sexta-feira, maio 26, 2006

A POESIA DA LÍNGUA MINEIREIRA

Compilação de Lázaro Barreto. 

Nada de conversa fiada nem de papo furado. Conosco o leitor nunca está sozinho e mal acompanhado. Apresentamos hoje o nosso querido e maravilhoso João Guimarães Rosa, com algumas pinceladas de sua novela “Manuelzão e Miguilim”, pinçadas da 15ª. edição da Nova Fronteira. As expressões necessárias: “Os grandes coxos, entortados, ásperos, guardando as curvas dos troncos das árvores que foram. Ao enquanto, livres, os bois bovejam, os porcos crogem, sotretam os cavalos, as galinhas fuxicam, os cachorros redormem, e as dúzias de angolas se apavoinham selváticas, com seus contrafactos” (pág. 214). E a sabedoria dos rifões: “Êh mundão! Quem me mata é Deus, quem me come é o chão!” “Alegria de pobre é um dia só: uma libra de carne e um mocotó”. “Casar sério lá é triste/ namorar só é que é gostoso”. “A vida é isto que se sabe: é consolo, é desgosto, é desgosto, é consolo – é a casca, é o miolo”.”Aqui a gente olha a garapa ainda na cana”. “Chuva vesprando, cachorro sossega muito”. E as trovinhas que os personagens citam e os leitores não podem deixar de repetir? “Meu cavalo tem topete/ Topete tem meu cavalo/ No ano da seca dura/ Mandioca torce no ralo” E outras: “Quem quiser saber meu nome/ Carece perguntar não:/ Eu me chamo lenha seca,/ Carvão de barbatimão”. E outras: “Ó ninho de passarim/ Ovinho de passarinhar/ Se eu não gostar de mim? Quem é mais que vai gostar?” ( ) “O bicho que tem no campo/ o melhor é a sariema:/ Que parece com as meninas/ Roxeando a cor morena”. ( ) “Suspiro rompe parede/ rompe peito acautelado/ Também rompe coração/ Trancado e acadeado”. ( ) “O bicho que tem no mato/ O melhor é o pass’o-preto;/ Todo vestido de luto/ Assim mesmo satisfeito”. ( ) “Eu subi pro céu arriba/ Numa linha de pescar/ Fui perguntar Nossa Senhora/ Se é pecado namorar”. ( ) “Travessei o São Francisco/ Montado numa cabaça/ Arriscando a minha vida/ Por um gole de cachaça”. E agora seus picles dietéticos: - “Amar é querer se abraçar como o pássaro que voa. - Espero a lua nova como o cão espera o dono. - Podia ser um carangueijo ou um coração. - O peixe, sem rastros na água, sem nenhuma memória. - O esquecimento é voluntária covardia. - Se todo animal inspira sempre ternura, que houve, então, com o homem? - O medo grande que de dia e de noite esvoaça e o que pousa na testa da rês como uma dor. - Também os defeitos dos outros são horríveis espelhos. - A queda do homem persiste, como a das cachoeiras. - Nós todos viemos do inferno; alguns ainda estão quentes de lá - Os santos foram homens que alguma vez acordaram e andaram em desertos de gelo. - Não ter medo: O mar não se destrói com nenhuma tempestade. - As velhas pedras influem, como os astros; mas só as árvores convivem com a terra impunemente. - A memória nem mesmo sabe andar de costas: o que ela quer é passar a olhar apenas para diante. - Aviso: as sombras todas se equivalem. - Só as pessoas não morrem: tornam a ficar encantadas. - Que vamos, que vamos, até os ponteiros estão afirmando. - Só na foz do rio é que se ouvem os murmúrios de todas as fontes. - A água que não teme os abismos: a grande incólume. - O bagre tem sempre as barbas de molho. - Em alguma treva – como os mariscos no rochedo – almas estarão secretando seus possíveis futuros corpos?

HUMANO, MUITO HUMANO

1 – Monteiro Lobato. Escritor, editor, tradutor, empresário e adido cultural do Brasil nos Estados Unidos, esteve preso durante o Estado Novo – e quando readquiriu a liberdade mandou uma caixa de bombons ao general que o trancafiara, com os agradecimentos pela estadia na cadeia, por isso foi novamente preso. Grande figura humana do pró e do contra, que sempre desempenhou importante papel na vida nacional. “Estou curioso por verificar, pessoalmente, se a morte é vírgula, ponto e vírgula ou ponto final”, ele escreveu num de seus melhores momentos criativos, antes de integrar-se ao espiritismo e depois de perder dois filhos (mortos prematuramente por tuberculose). Em “Cidades Mortas”, livro escrito no início da Primeira Grande Guerra, ele associava as queimadas anuais da Serra da Mantiqueira à sanha incendiária das aldeias européias: “os “vons” incendiários alemães eram idênticos a meia-dúzia de neros de pés no chão daqui”. “O nosso progresso é nômade e sujeito a paralisias súbitas. Progresso de cigano, vive acampado. Emigra, deixando atrás de si um rastilho de taperas”- até parece que ele se refere aos dias de hoje. Marco Antônio Villa escreve que ele “escreveu, polemizou, combateu, foi preso, mas nunca adulou o poder, algo raríssimo entre os nossos intelectuais”. O Brasil da época, para ele, era um “pântano com40 milhões de rãs coaxantes, uma a botar a culpa na outra do mal-estar que sentiam”. radical na indignação, chegou a escrever que “O Exército e a Marinha e todas as criações do Estado só existem para justificar a extorsão de impostos e a manutenção de um bando imenso de parasitas”. Outra tirada de mestre dele: “comparo os homens a bichos de goiaba: a pátria é a goiaba – e quanto mais podre, melhor”. 

2 – A Ordem Franciscana.. O livro SÃO FRANCISCO DE ASSIS E A MORAL CRISTÃ não é hermético nem obscuro nem simplista: foi escrito para ser lido aos poucos, dedilhando suas linhas, como a de um livro de poesia e de filosofia.É uma obra sólida, uma fonte, e não a papelada descartável que em os nossos dias entopem e emporcalham as próprias fontes. Sabemos que todas as épocas da História são movimentadas em seus acontecimentos e na dramatização de seus problemas. Já em seu tempo Francisco ouvia a voz de Cristo, dita séculos antes: “Vai e restaura minha casa”. Para Bernardino essa restauração tem dois alicerces práticos: assumir em seu universo humano os marginalizados, como seus irmãos mínimos, e assumir a terra como material de construção do Reino de Deus. Ainda hoje Deus está a dizer aos franciscanos: Vai, restaura minha casa, que está, mais uma vez, em péssimas condições de conservação. O mundo de hoje carece do discurso e da exemplaridade franciscanos. Vivemos sob a influência e o jugo da mídia, que nada mais faz do que pesquisar e criar angustiosas expectativas e falsas necessidades, transformando o ser humano em mero consumidor de materiais insalubres, insossos e descartáveis. A volúpia dos lançamentos na chamada economia de mercado (é este o nome da nova sociedade humana?) é tão pródiga que cada novo produto mais parece o complemento de um e o precedente de outro. E é assim que a natureza é cada vez mais castigada em suas águas e matas e serras, pois a máquina da civilização, diuturnamente ocupada na fabricação do supérfluo (eufemismo do lixo), não pode parar. E é assim que o homem de hoje produz vinte, trinta vezes mais lixo do que o homem primitivo – o que vale dizer que massacra a natureza numa proporção muito maior. Sabemos, através de Frei Bernardino, que todo o tempo que a desordem prepondera, a Ordem Franciscana se faz mais necessária para substituir a Babilônia por Jerusalém, ou seja, a licenciosidade pelo estoicismo, o culto da mentira pelo amor da verdade. É preciso, pois, contrapor a exemplaridade franciscana à atual cultura do desperdício, vir com a parcimônia franciscana para defenestrar a carnavalização dos costumes, contrapor o desacato da corrupção (que se institucionaliza) aos brios da dignidade que brilha nos olhos das pessoas de mãos limpas e de corações imaculados. 

3 – A Lição Pai. E lá uma vez ou outra vem um poema a lembrar-me que ainda estou vivo. Alinho abaixo a pequena homenagem familiar, intitulada “A Lição do Pai”, que acaba de me ocorrer: Meu pai, quando velho, costumava bater a cabeça na parede do alpendre (onde sentava para cabecear, toda tarde), para contar mentalmente as mulheres que tinha, até então, amado. Depois que morreu, o sinal específico ficou na parede, a lembrar que ali ele batia a cabeça para dizer que na vida as mulheres nasceram para o amora dos homens, que nasceram para amá-las. 4 – Ecologia É Isso Aí. Em 1852 o presidente norte-americano queria comprar (comprar e não confiscar) as terras dos índios Duwamish, que tinha um chefe que assim respondeu ao presidente Willard Fillmore: “ O Presidente informa que deseja comprar nossa terra. Mas como é possível comprar ou vender o céu ou a terra? A idéia nos é estranha. Se não possuímos o frescor do ar e a vivacidade da água, como vocês poderão comprá-los? Cada parte desta terra é sagrada para seu povo. Cada arbusto brilhante do pinheiro, cada porção de praia, cada bruma na floresta, cada campina, cada inseto que zune, todos são sagrados na memória e na experiência do meu povo. Conhecemos a seiva que circula nas árvores como conhecemos o sangue que circula em nossas veias. Somos partes de uma terra e ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs. O urso, o gamo e a grande águia são nossos irmãos. O topo da montanha, o húmus das campinas, o calor do corpo do pônei e do homem pertencem à mesma família. A água brilhante que e move nos rios e riachos não é apenas água, mas o sangue de nossos ancestrais. Cada reflexo espectral nas claras águas dos lagos fala de eventos e memórias na vida do meu povo. O murmúrio da água é a voz do pai do meu pai. Os rios são nossos irmãos. Eles saciam nossa sede, conduzem nossas canoas e alimentam nossos filhos. Assim, é preciso dedicar aos rios a mesma bondade que se dedicaria a um irmão. Se lhes vendermos nossa terra, lembrem-se de que o ar é precioso para nós, o ar partilha seu espírito com toda vida que ampara.... O vento, que deu ao nosso avô seu primeiro alento, também recebe seu último suspiro. Ensinarão vocês às vossas crianças que a terra é nossa mãe? O que acontece à terra, acontece a todos os filhos da terra.... O que sabemos é isto: a terra não pertence ao homem, o homem é que pertence à terra. Todas as coisas estão ligadas, assim como o sangue nos une a todos.O homem não teceu a rede da vida, é apenas um dos fios dela.O que quer que ele faça à rede o fará a si mesmo. Uma coisa sabemos: nosso deus é também o seu deus. A terra é preciosa para ele e magoá-la é acumular contrariedades sobre o seu criador....O destino de vocês é um mistério para nós.... O que acontecerá quando os cantos da floresta foram ocupados e a vista dos montes for bloqueada? Onde estarão as matas? Sumiram! Onde estará a águia? Desapareceu! Será o fim da vida e o início da sobrevivência.... Estas praias e florestas ainda estão aí? Cuidem delas como as temos cuidado! Amem-nas, como nós as temos amado.Assim como somos parte da terra, vocês também são parte da terra. E nenhum homem, vermelho ou branco, poderá viver apartado dela...”.

SEXUALIDADE E SENSUALIDADE

Amor-amizade, paixão-ódio, dualidades aproximativas, uma edificando o relacionamento mais cristalizado e duradouro, a outra o mais explosivo e peremptório. Sexualidade e sensualidade, dualidade distanciativa, uma das partes incorporando a linguagem do naturalismo, de coito simplório e até violento na escuridão ou na claridade, rápido e rasteiro, quase que como um estupro. A outra qualificação (a sensualidade) incorporando mais o idioma da libido comedida, silente e perspicaz nas tateações , e aí o coito não tem mais esse nome feioso, mas o de cópula, enlace dos sentidos na conjugação dos verbos compartilhados, numa quase demonstração de um esbanjado, transbordante onanismo. A sensualidade, sim, é a eleita do prazer pressentido e escolhido sob as auras e entretons dos íntimos segredos do desejo afortunado de um dueto de estrépitos suspirosos, de gritos melodiosos, de vistosas abstrações, da encarnada fusão de duas almas num corpo que participa realmente de outro corpo. Sexualidade: Sade, Céline, Lawrence, Jorge Amado; sensualidade: Proust, Thomas Mann, Drummond, Guimarães Rosa. A felicidade do enlace sexual não é algo que se pede ou que se possa exigir, é algo que as partes fazem por merecer. O erotismo admite até mesmo a pornografia, mas nunca o baixo calão e a escatologia. É com jeito que consegue ir ao deleite e lá ficar horas e horas no bem-bom de uma gozação que lava a alma.Mas ninguém deve ser devasso na vida nem assediador. Meio sedutor ainda bem, um amador da sensualidade livre e espontânea a participar de um interlúdio de maratonas, uma fantasia amenizando o realismo da vida urgente e cotidiana. Isto sim. A sensualidade que está no ar e na natureza, na doçura do sentir e do pensar, um tesão sem ofensa, uma sexualidade mais erótica, a pornografia na hora certa, a transa mais demorada para o orgasmo interminável, o culto a Eros de fio a pavio, dos pés à cabeça. Tudo numa boa (como se diz) cheia de reticências, sem ponto final ou de interrogação, sem cobrança posterior, mas com os beijos das recíprocas gratidão e comunhão. Os dois pontos para a reticência de uma infindável, gratificante composição literária em prosa poética.

quinta-feira, maio 25, 2006

NUM CANTEIRO DE FLORES (*)

Esse lugar aí onde repousas a dois passos do bosque escuro onde o verde vivo da serpente assustada é ouro vivo nas mãos da fada... As trilhas que a alma segue à luz pendente o pássaro arcaico das quimeras tantos enfeites no chão trançado de sombras. Esse lugar sagrado, onde repousas, tornou-se mais belo com o tempo que até sofro em presumir, ái de mim! que alguma parte de teu apaixonado ser ficou infiel a mim aí nesse lugar debaixo da relva, onde repousas. Ou será que não estás mais aí e sim num lugar distante, e já me esqueceste? Ou alguém ao lado de teu coração te afagas aí? E então? Por Deus, e então? Uma sombra de folha beija teus lábios? O raio de sol que penetra o seio da terra aquece teus pés e tuas mãos, mantém em serenidade teus meigos caprichos? Os brincos de flores silvestres e o pálio de auras e aragens e aromas bafejam o cordel de teus meigos anseios? Ou será que outro rapaz tomou aí a teu lado o meu lugar e ama-te mais do que eu daqui? Aí embaixo (como vou saber?) o intrometido não estará a enredá-la de palavras afetivas mais plausíveis do que as minhas? Pobre de mim aqui, a pensar feridas e tristezas aqui neste lugar de sombras onde estou, sob o qual docemente repousas... As luzes que minha alma procura estão nos olhos agora cerrados, estão definitivamente lacradas nesse lugar aí debaixo da relva? As abstrações ardentes de teu corpo imortal ornaram as paredes do jazigo, dilatando-as, e a orquídea que espelha a tua imagem pode conceber outra fé em teu amor? E a brisa primaveril que vem do rio pode arrebatar, parte por parte, minha lembrança em teu meigo afeto? Ah, esse lugar aí debaixo da relva! Há muito ele ficou mais belo e afortunado, tanto que agora me faz pensar, ái de mim, que alguma parte de teu apaixonado ser me ficou infiel aí nesse lugar onde repousas. 

(*) Paráfrase de um texto de Marie de France (1154-1189), citado por Will Durant, em História da Civilização (12 volumes), traduzido em prosa por Monteiro Lobato. Companhia Editora Nacional, SP, 1955.

A PROFISSÃO DE FÉ (*)

O trabalho intelectual atrela-se à dupla preocupação: a ciência da pesquisa e a literatura da expressão. Mas esse é um dilema no meio do caminho. O que importa é a vida que está em nós e o mundo no qual estamos. No meu caso o que mais importa é traduzir as experiências da vida vivida e da vida sonhada em formas de expressão – e para isso tenho que manejar as ferramentas do meu alcance: as palavras em blocos de contos, romances, poemas, peças teatrais, crônicas, artigos, aforismos, tudo nas modalidades narrativas do verso e da prosa.. Cada autor tem seu engenho e sua arte. Primeiro arma-se o cenário e depois retoma o tempo. Aí então entra o esforço da reconstituição aliado ao da criatividade. Para falar da infância num arraial escrevi um romance, uma coletânea de aquarelas, uma novela dialogada e um drama teatral: mais de mil páginas. E não esgotei o assunto, apenas entrei nele. Depois, para revelar a adolescência e a juventude, escrevi mais três livros: um romance ambientado metade em Belo Horizonte e metade em Uberaba, lugares que vivi na década de 50; e outro romance ambientado num acampamento de obras de construção de uma usina hidrelétrica, na mesma época; e um terceiro romance, novamente aproveitando Belo Horizonte como cenário, agora já na década de 60. E depois de mais dois romances, dezenas de contos e poemas e de mais algumas peças teatrais (tudo ainda inédito), estou agora reunindo os dados para escrever o romance ambientado na nossa bela e querida Divinópolis, que provavelmente terá o nome de “O Pião Entrou na Roda”. O curso de Ciências Sociais abriu-me as portas da pesquisa e entrei justamente no caminho pouco trilhado das Histórias Municipais de Minas. Já escrevi e publiquei as de Divinópolis, Arcos e Desterro, e mantenho inédito o livro sobre a Cultura Popular dos Municípios de Conceição do Mato Dentro, Serro e Diamantina. E no momento estou pesquisando a genealogia das principais famílias que participaram da fundação e do desenvolvimento da região centro-oeste de Minas. Os dois trabalhos (o literário e o da pesquisa) são diferentes, mas têm algumas semelhanças, uma vez que ambos referem-se à vida e ao mundo, aos tempos e aos lugares. E se a literatura é um sonho e uma realidade, a história é uma fonte e um estuário: é dela que muitos autores colhem os melhores dados de sua obra literária que depois fará parte da própria história da civilização. 

(*) Texto publicado no “Jornal do Poste” (Divinópolis/MG, em 2001).

quarta-feira, maio 24, 2006

OS PRIMEIROS 500 ANOS SÃO OS MAIS DIFÍCEIS

Se a descoberta do Brasil foi uma ação divina (como era ensinado na escola), por que os portugueses escravizaram, mataram e queimaram tudo o que puderam escravizar, matar e queimar na nova terra? Os descobridores davam a amedrontada impressão de terem chegado a uma região de chuvas venenosas, e o velho Gandalvo, nos albores brasileiros, falava dos “ventos inficcionados das podridões das ervas e alagadiços”. Fernão Cardin, na mesma época, atentava para a dualidade climática: ao mesmo tempo que influía peçonha nas cobras, lagartixas e aranhas, influía formosura nos pássaros e nos arvoredos. Ele achava que o bicho-preguiça tinha o rosto parecido com a da mulher desmazelada.E medo do que podia estar dentro do mato seria a materialização dos monstros subconscientes. Os monstros lendários e os monstros humanos: eles se revezavam nos perigosos jogos da medonhidade? Colombo, quando viajava na direção do poente, viu homens com rabos e as sereias que viu não eram belas como esperava que fossem. Naquele época existiam baleias até nos rios brasileiros, garante Frei Vicente. O paraíso terrestre sempre existiu no imaginário popular com base nas antigas mitologias, e quase sempre situado no Atlântico. O Frei Vicente de Salvador, numa História do Brasil escrita em mil seiscentos e poucos, endossa essa crendice, afirmando que não é por acaso que Cabral levantou a Cruz no território no dia três de maio, o mesmo dia em que se comemora a morte de Jesus Cristo, batizando aí a colônia com o nome de Terra de Santa Cruz. A troca do nome por causa de um pau cor de brasa, reclama o Frei, foi a primeira vitória do Demo numa terra, que logo perdeu a denominação de Paraíso, porque, segundo os mais descrentes, o Diabo tomou conta de tudo. Tempos depois (e aqui vamos citar Laura de Mello e Souza) já “no início do séc. XVIII, temendo revoltas escravas e enxergando sublevações por toda parte, o Conde de Assumar via nas Minas – nervo da economia colonial – a própria natureza sendo insuflada pelo clima da rebelião”. Na opinião do Conde “a terra parece que evapora tumultos; a água exala motins; o ouro toca desaforos; desfilam liberdades nos ares; vomitam insolências nas nuvens; influem desordens nos astros: o clima é de berço e tumba de rebelião; a natureza anda inquieta consigo e, amotinada lá por dentro, é como um inferno”. E assim, com a dessacralização da natureza, a imagem do paraíso terrestre foi trocada por outra, quase oposta. A região centro-oeste de Minas até ao triângulo mineiro foi palco do genocídio de 1751, quando Bartolomeu Bueno do Prado, famoso Capitão do Mato, colecionou três mil e novecentos pares de orelhas de negros fugidos, que ele matou. A desumanidade da escravatura era tanta que Sayers chegou a escrever: “Todo escravo que matar seu senhor, seja em circunstância que for, mata em legítima defesa”. Os escravos sofriam de desnutrição, que causava diminuição de estatura, deformação esquelética, dentição podre, insuficiência tiroidiana, velhice prematura, preguiça, anemia e tuberculose – os mesmos males que ainda afetam brasileiros de algumas regiões que ainda sofrem um regime de semi-escravatura. A pouca devoção do brasileiro vem de longe, desde os primórdios da colonização. O Padre Cardim dizia que as senhoras pernambucanas quinhentistas não eram freqüentes nas missas e confissões; Saint-Hilaire, trezentos anos depois, dizia o mesmo dos paulistas em geral: “as ruas viviam apinhadas de gente que ia às igrejas sem o menor sinal de fervor”. E é nesta ordem de constatações que Sérgio Buarque de Holanda parece concluir: “Não admira, pois, que nossa República tenha sido feita pelos positivistas, ou agnósticos e nossa Independência fosse obra de maçons”. A essa religiosidade de superfície, ele acrescenta, se deve a incompreensão da verdadeira espiritualidade de se produzir, no país, uma moral social poderosa. O pragmatismo (levar vantagem em tudo), acabou derrotando o misticismo (amar o próximo como a si mesmo). Estudando a sociedade brasileira em 1935, Knight Dunlap, constatou como uma ocorrência em todo mundo os casos de crianças e jovens dominados pelos pais e que porisso tornam-se incompetentes, quando não psicopatas, recomendando, a partir dessa constatação, que toda criança deve ser preparada para desobedecer nos pontos em que as previsões dos pais são falíveis. Segundo ele as “boas” mães causam maiores estragos do que as “más” (considerando a significação desses vocábulos em sua acepção popular). Mas o brasileiro é por excelência o homem cordial da legenda? Sérgio Buarque de Holanda nega que as virtudes comportamentais do brasileiro signifiquem “boas maneiras” e civilidade: “são antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante”. Mas isso no homem brasileiro (ele acrescenta) é “uma libertação do pavor que ele sente de viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência”. É uma maneira de fugir da solidão, uma forma de cada um viver nos outros. Uma falta de amor próprio? de insegurança na individualidade? “Foi a esse tipo de humano que se dirigiu Nietzsche, quando disse: “Vosso mau amor de vós mesmos vos faz do isolamento um cativeiro”. Assim Sérgio quase citou Sócrates, que Nietzsche, a bem dizer parafraseou. Pois séculos antes o filósofo grego havia dito que o homem mau vive em má companhia, pois todo homem é o principal companheiro de si mesmo. É fácil de ver num telão de fundo negro a projeção da realidade brasileira em imagens de crua violência ao longo da história e da geografia, legendadas através dos espúrios dizeres da vida cotidiana (exemplos: “chapéu de trouxa é marreta”. “quê pedrada no saco”, “esse cara é pau puro”,” vou fazer você dançar miudinho”, “cai no osso aqui do papai”), com que as pessoas trocam desaforos, ameaças e amabilidades. Para o historiador José Murilo de Carvalho, a contribuição do brasileiro na ereção da cidadania moderna é justamente a teoria e a prática da bordoada pedagógica. Depois de informar que a cidadania inglesa se apóia no sentimento de liberdade – e da mesma forma a francesa e a norte-americana, ele diz que “a brasileira foi implantada a porrete. O cidadão brasileiro tem o gênio quebrado a paulada, é o indivíduo dobrado,amansado, moldado, enquadrado, ajustado a seu lugar”. O bom cidadão brasileiro, ele acrescenta, “não é o que se sente livre e igual, é o que se encaixa na hierarquia que lhe é prescrita”. Rasteando as evidência dessa violência histórica, é fácil chegar as às ocorrências testemunhadoras: Antonil já dizia que no Brasil colonial “o tratamento dos escravos seguia a regra dos três pés: pau, pão e pano, ou seja, cassete, comida e roupa. Ninguém via nada de errado nisso. Alguns padres “exortavam os senhores a serem mais generosos no pão e no pano e mais contidos no pau”. Aplicar o porrete em doses razoáveis era mesmo obrigação moral dos senhores, do mesmo modo que é obrigação do pai castigar o filho para o próprio bem deste. O historiador dá um exemplo na pessoa então ainda viva do marinheiro Ferreirinha, que “virou cidadão em suas palavras, no marmelo, na lambada, na chibata. Outros entravam no pau, no sarrafo, no cassete, no porrete, no bordão, na manguara, na vara, no cipó”. E depois, no ciclo do boi de nossa história, o candidato a cidadão tinha “à sua disposição o couro, o bacalhau , o chicote, o relho, o açoite, a tala, o laço”. Hoje as técnicas continuam a diversificar-se: “é o pau-de-arara, o choque-elétrico, o telefone, o afogamento, o fusilamento simulado...”, ou o enquadramento sindical, a coleção de expedientes truculentos das quadrilhas do crime organizado, as guerrilhas urbanas das gangues do narcotráfico, dos assaltantes, dos estupradores, dos marginais em geral que, inspirados pelos maus exemplos dos políticos e empresários corruptos fazem e desfazem o que bem entendem, mandam e desmandam nas comunidades de uma sociedade sitiada e apavorada. Segundo o historiador Waldemar de Almeida Barbosa 90% das cidades mineiras originaram-se de núcleos que se formaram dentro do patrimônio religioso, doado por uma ou mais pessoas, ao redor da capela, cujo orago constituía a devoção de quem tomava a iniciativa da sua construção ou da doação do patrimônio. Assim aconteceu em Divinópolis, onde Manuel Fernandes Teixeira doou 40 alqueires de terra à Capela do Divino Espírito Santo e São Francisco de Paula. Também no antigo Desterro (hoje Marilândia), onde Manuel Carvalho da Silva doou, em 1754, 140 alqueires e ainda construiu a Igreja de Nossa Senhora do Desterro, que lá está de pé até hoje. Para a construção da Igreja de São Sebastião do Curral, a irmã de meu bisavô, Francisca de Oliveira Barreto, doou um terreno de 12 alqueires. E também na Bocaina, o Ilídio Amaro Teixeira (outro parente meu, felizmente) doou igual quantidade de alqueires para a construção da Capela do Senhor Bom Jesus da Bocaina. Raimundo José da Cunha Matos escreveu em sua famosa Corografia Histórica, em 1837: “O povo mineiro é quase em geral honrado, pacífico, trabalhador, generoso, hospitaleiro, inclinado às ciências e artes liberais, e em extremo amante de sua pátria. Assim como em todos os países do universo, também se encontram pessoas de qualidades absolutamente opostas às precedentes, as quais são ferozes, vingativas, bandoleiras e inimigas do trabalho”. Mais adiante, no mesmo livro, ele acentua: “os costumes do povo têm sofrido alterações à medida do crescimento da população e os progressos da civilização. Até 1820 havia maior segurança nas estradas, podendo as cargas de tropeiros, as bagagens dos viandantes, ficarem nos ranchos ou no meio dos campos sem correrem risco de serem roubadas..., hoje (1837) os ranchos são atacados e os viandantes assaltados. Tudo por causa do recrutamento militar obrigatório que obriga o jovem a desertar da família e da sociedade, e levar uma vida errante; e também pela introdução do luxo na província e dos jogos de azar”. Mais adiante ele continua: “O governo de Portugal não granjeou louvores dos povos desta Província relativamente à instrução pública..., supondo que as trevas da ignorância eram o instrumento mais seguro para conservar os homens no sistema colonial. Em toda Província Mineira o ensino público conta apenas 1.358 alunos numa população estimada de 592.797 almas livres e escravos.” Revendo velhos cadernos manuscritos, deparo com o que escrevi em 1968, dois anos após ter chegado a Divinópolis: “O povo divinopolitano é etnicamente heterogêneo, não possui uma tradição cultural, uma vez que a cidade, em contínuo crescimento, não apresenta traços comportamentais mais ou menos comuns em seus habitantes. O crescimento demográfico não é oriundo apenas do alto índice de natalidade, mas sobretudo pela imigração incessante de pessoas de toda parte”. Os adventícios adaptam-se logo ao mimético mosaico populacional, uma vez que não se sente um estranho no meio uns dos outros, mas sim um igual aos outros, pois que quase todos são adventícios. E assim continuamente crescendo, a cidade continuamente cristaliza a imagem mimética que irmana os habitantes na mesma diversidade cultural que, se por um lado evita os malefícios do bairrismo, por outro lado, desestimula o amor do próprio habitat – e assim a cidade mal amada é mal feita e mal conservada , desprovida de uma estrutura de proteção, de embelezamento e de salubridade das artérias ao longo da área construída como que de improviso, ao gosto de cada um, sem a uniformidade conjuntural, a noção estética do equilíbrio, a perspectiva de um paisagismo aprazível.

terça-feira, maio 23, 2006

JORNAL DO POSTE (*)

Hoje a minha coluna homenageia o saudoso Bento Dona, de Marilândia (minha bela e querida terra natal). Vale dizer que ele e seu irmão Dico Dona (ele, Capitão do Terno de Congado e o Dico, Capitão do Terno de Moçambique), quando musicavam um pagode na roça, com seus instrumentos e suas vozes, era sinal que a noite ia ser pequena para tanto contentamento. Ninguém via o tempo passar, e quando menos se esperava, a barra do dia apontava no horizonte. Foi num pagode do Lavapés (região rural de lá) que anotei este seu jogo da bicharada, enquanto ele cantava: Número um deu na avestruz Tou com meu jogo na mão. O dois deu foi na águia, Assim começo a alinhação. O número três deu no burro, quando o macho é trotão. O quatro é a borboleta, que bate com as asinhas no chão. O número cinco é o do cachorro, Com o seu apelido de cão. O número seis é o da cabra Que dá leite ao menino pagão. O número sete é o do carneiro, Escolhido como bicho da bênção. O número oito é o camelo, Que nunca tem sede não. O nove deu foi na cobra Que anda sem pé e sem mão. O dez deu foi no coelho, Sumidinho no capoeirão. O número onze é do cavalo, Que dá sela e dá silhão. O doze é o do elefante, Que tem na trompa o argolão. O treze é o número do galo, Que bate asas sem a mão, O quatorze é o número do gato, Que dá o tapa e esconde a mão. O quinze é o número do jacaré, A nadar naquele lagoão. E justo agora que me lembrei Que o dezesseis é o leão. Ora pois o dezessete é o macaco, Que pula do pau no chão. O dezoito é o senhor porco Bem tampado no caldeirão. Perdão, só agora me recordo, Que o dezenove é o pavão E que o vinte é peru Bicho de toda função. O vinte e um é o touro que Puxa carro e carroção. O vinte e dois é o número do tigre Que pega o homem à traição. E o vinte e três é o amigo urso, Que dança pra ganhar tostão. e o vinte e quatro? o 24 é o veado, O que mais corre no chapadão. O vinte e cinco é o da vaca. Acabei minha alinhação. Tudo que é bão é custoso, tudo que é custoso é que é bão. 

(*) O Jornal do Poste, de Vanir Vasconcelos - diariamente afixado em vários lugares públicos de Divinópolis - no qual mantive durante muito tempo uma coluna intitulada “Picles Dietéticos”.

domingo, maio 21, 2006

O SANGUE CENOGRÁFICO, DE LEILA MICCOLIS

Os poemas delas são irrevogáveis, contundentes, sentenciosos. Curtos e profundos, sintéticos e desdobráveis amplamente, como se depois da última linha o poema continuasse ferindo e perfumando a brancura da página, o vazio do ar e a lisura da parede. A partir de onde termina, o leitor joga seus dados, assinala seus quesitos, formula suas questões, vai e volta com novas idéias e imagens, sem camuflar a autoria dela, agora ampliada com os adendos dele, leitor. Os poemas são curtos e reprimidos, mas no livro que reúne mais de 30 anos de depuração e cristalização, eles aglutinam-se numa homogeneidade, numa espécie de sanha polvorosa, abalroando a linearidade da leitura, - e de repente os versos se revezam na pauta e a tonalidade desvirtua a normalidade enCANTAtória – e aí não tem mais jeito: o jeito é interromper a leitura, para evitar o colapso da euforia sentimental e cair na desritmia mental. Fecho o livro, dou umas voltas no quintal ou na rua, procuro esquecer a impactação, vou cuidar de outras coisas – e só dias depois é que retorno, sofregamente, às páginas do livro desdeixado na cabeceira da cama. Depois de dar um tempo na inquietante leitura, sentindo-me propício ao reinicio das inquietudes, reabro o livro e oh! e ah!, logo entro em nova enrascada, em nova infusão de arrepio e rubores. Aí sinto que não é uma poesia de simplesmente ler: é uma espécie de afago, uma dúvida de enigma, uma coisa para se carregar com jeito, equilibrando para manter a integridade; é algo que parece sumir de vista e que reaparece subitamente no ar mais desvairado e concomitante. Apalermado ou um tanto engasgado, comecei assinalando os pontos mais chamativos das páginas, como se fincasse ali sinais de minas, para esburacar depois. Balançava a cabeça, dizendo a mim mesmo que há muito que não topava com uma poesia tão desarticuladora de axiomas e paradoxos.... E parando um pouco para observar o rumo que a leitura tomava, notei que repetia muito a sinalização, querendo com isso dizer que a leitura se adiava em sucessivas e intermináveis vezes, para novas prospecções de preciosidades assim indicadas. Quero dizer, Leila, que sua poesia, além de possessiva, é inteiramente postergável e ao mesmo tempo imediatamente inadiável, contraditoriamente irresistível. Não é fácil suportar tanto peso na consciência, tanto embargo na mentalidade, tanto questionamento a ser revisto (pois o que é isto, na verdade, de a mulher ser sempre a parte fraca da humanidade, submetida ao homem, desde priscas eras, da infância à velhice, primeiro pelos pais e irmãos, depois pelos namorados e maridos, e finalmente pelos filhos e netos: quê maldição-esculhambação-negligência, quê arbitrariedade é essa?), tanta indicação para que o tema seja discutido e desenvolvido em confessionários de mea-culpa, em seminários universitários, em debates nas arenas políticas dos parlamentos e na chamada barra dos tribunais de alçada (ou que outro nome tenha). O jeito, novamente, é fechar o livro e deixá-lo assim em sossego, até que a possessão poética esfrie um pouco, para desvanecer um pouco a aflitiva nublação. É impossível, no entanto desvencilhar dos encargos e embaraços assumidos no decorrer da esfacelada leitura. Antes de cada vez, durante e depois, uma espécie de indistinta mensagem vinha subrepticiamente, de longe, aproximando-se nas intermitências marginais do desafogo, disparando a chusma de marteladas em pregos abstratos, as batidas e rajadas de vento nas portas e janelas, o arfar e o fluir nos subterfúgios mais impensados, como se o clima fosse de uma inusitada instauração de um tardio surrealismo. Os ardores fulminantes da cópula (seus arroubos agônicos de conluios e adjetivos superlativos, gritantemente superlativos), o tim-tim-por-tim-tim das copiosas aleivosias, as torneiras abertas das rusgas, as mãos carinhosas arrepiando as pulsões, a água fria nos pulsos dos desafetos a jorrar nos lares desabridos, o rosnar das discórdias subentendidas na calada das noites insones, o cio dos gatos nos telhados e das pessoas nas alcovas, os tímidos arrependimentos pós-altercações, os novos abraços e os novos beijos e os novos enlaces e novas penetrações, os reveses da contrapartida, os novos gozos celestiais das reabilitações morais e sexuais, tudo isso e mais aquilo em quilos disso e daquilo, tudo vindo como repasto e cantilena na surdina dos instintos, no subconsciente abalroado e redimido, os momentos felizes enfim reabertos na clareira do cerrado conjugal, surpreendendo a deus e a todo mundo na clara manhã drummondiana de chupar o gosto do dia e reconhecer que “o essencial é viver”. Leila Miccolis é toda a humanidade em suas vitais e letais manifestações. E tudo isso não é só isso. Os versos descolam-se das páginas, entram nos bolsos físicos e anímicos do leitor, impregnando as alternativas e as simulações de um resultado que é a poesia de dor e de prazer, que chora e que ri, escolhendo a poeta e o leitor as alternativas dos estágios, expondo e denunciando o que na vida e no mundo é a Anti-Poesia, que em outras palavras pode-se denominar de atraso de vida..

O EPITÁFIO DOS ÍMPIOS

Ninguém é perfeito, Mão Tsé-tung, mas você não precisava exagerar tanto assim (nem você fhc, nem você lula). O livro “A Vida Privada do Camarada Mão”, de Lizhisni, deixa seus velhos admiradores bobos de ver o rol de suas patifarias: não tomava banho nem escovava os dentes, dormia com várias mulheres ao mesmo tempo em seu harém particular, e nelas repassava suas doenças venéreas. “Homem devasso, egoísta e cruel, viveu num clima de decadência, licenciosidade e despotismo na pior tradição dos imperadores chineses” – assim está escrito no livro. Mas ele não é o único rei que ficou nu diante do povo. Nero tacou fogo em Roma, para tocar lira diante das chamas. Calígula fazia incríveis caretas e facécias ao espelho para certificar-se da própria hediondez. E tantos outros sanguinários de outros tempos? A lista é enorme, da qual avulta na instantânea lembrança as deploráveis figuras de Hitler, Franco, Mussolini, Salazar, Stálin, Napoleão, isso para não falar dos nossos Getúlio Vargas, Conde D’Eu, Conde de Assumar, General Médici, e dos alienígenas Petain, (vendilhão da França}, John Kennedy (que desgraçou aquele anjo de doçura que era a Marilyn Monroe), Nixon ( o enroladíssimo, que gravava a própria conversa com os comparsas de tramas diabólicas, acompanhada de nojentas flatulências), sem falar nos negociadores e torturadores de escravos e matadores de índios, os chefões de máfias e de outras infames quadrilhas, sem falar nos anões do orçamento e nos safadões da impunidade e nos outros autores de crimes nefandos do dia-a-dia de toda parte do mundo e dos inomináveis massacres e holocaustos, uma cambada inumerável de amigos do alheio e inimigos da honestidade, precursores das atuais roubalheiras dos atuais corruptos da vida pública nacional). Até quando ficaremos à mercê dessa vil extirpe de pessoas que expelem fezes pela boca? Até quando?

AGAPANTO IRREAL NOS CABELOS

As correntes de ar que passam em teus cabelos abrem meus olhos já de manhã para os buracos que minhas palavras cavam na solidão dos desejos. O que essa moça é na ordem dos seres? O que ela tem que as outras não têm? uma canção pueril nos joelhos? Uma flor no fundo entrelaçado dos cabelos? Um beijo em sua alvura mais íntima? Uma sombra nos olhos de meiga-flor? As asas de cores que circundam teu corpo interceptam minhas palavras que palmilhavam a conformação de tuas prendas, dos pés à cabeça, que palmilhavam para conhecer os vales e as montanhas que me chamam dia e noite para ocupar o lugar do meu destino, que tanta falta me faz.

PARÁFRASE DOS IMPROPÉRIOS (*)

Ó Deus Santo e Imortal, tende piedade de nós! Somos réus e juízes, inocentes e pecadores, Sofredores e algozes, sofridos e torturadores: Tende piedade de nós, ó Deus Santo! Meu povo, que te fiz, em que te contristei? Te tirei da terra do exílio e, mesmo assim Preparaste minha cruz na Terra Prometida: Se errei, onde foi que errei, que não sei? Eu que te conduzi quarenta anos pelo deserto, Que te alimentei com o maná que criei Especialmente para teu exclusivo regalo, Que te introduzi na terra esplêndida: Por que tamanha ingratidão de tua parte? Por que? Porque, meu povo?, responde-me! Que mais devia ter feito e não fiz? Te plantei como boa fruta doce, E tu te fizeste amargo para mim: Quando te pedi água, me deste vinagre, Antes de me furar num dos lados... Cheguei a sacrificar crianças no Egito, E quantos de lá afoguei no Mar Vermelho: E tu me entregaste aos ímpios relapsos. Te guiei incólume na coluna de fogo, E tu me levaste ao Pretório de Pilatos. Te dei de beber a boa água da pedra E me quebraste de tapas e açoites. Por ti tanto bati nos Reis de Canaã E me bateste com a cana na cabeça.. Te dei o cetro da verdadeira realeza, Me deste uma coroa de sangue e espinhos. Te exaltei com grandioso e belo poder E me suspendeste no patíbulo da cruz. Diga, meu povo ingrato e infeliz: Em que te contristei? Responde-me! Ó Deus Santo, Santo Deus, como Respondervos? Como respondervos? Como?! Senão rogando e implorando O vosso perdão, a vossa clemência E que Tenha piedade de nós!  

(*) Paráfrase calcada nos impropérios do livro “Liturgia da Semana Santa – Restaurada”, tradução de D. Ildebrando P. Martins e D. Marcos Barbosa, Edições “Lúmen Christi”, Mosteiro de São Bento, Rio de Janeiro, 1957.

O NORTE E O SUL DAS CARÍCIAS

De longe ela se aproximou, casando cheiro e cor de rosa ao redor da mesa. O sol que lhe entrava por baixo da roupa, dourava o olhar, avermelhava o rosto. Um sol ventava de dentro para fora um amor de orgasmos intermináveis. Um amor de orgasmos intermináveis aproximava, vindo do norte para o sul das carícias. Os comichões que subiam nas pernas navegavam-lhe nas costas lisas, de fora a fora. Aí senti quando sua virilha cintilou e as auras dos seios inflamaram-se. Um sol mais sereno percorre agora as regiões mais obscuras e serenas: o umbigo acolhe retalhos de sedas, a vagina flui e reflui como o rio em luas novas, cheias e quentes. O ânus contrái, enquanto as vibrações escalam os andares da espinha dorsal, até sublimar a cabeça laureada.

sábado, maio 20, 2006

AMIZADE LITERÁRIA

1 – Ausência de Ary Xavier. Onde andará Ary Xavier, autor da quarta plaqueta de poesia das edições Complemento (as anteriores foram de Heitor Martins, Elói Silveira Reis, e Pierre Santos), intitulada “Fábrica de Solidão”? Ele era amigo e vizinho no bairro de Santa Efigênia (BH) de Joaquim Soares Ramos (a mais drummondiana das pessoas que conheci), que era meu amigo e colega em Salto Grande, onde trabalhávamos na construção da primeira grande usina hidrelétrica da CEMIG. Graças a essa duplicidade amistosa, travamos o mútuo conhecimento, que tanto prezo até os dias de hoje. O Ary transpirava poesia dia e noite, transbordava de imagens e conceitos versificados de acordo com as novas inspirações e as novas habilidades de um vanguardismo que floresceu e frutificou de Minas para o Brasil. Mas o que afinal foi feito dele? Namorava uma moça chamada Aparecida – e foi ela que desapareceu com ele? Fico sem saber como de repente uma pessoa desiste de uma vocação e de uma concepção de vida tão arraigadas. Eu também fui tentado de mil maneiras, por bem e por mal, cheguei a fazer algumas pausas, mas desistir da literatura, jamais. Ele era um expoente de todo aquele múltiplo, polivalente movimento da chamada Geração Complemento, que marcou época na história da moderna literatura de Minas e que revelou autores como Heitor Martins, Pierre Santos, Silviano Santiago, Affonso Romano de Sant’Ana, Vicente de Abreu, Terezinha Alves Pereira e tantos outros, todos até hoje em fecunda e brilhante atividade. Lembro-me que a Complemento ia publicar meu primeiro livro, inédito até hoje e para sempre, chamado “Crepúsculo Verde” – mas a pequena editora (que vivia à custa de subscrições) faliu duas plaquetas antes de publicar a minha. E o Ary sumiu de vista: fiquei sabendo que casou e mudou, e nunca mais publicou uma linha sequer nos tablóides literários, nunca mais publicou um livro. Uma pena. Por que, afinal de contas? Por desencanto da poesia? Mas é por gosto e encanto da poesia que me lembro dele e transcrevo aqui a segunda parte de seu poema “rosa em sigilo”: “é que ela tem suas próprias carícias e convive num país de afetos quando dezembro chega com o prestígio do sol saudando na intimidade a pele que a envolve sua voz atingiria sutilezas de orvalho seus pés inventariam uma ilha de luz e peripécias”. Não é bonito e consistente? Fico pensando se ele não tivesse desistido..., que rumos novos de novas estrelas não teria descortinado... e os jogos de palavras e os atavios da comunicação e os achados de novos valores....Ah é claro que ele deve ter tido lá suas razões..., mas deixou um lugar na literatura mineira que não se preencheu até hoje, o lugar que era dele e de mais ninguém. 

2 – A Presença de Leonor Vieira-Motta. Vive em Volta Redonda (RJ) e este (VERO BRILHANTE) é seu livro de estréia, para o qual tive a honra e o prazer de escrever uma das orelhas, que transcrevo aqui: “O jogo das palavras nas mãos de Leonor Vieira-Motta é um jogo de vida. Da simples arrumação dos vocábulos, ela transige para a fazeção de coisas e seres, pensares e dizeres dos momentos e lugares, dentro e fora deles e de nós. E a poesia não é, em dois tempos, causa e conseqüência? Explícita e implícita, nas beiradas e no núcleo e nas imediações e nas longidões. O que lemos é algo maduro e doce e consistente, plantado, colhido e beneficiado dentro dos apurados requisitos de pureza artesanal em todos os momentos da gestação, da concepção e da entrega à fruição que não se esgota, que é o livro válido em si mesmo, repleto de arrebatamentos e apreensões. A fluência airosa e alada desemboca na primeira curva da disciplinada elegância e todo o azáfama da cachoeira redunda no murmurar de um remanso, doce e plausível. Assim vai o poema dividindo-se nas escaladas, multiplicando-se nas barragens laterais. Ela (a poeta, a poesia) a falar de si e dos outros, o eu dela no mundo nosso de cada dia na telepatia dos fazeres e dizeres, pensares e sentires. O leitor se felicita, fica muito à vontade quando sente a co-autoria dos poemas que transitam na plural ressonância das páginas (um percurso mais que um livro?) de lírica comunicabilidade. Como o músico que trauteia nos timbres e auréolas, ela apalpa, espalma, afaga e derrama carinhos e receios em seus tons e devaneios e logo está em todas as afinadas vozes da orquestra. Aí chegamos na iluminação, perdidos e achados na exemplaridade inteiriça e consecutiva dos poemas – e cada página espelhando o fulgor da anterior em todo o deslumbrado caminho da leitura. Eis um de seus poemas, intitulado PAPÉIS: “A folha de papel acena pra mim. É lenço branco. Pede trégua. Enxuga lágrima. Tremula no vácuo entre a partida e a chegada. Retangular lembra a piscina com independência de temperatura e clima onde mergulha e nada livre sereia, golfinho – Cristina. 

3 – A Onipresença de Drummond. Uma vez Drummond, sempre Drummond. Ele parecia viver no fundo das coisas, de onde via as superfícies do lado de cima e do lado de baixo. Assim ele continuava em Minas (onde talvez estivesse morto, ou seja, estivesse a viver de outra forma), estando no Rio (onde desenvolvia a ilusão do migrante, julgando que tinha ido, pensando que tinha ficado). Vivia em muitas dimensões: o coração numeroso a recalcar os climas do nível das nuvens e do nível dos mares, o cérebro dinâmico a receber e expedir as mensagens dos sentidos continuamente despertos, em palavras carregadas de energia. As várias fisionomias do rosto do poeta, como diz Silviano Santiago no prefácio de FAREWELL, configuram a personalidade poética de um companheiro do tempo, que não envelhece porque já era homem feito e maduro desde os tenros anos da infância, confirmando uma opinião de Alceu Amoroso Lima, segundo a qual o mineiro é mais jovem em idade avançada do que nos primórdios da vida. Ambivalentes e múltiplas (como diz o Salviano), as fisionomias conservaram (perenizaram) o rosto de uma personalidade poética ao longo do tempo, sem envelhecer, ou seja, sem enfraquecer o tom de voz, o alcance do olhar, a verve da expressão, e sem descurar a sensualidade da vida cotidiana, onde e como estivesse. O arraigado amor à família, que Drummond dissemina de forma carinhosa e profunda em tantos poemas, é a sublimação de sua mineiridade: o sentimento de solidão dos vastos espaços montanheses, que sobrepõe outro sentimento ainda mais agudo: o de que a família resume a humanidade. O raciocínio ciclópico afinado à fluência das articulações na confluência vocabular: nele o poeta é o jogador que distribui as palavras no papel como as cartas na mesa e a bola de futebol no campo.

sexta-feira, maio 19, 2006

PICLES DIETÉTICOS

- Quem pode aceitar que as mesmíssima mãos que consertam um rádio ou um relógio pode tirar a vida de um semelhante? - Mergulhar na lembrança não é um risco? E se nela tiver muito visgo na fundura e não conseguirmos voltar à superfície? - Tão dessemelhante é um amor de outro amor!... - Uma alma que contagia a outra, aí sim, temos UM AMOR. - Sinto-me culpado ao saber que Deus não está feliz. - A gordura que escorre no fogo, a carne que sapeca no borralho, os sacrifícios pascais: quem legalizou tais abominações? - Só quando a morte começa a fechar o cerco é que advém a privação da sensualidade nas pessoas normais. - O transe crucial, no qual a sensualidade é afetada e até suprimida, é algo que beira o mortal precipício. - O mundo que temos é este mesmo que temos de melhorar continuamente, indefinidamente. - Uma pessoa só é uma pessoa se for o amor de outra pessoa. - O rosto de Greta Garbo é um pensamento de Deus? - Fugir da tristeza deitado numa cama é mais difícil do que fugir de um cão raivoso numa estrada larga e comprida. - O autor se exprime quando o leitor se vê na expressão. - Como Sartre, no olho da rua depois de ver um grande e belo filme, sinto-me um pouco mais que eu, quase outro. - Os olhos dela falavam de lugares logicamente inexistentes, familiares apenas a eles, olhos dela. - A prospecção de minha lavra: capenga aqui, afoita ali, quase esbarra no cristal inamovível.. - Os filmes de amor costumam exagerar na dose romântica. E o expectador, a enxugar tanta lágrima, ouve a própria voz dizendo em surdina: ora essa, que mentirada! - O cara que diz: quem faz sacanagem comigo, faz uma vez só, vive de mal com quase toda a população da cidade. - Quando São Pedro risca seus fósforos e arrasta as cadeiras no céu é sinal que os desabrigados da terra vão dançar. - Por que acrescentar complicações mortas às complexidades vivas?, pergunta Nietzsche. - O trivial às vezes prevalece: uma banal ária de aldeia pode resultar numa preciosa sonata de Mozart. - As combinações vegetais de musgos e ramos igualam ou ultrapassam as combinações elementares dos seres humanos. - Tudo que nos é dado de bom e de ruim, nos é dado como matéria-prima para produções que podem passar do efêmero ao eterno. - Um salto mentalmente longo e fisicamente perto. Assim é não pular antes de pular. Do subjetivo para o objetivo. - Regressar ao sono já dormido é um exercício intelectualmente válido. - Feio por feio, prefiro meu corpo, que pelo menos é meu. - O que há de comum entre o escritor e o relógio é que ambos são imprecisos e trabalham de graça. - No mundo do espetáculo, sempre que uma estrela cai, um astro cai em cima. - Segundo Ezra Pound, quem fez a primeira cadeira é um inventor; quem fez a segunda, um mestre. E quem sentou na terceira é um diluidor. - Programa a vida como se isto fosse possível. É um autor de telenovela. - Proust encontrou a eternidade procurando o tempo perdido. - O que chamam de lavagem cerebral não passa de outra sujeira cerebral. O cara escapa do espeto e cai na brasa. - Dirigia tão devagar na estrada de terra que se as rodas do carro fossem de madeira, brotariam. - O absurdo tem sua razão de ser. O senso comum não pode entender a estrutura do universo nem suportar o peso deslumbrante de uma tarde estival. - O que escondo dos outros, quanto mais escondo, mais visível fica para mim. - O desmancha-prazer tem dez manchas onde ninguém vê? - Para medir o peso de seus textos, o escritor pesava as folhas em branco e depois de escritas. - O uso do cachimbo faz a boca porca? - Quem morde na água quebra a cara? - Todo artista é contestador. Um bom exemplo: há mais de três séculos que Shakespeare vive a contestar os maus autores do mundo inteiro. - O contrário da humilhação é a dignidade – falou e disse André Malraux. - A arte é ambígua, o amor é ambíguo. Se não fossem ambíguos, o que seriam? Batatas digeridas ou não, amanhã jogadas no lixo? - Deus aparece na hora do dia amanhecer, depois desaparece, diz um personagem dostoievscano no romance “Os Possessos”. - “No turvo ocaso as luzentes asas”, diz Hopkins sobre o espírito santo vergado sobre o nosso mundo. - William James bem que tentou, através do óxido nitroso, embarcar no misticismo, mas acabou pegando o trem mais viável do pragmatismo. - Às vezes tenho a impressão que Freud é mais escritor do que cientista. Às vezes leio-o como se estivesse lendo Proust. -Ela me espezinha sem dó nem piedade porque me odeia, ou seja, porque me ama. - É nas horas mortas da noite que a vida desperta para o poeta que esmurra a porta fechada da própria noite. - Um pesquisador constatou a existência de 3.259 regos de esgoto a céu aberto na cidade, onde, em muitos deles, centenas de crianças nadam de braçadas. - Chutava tão mal a gol que não acertava nem a linha de fundo. - A mania de trocar todo ano de carro, de aparelhos eletrônicos, de roupas e de calçados, de mulher ou de homem, é fenômeno exclusivo da sociedade de consumo, que com mil negligências e artimanhas faz de tudo para que tudo isso seja mesmo trocável depois de certo tempo de uso. E quem paga o pato é a natureza cada vez mais dessacralizada, mais sugada e envenenada. - No Brasil da era Lula a desmoralização política é quase completa: os poderes executivo, legislativo e judiciário ficaram praticamente cooptados ao marasmo e estrepolias da corrupção e dos desmandos. Restaram o quarto poder, ou seja, o da Imprensa (palmas para a revista VEJA e para o comentarista Alexandre Garcia, da TV Globo) e o quinto, do Povo. Mas o Crime Organizado, no sexto lugar, quer galgar a liderança e proclamar o advento do apocalipse de rabo grosso. - Depois do reinado estéril e sufocante da tecnocracia nas décadas da ditadura, o retorno ao culto dos políticos, que parecia salutar, está agora descambando e mostrando os dentes podres e vorazes. - Que o sexo é sobretudo uma fonte de prazer, até o estudo da biologia prova: os seres que mais procriam são os assexuados. - Nunca mais levou desaforo pra casa, depois que descobriu o caminho do bar. - Possuía o ar tétrico de um pai que espancava os filhos e que jamais tinha comido cadeia por isso. - Quando o amor entra pela porta, o amante sai pela janela? - Tantas vezes o cântaro vai à fonte, que um dia cantará. - Beaumarchais disse que o que é muito tolo para ser dito, pode ser cantado. Profetizava o surto da maior parte da atual música popular brasileira? - Os tempos mudam. O judeu errante fincou os pés no solo e mandou o palestino sedentário errar pelo mundo. - O homem norte-americano polui cinco vezes mais que o indiano. Logo, povo desenvolvido não é, consequentemente, povo limpo. - É tão liberal que até admite a sobrevivência dos corruptos, temendo ficar muito solitário neste velho mundo sem porteiras. - Na cidade os pernilongos são tão descomunais que quando pousam em nossas orelhas, elas até abanam. - O rio da roça viajou léguas para prosear com o rio da cidade, mas quando chegou perto não aguentou o fedor. - Nunca um não me doeu. Quem não me ama, não me merece. - Nada a polemizar com a turma arrogante dos que pensam que o nada, na boca deles, é o tudo. Nada de perder tempo com essa cambada. - O ser humano é capaz de esquecer a ofensa, o desacato, a injustiça, mas jamais esquecerá uma humilhação sofrida. - Drama que pode virar tragédia é o do arrivista que não logra seus intentos. - Muitas vezes quem pensa que está indo para a frente, está é retrocedendo, passando o que já passou – e agora com as pernas cansadas. - Certos filmes e livros deviam ser vendidos em farmácias, como remédios para muitos males. “Relíquia Macabra”, de John Houston, já me curou de uma gripe enfadonha e persistente. E “Dom Casmurro”, romance de nosso querido Machado de Assis: para quantos males pode ser receitado? - O mundo globalizado está desafinando? Azar de nossos ouvidos, sujeitos à zoeira da baianização irremediável e da falsificação da musica caipira, transformada em caipora esguelhada. - Os versos das canções populares têm outra poesia, não a dos poemas de palavras que encolhem e desdobram com a flexibilidade de plantas sob o sol e chuva da roça. São mais cortantes e atenuantes, mais explícitos na direção colimada. - A praga das faculdades de fins de semanas em todo o país atenta contra as boas normas do prazer e da cultura. - O exibicionista mata a cobra e mostra o pau. - Os sonhos da Bela Adormecida no Bosque com o Monstro da Lagoa Negra faziam a Branca de Neve corar. - A fome era tanta que enquanto as aranhas teciam as redes em sua garganta, as suas tripas maiores comiam as menores. - Virava e mexia e sapecava seus trocadilhos infames. Morreu com um palavrão atravessado na garganta. - A casa é o seu interior, é a moldura do retrato, o vazio dela tem a forma e o conteúdo de cada corpo que nela mora. - O ir e o vir ocupam o mesmo caminho. Só o carangueijo anda de ré, mas ele também vai e volta. Ou está sempre voltando, indo? - O ser vivo está frequentemente tocado pela morte – está se aproximando cada vez mais dela. Exprimir essa angustia existencial através dos ritos dramáticos: quando vou conseguir? - Quem não tem medo de morrer, tem coragem de matar? - O belo tem um certo parentesco com o horrível quando, também, causa um certo medo. O medo de alguma verdade muito feia? - É muito difícil levantar as causas sem cair nas conseqüências. - E tenho aquele distante parente lá da Barra, que casou, homisiou, viveu consecutivamente com quatorze mulheres diferentes. O cara só podia ser doido de jogar pedras: não tinha amor-próprio nem subconsciente, nem nada dentro da cachola; vivia da boca pra fora. - Farias Brito acreditava que a prosa venceu o verso quando a imprensa foi inventada, facilitando a escrita torrencial antes dificultada pelo esforço manuscrito. Da síntese poética do verso passamos à torrencialidade da prosa. - O que distingue o cidadão de qualquer comedor de feijão é que o primeiro não quer levar vantagem em tudo e se recusa a fazer o mal, mesmo quando não pode fazer o bem. E então, você é um cidadão ou um mero comedor de feijão? - No trágico episódio da refrega do crime organizado no Estado de São Paulo versus autoridades constituídas, levando o pânico, a morte, a insegurança ao seio da população, dois personagens se destacaram nos bastidores: de um lado o jornalista Alexandre Garcia acusando os culpados e do outro o ministro Tarso Genro defendendo os culpados. - Um favor ou benefício que você presta a outrem, se repetido de tal maneira que vira uma obrigação, deixa de ser um favor ou um benefício, para ser uma espécie de desaforo. - A diferença ente um campo de nudismo e uma praia (ou piscina) no verão, é que nesta ainda resta uma nesguinha (uma tanguinha) de sensualidade. - Quem se devota à literatura enfrenta tanta dificuldade, tanta malquerência, que acaba se arrependendo. Só que tardiamente, quando reconhece que está perdidamente apaixonado por ela. - Antigamente se Maomé não ia à montanha, a montanha ia à Maomé. Hoje, com tanta caixinha de fósforos ao alcance das mãos dos malfeitores, toda montanha, na época da seca, vira uma bola de fogo. - A mulher à sombra se compara (diz a lírica chinesa). Segue-se a sombra, ela foge; foge-se da sombra, ela nos segue. - O mundo pode viver sem a literatura?, pergunta Sartre. Muito mais ele pode viver sem o homem – é a sua resposta. - O desejo é melhor do que o orgasmo, diz a psicóloga Lídia Aranty – pois aquele perdura no tempo e na intensidade, enquanto que este é limitado no tempo e na intensidade. A diferença entre os dois (ela acrescenta) está entre o não vivido (onde cabe tudo) e o vivido (onde cabe do melhor e do pior, mas só cabe o que cabe). - Fedaputa, desgramado, ordinário, vagabundo, excomungado: alguns xingamentos usados na roça, tempos atrás. Não de caso pensado nem de pré-concebida maldade, mas por indignação, raiva instantânea. - Tomé de Souza chegou em Salvador em 1549, trazendo o Governo- Geral, o Ouvidor-Geral, o Provedor-Geral. A cidade e a colônia passaram a ter tudo menos povo, uma vez que os índios não eram vistos como gente. Quase quinhentos anos depois temos o povo, mas não a organização do povo. - O alto daquela serra espera por mim anos e anos. Quando irei lá, para ver de perto a camada de verdes palavras falando sobre a pedra negra e inconsútil, esférica e acolhedora? Quando irei lá descansar minha cabeça sobre a linha dos musgos sombrios? - Por que uma boa história arranca-me lágrimas e não sorrisos? Chorar diante da tristeza é normal, mas sentir a prevalência das lágrimas mesmo diante de uma bela e positiva emoção..., sei não. - A resignação é um pequeno e furtivo suicídio, como queria Balzac? - De uma coisa Conan Doyle tinha certeza: em toda história de crime o Mau Gosto é o personagem principal. - É claro que não tenho nenhum prazer em presenciar, ouvir e contar sobre as causas, os atos e os efeitos da violência institucionalizada em muitas partes do mundo. Ao contrário! É sempre com um lenço enxugando os olhos que vejo, ouço e conto (por dever de ofício? profilaxia psíquica?) o que assim tanto fere a vida das espécies de nosso tempo. - A pessoa quando é má e ruim , só tem boca pra xingar, não é mesmo? Nesse caso está desprovida de sensualidade e traz e leva em si apenas a reles sexualidade. - Fantasiar a realização dos desejos é fácil – e não causa danos a ninguém. - É raríssimo encontrar um pobre que seja escritor, músico ou cineasta. Por que? Porque a arte custa dinheiro e dinheiro custa ganhar. - O inquisidor dos pássaros?: é o mesmo detonador dos fluidos maléficos, o mesmo causador das desinterias espaciais, o fazedor de desertos, o apropriador das economias, o zanga-sabão do dia-a-dia familiar e comunitário. - É preciso olhar o lado (ia escrevendo o lodo) horrendo da mente humana, de vez em quando? - Nos olhos o olhar que nunca parecia findar: radiante como o de um céu ou de um abismo (de rosas). - Às vezes a luz ofusca, a escuridão aguça. - Uma nuvem de incenso alternadamente cobria e descobria seu corpo escorregadio e fremente. - Uma e todas, todas e uma: é sempre a mesma mulher que me procura, que eu procuro. - Realidade, magia, milagre, é só abrir os olhos e encontrar. Mas como encontrar essas qualidades no ser humano sem os piques e os repiques da aversão e dos atritos? - Ao morrer outra pessoa sairá de mim e eu, invisível aos outros e a mim, ficarei olhando, sem nada sentir. - Sou a mesma pessoa na claridade e na escuridão? - A vida rural é toda feita de religião, magia, mistério, dor, purgação, milagre, morte e ressurreição. - Um grande esforço devia ser feito para conservar a inocência espontânea das pessoas que ainda não foram atacadas e feridas. Elas que vivem sem queixas e mágoas que ainda acreditam na sincera bondade das outras pessoas. - A vítima fragilizada pensava, enquanto apanhava do algoz: você é parrudo e cruel, mas ainda vai encontrar alguém mais parrudo e cruel. - Passar do implícito para o explícito não é perigoso? O segundo momento não pode banalizar o primeiro momento? - As pessoas da trindade: ego, id, superego: a mulher o homem o ambos a narrativa a descrição o discurso as três frases consecutivas, as três palavras os três pensamentos no ar. - A imaginação: se lhe dar asas, ela não pára de voar. - Uma, além de bonita, é bela. Outra, apesar de feia, é bela. - Perdido de amor, ele caminhava sobre as pedras, sem pisá-las. Carregava arroubas de espigas num ombro e no outro levava papagaios e capivaras comendo as espigas. E cantava, enquanto andava. Cantava sem parar. - As pessoas podem ser humildes, mas não humilhadas. - Lá do morro o vento mandava algumas de suas brisas para a baixada, mandava suas melhores lembranças para acariciarem nossos cabelos e molharem nossos sorrisos. - Existia um sujeito na minha terra, malucado e subentendido, que gostava de mencionar os maus presságios atmosféricos e de rabiscar na areia com as suas garatujas os croquis cabalísticos, figuras estranhas, coisas iniciáticas, signos de salomão, enigmas folclóricos, logo ele, coitado, tido e havido como um capiau da roça. - Ái de nós, como pesa a certeza que mais temos: a de que um dia ficaremos perdidos em nós mesmos numa dessas noites profundas, em pleno dia. E então para sempre ficaremos arquivados nalgum escurinho que ninguém mais freqüenta, tipo Conservadoria Geral do José Saramago? - Afinal por que uma pessoa se mata? Ela não se mata, nunca: antes é matado. - É preciso acender com o fogo de nosso coração o coração das outras pessoas, como queria Gogol. É assim o contágio da vida.

MAIS DOIS POEMAS

1 - As Neves de Antanho (*) Quem me dirá em que país verde e amarelo a balada de François Villon ainda faz perguntas? Em que lugar da terra ela agora se esconde, ela que jogava as tardes em cima de mim? E onde estão as matas e serras de outrora? Os ecos propalantes dos vales e redondezas? O casal de lobos debaixo do pé de jacarandá? E os antigos luares? As neves de antanho? As inventoras de albores e crepúsculos e noturnos? Onde estão as senhorinhas de antigamente? Onde a doce balada fala do amor perdido, depois de desestrelar o céu com tantas naves? Em que ninho de abril a rolinha agora se anula? De onde o amor telefona sem nunca mais estar lá? De onde ele manda as palavras de dentro de uma goiaba? Onde estão as moças da roça, agora tão sumidas? Onde ficaram as chuvas miúdas daquele tempo? As tanajuras, os vagalumes, os lobisomes? A moça que beliscava minha alma visitou-me na reles lembrança nublada de outro dia? Onde estão o cheiro e a cor daquelas tardes? O ar daquelas tardes tão fagueiras? As moças em flor de minha juventude, recuperadas por Marcel Proust e não por mim? E aquelas neves que vinham nos sonhos, onde estão hoje em dia? 

(*) François Villon (1431-1463) é autor da “Balada das Neves de Antanho, que aqui cito de memória. 

2 - Possuir ou Ser Possuído? Eu (impúbere e retraído, precocemente senil?) chegava perto, cada vez mais perto, para vê-la, ampliada, transcender. Ela retraia (adiantadamente impúbere?), temendo talvez que eu visse lá dentro de seus olhos a sua alma a sua loucura de ser e não ser a pessoa que ela própria desconhecia? Sei não. Embargado no transe fortuito, eu duvidava que o que realmente via lá na fundura do íntimo dela fosse a minha própria intimidade, desnudada assim sem mais nem menos, tão impregnado dela eu estava ali nela diluido (tornado numa parte dela?). Isso me afogueava, assustava, afugentava, depois de tanto encantar-me.

quinta-feira, maio 18, 2006

RESPINGOS MACHADIANOS E OUTROS RESPINGOS

A mãe é a Igreja, o Estado é o padrasto, ele disse. Um padre, personagem de seu romance “Casa Velha”, assim vê a mocinha Lalau, de 17 anos de idade: “...dotada de um par de olhos claros e vivos, rindo muito por eles, quando não ria com a boca; mas se o riso vinha juntamente de ambas as partes, então é certo que a fisionomia humana confinava com a angélica, e toda inocência e toda alegria que há no céu pareciam falar por ela aos homens”. Ninguém é de ferro. Fiz uma pausa em minhas cansativas e às vezes até dolorosas pesquisas genealógicas (quase 300 anos de história!) para ler o romance supracitado, o único que ainda não tinha lido do Bruxo do Cosme Velho. É mais um refrigério, um contentamento. Alguém já disse que as escolas de letras e de jornalismo podiam reduzir a lenga-lenga pedagógica e recomendar, no lugar do exame de teorias e dissertações, a leitura atenta e proveitosa das obras completas do Mestre de Cosme Velho, o nosso Machado de Assis. Para falar dos olhos de Lalau, ele os compara a um casal de borboletas; para falar de sua adolescência brincalhona, ele faz a ressalva quando descobre que ela ama Felix: é o amor que lhe antecipa a puberdade. E depois, ao ver os dois, de longe: “Não se podia ouvir-lhes nada, mas era claro que falavam de si mesmos. Às vezes a boca interrompe os salmos, que ia dizendo, para deixar a antífona aos olhos; logo depois, recitava o cântico. Era a eterna aleluia dos namorados”. UM POUCO DE RAINER MARIA RILKE Um belo poema desse autor, de vez em quando, é uma boa pedida. Passo-lhes uma versão baseada na tradução de José Paulo Paes, constante do livro “Poemas” (Companhia das Letras). Deus é o nome do poema – e é o nome da poesia e da vida. “Deus, que será de ti quando eu morrer? Eu sou teu cântaro (e se me romper?) Sou tua água (e se me corromper?) Sou teu agasalho, sou teu afazer Levo em mim teus signos, teus verbos. Sem mim não tens a casa, Deus A que com palavras de afeto te acolhia. Perdem teus pés exaustos as macias Sandálias: também elas eram eu. De ti desprende-se o longo manto E teu olhar que minha face acolhe Virá procurar-me Para deitar-se ao sol poente Entre pedras estranhas... Que será de ti quando eu morrer? O CANTO DA COMUNHÃO, DE PADRE ZEZINHO. Muita gente diz que é fácil fazer arte religiosa, uma vez que a religião já é, de certa forma, uma arte. Os valores da Fé (afeição) e da Piedade (compaixão) são simultaneamente valores da religião e da arte. Mas tanto a arte como a religião alcançam outros valores e seguem outros caminhos. Mas a simultaneidade referida pode até ajudar ou dificultar a arte (a plástica, a sonora) religiosa, quando peca pela facilidade, aproveitando os elementos constantes nas celebrações litúrgicas. Essa facilidade, no entanto, não é aproveitada pelo Padre Zezinho, que na sua criatividade poético-musical é ao mesmo tempo religioso e artista, autênticos. Isso porque adiciona, sem subtrair, os elementos da fé e da piedade, construindo suas canções munido do compasso contextual e ao mesmo tempo exorbitando da riqueza espiritual e da beleza moral para os novos rumos, os novos matizes, as novas bênçãos dessa fortuna arraigada e florescente. Vale a pena transcrever uma das canções dele: “Poucos os operários, poucos trabalhadores E a fome do povo aumenta mais e mais És o Senhor da messe Ouve a nossa prece Põe sangue novo nas veias de tua igreja. Falta pão porque falta trigo Falta trigo porque não semeiam E faltam semeadores porque ninguém foi lá fora chamar. Falta fé porque não se ouve Não se ouve porque não se fala E falta esse jeito novo de levar luz e de profetizar. Falta gente pra ir ao povo Descobrir porque o povo se cala Pastores e animadores pra incentivar o teu povo a falar. Falta luz porque não se acende Não se acende porque faltam sonhos E falta esse jeito novo de levar luz e falar de Jesus.”

DUAS POETAS INVULGARES

Recebi o livro POROS, de Agostina Akemi Sasaoka, filha da pintora Regina Martins, ilustradora de nosso saudoso DIADORM e do teatrólogo Antônio Koso Sasaoka, residentes em Campinas (SP). O livro, como lhe disse em carta, é uma caixinha de música e de mistérios, é a viola e o dicionário, a boceta de pandora e a arca de noé, a cartografia da libido e a feira das verdades. Os poemas fervem na panela de pressão. É o perfume da vida, que como o sândalo do provérbio, perdoa e abençoa o machado que o fere. É a recuperação freudiana da inteligência a serviço da sensibilidade, da psicologia a favor da sensualidade. Porque o mundo é uma bola cheia de vertentes e cada poeta procura um caminho original (só seu), a partir do qual possa abrir nossos olhos e descortinar as novas paisagens que esperam os novos olhos. Outro bom livro recentemente publicado é o de Maza de Palermo (BH). Como não sou crítico e acredito que não existe crítica para a poesia a não ser a paráfrase, ou seja, a escrita de um arremedo, de uma espécie de poema paralelo. Assim é que vai minha impressão, em versos livres e brancos: O livro dela é uma pugna entre a piedade e a violência e é também um casario humano, uma estatuária greco-romana, uma floresta de troncos abruptos e frondosos. É bom saber que há uma grande distância ente os poemas: é como sair de uma casa penhorada e chegar em outra remida é como acorrentar Prometeu nos próprios olhos e examinar as arestas dos olhos de Júpiter e de Minerva é como subir nos galhos da aroeira do sertão e colher as sombras de um sol tão quente. Um livro torrencial? cada parte, parte para outros fins, as linhas parecem tábuas de uma ponte pênsil ao peso de tantas lágrimas e sorrisos assim reunidos no poema: são os grãos da sensibilidade e da mentalidade em buliçoso e macio alvoroço?

POETAS DIVINOPOLITANOS

Adélia, Três Vezes Adélia. Três constantes temáticas atravessam, como linhas circulares, o mundo poético de Adélia Prado: a cidade natal, a sensualidade vital e a divindade. São as linhas principais de um mapeamento multifacetado de imagens e conceitos não obrigatoriamente coniventes.Estou a ler o número nove dos Cadernos de Literatura Brasileira, dedicado à poeta, que estampa na contracapa o poema da cidade de Divinópolis, que ela já tinha cantado meigamente na adolescência em tom laudatório, enaltecendo as fábricas, os prédios, as oficinas, os trabalhadores braçais, alavancas do progresso que a cidade começava a conhecer. O novo poema é de um amor menos ostensivo, que responde em toda sua obra pelas menções afetivas das coisas e seres da terra: a beira da linha e seus moradores, a faina ferroviária de toda a vizinhança, a freqüência litúrgica nos templos católicos, as festas populares nas ruas e praças, os pungentes relacionamentos dos amigos e parentes, entre os quais avulta, luminosa, a figura do pai da poeta (autor metafórico, por assim dizer, de muitos de seus mais belos versos, que ela enfaticamente cita na sucessão de suas publicações). Divinópolis é, para ela, a dona de uma luz que nasce da verdadeira luz eterna. A sensualidade que sobressai de seus versos é a do princípio vital da natureza e da humanidade, sem a qual as aparências não teriam intensidade, as ações não teriam graça, os sonhos não seriam lembrados nem antes nem depois do sono. “Se me tocar, desencandeio as chusmas”, ela diz num verso e noutro, falando do sexo, de modo doce diz que ele é sapiente e tem o modo realmente doce “pleno de si, mas com fome”. A poesia é Eros, ela conclui, com toda razão, espalhando em seus versos a essência mais perfumosa da libido em todo o curso da natureza: a cor e o som, intensos no viveiro das folhas aéreas e rasteiras e em todo voar e cantar dos pássaros e no álacre existir das coisas e seres, glorificando o princípio do prazer em sua finalidade, em sua felicidade humana, esfericamente planetária. E Deus? O Deus dela é talvez mais belo no Velho Testamento e mais verdadeiro no Novo Testamento? Interessante notar que Ele é onisciente, onipresente, onímodo, oniparente, mas nunca chega a ser o onipotente tantas vezes apregoado nos catecismos católicos. Ele também vacila de vez em quando, diante de alguns estrepes misteriosos, por mal do resguardo de alguns dos pecados? Seria esse um traço dostoievscano de nossa querida Adélia? “A uns Deus quer doentes, a outros quer escrevendo”, ela diz num verso que prenuncia o outro “Deus quer falar e me usa”. Pois que fazer Poesia para ela é fazer o Pão de Deus. E esta é a mais bela forma de orar, afirma Frei Beto, a respeito do trabalho dela. Uma atmosfera de conflitos evanescentes, de machucados revigorantes. Quantas vezes, muitos caminhos, quantas fontes. O Outro Nome da Poesia. A mais recente publicação de Osvaldo André de Melo, a plaqueta intitulada “Meditação da Carne” (Orbital Poesia, BH 97), é obra e madura, o transe andante nas vertentes da sutileza, lépido nas articulações e belamente revestido do lirismo mais humanista. Cada palavra é a pedra, o barro, a madeira, o formão, a talhadeira, todas as ferramentas e materiais de construção das catedrais ao mesmo tempo cotidianas e seculares. Um nome, outro nome, todas as palavras que procuram dizer o outro nome da carne:quem sabe o enredo e o coração do sonho? o dobre de vivências infinitas? Sei não. Osvaldo André de Melo nunca teve pressa de partir nem de chegar. Nunca atropelou os embargos dos caminhos. Foi sempre o que é; é o que sempre foi: o poeta da bipolaridade da prudência e da ousadia, da ousadia e da prudência na alternância das dietas e das canções, das atrações e expansões dos momentâneos da permanência. Cônscio da própria luz, não precisa de lanternas alheias para cumprir sigilosamente sua escalada orbital, indo e vindo no mesmo endereço da infância-adolescência-juventude-maturidade, sem ferir ninguém a não ser com os gumes da afabilidade, da auto-estima, do amor-próprio de toda a humanidade. É por isso, e por muito mais, que estamos diante de um livro que engrandece toda a poesia de nosso tempo – não só pela carga lírica (quer dizer que o amor continua sendo a melhor coisa do mundo), como pela validez da palavra (os muitos nomes, as muitas coisas de cada uma delas): a poesia tornada ramo de oliveira que a pomba de Noé trouxe para a arca nos dias posteriores ao dilúvio. Sursum corda, é o que temos a dizer, antes e depois de ler os poemas de “Meditação da Carne”.

quarta-feira, maio 17, 2006

VIDA CONTRA A MORTE

Quem ler Norman O. Brown terá o fascinante trabalho de revisar valores arraigados no contexto histórico-cultural de nossa pobre civilização. Partindo de pressupostos como “a civilização desumaniza a cultura” (Huizinga) e “Deus é a totalidade da natureza” (Spinoza), ele quase celebra o casamento do céu com o inferno, cristianizando Freud e freudianizando o cristianismo. Tudo que tem a dizer aplica-se ao campo das ações humanas, mormente quando pergunta se há possibilidade de se acabar com a repressão. E acrescenta que a essência da sociedade é a repressão do indivíduo, e que a essência do indivíduo é a repressão de si mesmo. Quando diz que a noção do pecado implica em atitude de aceitação e que a noção de política implica na de luta, ele está justificando a adesão de homens de bem ao processo político, o que certamente afastará a intromissão de pessoas desqualificadas para a assunção de responsabilidades tão graves e complicadas. A certa altura do livro (de título em epigrafe) ele cita o conceito marxista de que a religião é o coração de um mundo sem coração, acrescentando que a felicidade é a realização adiada de um desejo pré-histórico. O dinheiro, por exemplo, não consta entre os notórios desejos infantis. Deve ser por isso que, na vida adulta, o dinheiro traz tão pouca felicidade. Creio que um bom novo Presidente da República brasileira poderá ser bem sucedido no controle paciente, acurado, lúcido e principalmente honesto do nosso desenvolvimento seguro e generalizado, munido da necessária dose de honestidade nos propósitos e nas ações, tendo em vista a instauração dos verdadeiros fundamentos de uma sociedade feliz, feliz até onde pelo menos a felicidade pode ser entendida como a ausência de problemas de consciência. Freud define a repressão (tanto a individual como a social) como a capacidade em se rejeitar ou manter algo fora da consciência, quando o certo (a não-repressão) é admitir o princípio e o fim de não reprimir nem recalcar. Mas sim conscientizar e administrar. ATUALIDADE DE BERNARD SHAW - Exceto durante os noves meses anteriores à sua primeira respiração, nenhum homem dirige os próprios negócios tão bem quanto uma árvore. - Na infância muitas vezes eu interrompia minha educação para ir à escola. - O homem que não for um revolucionário aos 20 anos, será um canalha aos quarenta. - Os ladrões foram vingados quando Marx provou que a burguesia rouba. - A civilização é uma doença produzida pela prática de construir sociedades com material podre.

terça-feira, maio 16, 2006

O TEATRO EM QUESTÃO

Bertold Brecht já foi considerado o Shakespeare do século vinte. Priorizava os temas sociais e a angulação política (e nesse ponto às vezes derrapava), ia fundo na alma humana porque sabia, fugindo do naturalismo, fundir o dueto do “estranhamento” com o “distanciamento”, o ir e o vir, o close e a panorâmica da vida no mundo. Numa carta recebida de Bárbara Heliodora (em 1963), crítica teatral especializada em Shakespeare, ela observava que “a coisa mais importante à obra dramática é que ela não diga alguma coisa que o autor sente necessidade pessoal de dizer, mas sim que ela diga alguma coisa que precisa por ela mesma ser dita”. A isso ela dava o nome de “imparcialidade” do autor, que Brecht, como ativista político, não tinha, e por isso muitas vezes desperdiçava seu talento, batendo na tecla falsa. Para Stark Young, famoso crítico norte-americano, a arte teatral é a mais complexa de todas porque depende de um grande número de pessoas: os atores, o diretor, o músico, o cenógrafo e o dramaturgo (este, na opinião dele, o mais importante de todos, pois é ele que “cria o tema em termos de vida”. No Brasil as experiências de Augusto Boal com o teatro do oprimido, de Gerard Thomas com a ópera seca e de José Celso Martinez com as transcriações, revolvem as cinzas que de tempo em tempo recobrem as brasas vivas dos teatros grego e elizabetano, descobrindo outras fagulhas vívidas nos clássicos romanos, franceses e nos populares medievais, instigando a criatividade em todos os níveis da encenação teatral. Boal começou a fazer teatro nos bons tempos da década de 50, quando o método de Stanislavski ( o laboratório, o distanciamento, o entranhamento) chegou ao Brasil através de Sady Cabral, Luiza Barreto Leite – e logo contaminou o grupo de memoráveis teatrólogos: Guarnieri, Vianinha, Flávio Miglíacio, Nelson Xavier, Tônia Carreiro, Cleide Yáconis, Paulo Autran, Sérgio Brito, Abílio Pereira de Almeida, Jorge Andrade, Graça Melo, Sábato Magaldi, Nydia Lícia, Nelson Rodrigues, Millôr Fernandes, Bibi Ferreira, Sérgio Cardoso, Ziembinski, Cacilda Becker, Maria Clara Machado, Ariano Suassuna, Fernando Peixoto, Fernanda Montenegro, Osman Lins, Gláucio Gil etc. Picles Dietéticos. O The Living Theater, produto do movimento libertário mundial da juventude revolucionária de 1968, era um grupo de vanguarda, itinerante, dirigido por Julian Beck e Judith Molina, portador do dialeto das ruas ao som nebuloso de estranhas melodias, que fazia da representação cênica uma experiência compartilhada entre os elementos do grupo e o público. O teatro vivo é o mundo – eles diziam. Estiveram morando em Ouro Preto, onde foram presos pela ditadura militar e deportados como marginais e subversivos. Depois de citármos os teatrólogos brasileiros, vamos dar um pulo até a bela e variada ninhada dos modernos vanguardistas de outros palcos, citando como exemplares os dramaturgos Harold Pinter, Edward Albee, Antonin Artaud, Strindberg, Pirandelo, Jean Cocteau,, Tchecov, Albert Camus, Terence Rattingan, Tenessee Willians, Beckett, Ibsen, Claudel, Eliot, Inge, Marlowe, O’Casey, Eugene O’Neill, Arthur Miller, Sherwood, Steinbeck, Synge etc. São os faróis noturnos do embevecimento esclarecedor onde quer que tenha um grupo que saiba desencadear as emoções e as idéias em formas vivas aos olhos de todos nós. Divinópolis, felizmente, está neste caso. Abro aqui um parêntesis para dizer que este texto deriva de uma palestra no auditório do INESP (Faculdade de Divinópolis) em 1999, onde seria encenada a peça infantil deste autor, “Quem Matou o Filho da Onça?”, dirigida por Oswaldo André de Melo. A peça aproveita uma piada que reporta ao fantástico tempo em que os animais falavam – e tenta aglutinar temas de literatura oral, sem tirar nenhuma conclusão, moralista ou não, tentando apenas mostrar, indiretamente, que o ser humano participa do chamado reino da bicharada, e que está longe de se o melhor tipo da espécie animal, apenas o mais dominador. Alguns Princípios Teatrais Segundo Stark Young. Aristóteles coloca o enredo em primeiro lugar entre os elementos dramáticos: de todos é o mais difícil e expressivo. Como instrumento de expressão o autor tem às sua disposição a vida ou a atmosfera dos costumes retratados, os pensamentos e as reações emocionais características dos seres humanos, podendo trabalhar em termos desses aspectos, em termos de seus personagens e suas ações. O olhar e o sorriso não valem tanto, no caso, já que o público não podem vê-los. Bernard Shaw, quando escreve falas de trezentas palavras, mesmo assim está escrevendo teatro, porque escreve por meio da justa evolução das partes constituintes e com expressões equilibradas a fala atinge um estado especial que a faz transpor a ribalta e viver no teatro, enquanto que outra fala mais curta pode levar o ator ao desespero e o publico à mais completa apatia. Aristóteles diz que quando o poeta fala como indivíduo, não cria imagens – e da mesma forma podemos dizer que quando o ator está sendo apenas ele mesmo, não é um artista. Homero, ele diz, por mais admirável que seja em qualquer outro aspecto, o é acima de tudo neste, pois sabe qual é papel a ser desempenhado pelo poeta no poema.. Somente por intermédio de sua idéia criadora pode o ator compreender sua parcela no conjunto da obra de arte teatral a qual deve servir: tudo o mais nele só pode ser utilizado pelo diretor e pelo dramatista, pois ele não passa de um elemento de expressões, assim como são os pigmentos, as telas e a luz na pintura. A idéia determina o estilo do mesmo modo que o processo da cristalização atua dentro de um mineral. E nem tampouco pode a mesma coisa ser dita de duas maneiras diversas, já que cada uma diz alguma coisa diferente. É isto que Buffon queria dizer ao declarar que o estilo é o homem; e que Spencer queria dizer quando declarava que a alma é forma e é quem faz o corpo; e o que queria dizer Chaucer, quando dizia que a palavra tem que ser irmã do ato. Há os que cosem para fora, eu coso para dentro, dizia Clarice Lispector. A sociedade que não sabe ler versos é presa fácil de tiranos e demagagos, disse Josef Brodski. E é com Dante que concluímos nossas passageiras considerações a respeito dos assuntos supracitados: “Ó graça abundante, onde presumi fixar meu olhar na luz eterna tanto tempo que minha vista fora nela consumida”.

A AURORA DA VIDA HOJE EM DIA


Toda vez que a criança é espancada pelo adulto a terra treme no céu, se há céu e Deus grita de dor, se há Deus. Se uma criança chora de fome e outra é espancada – é porque não há o deus justo e onisciente que castiga os maus e premia os bons. O que há é o custo da vida o rosário dos males impostos pelos poderes constituídos a mão de ferro do desgoverno a cidade sitiada pelos bandidos organizados a casa que virou inferno o pai que virou demônio a mãe que virou madrasta e a obsessiva televisão a mostrar interminavelmente os poderes constituídos pelos bandidos organizados. 

II 

Toda vez que a criança é espancada pelo adulto (repetimos) a terra treme no céu, se há céu e Deus grita de dor, se há Deus. Se uma criança chora de fome e outra é espancada – é porque não há o deus justo e onisciente castigando os maus, premiando os bons. O que há é o custo da vida que o pobre não dá conta de pagar no nevoeiro da insolvência. E a cidade que aboliu a infância. O político despudorado na televisão ditando as primeiras e as últimas letras do analfabetismo. A formação da quadrilha dos bingos e da loteca dos mensalões e de outras propinas dos empreiteiros descarados. Se assim continuar nenhuma mãe vai querer pôr mais filhos neste mundo invivível. Vade retro, satanás.

segunda-feira, maio 15, 2006

FREUD EXPLICA MESMO

Sob a ótica do Estado os indivíduos são diferentes uns dos outros, uns mais anormais, outros menos, e nisso a psicanálise tem que se virar, para ser maciamente exercida. A vida de Freud, trabalhosa, sofrida, produtiva, rendeu cerca de 23 volumes sólidos e férteis, além de centenas de livros e dezenas de biografias de outros autores sobre sua obra terapêutica e polêmica, eivada de clarões sob e sobre a fumaceira comportamental das pessoas, a lançar entreos escolhos da barbárie e da civilização seu discernimento repudiado pela classe dirigente ordinária e arbitrária (totalitarismos nazista, comunista e islâmico). Sua “cura pela palavra” rendeu-lhe, como disse Elizabeth Roudinesco,muitos conflitos e excomunhões – mas impávida a psicanálise acumula muitos cetros e argumentos. Suas quatro irmãs foram engolidas pelas trevas da nazista “solução final”,deixando no ar aduvidade uma cruel retaliação à imensa repercussão do trabalho dele), ao estudar e explicar as deformações da “normalidade”. Sua esposa Martha, que lia Dickens e Cervantes, nunca interrompeu nele o fluxo estudioso dessas deformações nos seres humanos criados e jogados na ambigüidade, na dualidade de um destino incerto e mimético. Ela era a Dona da Casa, soberana e pacata ao mesmo tempo, a cuidar de tudo zelosa e genericamente, benéfica e beneficiada, aprendiz e mestra do esposo. A mácula judaica esfregava suas costas, oprimia seu peito... A lembrança do pai cedendo o lugar na calçada a um ariano..., doía em suas pernas, empurrava seus braços, transtornava-lhe o sono... Sem o problema não há o emblema: as ondas me abalam mas não me afundam, ele dizia ao amigo Wilhelm... Foi assim que conheceu a rejeição e o acolhimento: de um lado o saltério e o mosaico da purgação e da imolação, do outro o gogó e a suástica da invasão e da imolação. Mas graças a ele Eros foi novamente endeusado, o sexo novamente abençoado... Assim ele tinha que enviesar as direções em toda hora, sacudir a árvore dos frutos então ainda verdes... foi assim que depois de esvaziar a hipótese, ele tateou no escuro e na bruma até sentir-se bafejado na claridade da nascitura psicanálise... e foi aí que ouviu de Martha a desculpa de que era uma pessoa honesta: “não tenho esse tal de inconsciente”... Muito bem, ele responde: todas as pessoas têm crises de angústias sem causas aparentes... As verdades são muitas e correm como lagartos. O sexo e o sonho,os dois pólos do dia-a-dia: antes de ser sonho, tudo é sexualidade: há sempre uma ponte a ligar duas almas, sempre uma ponte pênsil, um pênis... era assim que ele escoimava de prontidão as arengas do anti-semitismo,as contendas as confessadas neuroses de origem sexual das pacientes Cecily, Dora, Mathilde, Magda...: afinal o desnudamento da alma é que veste e reveste e embeleza o corpo? É ou não é? É! Os mitos gregos e bíblicos esclarecem os comportamentos ainda hoje? O sonho é mesmo a imagem de um desejo? É, ele garante, o sonho é o desejo profundo que vem à tona, que exercita os pequenos flertes, as grandes paixões... Então a castidade é mesmo uma tara, como diz o nosso Nelson Rodrigues? Ah Freud, se não foi feliz, somos felizes por ele! Sabemos que ele folgou muito mesmo nas dissenções com os amigos Fliess, Breuer, Characot, Adler e Jung, mas sabemos também que ele não agüentaria nem de longe ver a mácula hebraica levada ao forno crematório do holocausto ainda hoje a arrepiar as vísceras do corpo e do alma.

sexta-feira, maio 12, 2006

OS CANTARES DE OUTUBRO I

I
Muitas crianças morrem de fome enquanto seguimos nas ruas do Centro onde o desgosto das casas é menos agressivo as rugas atacam a pele dos olhos. O samburá na estaca de arame o pobre roceiro pregado na cruz não havia um caminho começando ali? o cruzeiro da laje abre os braços o lavrador cai pela terceira vez. A caneta do chefe dava tiros fatais morrer aos poucos é a nossa vida o pau de espinho é a nossa bandeira a meningite esguelha outra criança. 

II Toda família tem a sua tristeza. O pai chega em casa bêbado a mãe bate no filho, em si mesma. Toda mulher feia é infeliz todo homem pobre é feio toda criança é abandonada. dorme que o lobo fareja o barraco dorme enquanto o lobo de pasta e gravata (chula e lula é a mesma burla, a mesma merda?) não vem te pegar. 

III Quem se levanta do nosso lado? o cão late dentro da noite um rio também, mas ninguém ouve da insônia da criança, apenas a fome. A morte lambe as rugas do velho. Somos milhões de cristos na noite da sexta-feira das paixões. Vermes da terra sáfara, flores deserdadas da concebível primavera. O latido vibra no ar, atravessa o rio das imundas fezes, grampeia três folhas de papel almaço. A criança contesta Deus, leva outra surra do pai. Quem vai recuperar a vergonha na cara de agora em diante? O que esses sacanas mais precisam? de fidelíssimos espelhos acusadores? Brasília corrompeu todo o país?

TECNOLOGIA DE VIDA, TECNOLOGIA DE MORTE

Tecnocracia: governo de elite qualificada tecnicamente. Estimulada a partir da transição dos séculos 18 e 19 – e já naquela época considerada por alguns como a única forma racional de organizar a sociedade e por outros como instrumento de destruição dos melhores valores humanos em nome do progresso material. Assim está na Larousse. A tecnologia, que originalmente tratava das artes e dos ofícios nas ocupações humanas, sempre existiu na face da terra como meio de subsistência do homem e até dos animais, erroneamente chamados de irracionais. Cada espécie no seu tempo e no seu espaço exerce seus modos de produção e de acomodação, visando a sobrevivência. Até os vegetais e os minerais agem decididamente neste propósito. A fauna planetária é pródiga de exemplos de técnicas específicas de subsistência; os pássaros com seus ninhos e transporte de alimentos e sementes (a casa do joão-de-barro é digna de um artesão perfeitamente qualificado racionalmente); os tatus e tiús e cobras e lagartos com suas locas, as abelhas em suas colméias, as formigas e cupins em seus edifícios, as aranhas em suas teias; os batráquios, os anfíbios, a constelação de insetos e aves com suas plumagens e cantos e luzes; e também os cipós, parasitas e trepadeiras, que sabem onde amarrar suas pencas e cordoalhas.... Também o ser humano, para atravessar as estações, as décadas, séculos e milênios, teve que se virar numa evolução lenta e gradual dos períodos da pedra lascada ao circuito elétrico até chegar a parafernália eletrônica de hoje em dia. Muitos de nós que nasceram e viveram na roça, valendo-se das tecnologias, hoje arcaicas, do arado e da enxada, da foice e do machado, do rego de água no quintal, do curral na frente e do chiqueiro atrás da casa, a horta de couve ao lado do galinheiro, do forno de quitanda e do varal de roupas – tudo isso de certa forma a evocar a nostalgia da confabulação ininterrupta dos parentes e amigos nas salas e nos terreiros das casas, na porta da igreja, nos bancos de madeira das pracinhas, a vida jorrando nos espaçosos,nos respiráveis lugares de viver. Com o passar do tempo, a densidade demográfica exigiu a invenção e introdução dos paliativos da engenhosidade e assim instaurou-se o infinito surto de novidades científicas (agora paulatinamente descartáveis e substituíveis): o telescópio, o microscópio, o motor a vapor e a óleo e a eletricidade, os cronômetros e relógios e fotografias e a danada da imprensa a tudo noticiar e informar – e assim surgiram em todos os horizontes as virtudes das primeiras formas da tecnologia moderna aplicada, como lá diz, novamente, a enciclopédia Larousse. Hoje a aceitação de tal tecnologia não é mais unânime, pois suas farpas, antes despercebidas, começam a ferir as susceptibilidades. Os grandes males de nosso tempo (a depressão, a obesidade, a enfermidade cardiovascular) são a ela indiretamente imputados, uma vez que foi ela que instaurou o desemprego em massa, que por sua vez pelo ócio e pela alimentação quimicamente deturpada causou a obesidade e também o viés criminal que atrai os desocupados, juntamente com a trindade maldita do fumo-álcool-droga – e logo o resultado de todo o descalabro: a fatídica depressão moral que não escolhe cara nem coração para afetar morbidamente. E vemos assim o tantão de males amontoados na inocente mesa de consultório de um inquietado e passivo profissional da medicina, às vezes impotente e talvez ainda capenga na corrida pela implantação diversificada de novas metodologias tecnológicas em sua específica área de trabalho. Vemos então que a tecnologia leva a técnica a uma instrumentação autônoma, com suas próprias leis criadoras de escravos indefesos, que se dedicam a um trabalho que detestam, e que passaram a comer alimentos insossos e insalubres. René Dubois, que esceveu o livro “Um Animal Tão Humano”, confirma a constatação de Lewis Munford (autor de “O Mito da Máquina”): “o homem tecnológico ficou desnaturado, ou seja, desumanizado”, completando a observação de Charles A. Reich, de que o ser humano agora parece um animal da selva que veio passar um fim de semana no jardim zoológico da cidade. Em vez do tempo antes dedicado ao sono, à conversação, aos dispositivos lúdicos, à meditação individualizada, agora temos, disponível, quase que imposto por exclusividade, o lazer previamente organizado, sem dúvida por injunções impessoais, dos patéticos fins de semana dos rotineiros e eternos clubes recreativos e os passeios de automóvel e a programação das matérias-pagas da televisão e o fast-food repugnante das lanchonetes, ou seja, numa frase: diversões técnicas que destroem a noção existencial do próprio ser. Enquanto isso.... Enquanto isso, nesta primavera e neste verão de todo-ano o Brasil inteiro pega fogo em suas matas, capoeiras, campos e cerrados, principalmente em Minas, que ainda agora (enquanto faço estas anotações) arde em quase todos seus quadrantes e círculos. E qual é a tecnologia de ponta que vem socorrer nossa aflição diante das chamas e no meio da fumaceira? Onde estão os semideuses das pesquisas e das inovações científicas? O que a decantada tecnologia faz para debelar os incêndios catastróficos que assolam o planeta? O que vemos, na realidade, é o agora desfalcado mutirão de destreinados ex-roceiros com seus débeis ramos tentando abafar as portentosas labaredas nos sucessivos campos em mortífera combustão. Onde está a decantada tecnologia que se julga capaz de substituir o trabalho humano até mesmo na procriação das espécies vivas? Ela, que provocou o êxodo rural e o favelamento urbano, mal-mal consegue agora registrar nas telinhas e telonas, estatisticamente, a proporção destrutiva das hecatombes, preâmbulos apocalípticos do fogaréu nos pastos e campos e cerrados e florestas e capoeiras e restingas e serras e espigões e parques e reservas, que pulveriza dia-e-noite a biodiversidade das inocentes espécies continuamente sacrificadas pela incúria e culpabilidade de uma tecnologia que mais beneficia a morte do que a vida.

quinta-feira, maio 11, 2006

OS SINOS DE SÃO JOÃO

Uma viagem onírica. Minas são muitas, mas vamos ver aqui, ligeiramente, apenas dois aspectos dela, as regiões industriáveis e as agriculturáveis. As primeiras ficam principalmente no chamado quadrilátero ferrífero, que eternamente tritura os sobejos das faustosas minerações das pedras preciosas; as segundas primam pelo inestimável cabedal da riqueza vegetal. As primeiras são nossas conhecidas, vivemos nelas, agüentando o tranco dos ciclos da chamada economia de mercado; as segundas ficam principalmente na Zona da Mata, no Sul do Estado, no Triângulo Mineiro e Alto do Paranaíba. Paisagens lindíssimas no desdobramento e multiplicação das espécies e das cores vegetais, predominando as tonalidades do verde em lentos sussurros. Penso ser necessário que alguém, algum dia, deve retalhar, explicitar, delimitar e equacionar as variáveis antropogeográficas dessas belas e queridas aquarelas mineiras. Fomos (eu e minha família) outro dia à Muriaé, participar da comemoração do centenário de nascimento do saudoso, nobre e leal Comendador Raphael José de Oliveira Barreto – e pela primeira vez entramos no recesso, hoje desmatado, mas ecologicamente preservado (se isso é possível, no caso) da Zona da Mata, e tivemos o prazer de conhecer as cidades de Ubá e Mirai, abençoadas terras de dois ícones da música popular brasileira, Ary Barroso e Ataulfo Alves, que há décadas embevecem os corações brasileiros. Toda a paisagem de serras e vales da antiga Mata Atlântica e hoje pastagem oferece a visão de um imenso corpo depilado que pitorescamente reservou as áreas da barba e do bigode e do alto da cabeça em forma de grotas, cumes e penhascos: o restante se apresenta limpo e verde nos declives e aclives panorâmicos, onde vicejavam os antigos e fartos, infindáveis cafezais, hoje rareados pela predominância da pecuária. Comparável ao encantamento dessa visão foi o da audição, na Festa do Centenário do Comendador Raphael, através do triplo repertório e performance do coral dos Pequenos Rouxinóis de Divinópolis, da Orquestra Sinfônica da Banda de Musica da Polícia Militar do Rio de Janeiro e da Cantora Lírica Gina Martins, do Teatro Municipal, também do Rio. Momentos de intensa vivência, de extensa inspiração, que nos deixaram profundamente encantados. A segunda parte da requintada festa foi o lançamento do livro OS SINOS DE SÃO JOÃO – A Vida e os Tempos de Raphael Barreto -, de autoria de Ruy Barreto, (Advogado, Empresário, Presidente da Federação das Associações Comerciais, Industriais e Agro-Pastoris do Estado do Rio de Janeiro, em várias gestões;, Presidente da empresa Café Brasília; Conselheiro de várias entidades sócio-culturais; Autor bissexto de textos analítico-memoralísticos para jornais noticiosos), filho do homenageado. O livro agora publicado pela Editora Mabuya surpreendeu seus amigos e conhecidos pela amplitude e discernimento que projetam e descrevem na acertada linguagem da legibilidade, com a inteireza dos juízos, a modéstia do tratamento das lutas e façanhas familiares, um memorial primoroso. O trisavô do autor, o português da antiga Villa dos Guimarães, Portugal, Antônio José de Oliveira Barreto, veio para o Brasil por volta de 1790, casou-se em São João del Rei, com Anna e depois com Felizarda (ambas descendentes de ilustre nobiliarquia paulistana), desempenhava as funções civis de advogado, e militares de alferes (de Ordenança e depois da Guarda Nacional). Proprietário de muitas glebas rurais e imóveis urbanos nas regiões de Cláudio, Desterro, Oliveira e São João Del Rei, onde criou e formou os filhos na disciplina estóica e na melhor escolaridade da época, oferecendo-lhes livre trânsito na vasta região do centro-oeste de Minas, já numa época de exaustão aurífera e de migração dos colonizadores mais previdentes. Seu bisneto Raphael (1902-1972), depois de passar a infância e a adolescência em São João, foi levado pelo irmão mais velho, o Padre José de Oliveira Barreto, para Santa Rita do Glória, lugar encravado na distanciada Zona da Mata, trocando sua cidade natal de tantos recursos e confortos, para viver num lugar afastado da civilização, povoado de cangaceiros resolvedores de litígios entre políticos e fazendeiros. Foi assim, asperamente, que iniciou sua luta pela sobrevivência, com os pesados e corajosos passos das pequenas e grandes vitórias e venturas, que fizeram dele (moldaram sua têmpera) não apenas um homem de projeção e liderança, mas também um pioneiro do crescimento conjuntural da região, insuflando ali o interesse e o exercício das novas tecnologias que já instauravam o progresso em outras plagas dos novos tempos. E a partir daí os custosos anos de luta pela sobrevivência transformaram-se em felizes anos de transcendência, concorrendo no aperfeiçoamento das instituições e das modalidades de vida social e de todo um novo contexto saudável e civilizado, agora ao alcance de todos. Assim inspirado e aparelhado, seu filho Ruy pôde realçar na inteireza dos juízos de suas memórias as comoventes palavras finais do belo livro: “...Parou de bater o coração de um dos homens mais dignos, independentes, altivos, corretos, humanistas e solidários com os seus semelhantes, que conheci em toda minha vida”.... Um retrospecto afetivo sinceramente envolvido nas lembranças que precisam ser revividas, descritas e narradas com tal justeza, tendo em vista seu conteúdo de exemplaridade e também pelas variáveis temáticas que evocam, mormente às referentes aos doces sentimentos da ternura humana. Um livro assim para perpetuar as inesquecíveis recordações que às vezes o tempo inexorável se encarrega de empalidecer e olvidar, o que no caso, felizmente, o livro de Ruy Barreto não deixa acontecer. E em termos e homenagem póstuma ( de minha parte) ao pioneiro Raphael Barreto, transcrevo alguns versos do poema “Pioneiros! Ó Pioneiros!”, De Walt Whitman, em tradução de Oswaldino Marques: “Pioneiros! Ó Pioneiros! Pois, não podemos marcar passo aqui, Temos que marchar, arrostar o impacto do perigo, De nós, jovens raças enfibradas, de nós todo o resto depende, Pioneiros! Ó Pioneiros! ... Avançam, avançam as compactas fileiras, Com novas etapas sempre a conquistar, os claros rapidamente preenchidos, Em meio a refregas, derrotas, todavia movendo-se e nunca se detendo, Pioneiros! Ó Pioneiros! ... Já desceu a noite? Tornou-se a estrada árdua ultimamente? estacamos desencorajados, meneando a cabeça pelo caminho? Todavia, vos concedo uma hora efêmera para que pareis esquecidos De vós mesmos no vosso roteiro, Pioneiros! Ó Pioneiros! Até que, com o som dos clarins... Longe, muito longe, o toque da alvorada – Ouvi! Como é estridente e claro! Ligeiro, para a frente da tropa! Ligeiro, acudi aos vossos lugares! Pioneiros! Ó Pioneiros!