da dolorosa sexualidade, revelando em sua obra em caracteres até meio berrantes uma espécie de incesto eterno e universal com as exclamações (para nós interrogações): se somos todos irmãos, somos todos incestuosos? as anomalias (pedofilia, estupro, homossexualismo) são normais? E aqui e ali ao longo do realismo chocante reponta, adocicado, um certo surrealismo: a sensação de um personagem que as mesas vinham lhe estrangular; o incerto que nos ama e a certeza que amamos; o nosso inescondível amor ao mal; as palavras que mordem; o homem de seis dedos e o outro que lacrimeja apenas num dos olhos. E as maravilhas expressionais, pinçadas aqui e ali: se tirarem a vida do homem, ele cai de quatro; o sexo feminino é uma orquídea deitada; angústia braba, divã macio; a demagogia sórdida; o óbvio ululante; toda unanimidade é burra; a hediondez assumida; toda boca aberta é meio ginecológica; só o canalha precisa de uma ideologia; a alma vem depois, com o tempo. São lições e mais lições – e o negativo do filme da morbidez de um mundo no qual é impossível viver sem perder diariamente a sanidade (o mesmo mundo de Faulkner!). Toda sua vasta , quadrada, cúbica obra completa vai sempre interessar a quem quer que seja. É o pão nosso de todo dia.

HOMERO - O LIRISMO DA TRAGÉDIA

O mundo é uma bola
é como se apanhado em circulares redomas
subisse e descesse na observação, distanciando
e aproximando nas proporções;
como se o tempo, igualmente fatiado em luzentes círculos
fosse apagando e acendendo na observação,
aproximando e distanciando nas percepções:
assim enfim chegamos à terra dos deuses eternos
que aos pobres mortais impingem a triste, a descuidosa
existência em tantos vaporosos milênios, em tantas
saqueadas regiões nos milênios....
Homero Homero
é mero vate da póstera glória de Helena
que autocadelou-se no impensado amor de Páris,
mas que erétil e pomposa prelibou a glória
de no futuro ser a estrela mais rútila da constelação
do mais rútilo dos rapsodos....
Helena Helena
filha de Zeus e de Leda, que causou anos e anos
a mais encarniçada guerra da antiguidade;
outras divas e musas brilharam no simultaneamente
lírico e épico estro dos poetas exemplares:
Afrodite Tétis Calipso Nausicaa Arete Hecuba
Andrômaca Brizeida Penélope ah Penélope!
Ao poeta cabia lapidar os versos,
aos deuses, formatar os heróis....
Pois que Zeus nos confins da alma terra
criou e recriou o leito sexual acima do chão
na erva florida do loto raciado e virente
do açafrão prazenteiro e jacinto em alfombra
para assim acariciar e ser acariciado por Alcmena
Sêmele Dánae Demeter Hera e quantas outras de flamantes
anelos...
Hermes foi outro que não se eximia e nos bastidores
escolhia as jovens bailarinas
(Polimela que o diga do arfar e do transcender)
do brindado coral de Ártemis....
Helena Helena
irmã de Clitemnestra, outra bisca, esposa de Agamenon
que por sua vez era irmão de Menelau, o traído esposo
de Helena, mão ceifadora das gerações....
Já Penélope
dona da arte de criar filhos e fios,
sempre a tecer o manto da abstinência....
Já Pandora, também tecelã, com a fatídica boceta,
aluna da Atena fiandeira, e também Ariadne, mestre
na arte da tapeçaria:
todas ocupadas em defender a feminil fenda
(como diria Freud milênios depois), a fonte
da vida e do prazer....
E as Parcas? quem ignora a que afinal de contas
trama nossos destinos?
Homero Homero
a orquestração da Ilíada não é tão lírica,
é mais épica do que a da Odisséia....
Amor e ódio no entanto estão de braços dados
para matar, para morrer:
viver é então agonizar?
Heitor e Aquiles lutam como se cantassem
como se dançassem
como se copulassem voando voando para depois
rastejar na grama como um aeroplano de brinquedo...
Na pugna das cercanias de Tróia
até o fogo era sólido (feria antes de queimar)
toda a carne era pétrea, férrea:
o sangue coagulado, puro cerne.
“Adora os deuses, ame sua mulher, defenda
sua pátria” – era esse o ditado em todos os cadernos.
A matança indiscriminada na multidão
o sabre a furar a torto e a direito
na dança ritual dos cadáveres na praia como
banhistas amontoados nas praias de hoje....
Heitor de um lado
Aquiles do outro
Apolo no meio
a carnificina em torno!
Era um campo de colheita de defuntos:
melancias no alto dos pés de cana e de milho,
assim eles eram, assim eles estavam
os produtores de órfãos e de viúvas...
E Ulisses: um canalha em Tróia, um bom-moço
no regresso à Ítaca?
E Príamo? nenhum brilho em seu brio?
ele e Hécuba, depois da queda, intramuros:
o homem no mundo ficou só e mal acompanhado.
E o amor à vida, onde estava?
cada guerreiro não passava de saco de merda e catarro?
nenhum espírito neles, nenhuma alma?
e a sensibilidade de cada um, onde estaria
no calor da refrega?
Cada murro era um coice
Cada grito era um urro:
no frigir dos tímpanos as labaredas
escreviam no ar a palavra MORTE...:
tantos deuses, meu Deus, para quê?
Zeus, como o gato no quintal, espantava os passarinhos
no simples vôo da águia os torvos presságios da vinda
dos titânicos inimigos;
ao ancião exímio nas artes dolosas o leão e a pantera
e as águas em pé e deitadas
obedecem cegamente;
às vezes era preciso fazer as vezes de um morcego
e atracar-se a uma figueira para salvar-se
dos ventos funestos da funesta Caribde;
as sereias e outras peripécias
(se resistes às tentações como Ulisses resistiu
- teria dito Gide ou Wilde – não quer dizer
que és forte como Ulisses, mas quer dizer sim
que suas tentações são mais débeis);
até que chega o momento do esperado repasto, quando
as mãos estendem para alcançar as viandas...
Às vezes é preciso humanizar o mimetismo, camuflar
as aparências, enganar os algozes....
Mas que é duro é: reconhecer que entre as criaturas
que andam e rastejam
não há nenhuma mais mísera que o homem...
É por isso que os deuses
quando querem destruir um ser humano,
primeiro o enlouquece,
tal como diante de Telêmaco os que
“em convulsões estorciam-se, rindo com rostos
estranhos”?...(1).
Pois foi lá no Monte Parnaso que um porco do mato
mordeu a perna de Ulisses, para o gáudio e o estupor
das musas amoitadas...
Pois foi no vexame da volta ao lar que seu coração,
como um cão danado, ladrava em saltos
dentro do peito constrangido...
Pois na armadura de Aquiles constava, emblemados
“o firmamento, o sol claro, a lua redonda” (2)...
Pois lá de vez em quando um herói seria recompensado,
assim que da família de Príamo o caçula Eneias
sobrevive e se faz ao mar e lá vai inspirar Virgilio
na igualmente bela Eneida,
já com os ares da língua romana.

(1) e (2)- os livros ODISSEIA e ILÍADA, tradução de Carlos Alberto Nunes, EDIOURO, São Paulo, SP.

terça-feira, abril 18, 2006

A CHEGADA DA VELHICE

Primeiro a gente chora muito para desanuviar os olhos, lavar o peito depois vem o remoer dos achaques a manutenção de índices saudáveis nos órgãos vitais da serenidade um grito ali da magreza ou da gordura outro aqui das palpitações e secreções as mágoas viscerais nas recepções e expedições de nutrientes e mensagens degringoladas a emoção às vezes insuportável de um sonho falido depois vem a próstata crescida, estreitando o canal da uretra aí a glicose se altera, a coluna arqueia e logo a pressão arterial acuada pulula ao encontro da cirrose degenerativa, a disfunção disso ou daquilo, dos pés à cabeça as cãs duelando com a calvície as manchas tempestuosas vindas das invernias atmosféricas bem ali bem ali no excesso de peles e veias nas gritantes feiúras faciais e a disritmia entre o desejo e a função como se aquele estivesse bem aqui ainda e sempre fervoroso, e a outra afastando-se para as colinas distanciando cada vez mais nos horizontes cinzentos, que estão indo cada vez mais para os círculos de outros limites.

segunda-feira, abril 10, 2006

DUAS, TRÊS EVIDÊNCIAS

O Livro Agradeço à escritora Dulce Batista, de Brasilia, pela remessa de seu livro “Sob os Céus do Planalto”, no qual imprime sua intenção de “compartilhar com o leitor a fração de fantasia que sempre pode caber nas diferentes facetas da realidade”. Expressão feliz (dela) da intenção de todo ficcionista que se contrabalanceia nos dois planos (sonho e realidade) essenciais da existência. Quando em um dos contos a personagem “presenteia-se com um pequeno interregno” ao passar na sorveteria para, afinal de contas, se adentrar naquela “espécie de compensação solitária”, ah, aí sim, ela está apta para mergulhar e voar nas claridades e névoas e trevas da fusão fantasia-realismo, fusão que passa a ser a ficção com a qual se pode desvendar um mundo mais flexível, pronto para ser oferecido, gloriosamente, aos leitores. Adentrar ou não nessa perspectiva, conseguir ou não essa fusão, é optar ou não pela crônica dos costumes ou pelo conto das vivências, passando ai da realidade poupada para a ficção realizada. Tocata e Fuga, como ela diria em outro conto. A partir de uma fresta miraculosa é que a imagem (talvez) mais importante da vida e do mundo se apresenta. É só abrir e entrar, como aqui está a dizer meu computador O Filme. O amigo, ator e cinéfilo Alonso Mendes, teve a bondade de presentear-me com a fita do filme “Quatro Irmâs”, de Mervin LeRoy. O filme é de l949 (quando seu nome era “Quatro Destinos”) e eu o vi na adolescência em Belo Horizonte, e lembro até hoje o quanto emocionou-me na época e ainda quando ao citá-lo no primeiro volume de minha tetralogia inédita APENAS UM CORAÇÃO SOLITÁRIO, onde evoquei a chuva que no final “ensopava a rua e as pessoas como as lágrimas que então ensopavam meu rosto e meu coração”. Revendo o filme agora, depois do belo e imerecido presente do Alonso, entendi finalmente porque o filme comoveu-me tanto naquela época e ainda agora ao revê-lo. È que instintiva e inadvertidamente eu associava seu entrecho ao entrecho de minha verídica experiência: lá em casa éramos também quatro (três meninas e eu), que também tinhamos perdido o pai e a herança material que ele nos deixara – e entre nós havia uma menina que prezava a vocação musical e que morreu prematuramente como a Beth interpretada por Margareth O`Brien; outra irmâ que foi viver em casa de parente rico (igual a Meg, de Janet Leigh); e outra que se casou e mudou (a Amy, de Elizabeth Taylor);e em quarto lugar a personagem interpretada por June Allison, travestida do papel feminino em meus sentimentos, a pessoa que sempre fui: um tanto rebelde e idealista, teimosamente agrilhoado à vocação literária (neste particular igualzinho a Jo). O fervor no coração que sentia e sinto ao ver e rever o filme e visualizar duas familias igualmente inocentes debatendo-se num mundo culpado. Creio ser assim que muitas vezes descobrimos a causa do que não conseguimos recalcar senão quando a revelamos e analisamos, o que na melhor das hipóteses confere com uma das boas definições da poesia: a emoção recriada na tranquilidade. Muito obrigado, Alonso. A CRISE A nova crise política estampa na fisionomia da nacionalidade a estupefação mais dolorosa da desilusão e do desânimo, com a certeza de que no Brasil o poder público não pode (ou sela. é um poder que não pode),como enfaticamente o poeta Affonso Romano de Santana afirmou outro dia na palestra que proferiu em Divinópolis. Desde a colonização, passando pelo império, república, ditaduras, pretensas democracias, até os dias de hoje, quando a esperança de uma renovação resultou na mesmice do desgoverno de sempre. Muita gente previa esse fracasso, muita gente esperava a nova era e nunca a nova crise. Sei não, mas a fome de ir à panela foi demais, a sede de ir ao pote foi demais – e tanto o prato como o pote eram de menos. A esquerda (?) pecou pela sofreguidão e ansiedade, pela pressa desajeitada? Marcelo Leite, na “Folha” do dia cinco deste mês, disse: “a insustentável política econômica fernando-lulista de gerar superávit a qualquer preço para alimentar o serviço da dívida externa e interna”, aí começa o desmando. Tenho certeza que um Município, um Estado, um País deviam ser administrados não como se fossem a casa da mâe-joana (coitadinha), mas como se fosse uma empresa, vamos dizer, uma empresa estatal como tantas que ainda existem no Brasil e que são exemplares em funcionalidade e rentabilidade. Eu mesmo trabalhei numa de economia mista durante trinta anos e sou, pois, testemunha ocular do que afirmo.

domingo, abril 09, 2006

INTERNAUTAS

Agora que estamos num mundo virtual Numa sociedade interativa A gozar e sofrer o amor online No trocatroca de sites e emails A perder e encontrar horas e horas Numa solidão densamente povoada De solidões Agora sim o ponto com tem muitas Infinitas funções Os dedos são os principais órgãos do corpo? Digitalizar é acarinhar ou simplesmente Escapar de alguma coisa que momentaneamente Nos desagrada No rol de outros opróbios?

ENSAIO SOBRE A TIMIDEZ

Ou O Perdedor dos Belos Prazeres

A primeira vez foi na infância. O Passinho da Via Sacra em noite de lua: a gente brincava de esconder (a meninada do arraial dispunha de lauto repertório de recreações lúdicas insofismáveis) e pelo rastro de luz fui encontrar a menina enrustida e disponível, com as premeditadas palavras: “vamos fazer bobagens?”... Eu feito bobo, fugi. Fugi para sempre no arrependimento de sempre. O que perdi nem posso lembrar. A segunda vez foi na adolescência. O Bar e Restaurante Coroa, na capital mineira: onde eu trabalhava, e amava em silêncio a garçonete, que queria me dar algo dela (que talvez já tivesse dado ao noivo dela?). Eu feito bobo só aceitava no pensamento e pensando bem até hoje me arrependo de não trazer para os dias de hoje a imperecível lembrança dos carinhos para sempre perdidos. Outras tantas vezes em tantas partes. A vontade de ir, de atender ao furtivo chamado, colidia com o desgosto de ficar, de atender a uma incompreensível necessidade de ficar chupando o dedo da inércia que congelava minha pessoa dos pés à cabeça, que amarrava minha pessoa no rude tronco do nada, no qual ainda esbravejo e reluto em vão para despreender-me. Assim a imagem pensamental do amor, a um passo da imagem sentimental, a um passo do amor inicial; assim o aperto de mão tão perto do abraço, o abraço tão perto do beijo, o beijo tão perto da cama das genuflexões, perante os deuses e deusas da imortalidade: tudo assim tão simples e no entanto a mim interditado no engasgo da timidez: desencontrado nos caminhos das evasivas, das esvaziadas peripécias do solilóquio, a sofrer os erros que cometi por não cometer: sofro-os agora em dose dupla, toda vez que tento recompor-me esfacelado, contumaz perdedor. Sou assim então duas pessoas?: uma, afortunada de oferendas; a outra achacada de rejeições?

IDA LUPINO

Meu eterno e universal amor por Ida Lupino é o de um homem do passado do presente do futuro por uma mulher do passado do presente do futuro. Nem mais nem menos: absolutamente igual. Ida Lupino estrela que não se apaga (de filmes tecnicamente apagados?). Seria impossível aceitar que caísse nos braços de elementos de espúria engrenagem (o que seria uma maldade imperdoável). Pessoa assim bafejada pela luz, pela luz que é um óbvio calor, ela, diáfana estrela da noite esquiva, ela própria esquiva ao contracenar no dia-a-dia das banais ocupações, como poderia ser menor, ser maior, se prefere ser incólume e poupada? Aureolada moça de um tempo perenizado no meu olhar cativo de seus pressentidos e nunca declarados encantos? A desenvoltura na esbeltez, o silêncio que imprime no falatório ambiental, o doce gesto de quem recusa mas compadece, o amor resguardado para uma precípua finalidade (por ela e só por ela) delineada nas linhas contrárias de outros riscos e bordados: é assim que ela oculta a beleza de seus dons, impedindo-me de procurar em seus cabelos um sinal afirmativo, negado pelos olhos abstratos e inexplicáveis. Por que será que tanto esconde os pés as mãos os lábios as curvas do corpo? por causa dos inevitáveis assédios? Sei que está certa e que faz bem ao esconder assim as prendas, que assim se preservam no recôndito dos sonhos, de meus exclusivos reiterados enciumados azulados e para sempre irrealizados sonhos.

quarta-feira, abril 05, 2006

POEMAS ABSOLUTAMENTE INÉDITOS

1 – Quem Não Comparece ao Encontro das Duas Almas? A literatura brasileira está ferida mortalmente em sua fluência por duas lâminas afiadas: - o pragmatismo da mídia - o corporativismo universitário. É melhor dizer logo: ou você tenha luz própria (seja um cara famoso e rentável) ou tenha livre trânsito nas cátedras e academias e possa dar e receber bolsas à mão cheia: caso contrário seu livro não sairá da gaveta seus poemas envelhecerão no ineditismo. 

2 – A Água Está Nua O rio e o tempo, o mar e a morte os víveres indigestos, os acenos palatáveis o realismo onírico mais rasteiro e no entanto aquoso. Vem um peixe e diz a meus ouvidos que estou nadando ao contrário, que assim vou de mal a pior. Tento mas não consigo desvencilhar. Continuo a nadar a nadar a nadar no rio no mar no tempo. E toda hora Uma Coisa está passando em todas as direções. 

3 – A Janela dos Anos Tempo parcialmente nublado, diz a meteorologia Espaço completamente corrido, dizem os olhos. As águas passadas tocam os moinhos da frente O amor dos melhores é um orgasmo infindável! Mas sem a cidadania, nada feito nem a fazer! Os gestos sabem falar de cor e salteado O boi é um pássaro de muitas e muitas arrobas, que canta e voa por necessidade e boniteza. Quando aos olhos as mãos ficam belas (escondidas para fugir das pegadinhas, ali onde as glandes se encontram e explodem) Deus fica um pouco canhestro, um pouco míope (a luz em demasia cega, o poder demasiado estereliza). Ah a vida é muito mais do que sua história: a imaginação é onisciente, mas a vontade não é onipotente. Só mesmo Deus para salvar-me bem ali na janela dos anos de vida e morte. A sensualidade canta em silêncio: o que está no ar é de quem pegar primeiro. O rochedo muda de lugar, se olhamos Se viramos as costas, ele dá alguns passos O alecrim do pasto, diz a lenda, nunca passa da altura de Jesus Cristo, ou seja: depois dos 33 anos de idade, ele passa a crescer para os lados e não mais para cima. O tempo é democrático: ninguém fica mais novo, todos ficam mais velhos. O frio chora pelos cantos, mas o amor, mas o amor mesmo a dormir escreve os poemas, tira o sono dos lugares. 

4 – A Licença Poética A noite não é o funeral nem o sepulcro do dia, é a parte azulada da vida vermelha. Longe dali a sanidade açucarada, a face angelical da vexatória juventude. Perto dali a boca no lugar do amor, as escamas dos lábios e os interstícios úmidos e pregueados, a justaposição molhada e vermelha (as secreções estancadas por enquanto?), os estrépitos cadenciados dos fulgores a forja das emoções subindo e descendo sobre o braseiro da mais recente paixão. Depois de dois dedos de prosa ah já vinha o prazer merecido depois de tanta sofrida beleza ah já chegava o prazer merecido depois de tanto sofrer a beleza. Se a palavra estiver do lado que o sol bate, é mais visível. Se surgir do lado oposto ao da lua cheia, é mais audível. O amor não tem nada a ver com as outras pessoas, só com nós dois no momento dele. A amplitude escorrega do contexto A vida social é esparrodada, violenta Os amantes precisam comer-se um ao outro, de vez em quando na bitaca do sossego. Não quero falar (para não dissipar) do instante em que ela tirou a roupa (oh perdão, mas foi isso mesmo que ela fez, ou muito mais que isso?). 

5 – Tempo, Tempero. Não tenho mais a juventude. Não posso mais jogar bola? O passado avança no futuro, o futuro que retroage e me inquieta. Cito em voz baixa a metáfora dessa mutável decadência. Tento controlar remotamente os pontos de atrito e de coesão entre a infância e a velhice. Não tenho mais noites a perder. A vida é mesmo uma criança: gosta, mas tem medo. 

6 – Ecologicamente Correto? Deixe aos pássaros a função dos pássaros, alguém me recrimina enquanto esparramo fubá no lajedo sob a mangueira do quintal de minha casa, perto da rua e do rio. Por que não os deixe catar os insetos e os grãos nas folhas e na grama, como é do gosto natural deles?, alguém recrimina-me por estar desequilibrando a natural povoação da redondeza. Você vai ver a praga de mosquitos Você vai sofrer o enxame de formigas Você vai sentir o que é bom pra tosse! Meu Deus, o ímpeto estranho das pessoas não sabe onde vai parar. Só é contido quando abalroado pelo sofrimento mais volumoso e pesado, do contraposto; se isto não acontecesse as pessoas impetuosas já teriam dado cabo do nosso mundo. Meu Deus, é melhor, bem melhor espiar a passarada no terreiro a saltitar a cantar antes e depois da chegada de minha sacola de fubá grosso. A dialética é um terreno que escorrega igual quiabo? Vocês que criticam minha leviandade: vocês pensam que não gosto de ver alguém feliz? De ver o brilho nos olhos de quem pede um pão velho e ganha um pão novo, assadinho na hora? A profundidade pode ser um ninho de balelas A superfície pode ser um tapete de perolas! Por que a passarada não pode ser feliz ao menos lá uma vez ou outra na vida, se posso contentá-la, trocando a exausta e suada ração de cisco e de mofo pelo farelo do autêntico milho roceiro? Não lhe passam na lembrança, nem de longe, que urge às vezes retocar os trilhos, remontar os degraus da caminhada, sabendo que atrás da serra tem serra? 

7 – A Mente, Dentro e Fora “a mente é uma coisa encantadora” – Marianne Moore. Mesmo que esteja em apuros de solidão, na janela do quarto que dá para o muro, e que se contenha nas lágrimas espontâneas do refletir e do contemplar em circunstância inapelável, você ainda tem a mente em perfeito estado para levantar uma das mãos e enxugar a lágrima que veio sem ser chamada. A vida é assim e assado, assim mesmo. O viver é que encrenca-se aqui e ali (no trabalho no casamento na preocupação com os filhos e com a situação mundial). Não obstante a mente é ágil, incorpórea, escapa de qualquer tipo de fechadura, passa da latitude à altitude e à longitude num abrir e fechar de olhos (dos olhos mentais, é bom frisar). É assim que escapole de um dardo, de uma laçada, e se alcança uma graça, um abrigo no inconsciente. A mente existe é para isso mesmo. Para exprimir e isolar e suprimir, para driblar as agressões, para que se acorde ileso de um sono tenebroso. A mente é individual e como tal não vai salvar o mundo da baboseira e da barbárie, mas pode enxugar a lágrima ocasionada pelo descuido de si mesma na atenção que vinha dando aos órgãos e sentidos e aos tecidos fisiológicos de sua pessoa, finalmente de ânimo mais ou menos apaziguado, pronto para novas incursões. 

8 – Queria Beijar Tuas Mãos De onde estava só podia ver o dorso e não a palma da mão direita. Os dedos desnudos ,pentagrama chopiniano, no belo prazer de articular os emblemas do prelúdio e do epílogo da façanha, sem sair do lugar. Os dons imbuidos afundam os anátemas no poço, no poço há muito abjurado. O polegar e o indicador seguram as folhas do jornal noticioso. Os outros dedos descansam, revirados, cada qual com suas palavras, invisivelmente a escreverem, a esquecerem o frio de tantos anos, a refazerem das cinzas o calor que volta a crepitar (que volta a crepitar?). 

9 – Modos de Viver Uma das alternativas é: depois de examinar e refutar o auto-conhecimento, seguir pelas veredas sombrias da alma. Primeiro a vida antecipada nas preferenciadas regiões oníricas Depois a vida póstuma no terreno móvel da velha saudade. Sempre à deriva como o junco do rio e a pedra do caminho. O rio e o caminho não têm outros lugares de ir e mesmo assim não choram ao amanhecer nem enrugam os rostos ao anoitecer. A ociosidade tem mau gosto e cheira mal. Como beijar a bunda de quem só sabe comer e dormir? 

10 – É Bastante Ter Saúde? O cavaco de sucupira que tomba no cerrado fratura, no útero, o crânio do nascituro. A história lendária e mística do trabalho rural. A história sangrenta e vária da população urbana, tudo que tenta mover-se neste livro brotou do chão como um pé de romãs, alastra no chão como os pés das pessoas na cadência das enxadas no eito: o círculo de ecos a vitamina da fé. 

11 – A Jabuticabeira do Quintal As árvores morrem erguidas: os galhos ao sol e à chuva das estações, espetados na direção da névoa azulada. Seja por alguma doença ou por velhice, uma e outra expiram aos poucos nos relapsos dos ciclos, na agonia dos silentes suspiros. Triste é ver a jabuticabeira lá de casa perder a seiva circulante das artérias mais íntimas, murchar e secar o madeiramento e a folhagem amarelar, dolorosamente. Meu Deus do céu, tudo isso em meio à verdura exuberante das laranjeiras e mangueiras e bananeiras, agora meras vizinhas condolentes (tal e qual como geralmente acontece com os moradores do arraial quando perdem um amigo, um parente).

terça-feira, abril 04, 2006

UMA, DUAS PARÁFRASES

1 – Dos Provérbios de Salomão (*). Seis são as coisas que o Senhor agradece antes são sete as que comovem sua alma: o tatu que tanto gosta do buraco antigo os lotes de chuvas alternando os oásis os cabelos cheios de dúvidas no lirismo do dia o desenho da lesma na areia dos caminhos as cores nos bolsos, que logo viram luzes as bolhas dos mistérios que chovem nas pedras a alma que é corpo na pessoa e no pássaro. Seis são as coisas que ao Senhor aborrece antes são sete as que sua alma abomina: a pobreza material, arcaica agora e sempre os pássaros sem asas que fincam as garras o governo nacional que nunca teve juízo os pés velozes que correm na direção do mal a violência das ruas que entra nas casas os deveres sem direitos dos excluídos sociais o caminho que volta, como o chicote do ímpio. 

(*) Com base no Capítulo 6, versículo 16 a 19, do Livro dos Provérbios de Salomão, do Antigo Testamento. 

2 – Os Dois Amores de Jill Hoffman (*). É no sonho que ouço o chamado (o grito simbólico do meu nome). Num instante pulo da cama em silêncio, para não acordar o marido que ressona. Encontro o chamador no quarto contíguo. E agarrados formamos outro casal na escassa luz da madrugada. Sua boca voraz me esvazia e me enche. Como é bom ficarmos assim na cama, o longo tempo a brilhar nos espaços. As gotas de leite escorrem no seu rosto, o meu corpo flui e boceja na entrega. Novamente a dormir no paraíso (na área vívida das pétalas momentâneas), ele já dispensa minha companhia. Então levanto-me diante da outra porta, retorno ao meu ninho anterior para reaquecer-me no corpo do meu outro homem. 
(*) Paráfrase de um lembrado poema de Jill Hoffman, poeta norte-americana, lido alhures.

sábado, abril 01, 2006

TRÊS POEMAS DE LÁZARO BARRETO

1 – O RETORNO DO OPRIMIDO 

Quando regressei ao arraial das metáforas, a névoa doía um tanto nas lombadas e outro tanto no passivo coração apertado (a dor de dentro a responder à de fora). Uma certa angústia capitulava a perspectiva dos juízos apressados dentro do automóvel, a correr sem necessidade. Por que agora? Não já paguei o que devia, se devia? O carro derrapa na curva da chegada, cantou nos pneus calibrados de antemão. A rua íngreme e bêbada me levava aos altos dos morros e das árvores. As casas olhavam (janelas abertas para dentro e para fora) moradias da paixão, da anistia e da tocaia. O parabrisa filtrava o diagrama, rompia o calçamento, adentrava a felicidade (essa coisa súbita e regressiva). O contexto, lado externo dos sentidos, vinha mover-me os lábios no pensamento do trecho súbito e hostil, hirto e frio (o que vem sem ser chamado, pensei silencia na alma o esforço de alegria, rasura o esforço da roça sazonada). De novo o sol a brilhar na chuva. A casa chega bem perto do carro (metade estranha, metade familiar): as flores de fora, as seivas de dentro (o que passou vai dar vida ao que vai passar? o que está lá dentro, no fundo, atende ao chamado do que está aqui fora?). No galho decepado da velha magnólia, o sabiá ainda canta, apesar de golpeado. 

2 - SEGREDOS 

Esmurro a noite pelo lado de fora. O que há dentro? Uma alcatéia de brutos? O epitáfio dos ímpios? Um pasto de feras e diamantes? As imagens de ontem, já extintas? Esmurro a porta da noite para saber o que fiz do coração e do sexo e das outras direções do vento. E também da moça de fita azul nos cabelos. Estou vivo ou morto nas garras desta poesia, nas unhas desta noite, nas adentrações de alheias sutilezas? Esmurro a noite pelo lado de fora. Queria saber o que há lá dentro: a visão onírica de uma graça? a dívida cármica? aflições financeiras? respaldos do pecado original? ou o novo credo de um novo amor? 

3 – OS TRÊS NOMES DO GATO (*) 

Dar nome aos gatos não é tarefa fácil nem fútil. Muitas vezes quando digo que o gato deve ter TRÊS NOMES DIFERENTES, olham-me de novo, julgam-me biruta. Mas assim é, por mais que estranhem e gozem. Primeiro o nome corrente, de uso da família, que pode ser Poetinha, Alípio ou Conceição. Depois o escolhido de pessoas refinadas (extravagantes ou mesmo sóbrias), como Menelau, Polonaise ou Pixinguinha. Por último o mais íntimo e solitário, que ele mais necessita para manter o orgulho e esticar os bigodes, enrodilhar-se na cadeira ou pular o muro como num vôo, e que pode ser Diadorim, Caracóia ou Ana Lívia Plurabelle, que nenhum outro gato deste mundo ostenta. Mas além desses e acima de tudo e de todos, há um nome especial a preferir e esse ninguém sabe ou saberá. É o nome que nenhuma pesquisa humana pode descobrir e que só o próprio gato sabe, mas que nunca confessará a ninguém. Assim ao ver um gato em profunda meditação, os olhos abertos mas cegos, as unhas em inocente repouso, a razão é sempre a mesma: sua mente está ocupada na contemplação de seu profundo, inescrutável e singular NOME. 

(*) Tentativa de transcriação de um poema de T.S. Eliot.