quinta-feira, junho 29, 2006

OS HALOS, AH OS HALOS

Os bois eram descomunais no pasto sem árvores, vistos de longe. As palavras foram me buscar lá perto da porteira, para dizer algo sobre o amor. Quem sou eu?, ó, imagina! O amor fecha minha boca, que nem minha é mais.

À MEMÓRIA DE SEBASTIÃO MILAGRE

A beleza é o prazer dos fazeres e dos feitios é a sensação das idéias e dos ardores A poesia é ver de perto o que está longe o aqui e o ali nos tempos e nos lugares Alguém atônito apalpa os negrumes a solidão é a cidade dos amigos É assim que de um momento para outro o maravilhoso sobe na goiabeira os tigres descolam-se dos quadros na parede dando lugar, ali, à revoada dos pássaros Quantos poetas ns palavras de Sebastião Milagre vão às esquinas da Coronel João Notini e da Paraná? Quantos poemas na sede e na água conversam com as pessoas que vieram da roça? Às vezes entram no cemitério da Minas Gerais depois cantam nas vozes mais distantes depois voltam para as casas de muitas gerações e são de novo imbuídos de luz e energia... Quantos poetas na sua poesia! Quantos poemas na sede e na água! As doçuras outrora assíduas repontam dos medos e sombras, como diria Salvatore Quasímodo, no relance de suave mulher envolta em flores fugidias. Agora a caminhar para o cemitério que é o nosso desterro, o nosso destino ele entra na poesia que o ampara na poesia que lembra os quadros de Wu Tao-Tzu nos quais os cavalos galopam para os horizontes as folhas movem-se face à nossa respiração o dragão voa para o céu, que vem a seu encontro: assim ele caminha para dentro do poema que acabou de escrever como o pintor que entra para dentro do quadro que acabou de pintar: assim tanto um como o outro jamais serão vistos nos lugares que tanto vivificaram.

A ARTE DE PERDER (*)

Perder é uma arte que temos de aprender. O que se há de fazer? Já nascemos com a índole da perda. Perde-se rios de coisas, todo dia. As palavras que não dissemos na hora certa, o beijo que deixamos para depois. Aceitamos de bom grado o risco de perder a chave e a hora . – Muito mais que isto é a juventude que já se foi. As coisas se perdem nas incertezas: o olhar de quem vai na contramão, o lugar onde vamos passara as férias. Uma vez perdi o binóculo da infância, depois a casa e o quintal da avó (o misterioso porão, assombrosa mangueira). Perdi dois seios bonitos na varanda, depois a sequência do flerte arraigado do amor que era mais que amor. E a você, quantas vezes perdi, sem jamais ganhar? Quantas vezes perdi! 

(*) Paráfrase do poema “Uma Arte”, de Elizabeth Bishop, Tradução de Paulo Henriques Brito, Companhia das Letras, SP, l999.

domingo, junho 25, 2006

AS PALAVRAS CRUCIAIS

É preciso devolver ao jargão corriqueiro as palavras inusuais consideradas obsoletas e pernósticas descolá-las do silêncio sepulcral - ínfimo holocausto sorrateiro – transferi-las da inocuidade do monólogo para a loquacidade do diálogo. É preciso surrupiá-las do dicionário (do limbo imobilizado, fugidio) escondê-las nos bolsos do palitó (também de uso postergado) conduzi-las aos ermos locais (pinçar um barbarismo aqui um arcaismo ali) escrevê-las nos troncos das árvores nas areias dos caminhos nos pórticos das instituições na sonolência dos seres anímicos (para despertá-los, necessariamente). Falar e escrever muito e acertado.

terça-feira, junho 20, 2006

MANUELZÃO E MIGUILIM, DE GUIMARÃES ROSA (*)

A linguagem inconvencional, não a exótica ou folclórica com suas escórias de redundâncias e não-concordâncias, a linguagem não-linear, não-acadêmica, a linguagem dos povos excluídos, do sertão, é usada por eles quando querem entender as coisas e contá-las com essa linguagem que não é apenas uma fonte de expressão, mas sobretudo uma fonte de conhecimentos. Quando querem entender um bicho, uma visão ou um som de coisas, eles pensam e falam com as palavras que formam as coisas, que organizam e exprimem as coisas de dentro para fora e, assim, cada punhado de palavras parece ter sido criado na hora da conversa e por isso não pode ser empregada noutro contexto. É a linguagem inusual que exorbita do regionalismo e da época e dificilmente será considerada arcaica, pois é a linguagem da alma dos seres humanos na comunhão das almas dos outros seres da natureza. Tem os contornos livrescos, mas a expansividade é popular, a oralidade dá as mãos ao erudito na comunhão peripatética dos seres humanos indistintos – e assim o caipira de repente é um letrado. E assim ele espelha a amizade entre o menino e o gato, no paiol de milho: “O gato Sossõe, certa hora, entrava. Ele vinha sutil para o paiol, para a tulha, censeando os ratos, entrava com o jeito de que já estivesse se despedindo, sem bulir com o ar. Mas, daí, rodeando como quem não quer, o gato Sossõe principiava a se esfregar em Miguilim, depois deitava perto, se prazia de ser, com aquela ronqueirinha que era a alegria dele, e olhava, olhava, engrossava o ronco, os olhos de um verde tão menos vazio – era uma luz dentro de outra, dentro doutra, dentro doutra, até não ter fim”.(p.39). Por aí se vê. São palavras autônomas no texto, inseparáveis do que dizem. Com elas você faria um memorando, uma notícia de jornal? Aí está a importância literária do autor que não deixa o samba morrer, que mantém o humanismo bem aceso nos umbrais do planeta. Assim Miguilim via o velho Deográcias, curador homeopático e candidato a mestre roceiro: “Todo tão feio, seo Deográcias, aquele tempo se tinha medo que ele envelhecesse em doido”. Não é assim que as crianças de um modo geral ajuízam a figura do velho antipático? Páginas adiante ele depara com a Mãitina, velha do tempo da escravidão, que vivia na casa, estranhamente, com seus modos esquivos, suas falas em idiomas afros, antigos, cabalísticos: “Tanto mesmo Mãitina tinha gostado dele, e vieram, até na porta-da-cozinha, ela segurou na mãozinha dele, aí ela gritou, exclamando os da casa, e garrou a esbravecer, danisca, xingando todos, um cada um, e apontava para ele, Miguilim, dizendo que ele só é que era bonzinho, mas que todos, que ela mais xingava, todos não prestavam. Pensaram que ela tivesse doidado furiosa”. (p.49). Miguilim ´a pureza da infância, a meditação pueril e poética dos mistérios e das realidades, a pequena (infantil) observação das coisas grandes (adultas), como o amor, o desamor, a bondade, a violência, a morte, a vida em estado puro, em toda a sua manifestação: animal, vegetal, mineral e sobrenatural. “Ele Miguilim era quem ia casar com Drelina – mas irmão não podia casar com irmã?” - “Drelina, quando eu crescer você casa comigo? - Caso, Miguilim, demais.” A outra irmã achava que ele não aprendia a dançar porque “nasceu em dia de sexta-feira com os pés no sábado: quando está alegre por dentro é que está triste por fora”. A mutação gráfica e sonora dos vocábulos faz parte do corpo de baile dos campos gerais: curió passa a ser curiol, exaparecendo é desaparecendo. “Mãe olhou Miguilim, prazida. Pai escutou, e o que disse não disse nada”. Os neologismos contextualizados nas frases parecem seculares: “devoava uma alegria”, “abelhas e avespas inçoavam sem assento”, “tinha sofrido um excesso”, “pai padece de escandescência”, o fogo drala bonito”, “bobagens que o coração não consabe”, “as histórias tinham amarugem e docice”, “Dião de dia!”, “tremia as mãos farinhosamente”. No discurso esplendem igualmente os neologismos remetidos de outras parolagens, como na página 214: “Os grandes cochos,entortados, ásperos, guardando as curvas dos troncos das árvores que foram. Ao enquanto,livres, os bois bovejam, os porcos crogem, sotretam os cavalos, as galinhas fuxicam, os cachorros redormem, e as dúzias de angolas se apavoinham selváticas, com seus contrafactos”. Assim rendido aos encantos da verdade e da beleza sertanejas, Guimarães Rosa, versado nos altos saberes das filosofias de todas as épocas, apura os ouvidos na atenção e aprende com os boiadeiros e roceiros o que às vezes escapou à Platão e à Spinosa, como os ditirambos das páginas 74 e 75: “Rosa, quando é que a gente sabe que uma coisa que vai fazer é malfeito? – É quando o diabo está por perto. Quando o diabo está perto, a gente sente cheiro de outras flores...( ). – Mãe, o que a gente faz, se é mal, se é bem, ver quando é que a gente sabe? – Ah, meu filhinho, tudo que a gente acha muito bom mesmo de fazer, se gosta demais, então já pode saber que é malfeito... ( ). – Vaqueiro Jé: malfeito como é que a gente se sabe? – Menino não carece de saber, Miguilim. Menino, o todo quanto faz, tem de ser mesmo é mal feito...( ). O vaqueiro Saluz vinha cantando bonito...( ). A ele Miguilim perguntava. Sei se sei, Miguilim? Nisso nunca imaginei. Acho quando os olhos da gente não tem dispor para encarar os outros, quando se tem medo das sabedorias..., Então, é mal feito. Mas o Dito, de ouvir, já se invocava. – Escuta, Miguilim, esbarra de estar perguntando, vão pensar que você furtou qualquer trem do Pai. – Bestagem. O cão que eu furtei algum! – Olha: pois agora eu sei, Miguilim. Tudo quanto há, antes de se fazer, às vezes é malfeito; mas depois que está feito e a gente fez, aí tudo é bem feito.... Mas o Dito possuía a sabedoria de quem vai morrer muito antes do tempo. Às vezes caçoava, às vezes falava sério, como quando interpreta o sentimento de culpa e o sofrimento das injustiças: “Os outros têm uma espécie de cachorro farejador... Se a gente por dentro da gente está mole, está sujo ou está ruim, ou errado.... As pessoas, mesmas, não sabem. Mas, então, elas ficam assim com uma precisão de judiar com a gente.... A promessa a gente devia de cumprir antes de ser atendido e não depois, o Dito teria dito, depois. Num mundo assim aprazível, tão francamente oferecido ao comportamento popular, a sabedoria dos refrões não podia ausentar: “eh mundão! Quem me mata é Deus, quem me come é o chão!”; “Alegria do pobre é um dia só: uma libra de carne e um mocotó”; “Casar sério lá é triste/ Namorar só é que é gostoso”. E as pessoas que transpiravam as sabenças dos rincões, na melhor magreza das virtudes, encolhidas na modéstia que elas confundem com as ignorâncias. Como está na página 192: “uns, pobres de ser, somenos como o velho Camilo, esses nem tinham o poder de nada, solidão nenhuma. Viviam, porque o ar é de graça, pois”. Mas o Manuelzão, altivo na modéstia da festa que coroava sua vida, pilhado quando negociava assuntos de produção de creme de leite, justifica: “Compadre, veja. Mais antes trabalhar domingo do que furtar segunda-feira. Mesmo digo. Aqui a gente olha a garapa ainda na cana”. – E a vida, seu Chico?, alguém pergunta e ele responde: - “É isto que se sabe: é consolo, é desgosto, é desgosto, é consolo – é da casca, é do miolo”. Na roça eles sabem o nome de tudo. E sabem porque aprenderam ou de nascença? Se não sabem, eles inventam na hora, e assim todos ficam sabendo. Inventam como? Arranjam um nome para a coisa, parecido com a coisa, um neologismo, uma composição que corresponda à visão da coisa, baseada, é claro, no entendimento prévio que se tem das coisas em geral, no comum acordo delas com os respectivos nomes. De sorte que a linguagem se valoriza, a gramática flexibiliza, e a certeza de que o estilo é o homem se confirma. O modo de falar de cada pessoa (o sotaque, o palavreado, incluindo os neologismos) define cada pessoa. Ninguém encontra a linguagem pronta e acabada como a escolarizada dos meios urbanos: lá no sertão cada um tem que se virar para dar seus recados, contar seus casos, comunicar-se com os outros. E sua palavra (a voz e o que ela diz) é sua graça. “Chuva vesprando, cachorro sossega muito”, um dos personagens diz. No rala-rala, no frigir dos vocábulos, agora em nova gramática e nova ortografia, a fonética e a morfologia realinhadas, surgem as imagens dispersas e também as claras: “ele bebia um golinho de velhice”; “os cachorros corriam muito para longe, querendo pegar as bobagens do vento”. Mas, a par de toda bizarria lingüística, Guimarães Rosa sabia armar o enredo e estruturar uma ação dramática: a doença imaginária de Miguilim, a levação do almoço ao Pai na roça servindo de carregação para o drama passional do tio enamorado da mãe – e depois a emboscada dos macacos, que lhe tomaram o almoço do pai. Isso ele fazia, também, como o melhor dos novelistas! Os personagens não sossegam, as ondas fervem nos redemoinhos. O verbalismo deles tem que se ajustar ao dinamismo da vida. As palavras não podem ser diferentes dos atos: “O Dito gostava de ter notícia de todas as vacas, de todos os camaradas que estavam trabalhando nas outras roças, enxadeiros que meavam. Requeria se algum bicho tinha vindo estragar as plantações, de que altura era que o milho estava crescendo”. Um outro deles apreciava a festa do Manuelzão (p.237): “Amiúde visava de lá o senhor do Vilamão, transitório, corujante, os olhos meio mortais, o rosto roseando suave no desde-luz, celeado geoso”. O fraseado cuidadoso, pinturesco e buliçoso não tolhia a verve descritiva nem a vivacidade do fluxo narrativo. No momento crucial da história, a morte do querido irmão Dito, ele repetia as frases que a mãe dissera quando o estava pondo dentro da bacia para lavar. Agora era ele quem precisava guardá-las, decoradas, ressofridas. Só Rosa disse que o Dito falava com cada pessoa como se ela fosse uma, diferente, mas que gostava de todas como se todas fossem iguais. E disse que o Dito parecia “uma pessoinha velha, muito velha em nova”. Já o outro irmão, o Liovaldo, era malino e urbanizado: veio à roça com a malícia cortante do pouco caso. Perto dele Miguilim nem queria conversar com os outros. “Porque o Liovaldo, só de estar em presença, parecia que estragava o costume da gente com as outras pessoas”. e assim como o autor não pode deixar de citar as trovinhas populares que os personagens citam, o leitor também não pode deixar de citar. Elas estão na ponta da língua e do pensamento: “Meu cavalo tem topete/topete tem meu cavalo/no ano da seca dura/mandioca torce no ralo. Quem quiser saber meu nome/carece perguntar não:eu me chamo lenha seca/carvão de barbatimão. Ó ninho de passarim/ovinho de passarinhar/se eu não gostar de mim/quem é mais que vai gostar? O bicho que tem no campo/o melhor é a sariema/que parece com as meninas/rouxeando a cor morena. Suspiro rompe parede/rompe peito acautelado/também rompe coração/trancado e acadeado. O bicho que tem no mato/o melhor é o passo-preto/todo vestido de luto/assim mesmo satisfeito. A literatura é um diálogo do autor com o leitor, que toma muitas conotações, dependendo da formação de vida de um e de outro, mais do autor, que, no caso, é o elemento ativo. Ele pode escrever pouco e acertado, usando a síntese da poesia, ou alongar-se páginas e páginas, dias e dias de leitura interminável. Nesse caso, ele tem que encher lingüiça com grãos de ouro, para não enfadar o leitor nas entrelinhas, nos intervalos dos lances mais enfáticos e sensacionais, como os de uma partida de futebol, na qual um gol de letra nasce às vezes de uma bola prosaicamente atirada da lateral do campo. Guimarães Rosa não pisca os olhos nem afrouxa as mãos nesses intervalos. Seu leitor não sente a diferença dos ritmos nos vãos da escada, ninguém percebe quando ele passa da armação do laço para a laçada do boi na invernada. Seguimos pelas ondulações cromáticas do mosaico e só depois é que nos lembramos dos ponto-chave, das nucleações, das pontas e dos pontos do fio narrativo. Às vezes defrontamos a epifania da poética, as lágrimas da paixão, os estribilhos do riso – porque de repente estamos bem dentro é da natureza e não do livro, e ela, a natureza, tem seus matizes e seus emblemas – e assim o próprio realismo mágico flui despretensiosamente, sem ser chamado e sem chamar atenção, como a coisa mais natural do mundo – o riachinho que de repente cessa de correr: “Foi no meio de uma noite, indo para a madrugada, todos estavam dormindo. Mas cada um sentiu, de repente, no coração, o estado do silenciosinho que ele fez, a pontuda falta da toada, do barulhinho. Acordaram, se falaram, até as crianças. Até os cachorros latiram. Aí , todos se levantaram, caçaram o quintal, saíram com luz, para espiar o que não havia.” Assim o geral, feito dos particulares, vai ressaltando os particulares e assim também naturalmente, sem premeditar, surgem os personagens do realismo mágico rosiano, como o tal de João Urugem, que, acusado de um furto que não cometeu, foi morar num pé de serra, longe das pessoas. Quando comparece à festa da inauguração da Capelinha de Samarra, é estranhado,pois “não sabia mais falar corretamente com os outros, parece que chorava pensando que estava rindo. Pegara por lá essa doença de malcheirar, quem sabe também o que ele não comia? ( ) Os cachorros estranhavam o indivíduo dele, iam para lá, latir”. O poder criativo desse arrumador de palavras pinta o cenário, move os personagens, conta o transcorrer dos momentos da vida e, assim, com o calor da fé e a arte do engenho, logo o que é pequeno fica sendo grande, o que é feio fica bonito, a festa vira um festão, a capelinha ganha a nobreza de uma catedral entre as veredas e os morros das gerais, repletas de buritis e criações de gado. As pessoas tocam, cantam e dançam, são elas mesmas na naturalidade sem empréstimos, e assim a brincadeira vira um frenesi de comunhões – assim como enamorados de si mesmos, em homenagem à natureza, que é talvez a parte mais instigante do corpo de baile: “Eu subi pro céu arriba/numa linha de pescar/fui perguntar Nossa Senhora/se é pecado namorar. Travessei São Francisco/montado numa cabaça/arriscando minha vida/por um gole de cachaça”. Guimarães Rosa reconta a própria História de Minas, mostrando que ela não se embasa apenas na mineração, mas se apóia no depois (como ele diria), na lida campesina da agropecuária de subsistência dos vastos sertões cheios de vida e de notícias e de sonhos: uma outra espécie de ouro , o alimento do corpo e da alma é procurada nas serras e vales, nas grotas, capoeiras e descampados e, aqui e ali e acolá, reluz em forma de paisagem viva da biodiversidade planetária. Para contar e recontar a outra saga da mineiridade, Guimarães Rosa colhe os nomes, as frases, os casos, no próprio local, com as mesmas pessoas envolvidas no romanceiro dessas roceiras arrelias. E vê (e vemos com ele) que tudo que há na história dos outros mundos está bem ali na história dos lugares: os sentimentos, os conhecimentos, os anseios e a contextualização. O lírico e o épico equilibram-se no alto da literatura, onde tudo aflui e ocorre: a onomatopéia da natureza, as nênias da infância, os desejos do amor, As incursões nas grimpas do fantástico, o ramerrão cotidiano entre as alternativas das mais incríveis aventuras..., e até os ecos longíncuos das vozes do além mar, as ressonâncias turcas, persas, gregas, judaicas, os romances medievais da cavalaria andante, tão bem transposta pelo Seo Camilo, o contador de histórias, numa transcriação, diria melhor, numa transfusão do Romance do Boi Bonito, conforme este pequeno trecho (para encerrar nossos apontamentos) da página 246: “esse boi que hei, é um Boi Bonito: muito branco é ele, fubá da alma do milho; do corvo o mais diferente, o mais perto do polvilho. Dos chifres, ele é pinheiro, quase nada torquezado. O berro é uma lindeza, o rastro bem encalcado. Nos verdes onde ele pasta, cantam muitos passarinhos. Das aguadas onde bebe, só se bebe com carinho. Muito bom vaqueiro é morto, por ter ele frenteado. Tantos que chegaram perto, tantos desaparecidos. Ele fica em pé e fala, melhor não se ter ouvido...”. Referências bibliográficas: ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim: Corpo de Baile. 17.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 

(*) Trabalho apresentado no Seminário Internacional GUIMARÃES ROSA – 1998-2000, na PUC Minas, organizado pela Comissão de Haroldo de Almeida Marques, Lélia Parreira Duarte, Márcia Marques de Morais, Maria do Carmo Lana Figueiredo, Maria Nazareth Soares Fonseca e Rachel Esteves Lima. E publicado no livro VEREDAS DE ROSA, organizado por Lélia Parreira Duarte – PUC Minas, CESPUC, 2000, Belo Horizonte, MG.

CHOVE LÁ FORA

Chuva macia cai lá fora enquanto amamos aqui dentro. Pode até inundar os alicerces da casa amarelar as trepadeiras que sobem na escada apodrecer a porta que me fecha aqui dentro com a vida, a sabedoria e o amor da mulher em dinâmica adoração. Que caia, chuva macia sobre os ramos e ciscos do terreiro enquanto reavivamos a fúria e a doçura do gesto inflamado e melodioso a fusão afortunada do pênis e da vagina o desenho da alma e a canção do corpo. Chuva macia caia nos metais da área de serviços entoa outra canção de amor e sabedoria enquanto amamos aqui dentro cada um a procurar no outro o ponto de partida, a escalada, o despenhadeiro. Caia lá fora enquanto aqui dentro prolongamos o fazer do que é doce no próprio fazer.

segunda-feira, junho 19, 2006

OUTRA PÁGINA DO JORNAL DO POSTE

 1 – José de Arimathéia Mourão. Humor é vida, é vida mais engraçada, mais vivível. Não é de hoje que conheço e admiro a luta jornalística do José Arimathéia Mourão. Admiro porque sei como e quanto esse ofício é ingrato e de rentabilidade financeira nula e negativa. Mas o nosso amigo nunca desanima – como na letra do samba, ele está sempre dando a volta por cima e chegando onde almeja chegar, perseverante, amistoso e estimulador. Admiro-o porque reconheço que ele não é apenas o escritor de textos (crônicas, poemas, artigos, notas, chistes, reportagens), mas é também o produtor de jornalismo que funda, dirige, publica e distribui, quase sempre com o recurso próprio que, como o pombo-correio de outra canção popular, vai e não volta. Seu livro “O Amor Se Escreve Sem H” (Carta Editora 1992) resume e exprime a sua fé de ofício e sua arte de viver. Porque ele é mesmo assim: confia na humanidade, gosta da vida e do mundo. A coluna de hoje é cedida a ele, para o prazer dos leitores. São picles bem saborosos, vejam. - Toda poesia é tentativa de poesia. - Este não é um país ingrato, esquecido de seus valores. Querem até mesmo erigir um monumento ao cangaceiro Lampião. - Ou aprendemos inglês ou em breve não entenderemos a mídia brasileira. - O Brasil é apenas um erro de português. - As grandes cidades tornam os homens menores. - O desejo acende, a posse apaga. - O vento foi tão violento que apagou os pirilampos. - O problema do menor é o maior. - O governo é tão lento que ainda existem os desabrigados do dilúvio. - Nos planos elevados há quem não acredite na vida antes da morte. - Nas campanhas eleitorais até os bandidos viram santinhos. - É difícil aprender língua estrangeira. É por isso que quase ninguém sabe o português. - Se não existissem os pobres, as prisões seriam desnecessárias. - O Brasil começou a sair dos trilhos quando trocou a locomotiva pelo caminhão. - Amor com amor se apaga. - O político critica na oposição e oprime na situação. - Deus só faz o que lhe permitimos. - Nada melhor do que uma vida depois da outra. - Morrer é reabilitar-se. - O Brasil desmoraliza até as crises. - O governo quer federalizar a receita e municipalizar a despesa. - Enquanto a selva se humaniza, as cidades tornam-se selvagens. - É depois que passam que os anos pesam. - As borboletas são flores voadoras. 2 – Outros Autores. - Os arquétipos de Jung, explicados por Maria de Lourdes Vaz de Oliveira: os mitos e os sonhos da literatura mundial encerram temas bem definidos que reaparecem por toda parte. ( ). São os fluxos energéticos – e quanto mais carregados de cargas afetivas mais nítidas são as imagens de suas representações. Seus efeitos são representados na arte, na música, na religião, nas descobertas científicas e nos padrões de comportamentos. - Segundo Nietzsche, a tragédia grega nasceu de uma conjunção de dois impulsos da natureza humana. O primeiro, o espírito dionisíaco, é um estado selvagem de exaltação e embriaguês, enquanto que o segundo, o ordenado e frio espírito apolíneo, se expressa na beleza formal. O milagre da arte reside no fato de manter juntos esses dois elementos, unificando ordem e embriaguês (Alain de Botton).

JABUTICABAS PARA JK (*)

JABUTICABAS PARA JK (*)- Lázaro Barreto. “Nas matas de Conceição e do Serro a jabuticaba é nativa, dá no meio do mato, assim falava o boiadeiro de Joanésia. É muito longe, eu disse ao Zuza, chofer do jipe land-rover. “JK está na Barra Funda?”, um dos fazendeiros perguntou. Em toda parte só se falava no binômio energia e transporte: a estrada da vida enfim iluminada, o peso da existência enfim aliviado. “Pra ele carrego água na peneira, esfrego urubu até ficar branco”, o chofer afirmava, cheio de nove-horas. Ontem Prefeito,hoje Governador, amanhã Presidente: assim era o JK sem empáfia nas atitudes, nos gestos, nas palavras, a deliberar sem coações, o sorriso nas idéias. “Quem vive muito ocupado tem tempo pra tudo”, ele dizia. Ele sabia ouvir muito e falar pouco e acertado! Perdoava a irreverência de Assis Chateaubriand, que dormia e roncava enquanto ele discorria sobre as metas do governo, sobre a metodologia da aceleração administrativa: os cinqüenta anos em cinco! Seria um craque se jogasse futebol: o ponta de lança desbravador a correr pelo meio, a pedir bola e mais bola o time a melhorar o padrão de jogo com os improvisos a bola rasteira, subindo à meia-altura a equipe mais popular mais veloz e mais vivaz ele de gorro a sorrir depois do gol de cabeça a pederneira no fuzuê das luxações. Em Sabinópolis ainda se usa gravata no uniforme esportivo? O tirambaço do Lelé rebentou mesmo o peito do Luís Borracha? mas hoje a manhã está quente no inverno e ele quer chupar as jabuticabas de verão: como vamos conseguir nas quinze bandas da região? Os camaradas das roças, os meieiros saberiam informar? As pedras faiscam nas escarpas o lobo deixa a sombra na relva íngreme o caçador de relíquias rupestres tosse e escarra entre tiros de carabinas e fisgadas de bagres. “Estamos a procurar jabuticabas para o Governador”, falei ao roceiro na porteira de Braunas. Ele tirou o chapéu de palha, coçou a cabeça e disse: “Será que outra fruta não serve? Gabiroba? Bacopari? Araçá? Eu bem que precisava mandar um agrado pra ele...: Vocês levam um capado, uma ovelha bem gordinha?” Pensei no verde imenso que vi certa vez bem adiante das casinhas de pau-a-pique as minas novas de Deus,a moita de bambus. “Onde o senhor acha que tem?”, perguntei ao semeador que espontâneo abria a tronqueira da cerca de arame: “Ainda não chegou o tempo”, ele disse, penalizado, antes de se reintegrar nas monodias de sua tapera. Lembro-me, outrossim, que a carta régia de 1701 proibia qualquer comércio nos caminhos dos sertões... Aí sem querer vi o galho de mangueira enfiado nas folhas de outras árvores e parecia ora uma jibóia ora uma ave de grande porte. Mas se não tinha voz, por que cantava na esteira do valo das jurubebas e alfavacas? “Se ver bica no terreiro, porco na manga”, dizia o chofer, “se tem fumaça na chaminé, vento na bananeira, pode saber que tem jabuticabeira na horta do quintal”. O diabo é que não é tempo dela dar!”, ele exclamava, temendo que nossa busca em nada redundasse. O vento a limar as asperezas dos paredões minutos recessivos gotejam dos parapeitos terra de muitos corações e poucas árvores: “Tem um sítio lá nas duas pontas do mato, que é bem capaz de ter, apesar da lonjura e do caminho esburacado”, informa o rapaz montado num cavalo em pêlo. Seguimos a estradinha relvada, de dois trilhos o jipe a pular nos sulcos encapinzados nossas cabeças batiam na capota do teto. “Quando o Balduíno vem pagar os quintos?” o fabriqueiro de pinga pergunta ao chofer, que de longe já farejava os ardentes aromas. “Se vai tomar, toma só um pouquinho”, pedi. O jipe cambaleava nos buracos e ressaltos. Para JK nada é impossível, ele dizia em confiança, “até jabuticaba vamos encontrar neste deserto”. Quem iria imaginar que um dia a paradeza deste lugar ia ganhar a vida que está ganhando? Só não trabalha nas obras quem não quer. “É Deus no céu e JK na terra. Aqui ele remove até montanhas”, ele dizia e redizia, otimista. A água nos cascalhos musicava o calor solar: os raios furavam os olhos das serras e dos vultos informes de bichos contrafeitos nas fatídicas pirâmides da linha dos mais próximos horizontes. Vamos perguntar naquela venda, eu disse. As horas passavam na volta do dia e nada de jabuticabas! E se não conseguíssemos? Já pensou na vergonha de voltar com as mãos abanando? O vendeiro do casebre duvidava das próprias palavras: “Nesta seca o tucano procura água até no miolo do pau podre que ainda está de pé, mas pra Deus nada é impossível, vocês vão indo, vão indo sem parar..., naquelas biloscas tem uma fonte, a terra nela é preta e macia, quem sabe lá vocês vão achar um pé carregado das pretinhas?” A velha que cabeceava na varandinha lamentou: “Quê dó não ter hoje nada de bom pra mandar”. Mas os presentes dos roceiros já enchiam dois cestos!, eu mesmo catei as biloscas em seus envelopes lacrados, juntei as pedrinhas formais na vazante perto da fonte e uma porção de coisinhas infantis da beira do mato, que depois não tive coragem de entregar às meninas Márcia e Maristela, as risonhas filhas de Sara e Juscelino, elas que corriam atrás de borboletas e vagalumes nos arredores da Casa de Visitas, onde se hospedavam toda vez que os pais visitam as obras da hidrelétrica. Dona Sara era uma graça, primeiro olhava e ria para depois falar as mansas simplicidades lá dela, diamantina. Quando regressamos às três da tarde, as frutas rebentavam nigelas maduras bitelas no céu da boca. O Governador de mangas arregaçadas, a gola desabotoada a esfregar as mãos de satisfação nos punhados da fruta de fina casca preta a doçura interna dos olhos de bois olhos das mocinhas brejeiras de outros arraiais. Destampamos as cestas e balaios da traseira: além das jabuticabas rebentando de tão maduras, os mamões de quintais esfolavam-se docíssimos, as laranjas também temporonas, os coquinhos vermelhos, as gabirobas as mamacadelas os jambos e quiabos, também dois pratos esmaltados de requeijão artesanal, um litro de pinga das da cabeça, um cacho de bananas, meia-dúzia de coités, um samburá de piteira novinho em folha, finamente trabalhado em linhas bordadas. Se pudesse, ele disse, eu ia lá chupar no pé, que é muito melhor, ele dizia, sequioso. “A fazenda do dono é boa?”, ele perguntou. É nada, respondi. É uma casa de portais e adobes, o chão seco do lado de cima, a grota com a mina no lado de baixo. “E as outras coisas que trouxeram?”, ele perguntou, de boca cheia e olhos abertos. São presentes deles, oferecidos de coração. Ele rebentava as frutas no céu da boca, uma atrás da outra, a cuspir as cascas pretas e os caroços brancos, um atrás do outro – tudo se passava assim ali no areiado terreiro do lado de fora da imponente Casa de Visitas da Usina de Barra Funda. 

(*) Fragmento do romance (em versos livres) inédito BARRA FUNDA – A Evaporação dos Paradigmas.

sábado, junho 17, 2006

QUANDO ELA VEM DE AZUL

Porque a pétala desenha os olhos no rosto do caos a luz refulge então alguém reassume a função de esteta volta ao círculo das vezes sem fim e de fora depura o mais fino interior. Assim a paineira sacode as painas do caos a luz refulge e a terra em toda parte acalenta os filhos no ventre profundo então a linha verde do horizonte desenha no frio o calor do corpo reavivado.

MONOMANIA

Do sorvedouro das desavenças e desatinos (ao calor do prélio das discórdias e contendas) ressalta, instantâneo, o chamado eterno feminino agora a erradicar ou contemporizar os ferrões sociais as implicâncias individuais, a exibir sem rodeios o sorriso franco e definido a sugerir um indício de orgasmo retardado e previsível ora ora quê bom que isto aconteça! a femininização dulcifica as agressões do cotidiano realista ameniza a rudeza das mensagens publicitárias acenam com as mãos brandas piscam com os olhos luminosos o contraponto sensual em pleno palco das escaramuças, dos prélios e velórios assim belamente (ternamente?) prometendo recompensas algures e alhures apesar das altas e prementes imposições. Assim é que se instaura (acintosamente? discretamente?) o design feminino, expondo, anunciando que além das reentrâncias e protuberâncias saborosas tudo o mais na vida é desenleado e descabido: só o abraço lânguido faz dormir e acordar? só o alento erótico abre o apetite das refeições ordinárias? ora ora a inquietação não adormece senão depois de um bom orgasmo? Viver é meter? Afinal de contas, afinal de contas por que a população do mundo cresce tanto, sem parar?

OS BEIJOS CARINHOSOS DE IDA LUPINO

Se ela mandou-me beijos carinhosos nos filmes é sinal de que uma partícula de seu organismo psico-físico (um suspiro medular do corpo ou da alma) lembrou-se de mim, favoravelmente, num dos intervalos cenográficos? Uma partícula biológica (do coração, do fígado), embebida de certa aragem libidinal, aqueceu-lhe a boca e o pensamento, para dizer que ao menos naquele momento, ela, como um todo, me amava? O que será que sua intimidade viu em mim numa determinada hora do dia ou da noite, nos intervalos das filmagens interiores? Quem sou para merecer em dado momento tal olhar de ternura tal beijo carinhoso, da luz benfazeja de uma estrela? Um beijo assim carinhoso: que seja ao mesmo tempo o encontro de desejos na fusão de um prazer que será eterno, mesmo que seja assim repentinamente no escurinho do cinema! Mesmo de longe fico a murmurar que amo essa mínima parte de um de seus joelhos ou cotovelos ou essa umidade de tanta ênfase, essa sensualidade ao vivo e a cores, esse amor platônico que suspira e aspira aproximar, não obstante a distância separadora de tempo e de lugar.

quinta-feira, junho 15, 2006

MEU PEQUENO MAR DE CITAÇÕES

- Se a verdade é enfadonha, não é verdadeira (Isaac B. Singer). - Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens (José Saramago). - “A exceção das forças cegas da natureza, nada se move neste mundo que não seja grego de origem (Sir Henry Mai9ne). - A psicanálise nasceu para dar voz ao emergente, e não para corroborar a tradição (Maria Rita Kahl). - Um mundo sem arte é um lugar desesperado (Nietzsche). - O verdadeiro progresso do homem não está adiante, mas atrás dele (Rousseau). - O inimigo da incoerência é o tédio (Baudelaire). - A vida vale pelos seus extremos, mas a humanidade só caminha pelos meios (Paul Valéry). - O palco é a majestosa abertura sobre o mistério, cuja grandeza estamos no mundo para encarar (Stéphane Mallarmé). - O Diabo é um cão amarrado, que só nos pega se invadirmos seu raio de ação (Santo Agostinho). - O dinheiro público que hoje não é destinado às escolas ou creches será, mais cedo ou tarde, destinado às prisões (Pierre Bourdieu). - Mais interior do que íntimo de mim mesmo: mais alto do que o mais alto de mim. Assim é Jesus. (Santo Agostinho). - O tempo não descansa nem circula inativo através de nossos sentidos: ele realiza na alma operações surpreendentes (Santo Agostinho). - A arte e o céu são países de primeira necessidade (Guimarães Rosa). - Grátis e pronta para ser pilhada, a natureza está ali, diante da deplorável concepção da produtividade progressista (Herbert Marcuse). - A felicidade não é uma estação onde chegamos, mas uma maneira de viajar (Margareth Lee Runenk). - A sociedade só funciona se as pessoas podem criar razões independentemente de seus desejos (John Searle). - A fé é um pássaro que pousa no alto da folhagem e canta quando Deus escuta (Joaquim Nabuco). - Quem não ama a si mesmo, não pode receber o amor de outrem. Quem não faz sexo consigo mesmo, não faz sexo com outrem (Bento Prado Jr.). - Os homens que não atingem o extraordinário, inventam o confortável (Ana Hatherly). - Além de cuidado e educação, os pais também dão genes aos filhos (Steven Pinker). - Todos os textos escolares nazistas ou fascistas tinham base num léxico empobrecido e numa sintaxe elementar, de modo a limitar o desenvolvimento dos instrumentos do raciocínio complexo e crítico (Umberto Eco). - A hora mais triste do amor é quando vemos que ele deve morrer e não temos forças para matá-lo (Maria Perpétua da Silva). - A História é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo carregado de agoridade (Walter Benjamim). -Na criança a sensibilidade ocupa quase todo o ser. ( ). O gênio é somente a infância redescoberta (Charles Baudelaire). - O homem é mais do que razão e saber: ele é ethos, eros, estética, poética, simbólica, convivialidade, solidariedade, compaixão, gratuidade e natureza ((Frei Prudente Nery). - Aqueles que não entendem a necessidade de um novo começo (...), terão de copiar em gesso barato o que foi criado em mármore caro pelos mortos (Karl Marx). - É consenso ente os ecólogos internacionais que a ciência ainda conhece muito pouco sobre o papel da biodiversidade no planeta. Enquanto isso, o que vemos no Brasil, de ponta a ponta? O fogo nos campos e cerrados, nas capoeiras e florestas, como se a queimada do país fosse uma festa de fogos de artifícios (Lázaro Barreto). - A solução do problema e a colocação correta do problema. Apenas o segundo conceito é obrigatório para o artista. (Anton Tchecov). - Somos o que somos em igual medida do que foi e do que poderia ter sido. E é a ficção que nos conta isso (Javier Marias). - As pessoas felizes são parecidas entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira (Tolstoi). - Precisamos de um caos dentro de nós, para podermos dar à luz uma estrela candente (Nietzsche). - O mundo estará em risco enquanto os governantes continuarem a servir àqueles que os elegem: Boeing, General Eletric, Mickey etc. (Gore Vidal). - O romance é um espelho que se leva a passear por uma estrada. Por isso capta o azul do céu, mas também a lama da terra (Sthendal). - Nem o sol nem a morte podem ser olhados fixamente (La Rochefoucauld). - O dia é a polpa de um fruto cujo caroço seria o sol. E nós, mergulhados nessa polpa como imperfeições ou manchas, como sapos, somos assimétricos em relação ao centro. Sua irradiação nos envolve e ultrapassa, vai atuar muito além de nós (Francis Ponge). - O poeta é aquele que não encontra suas palavras Paul Valéry). - A demência de um mundo em que as 225 pessoas mais ricas detêm, segundo relatório da ONU, a mesma renda anual dos 2,5 bilhões de pessoas mais pobres, só não é visível para os cínicos ou os que perderam o sentido do que é viver em comunidade humana (Jurandir Freire Costa). - A literatura sempre prospera e viceja numa atmosfera de calorosa contenda. Edgar Allan Poe, se não bradasse, se nunca despertasse expressões de revolta, provavelmente teria escrito poesia medíocre. ( ) Era um homem que precisava de amigos, verdadeiros amigos, mas que também necessitava de inimigos (H.L. Mencken). - Como um pedaço de gelo colocado sobre um fogão quente, o poema deve deslizar na sua própria fusão (Robert Frost). - Enquanto a alma durar, durará também o tema de uma canção nova e ainda não ouvida; enquanto a árvore for graça na graça, amor no amor e beleza na beleza, Deus enviará poetas para descobrir e testemunhar isso e dependurar suas descrições ideais na galeria das lembranças (J.R. Lowell). - O banheiro é o lugar mais perigoso do mundo, depois da cozinha (Harold Robbins). - O relâmpago faz um rápido passo de dança no céu, e o trovão, de longe, aplaude (Maureen Daly). - Essa moça tem a mania de mandar em tudo, como se a própria vida fosse uma invenção dela (Kenneth Horan). - A pequena aldeia tinha uma praça no meio e dez casinhas brancas ao redor – como uma família à mesa do jantar (Dick Dorrance). - O amor é a estrela que os homens miram quando caminham, e o casamento é o buraco de carvão em que eles caem. Bigamia é ter uma esposa de mais. Monogamia é a mesma coisa. Matrimônio é o romance no qual o herói morre no primeiro capítulo. Casamento não é uma palavra, é uma sentença (H. L. Mencken). - Os que amam profundamente jamais envelhecem. Morrem jovens, mesmo na velhice (Arthur Wing Pinero). - Homem singular! Ficou mais de cinco anos sem dar um beijo na mulher. Mas descarregou o revólver no cara que surpreendeu beijando-a (Kate Smith Hour). - Tradição não quer dizer que os vivos estão mortos, mas que os mortos estão vivos (G. K. Chesterton). - O segredo do triste consiste em ter os lazeres necessários para meditar sobre se é feliz ou não (Bernard Shaw). - O culto do consumismo é que leva as pessoas de baixo poder aquisitivo à deliquência, à criminalidade (Gilles Lipovetsky). - As pérolas do moinho rifoneiro da sabedoria popular: a Mosca pequena levanta o rabo da vaca. Quem tem saúde, a cara conta. Se o doente quer canja, dê canja ao doente. Cavalo corredor, cabresto curto. Quem com muitas pedras bole, uma lhe dá na cabeça. Boas idéias e burros mancos chegam sempre atrasados. Atrás dos apedrejados, vêm as pedras. Quem tem tempo faz a colher e ainda borda o cabo. Enquanto o pau vai e vem folgam-se as costas. Homem e porco só são bons depois de mortos. Quem economiza nas ferraduras, gasta no cavalo. Pão em viagem não é fardo. Boa romaria faz quem em casa fica em paz. Deus dá o frio conforme o cobertor. Quem canta seus males espanta. Duro com duro não faz bom muro. Macaco velho não põe a mão na cumbuca. - A resignação é um suicídio cotidiano (Balzac). - O que mais me impele é o desejo e não apenas a necessidade (Man Ray). - Se queres ser universal, fale de tua aldeia (Máximo Gorki). - Cada um é como Deus o fez, e, às vezes, até pior (Cervantes). - Só há uma criança linda no mundo – e toda mãe a possui (James Bridge). - O homem é o único animal que tem motivos para corar (Mark Twain). - Políticos e baratas jamais se cansam de estar juntos (J.Toledo). - Passarinho que come pedra, sabe o que lhe advém (dito popular). - Agora é o descontínuo que constitui a imagem motriz da pesquisa humana: distinguir, comparar, citar, rejeitar – agora são essas as operações universais, não mais desatinadas, como durante séculos, a tranquilizar o espírito, a nutri-lo de álibis reconfortantes, mas a modificar tecnicamente o real (Roland Barthes). - Mesmo no inconsciente, todo pensamento está ligado a seu contrário (Freud). - A descoberta do cotidiano é uma aventura sempre possível, e o seu milagre, uma transfiguração que abre caminho para mundos novos (Antônio Cândido). - O mundo tem muitos centros, um para cada ser criado, cada um gravitando no seu próprio círculo, em torno do centro que lhe foi destinado (Thomas Mann). - Giletes machucam. Rios são úmidos. Ácidos mancham.E drogas dão câimbras. Armas são ilegais. Nós escorregam. Gás tem mau cheiro. É melhor viver (Dorothy Parker). - Aos mestres intelectuais devemos o que pensar. Aos operários, devemos o que viver (Paul Valéry). - Tenham fé, mas saibam que vossa crença é absurda (Kierkegaard). - Se cortarmos uma maçã pelo meio, poderemos traçar nela as linhas da flor em torno da qual a abelha zumbiu em maio; assim também a alma da poesia sobrevive nas coisas triviais (James Russel Lowell). - Contradigo-me? Seja, eu me contradigo. Eu sou amplo. Eu contenho multidões (Walt Whitman). - O sentimento da complexidade pode vir a ser uma estupefação apaixonada (André Gide). - Os poetas criam seus precursores (Jorge Luís Borges). - A teoria de Harold Bloom é que o sentido de um poema é que há outro poema e que a poesia é um caminhar entre poemas. - A força de uma obra está no fato de trair, desviar, complementar, afastar, desler uma obra anterior (Marcelo Coelho). - Daqui a cem anos teremos a mesma idade (Bernard Shaw). - Não há pior aborto do que moldar o caráter de um filho (Bernard Shaw). - O céu está numa flor silvestre e o mundo num grão de areia (William Blake). -Uma mulher que não seja uma idiota cedo ou tarde encontra um farrapo humano e se propõe salvá-lo. Às vezes consegue. Mas uma mulher que não seja uma idiota cedo ou tarde encontra um homem são e o reduz a um farrapo humano – isso ela consegue sempre (Cesare Pavese). - As mulheres têm uma assombrada roseira fria espalhada no ventre (Herberto Helder). - A palavra é a única coisa que tem vida eterna. O que saberíamos da história humana sem a Bíblia? Da França sem Balzac? (Anatoli Ribakov). - Por que uma coisa tão maravilhosa como a juventude pode ser dada tão impunemente aos jovens? (George Bernard Shaw). - O que ocorre com a cultura no mundo atual é um excesso de informação e uma carência de formação (Leyla Perrone-Moisés). - Às vezes desafino, sim. Mas desafino também na vida (cantora Maria Bethânia). - A noção de esquerda acabou. Então não dá para continuar militando nas mesmas causas. (Sérgio Sant’Ana). - Ao homem que fosse bom, dever-se-ia chamar de asno. Ao asno que fosse mau, dever-se-ia chamar de homem (Juan Ramon Jimenéz). - O Brasil vê as cidades se transformarem em aglomerados de caixotes de tijolos aparentes com cobertura metálica...Mais feias, as cidades se tornam também mais violentas. (Ângelo Oswaldo). - Não é que somos especialistas em caos, mas estamos circundados por ele e equipados somente com nossos poderes ficcionais para a coexistência com ele. (Frank Kermond). - A modernidade ocidental abandonou a grandeza pública da antiguidade pelo encantamento das emoções privadas (Hannah Arendt). - O maior truque do Diabo é persuadir-nos que não existe (Baudelaire). - A dinâmica da história é o lento retorno do oprimido (Norman O. Brown). - A fonte de toda arte é o amor do corpo humano (Ernst Jones). - O sublime é uma satisfação estética que inclui entre seus momentos uma experiência negativa, um choque, um bloqueio (Kant). - A causa e o efeito não param de trocar de lugar (Engels). - Se você for bem sucedido no crime, pode até ser considerado um homem de bem (Millôr Fernandes). - A cultura é a configuração total das instituições que as pessoas de uma dada sociedade compartilham (J.H. Fichter). - O pênis é a ponte que liga duas almas (Simone de Beauvois). - A aparência que perdura a vida inteira não é diferente da realidade (Yeats). - A experiência de cada época requer uma nova Declaração – e o mundo parece estar sempre esperando mais um poeta (Ralph Waldo Emerson). - O essencial é operar a transformação e deixar sementes no irreversível. A Revolução Francesa durou dez anos, se tanto, mas o que trouxe ficou. (Antônio Cândido). - Curva-te apenas para amar (René Char). - Abandonamos o mundo aos canalhas, quando nos calamos (Kurt Blumenfel). - O capitalismo não impõe limites nem à riqueza mais ultrajante. Tudo é permitido, se se ganha dinheiro. (?). - Só a morte pode derrubar um escritor. Mas falo do verdadeiro escritor e não de quem vende a alma por uma casa com piscina (William Faulkner). - A troca do comunismo pela democracia não significou grande coisa. Deixamos de viver sob um regime autoritário, mas passamos a depender de um monte de mafiosos (Gianni Valtimo). - Não posso morrer. Se morrer, com quem Deus vai fazer suas piadas? (Charles Chaplim). -

A CABEÇA DE OURO DO PROFETA

Edição há muito esgotada, agora revista e ampliada . Abaixo o fragmento de um dos contos. 

Joãozinho e Maria (fragmento): Quarto exíguo de uma grande e velha casa, avara de moradores. Uma janela de madeira aos pés da cama e outra na parede paralela, a primeira abrindo-se para o quintal nascente e a outra fechando para o jardim poente. A mesinha de cabeceira com o toco de vela no castiçal, o cinzeiro de barro com vários tocos de cigarros, dois livros em processo de leitura (as páginas marcadas com flores de magnólia). As paredes manchadas de tempo, da ação de hospedeiros diminutos, de objetos feitos pela natureza e pelas mãos da mulher, que agora está deitada de costas, a cabeça levantada no travesseiro, os pés rentes à cabeça do homem, deitado em sentido contrário. Ele (recitando poetas árabes antigos): Suaves são tuas pernas como caules de cana arrancados numa fonte. Tua cintura é delgada - uma corda no poço não é tão tênue. E o tato!, como é macio! os dedos aflautam como vermes aquáticos lisos como cobras. Iluminas a noite como a lanterna dependurada numa ermida. Ela: sou assim tão cheia de predicados? Ele (citando Catulo): Dá-me mil beijos, depois mais cem e outros cem, e ainda mais cem, e depois mais mil e um cento - e quando atingirmos as centenas de milhares, baralhemos as contas, comecemos de novo: o que é bom não pode chegar ao fim. (ele faz cócegas nos pés dela; ela faz cócegas nos pés dele). Ele: As mulheres!, de algumas gostamos das partes baixas do corpo, as formas e os volumes; de outras amamos o sorriso e o olhar, as músicas e as almas. Ela: se gostasse de minhas partes altas não teria deitado de cabeça para baixo... Ele: O pasto e a roça do cotidiano: a concretude, ali está a frase fixa, insubstituível. O pasto e a roça da fantasia: a abstração, ali está a frase móvel e múltipla. Ela: que não dá camisa a ninguém. Ele: olha quem está falando! Você às vezes se contradiz, caindo no prosaísmo que não condiz com o restante de sua pessoa. Ela: eu só ou toda mulher? Ele: o mimetismo não é apenas epidérmico, mas também anímico. Você transige de uma a muitas, muitas vezes. Isso é ótimo porque nem preciso ir longe para encontrar as outras na mesma. Agora, por exemplo, você está óssea, enxuta, deitada em seus louvores e ao mesmo tempo levantada em seus labores. Ontem, ao contrário, você estava magra e morena, os seios sumidos, os lábios molhados, os beijos vinham de dentro, mantinham o desejo nas cercanias. Amanhã, quem sabe, outra moça virá em você, quem sabe uma sua irmã desconhecida, de longe, mais fornida nos cantos e recantos, os lábios menos beijadores e mais beijados, a luz um pouco fora das palavras, esculpindo outros dedos nas flores de tua pele. Ela: é assim que pensa? enquanto esforço para me desdobrar, você, fingido na fidelidade, não se vai de mim? Ainda bem que sou ágil, né? É assim mesmo que pensa de mim? E o que penso de você? Você é sempre o mesmo nos calcanhares e nas orelhas, às vezes cansativo, sem motivos e razões. Muito errado, mesmo nos acertos, sem dizer uma palavra. Qualquer dia pego o trem e vou cantar noutra freguesia. Ele:Você fala por falar. Você pensa que a minha música é só o mi em cima do si sem dó? Não sei onde estou com esta cabeça que só pensa em você... Ela: prefiro dar o fora de mim para ver se encontro outro você na sua pessoa. Isso de ser apenas meia-pedra e meio-tijolo... Por que não se desdobra como um lençol ou como um cobertor e vem logo me esquentar um pouco? Ele: sou assim pobre nas linhas e entrelinhas? Ela: por que me escolheu entre tantas outras? Ele: eu escolhi? fui escolhido! Ela: escolhido por quem? por mim? Ele: por mim, por mim mesmo, alguém em mim escolheu você. Ela: e por que? Ele: não sei. Um sinal de luz ao longo de sua pessoa? Como o cineasta que procura a estrela que exprima a sensualidade mais permanente... e encontra num rosto as janelas do olhar no olhar a moradia do rosto que pode acolher o que cada homem procura na pessoa da mulher. Ela (senta na cama para rir...) etc etc.... 

Nota ao pé da página em 06/06/2006: Recebi hoje do amigo e poeta Osvaldo André de Melo uma anotação com os dizeres: “Prêmio Afonso Arinos. Contos e Novelas. Voto de Alceu Amoroso Lima. “José Afrânio Moreira Duarte é um intimista de cores e alusões sutis, que se revela nestes seus novos contos um mestre na psicologia dos entretons literários”. “Por sua vez, Lázaro Barreto, com “A Cabeça de Ouro do Profeata”, dentro da linha fantástica do realismo mágico, que vai de Edgar A. Poe a Julio Cortázar e Clarice Lispector, se mostra um contista de grande originalidade, forte e sugestivo, que honra o jovem grupo de Divinópolis como houve, nas origens do Modernismo, o Grupo de Cataguases”. 
A anotação não cita a data do Voto do grande crítico Alceu, mas posso dizer que ocorreu antes da publicação do livro pela Imprensa Oficial de Minas Gerais.

quarta-feira, junho 14, 2006

OS GASES HILARIANTES

Compilação de Lázaro Barreto. 

- Uma ou duas anedotas de vez em quando não faz mal a ninguém. Então vamos e venhamos, como se diz: 
- Depois da viagem espacial, o astronauta conta como sãos os marcianos: “Do pescoço para baixo, a parte traseira fica na frente e a parte da frente fica atrás”. “Que coisa horrível!”, exclama o ouvinte. “Pode até ser feio, mas que é danado de bom para gene dançar, ah isso é!”, arrematou o astronauta, lambendo os beiços. - Na aula de História Natural, o aluno interrompeu o professor: “O senhor disse que a hiena fede terrivelmente, que só se alimenta de fezes e de carniça, e que só desfruta de relações sexuais uma vez a cada dois anos...”. “Exatamente”, disse o professor. “Então me diz uma coisa”, disse o aluno, “por que esse animal vive rindo?” - A mulher quis saber do marido-coveiro porque ele estava chegando tão tarde em casa. “Ah, meu bem, hoje tive que enterrar um ator famoso”.... “E daí?”, ela perguntou. “E daí que demorou um tempão, pois tinha tanta gente com tanto discurso e aplauso que o caixão teve que voltar à cena muitas vezes”. -O cavalheiro estava um pouco solitário na festa e aproximou-se de uma senhora, também um pouco solitária: “Minha senhora, não lhe ofereço uma bebida porque sei que é da Liga Antialcoólica...”. “Engana-se, doutor”, ela respondeu. “Sou Presidente da Liga da Preservação da Castidade...”. “Ah, é isso”, replicou o cavalheiro. “Eu sabia que alguma coisa não podia oferecer à senhora”. - O médico atende ao casal de idosos, perguntando ao marido, que se adiantara, enquanto a mulher ficara sentada um pouco atrás: “Vocês ainda têm orgasmos?” O marido não entendeu e recorreu à mulher: “Maria, ainda temos orgasmos?” E ela, crente que sabia das coisas, respondeu, toda convicta: “Não, João. Temos é Unimed”. - Uma paródia moderna de Bocaccio é a estória da freira que foi violentada por um tarado. A madre superiora ficou preocupada e chamou o médico. “Quero que o senhor opere a freira que foi violentada pelo tarado.” “Por quê?”, estranhou o médico, gozando e dizendo que como estava ela já tinha sido operada. “Quero operar o rosto dela, doutor, tirar aquele sorriso estúpido que ficou nele desde o dia daquela desgraça”. - O cara vinha tristíssimo pela rua, numa fossa que fazia dó. Um amigo passou por ele, cumprimentou e ele nem viu. O amigo voltou, deu uma puxada na gravata do fossento e disse; “Não me conhece mais não, né?”! O fossento tirou a mão do amigo da ponta da gravata e respondeu: “Não puxa a gravata mais não, meu nego. Estou numa fossa tão grande, que se puxar de novo sou capaz de dar uma descarga.” - Os amigos queriam saber daquele gostosão porque ele tinha tanto cartaz com as moças da cidade. Ele disse: “É por causa de meus lindos olhos.” “ Seus lindos olhos?”, um dos amigos ironizou. Eu disse:”Por causa de meus limpos olhos. Olhem só como eu os lavo a toda hora”..., e assim dizendo espichou a língua enormimíssima até os olhos, limpando-os. - E por falar em língua, tem a estória do cara queixando-se para o amigo que a esposa era muito frígida e que ele estava na mão do calango, com ela. “Por que não lhe tasca um beijão bem no umbigo?”, o amigo perguntou. E ele respondeu: “Estou cansado de beijar em toda parte, inclusive no umbigo, e ela permanece como uma estátua, sem nenhuma reação”. O amigo mais-que-depressa acrescentou: “Mas o beijo no umbigo que falo é por dentro e não por fora”.... - “Pra quê casar?”, dizia a solteirona à irmã casada. “Se tenho um papagaio que fala nome feio o dia inteiro, um cão que ronca que nem o diabo a noite inteira, e um gato que passa noites e noites fora...: para quê vou querer um marido?” - O mendigo vendo o velho na sacada da casa, pergunta: “Tem comida velha aí?” E o outro, mal entendendo a pergunta, responde: “Quê é isso, sô! Estou viúvo há muito tempo!” - O menino ia com a galinha toda encolhidinha nos braços. O padre, vendo-o assim, perguntou: “Vai comer galinha hoje, heim, meu filho?” “Não senhor”, responde o menino, amedrontado. “Já comi. Agora vou soltá-la”. - O meninozinho inocente, vendo a barriga da mãe crescer cada vez mais, perguntou sobre o motivo do crescimento. Ela responde: “Ah, meu filho, é seu irmãozinho que está aqui dentro, seu irmãozinho que eu adoro”. “Se a senhora o adora tanto”, o menino replicou: “então por que a senhora o comeu?” - O leitor foi à redação do jornalzinho da cidade do interior, fulo de raiva, pedindo ao impressor para corrigir a notícia publicada na última edição, que o dava como falecido. “Meu jornal tem por norma não desmentir nada, pois nunca erra” “Mas o senhor não vê que estou aqui vivinho da silva e a notícia me dá como morto?” “O máximo que posso fazer na próxima edição é publicar uma nota dando a notícia de seu nascimento. Serve?”

domingo, junho 11, 2006

AS TISANAS DE ANA MARIA HATHERLY (*)

Seu antigo rosto amarelo de serpente,
como diria Carlo Levi.

Quem disse a janela era linda e diante?
Era assim e a mais ninguém?
Quem amarrou os versos nos cabelos ensolarados?
Um brilho de nórdica frieza?

A permuta poética entre o oriente e o cotidiano.
A maratona dos sonhos não têm fim.
A alma que tinha ido ao céu,
Volta da metade do caminho.

Ela tinha um coração que eu jamais mordera,
bem no seio esquerdo, que eu jamais beijara.
Mas as tábuas diáfanas do amor, elas sim,
elas eram elas no porto de cal e vinho!

Não sei porque ela agora não está
Atrás do escuro,
para iluminá-lo.
Se tens memória, eu disse a ela e a mais ninguém:
não me esqueça quando me esqueceres.


(*) Ana Hatherly, poeta portuguesa, é autora de (entre muitos outros livros) de “AS 39 TISANAS”, Porto, 1969.

Tisana, s.f. cozimento de cevada; medicamento líquido que constitui a bebida ordinária de um enfermo. Conf. Pequeno Dicionário Brasileiro de Língua Portuguesa – 11ª. edição.

sábado, junho 10, 2006

MEU BEM CHEGA HOJE 2 (*)

Meu bem chega hoje

 

As palavras bloqueiam a passagem do pensamento

Quando, tangendo a fauna do passado,

Tento abrir uma vereda

Para passar com o meu poema.

 

Quero dizer que o teu corpo

É a paisagem em que me debruço,

Para conhecer os rios e as montanhas

Que me chamam para ocupar o lugar do meu desatino.

 

Jogo as palavras para o alto,

Como se fossem pássaros engaiolados,

Que se vão de mim, para longe.

O poema me escapa das mãos

Com ele a sombra e a luz do por do sol.

Que vêm de longe, para mim.

 

Toda a montagem de vocábulos

Se estatela, quando teu corpo

Se me aproxima, cheio de alma.

Aí é que o silêncio fala mais alto.


(*) Versão revista do poema publicado originalmente no livro Mel e Veneno, em 1984.

sexta-feira, junho 09, 2006

A MENTE, DENTRO E FORA

Mesmo que esteja em apuros de solidão, na janela do quarto que dá para o muro e que se contenha nas lágrimas espontâneas do contemplar e do refletir em circunstância inapelável, você ainda tem a mente em perfeito estado para levantar uma das mãos e enxugar a lágrima que veio sem ser chamada.. A vida é mesmo assim. O viver é que encrenca-se aqui e ali no trabalho no casamento na preocupação mundial. A mente é que é ágil, incorpórea, escapa de qualquer tipo de fechadura, passa da latitude à altitude à longitude à atitude num abrir e fechar de olhos e cataratas. Ainda bem, ora essa. Assim que escapole de um dardo, de uma laçada, alcança uma graça, um abrigo no inconsciente. Ela existe é para isso mesmo. Para exprimir e isolar e suprimir, para driblar as agressões, para que se acorde ileso do sono tenebroso. Individual ela não vai salvar o mundo da baboseira e da barbárie, mas pode muito bem enxugar a lágrima ocasionada pelo descuido de si mesma na atenção que vinda dando aos órgãos e sentidos, aos tecidos fisiológicos de seu portador, de seu portador finalmente de ânimo mais ou menos apaziguado e pronto para as novas incursões pecaminosas.

CLARICE E MURILO

1 – Clarice Lispector (de “A Hora da Estrela””). 

 - Ela (Macabeia) sabia o que era o desejo – embora não soubesse que sabia. Era assim: ficava faminta mas não de comida, era um gosto mais doloroso que subia do baixo ventre e arrepiava o bico dos seios e os braços vazios sem abraços. - Eu vou ter tanta saudade de mim, quando morrer! - Glória possuía no sangue um bom vinho português e também era amaneirada no bamboleio do caminhar por causa do sangue africano escondido. - Sabia agora perguntar-se: morar sozinho para chorar à vontade ou viver numa casa cheia de gente e evitar o choro? - Conheceria ela algum dia do amor o seu adeus? Conheceria algum dia do amor os seus desmaios? Teria a seu modo o doce vôo? - Ninguém olhava para ela na rua, ela era café frio. Não tinha aquela coisa delicada que se chama encanto. - Até no capim vagabundo há desejo de sol. - Ela morreu assim que pôde. - Olhava as vitrines só para se mortificar um pouco. Precisava encontrar-se – e sofrer um pouco é um encontro. - Que eu nunca descreva o lázaro senão eu me cobriria de lepra. - No céu dos oblíquos só entra quem é torto. - O único animal que não cruza com o filho é o cavalo. - Na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema. - Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe. - Uma jovem mulher cheia do próprio destino. 2 – Murilo Mendes (de “Os Discípulos de Emaús”). - A idéia de Deus abandonado por Deus deve ser um dos raros e grandes consolos do Homem. - Os pássaros sentem-se bem no ar, os peixes sentem-se bem na água: os homens não se sentem bem na terra. - Poucos homens atingem sua época. - A vida separa muito mais do que a morte. - Se o homem está dividido dentro de si mesmo, como não o estará ante uma mulher? - As montanhas apresentam uma forte relação com o peito original, com a curva do ventre feminino; e desperta a nostalgia das Colinas Eternas. - O humano em Cristo é divino no homem. - O amor é uma comunicação de bens; por isso ele é anti-capitalista; por isso é caridade. - No poeta existe uma comunicação de todos com cada um, e de cada um com todos. - O comunismo é revolucionário diante do capitalismo, e conservador diante do cristianismo. - A liberdade é o equilíbrio entre o bem e o mal. - A natureza muda sem sair do lugar. - O maior poder de invenção e construção existe primeiro na natureza. - A vulgaridade ao alcance de todos – eis a fórmula da civilização norte-americana. - Este mundo é tão misterioso, que muitas vezes a inércia pode será fecunda, e a atividade pode ser estéril. - O verdadeiro poeta é conjuntamente um ser de circunstância, e eterno. - O olhar do poeta é vastíssimo: só ele percebe os inumeráveis crimes contra a poesia. - É muito significativo que o Cristo ressuscitado tenha aparecido primeiramente a uma mulher, e num jardim: restaurou Eva na sua primitiva dignidade. - O cristianismo é desmesurado dentro do equilíbrio. A carolice pode causar à religião maiores estragos do que o próprio ateísmo.

UM NOME EXEMPLAR

Pedro Pires Bessa, Professor, Doutor e Pós-Doutor em Literatura Comparada e Teoria Literária.. Lecionou durante 30 anos na Universidade Federal de Juiz de Fora e há 12 anos que leciona aqui, na UEM-Divinópolis. Além das exaustivas tarefas do Magistério, colabora na imprensa, escreve e publica livros, instrui e acompanha alunos em cursos de pós-graduação, e ainda consegue tempo para participar socialmente da vida literária, como pessoa afável e comunicativa que é e como Membro da Academia Divinopolitana de Letras Divinópolis. Entre seus feitos mais brilhantes e proeminentes ressaltam seu empenho na hábil difusão contaminadora dos princípios e fins da cultura e da arte na arte e na cultura do aperfeiçoamento das individualidades humanas no processo de sociabilizarão desse aperfeiçoamento. Desde 1979 que desenvolve o esforço de intercâmbio e aglutinação da cultura hispano-americana com a cultura brasileira, e desse esforço resultou em 1993 o VI Congresso Internacional de Cultura e Literatura Hispano-Americanas, que ele sabiamente organizou e dirigiu, ainda na UFJF. Do qual resultou a publicação do livro (através da UFJF-FAPEMIG) “Integração Latino-Americana”, de quase 500 páginas, contendo na íntegra 147 trabalhos de participantes brasileiros, espanhóis, holandeses, noruegueses, alemães, norte-americanos, porto-riquenhos, mexicanos, argentinos, chilenos, uruguaios e colombianos. Em 1996, já em Divinópolis, organizou e dirigiu outro Congresso Internacional, versando sobre as peculiaridades das culturas espanhola, portuguesa, brasileira e hispano-americana, sob os auspícios da FAPEMIG-UEMG, cujo resultado foi também condensado na publicação de um volume de mais de 600 páginas compactas, abrigando textos de 176 autores de quase todas as regiões desses países, além da França. Anos depois, em 2003, foi à vez de organizar e dirigir, na FUNEDI-UEMG, o Primeiro Congresso Internacional de Pós-Graduação, Pesquisa e Desenvolvimento Regional novamente com centenas de conferencistas e debatedores com a publicação de um Caderno de Resumos nomes dos autores dos trabalhos apresentados e dos itens temáticos. Tenho a grande satisfação de ter participado dos dois últimos Congressos, no primeiro com o trabalho “Uma Leitura de Guimarães Rosa” (publicado no referido livro e no segundo com o texto “O Vôo e o Mergulho em Pedro Nava”, ainda inédito. Lançando agora o livro “Literatura em Divinópolis – Em Crônicas”, uma coletânea de textos de mais de 50 autores, ele confirma minha convicção da objetividade de seu despreendimento, de sua expansiva afabilidade como pessoa, como intelectual e como produtor cultural no esforço de integração da mesma faina pródiga e lúcida. E num caso raro de intelectual que se vê na íntima exigência de exercer também a função de produtor cultural - e assim o faz simplesmente pela pureza de sua alma, generosidade de coração, renúncia mental de ostentar títulos de autoria da própria obra, que deixa de criar e divulgar, para incentivar, aplaudir e lançar as obras dos conterrâneos, que jazem na obscuridade editorial de nossos dias tão aziagos. Quem, a ser ele (e em tempos atrás, o saudoso Murilo Rubião, em Belo Horizonte) age assim tão socialmente na esfera cultural, abrindo mão da própria criatividade? Além de reavivar e relançar autores e publicações do passado, como fez com o nosso AGORA LITERÁRIO e com os poetas e escritores ameaçados de olvido pela voragem dos novos tempos, como Sebastião Milagre, Jadir Vilela, os irmãos Azevedo e tantos outros, ele agora, sem se deter nas revitalizações literárias já conseguidas, vem gravar em belas letras de um novo livro os trabalhos dessa extensiva e revigorante fornada de autores, que de certa forma estavam condenados pelo ineditismo, iluminando-os com o generoso olhar de um intelectual ímpar em nossos dias manchados pelo obscurantismo que prolifera à sombra do fulgor midiatico de uma mediocridade amplamente difundida, que fere os brios da nacionalidade.

quinta-feira, junho 08, 2006

Aquarela - Lázaro Barreto

AQUARELA - Lázaro Barreto


Deitado no seu colo, verdes
relvas de brisas me afagando,
vi o desenho
das canções nos cristais do vento.

O vento que trazia as águas
para perto do nosso amor.

Deitado no seu colo, à sombra
do rio, seus verdes olhos verdes.
Dois peixes na superfície,
dois seios na profundidade.

Agora longe do rio e de mim
ela canta em alguma parte.
Mesmo ausente, ela canta
e o rio ressoa e tansborda.

sábado, junho 03, 2006

MODOS DE VIVER

Uma das alternativas é: depois de examinar e refutar o auto-conhecimento, seguir pelas veredas sombrias da alma. Primeiro a vida antecipada nas preferenciadas regiões oníricas Depois a vida póstuma no terreno móvel da velha saudade. Sempre à deriva como o junco do rio e a pedra do caminho. O rio e o caminho não têm outros lugares de ir e mesmo assim não chorar ao amanhecer nem enrugam os rostos ao anoitecer. A ociosidade tem mau gosto e cheira mal. Como beijar a bunda de quem só sabe comer e dormir?

UM PAR DE ROLAS

Depois de ler seus olhos que prisma cairá das nuvens na janela onde anda a mentação deles que são intensamente como abrir na maçã as uvas Depois de narrar o desterro dos potros, de descrever a suástica nas rezes, não sei mais captar o entreluzir da permuta poética entre o oriente e o ocidente nas noites de um celibatário A maratona dos desejos não tem fim Não há quem possa resistir aos cantos mais fisiológicos das sereias na meia-luz de um quarto supostamente de dormir, aberto pela janela ornada de peras pensas Depois de pintar o arco da íris nenhuma dor riscará o sítio onde as penas são folhas e as flores nunca foram aos lugares mais tensionados A alma que tinha ido ao céu volta da metade do caminho para usufruir dos prometidos beijos carinhosos Depois de ler seus olhos em sentido contrário nunca mais serei o mesmo contrastante nunca mais direi que desta água não bebo e que esta boca não é a minha Pois que seus olhos são dois seios fitando-me de noite Pois que eles são de quem na janela é delgada e pensa as feridas os louvores as recompensas Pois que eles são das origens os origmas ao toque do verde rumor de um par de rolas de um par de rolas verdes no dueto de flautas dentro da igreja na hora do ofertório, dentro do quarto na cama do dormitório (Valha-me Deus e Nossa Senhora!) Depois de beijá-los de leve, aqui de longe Eles que são verdes e olhos nas verdes horas do batear das asas, como tenho dito.

sexta-feira, junho 02, 2006

A FAZENDA DA MATA

O Mesmo ou Dois Poemas.

Aos poucos o sol dissolvia o verde circundante 
A estrada de terra, ladeada de sucupiras e jatobás 
Na curva a sombra úmida dos muros inamovíveis  
O vento fazia das águas um súbito monte verde 
(ser um pouco infeliz não faz mal a ninguém) 
Chovia fino e logo chegamos ao pátio 
As flores recebem os jornalistas sequiosos 
No quintal o córrego em sua eterna viagem de ida. 

 As mãos acariciam as crinas da encosta 
Aqui e ali esculpem 
O rendado de relva e das pedras 
A orquídea clareava as feições das pessoas 
Vivificavam o ar que respirávamos. 

O sonho de tudo nas suas conformidades 
Está nas espigas do paiol, condensado 
As ações viáveis partem do tempo neste lugar? 
As nascentes são de puro orvalho? 
O pássaro é uma flauta metafísica? 
Assim, cúmplices na esperança 
Batemos as fotos de Tancredo e Risoleta: 

Ele, uma bandeira de vida Ela, o ponto de vista e de apoio. 
Depois a tarde fechava os flancos 
A chuva era farta e mansa 
Fecunda e bela e veraz sobre a sementeira 
Da Fazenda da Mata 
A dois passos da cidade de Cláudio, Minas Gerais. 

II 
A estrada de terra, ladeada de sucupiras e jatobás 
Na curva a sombra úmida dos muros inamovíveis 
Aos poucos o sol dissolve o verde circundante 
Chovia fino e logo chegamos ao pátio da Fazenda 
As flores recebem os jornalistas sequiosos 
(ser um pouco infeliz não faz mal a ninguém) 
O vento fazia das folhas um quintal de clorofilas 
As mãos abstratas acariciam as crinas da encosta 
Aqui e ali esculpem signos e promessas no rendado 
De relvas e de pedras decorativas 
A orquídea pendente abençoa as pessoas 
O próprio ar da tarde é mais afetuoso. 
O sonho de tudo nas suas conformidades 
Está nas espigas do paiol, condensado 
As ações viáveis partem daqui, agora? 
Os poentes são nascentes de orvalhos? 
O pássaro é uma flauta metafísica de uma política 
Mais poética? Assim, pois, cúmplices da esperança 
Batemos a foto de Tancredo e Risoleta 
Ele, uma bandeira de vida saudável 
Ela, o ponto de vista e de apoio.  
Logo depois a tarde fechava os flancos 
A chuva era farta e mansa e fecunda 
E bela e veraz na sementeira vivaz 
Da Fazenda da Mata, a duas pedras de toque 
A dois passos da cidade de Cláudio.

A CULTURA POPULAR

A degradação semântica da palavra folclore (notada por Luís Rodolfo Vilhena, no livro “Projeto e Missão” – FUNARTE 1997), associou-se a uma visão reacionária de sociedade e de cultura, que remete não só ao conservador mas também ao anedótico e até ao ridículo. Lembro que sentia essa degradação quando executava um projeto para o Instituto Nacional do Folclore (que eu preferia chamar de Instituto Nacional de Cultura Popular). Antes disso cheguei a sugerir, infrutiferamente, a troca de nome da Comissão Mineira de Folclore (da qual eu era membro efetivo) para Comissão Mineira de Cultura Popular. Acreditava, e ainda acredito, que o folclore estava saindo da esfera sólida da ciência social e entrando na instável agenda do turismo de lazer epidérmico. A propalada folclorização do negro, de Gilberto Freyre, não deixa nada a desejar da folclorização do povo baiano, de Jorge Amado. Ambos estão mais para o bizarro e o exótico do que para o antropológico e o sociológico. Creio que a cultura popular é tudo o que o povo sabe e vive na escola da vida, que é o mundo – que é um curso de longa duração e de bela vivência. Tem nele o Sistema de Crenças (as religiões populares e não-dogmáticas), a Cultura Material (o artesanato decorativo e o utilitário), a Literatura Oral (as lendas e fábulas, os mitos e contos, o cancioneiro das trovas e modinhas, as cantigas de roda e de ninar, as parlendas e desafios, os trava-línguas, as legendas de parachoques de caminhões, as mensagens mural e latrinária, os ditados, as fórmulas de jogar e de brincar e de namorar, os ditames comportamentais.... Quando trabalhei na referida pesquisa, enchi dezenas de cadernos com anotações de constatações temáticas, muitas vezes produzidas pelo raciocínio alinhador, outras vezes copiadas diretamente de fontes bibliográficas e algumas vezes de declarações de interlocutores ou de deduções de longas conversas temáticas. Abaixo algumas sobre as crendices sistematizadas da religiosidade popular de nossa gente: - O que se entrega para Deus: o mal sofrido, na esperança de que a vingança (a justiça, melhor dizendo) seja feita pelo poder mais alto e não por quem se reconhece impotente. - As almas tomam conta da roça, do gado, da família, da casa. - A magia, a bruxaria e a feitiçaria são elementos apócrifos da religiosidade, práticas esotéricas que perdem a ressonância social para ganhar a conotação do corporativismo afetivo e anárquico, uma espécie de subproduto da improvisação e da criatividade individual ou de grupos restritos. - As pessoas podem se transformar em animais, em lobisomens e/ou incorporar almas do outro mundo? As perguntas procedem , mas têm respostas evasivas. - As aparições sobrenaturais em horas mortas e lugares ermos são as dos fantasmas (sombrações), da fadas, das bruxas, dos animais indefinidos-inonimados, dos capetas. - Curandeiros famosos de minha terra: Zé Pereira, Noca, Toniquinho Serafim, Zé Gominho, Pedro Dona, João Norico, Zé Requel e Joãozinho Bela. - O homem tem muitas noções sobre Deus. Quando está triste e dependente, Deus é o Pai; quando se sente desamado, Deus é o Amor. Lidos alhures. - Spencer disse: “O medo aos vivos é a base do controle político e o medo aos mortos é a do controle religioso.... Vivendo em um ambiente de perigos, o homem primitivo povoa seu mundo de espíritos, demônios e espectros. ( ). Por mais que se trabalhem planeje e esforce, ninguém pode controlar o mundo que o cerca: um ser superior – Deus – existe implícito. Os espíritos e os duendes são os antepassados dos deuses”. - Freud observa que o princípio popular da magia é a crença na onipotência da vontade humana. As conexões são imaginárias e não reais. Se matamos simbolicamente uma pessoa, esta perecerá. Mas não sejamos tão cruéis, vamos apenas espetar espinhos em sua imagem (um boneco, uma foto) para que o inimigo apenas sofra e não morra. - Frazer garante que a magia é anterior à religião e que foi dela que a ciência nasceu. - Goldensweiser mostra que o elemento comum à magia e à religião é a aceitação do sobrenatural com o fervor da crendice. - O indivíduo se vale da religião para mitigar os temores, ansiedades e frustrações. A sociedade, para manter e fortalecer os laços favoráveis à estabilidade social. Os folguedos natalinos são ricos em poesia, em antropologia, em religiosidade. Encantam, revelam, afeiçoam, enriquecem a vivência social das camadas populares, preludiando e complementando as mensagens cristãs dos presépios e das chamadas missas do galo. Uns são mais regionalizados, outros mais abrangentes. O Reisado, por exemplo, tem suas implicações e derivações com as Folias de Reis do Sudeste e com o Bumba-Meu-Boi do Nordeste, o Rei dos Bois do Espírito Santo, o Boi de Mamão do Paraná e Santa Catarina e o Boi-Bumbá da Amazônia. São autos populares com os cantos e danças imbuídos de graça e de certa dramaticidade devocional, constituídos de episódios como os Pedidos de Abrição de Porta, a Louvação do Dono da Casa, a Louvação do Divino, as Marchas e Entradas na Sala, os Cantos da Ceia e os da Despedida. Théo Azevedo recolheu no Estado de Alagoas a seguinte cantiga de Abrição da Porta. Aqui estou em vossa porta Em figura de raposa. Não quero que me dê nada, pois o dar não é grande coisa. Aqui estou em vossa porta como um feixinho de lenha esperando pela resposta que de vossa boca venha. Constatações sobre o Artesanato; a sua origem é, inegavelmente, rural e remonta à arte primitiva dos povos mais recuados no tempo. Onde, se não na roça, o homem, não tendo como comprar as coisas, tem que fazê-las? Do artesanato utilitário: a fazeção de balaios, tamboretes, catres, bilhas e potes, moinhos e monjolos, pilões, peneiras, colheres de pau, cestos, samburás etc., ele acaba cometendo, como todos nós, pobres mortais, sua licença poética, e transige para a feitura mais elaborada e caprichosa do chamado artesanato decorativo: o vaso de argila, a imagem de santo em madeira, o risco e o bordado, que afinal perpassam na manufatura dos próprios objetos utilitários: às vezes o próprio cabo de uma enxada é embelezado em seu arranjo funcional e uma simples banqueta vem ornada de signos estéticos e cabalísticos. Esse gosto, esse exercício começa na infância, como uma ocupação espontânea e natural: a criança está constantemente criando coisas com os materiais encontrados na natureza: miniaturas dos artefatos e edificações, curralinhos no terreiro, casinhas de brinquedos, variantes de regos com bicas e cascatas, carrinhos de bois em madeiras e mesmo em frutas verdes, cavalinhos em cana de milho etc. Nas cidades, onde a intercomunicação com o meio rural é estreita, mas mesmo assim atuante, o artesão ainda é requisitado, só que agora não mais com a funcionalidade profissional de antes, mas como um simples biscateiro – pois as novas tecnologias substituíram, pela facilidade e não pela qualidade, a produção individualizada das peças de serventia e de enfeitamentos. A Literatura Oral: A literatura oral, que devia ser um fenômeno eterno e universal (porque integra, por dentro, o comportamento popular em todo contexto social) está, a cada dia e cada vez mais, perdendo seu espaço e sua vivência. A má distribuição populacional no planeta causa a inchação de algumas regiões e o esvaziamento de outras. Com a área rural despovoada e a urbana despida do antigo bucolismo das ruas e dos quintais, com os espaços público e particular infestados de gazes e barulhos, engarrafados de veículos e pedestres apressados e as casas entupidas de quinquilharias..., quem vai arriscar a cair no ridículo e contar estórias e lendas e mitos, se conseguir quem queira ouvir para depois debochar? E as crianças, como vão brincar de pique e de pião, jogar malha e bola, dançar e cantar o repertório peculiar da infância? Onde promover as inocentes e belíssimas cantigas de roda? Como cantar no meio de tanto barulho? E como brincar de passar o anel, de ficar na berlinda, se todo mundo está dentro de casa vendo as insípidas novelas de televisão? É uma pena, pois a literatura oral com suas trovas, cantigas, contos, lendas, mitos, provérbios e passatempos verbais e jogos corporais, aprofundava o sentido da vida, levava o cotidiano para uma esfera mais duradoura, exprimia os desejos do coração e do sexo, criando sucedâneos psíquicos do prazer, ou seja, a poesia, a religião, o sonho, a esperança e a noção do belo e do verdadeiro, através de tantos jogos verbais, cujo repertório é imenso e variado de acordo com as regiões do Município, do Estado, do País, do Continente, do Globo Terrestre. Anotamos aqui uma amostragem de enigmas e suas respectivas decifrações: - Amigo do coração/Soletrai, se ler sabeis/Nas quatro primeiras letras/ O vosso nome achareis (1). - Uma cerquinha de bom parecer/que nenhum carapina sabe fazer (2). - Uma caixinha de bom parecer/que nenhum carapina sabe fazer (3). - Quanto maior, menor se vê (4). - gado miúdo/curral redondo/não há quem conta/senão seu dono (5). - Todos me chamam mar/Meu nome não é assim/Soletre quem souber ler/E deite sentido no fim (6). - É verde e não é capim/É branco e não é papel/É vermelho e não é sangue/ É preto e não é carvão (7). - Sou uma mocinha bonita/Das perninhas delicadas/Ao som da minha trombeta/Jogam-me as bofetadas (8). - Qual é o lugar onde tem mais burros? (9). - Altas torres/ e lindas janelas/ Abrindo e fechando/ sem ninguém pegar nelas (10). - Outra caixinha de bom parecer/Que nenhum carapina consegue fazer (11). - De Roma me veio o nome/ E coroada nasci/ E os cem filhos que tive/A todos de encarnado vesti (12). - No alto está/No alto mora/todos o vêem/Mas ninguém o adora (13). (Respostas: 1 – asno; 2 – dentadura; 3 – amendoim; 4 – escuridão; 5 – estrelas; 6 – marfim; 7 – melancia; 8 – muriçoca; 9 - na água; 10 – olhos; 11 – ovo; 12 – romã; 13 – sino. O repertório das expressões populares consagradas pelo continuado uso é uma espécie de pronto-socorro do homem do povo em suas cotidianas conversações. Lembro-me de quando era menino lá em Marilândia e ficava nas portas das vendas e debaixo das árvores da rua, ficava horas e horas só pelo gosto de ouvir as pessoas comuns da vida do arraial e das roças adjacentes na propagação das notícias e na contação dos casos. Cada um tinha a sua linguagem repleta de maneirismos e até de neologismos. Cada um cultivava o gosto de falar porque sabia que os outros cultivavam o gosto de ouvir – porque afinal todos, um a um, eram ao mesmo tempo falantes e ouvintes. E hoje quando ouço os falares dos diálogos na televisão, fico bobo de ver como são diferentes (mais pobres?) do que os falares dos diálogos dos chamados homens do povo numa venda ou debaixo das árvores do arraial. Alinho abaixo mais alguns ditos populares em sua forma original e na respectiva tradução para o prosaico entendimento de nossos dias: É só pena que voa (tudo está acontecendo); deste mato não sai coelho (não precisa esperar nada de bom); o tiro saiu pela culatra (feitiço contra o feiticeiro); quer sarna pra coçar (procurar encrenca); está morto mas esqueceu de deitar (aparência ruim); tirar o pé do atoleiro (ganhar muito de uma vez); só tem o dia e a noite (pobreza econômica); já vai tarde (desprezo); dá nó até em goteira (sujeito ranzinza); bicho de sete cabeças (coisa complicada); macuco no saco (problema difícil de resolver); o diabo em figura de gente (pessoa má); nadar de braçada (facilidade); nem abanou o rabo (não se importou); quebrar uma telha (praticar sexo); vai com um pé e volta com outro (depressa); sangue de barata (passividade); vai com os que ficam (não vai); fazer gato e sapato (abusar); abraço de tamanduá (afeição falsa); arranca os olhos e lambe os buracos (ardiloso e velhaco); rasgar o cu com a unha (raiva e desespero); atolado até o pescoço (cheia de dívidas); é mais fácil Deus pecar (coisa difícil de acontecer); tirar uma alma do purgatório (praticar uma boa ação); rato da barriga branca (ladrão); arriscar um olho (aventurar cautelosamente); com um pé na cova (em má situação); virou um grude (insistência); está morta a égua (deu tudo errado); deitar o cabelo (correr); fogo de palha (alegria momentânea); munheca de samambaia (avareza); é só balangar o beiço que o cachimbo cai}; um tiro no tico-tico (muito esforço por coisa pequena); meu nome não é osso para andar na boca de cachorro (resposta a mexeriqueiro); aí é que a porca torce o rabo (na hora do aperto); quem já viu formiga ter catarro? (quem é pequeno para grande empreitada); quem já viu defunto enjeitar cova? (o esfomeado enjeitar comida); não faz nem pro fumo (quem ganha pouco); pode tirar o cabalo da chuva (pode desanimar); caiu no mato (rompeu compromisso); passou a manta (ludibriou em negócios); chover no molhado (repetir); comer barriga (perder oportunidade); quer que o mundo acabe em melado para morrer doce (pessoa acomodada); para espelho, tem tripa (quem fica na frente dos outros); um cu pra conferir (coisa difícil); lamber embira (estar na pior); botar a alma pela boca (ficar cansado); bater com a língua nos dentes (falar indevidamente); ver a vó por uma greta (passar maus momentos); sujeito amarrado pro rabo(bobo e bruto); trepar nas tamancas (dar bronca); não perde por esperara (promessa de vingança); levar na conversa (engambelar). E agora os velhos (e sempre novos) ditados: 1 – anda a penca à procura do cacho. 2 – cai o muro, levanta-se o monturo. 3 – Deus consente, mas não para sempre. 4 – dia de muito é véspera de pouco. 5 – em cima da queda, coice. 6 – em tempo de murici, cada um cuida de si. 7 – feliz é a água do chafariz. 8 – guarde o que comer e não guarde o que fazer. 9 – louvor em boca própria é vitupério. 10 – morre o cavalo para o bem do urubu. 11 – na boca do mentiroso o certo se faz duvidoso. 12 – no frigir dos ovos é que se conhece a manteiga. 13 – o diabo endireita o nariz até entortá-lo. 14 – o prometer anda nas ancas do dar. 15 – ditos loucos, ouvidos moucos. 16 – panela gorda dispensa o toucinho. 17 – pé de galinha não mata pinto. 18 – pelas santas se beijam as pedras. 19 – quanto maior a nau, maior a tormenta. 20 – quem adiante não olha, atrás fica. 21 – quando se procuram porcos, até as moitas roncam. 22 – quem com porcos se mistura, farelo come. 23 – quem de mel se faz, as abelhas lhe lambem. 24 – quem é infeliz cai de costas e quebra o nariz. 25 – quem gaba o noivo é o burro do sogro. 26 – quem não bebe na taverna, folga nela. 27 – quem não pode com a mandiga, não inventa patuá. 28 – quem não se enfeita por si se enjeita. 29 – quem não tem cabeça escusa chapéu. 30 – quem o alheio veste, na rua o despe. 31 – o relógio do amor não dá horas. 32 – são mais as vozes do que as nozes. 33 – terra movediça não cria limo. 34 – quem pergunta se quer, não quer dar. 35 – a aranha vive é do que tece. 36 – quem não tem couro não faz trato com cuíca. 37 – quanto mais abaixa, mais a bunda aparece. 38 – o sapo não pula por boniteza, mas por precisão. 39 – quem toma a carapuça é porque lhe cabe. 40 – praga de urubu não mata cavalo gordo. 41 – na cacunda do tatu o tamanduá quenta sol. 42 – quem não pode com o pote, não põe a rodilha na cabeça. 43 – mais vale um gosto do que um carro de abóboras. 44 – quem conta um conto aumenta um ponto. 45 – tirar o papo sem ofender o pescoço. 46 –uns gostam dos olhos, outros da remela. 47 – bate na cangalha pro burro entender. 48 – o peixe morre é pela boca. 49 – colher vazia arranha a boca. 50 – cumbuca de pimenta não perde o ardume. 51 – em terra de sapos, andemos de cócoras. 52 – o orvalho não enche o poço. 53 – quem fala do diabo, pisa no rabo. 54 – quem tem cabeça de cera, não deve pô-la ao sol. 55 – em lagoa de sapo mosquito não voa baixo. 56 – os paus: uns nascem para santos, outros para tamancos. 57 – Deus dá o toucinho, o Diabo tira o jirau. 58 – a coruja é que gaba o toco. 59 – urubu sem sorte atola até nas pedras. 60 – erva ruim geada não queima. 61 – do pau torto até a cinza é torta. 62 – a casca é que engrossa o pau. 63 – o papagaio come o milho e o periquito leva a fama. 64 – mulher e vinho fazem o homem errar o caminho. 65 – o alheio chora o seu dono. 66 – o bom julgador a si se julga. 67 – vintém poupado, vintém ganho. 68 – cavalo velho, capim novo. 69 – se tem formiga na escada, tem doce lá em cima. 70 – Deus não dá asa à cobra. 71 – quem cabras têm, cabritos vende.