segunda-feira, agosto 29, 2005

45 - PARÁFRASE DE DYLAN THOMAS

A velhice devia gritar aos quatro cantos
exorcisar as rugas e calvície, devia inflamar-se
contra os prenúncios da escuridão aproximativa
devia gritar aos jovens trepados nos muros:
não compartilhem mansamente da noite boa.

Mesmo os sábios que choram a impotência
de suas idéias, que não captaram na redoma
uma amostragem de sol diferente, mesmo eles
deviam, encolerizados, recomendar, indignados:
não compartilhem mansamente da noite boa.

Muitos homens de bem, agora arrependidos
porque se deixaram levar,agora sublevados
contra a opacidade do que era translúcido,
eles também deviam subir nas tamancas e advertir:
não compartilhem mansamente da noite boa.

E os poetas que alcançam a seta em pleno vôo,
eles que não descansam, que melhoram na verdade
a própria iluminação, eles que tentam mudar
o que já foi mudado, eles deviam estribilhar:
não compartilhem mansamente da noite boa.

E ao nosso pai do céu e da terra,
rogo que me abençoe ou amaldiçoe,
mas que não me deixe ser moderado,
que não me deixe aceitar a luz sem energia,
nem compartilhar mansamente da noite boa.

44 - A POLÍTICA BRASILEIRA

É a primeira vez que fico velho.
Uma simples noite (ou manhâ) de um ano
(l964), dura um século.
Não obstante o mudo clamor
Da sociedade vacilante e heterogênea.

Tarde da noite(começo de alvorada militar?)
A morte escurece o cenário
reduzido a um curral inescapável.
Indeciso entre o chamado e a interdição
bebo cachaça e fumo
(o cigarro que queima os lábios e os dedos do saxofonista).
O tempo farsante não pára.
É a primeira vez que me atropela assim.
Mas não entrego o que me resta.
Escrevo o epitáfio dos conservadores da miséria:
Conservaram quente o infernoOs filhos da puta.

42 - PUREZA E SEDUÇÃO (*)

Com aquela moça ali de perfil
(o riso de sussurros e covinhas,os posicionais
desenhos dos sentidos,ondas e curvas e halos
subindo nos cabelos densamente florestais
e a promessa de outros requintes em outros lugares
as pernas apoiadas em palavras de amor
- dois movimentos da paixão segundo Bach):
com aquela moça ali,pureza e sedução
como posso prestar atenção no que dizemos intelectuais
sobre os aparelhos ideológicos do Estado
e sobre a infinita reprodução da mais-valia?
Sei que são homens lidos e corridos
que talvez saibam mesmo o que dizem
sobre a injustiça social, a lesão dos trabalhadores
e o fim do mundo em guerra.

Sei muito bem .Mas com ela ali assim
apoiada na verde janela dos anos,

como posso acompanhar a linha dos raciocínios
e dar a minha opinião?
Sei que eles sabem onde têm os narizes
E que esperam de mim um juízo de valor...
Mas com aquela moça ali a reciclar os axiomas,
como posso despoetizar-me?
O que mais desejava agora, ora essa,
é voltar à juventude e apertá-la
e apertá-la nos meus braços.

(*) Paráfrase de um poema de T.S.Eliot, segundo uma tradução de Oswaldino Marques.

43 - O VOCABULÁRIO DAS ESFERAS

Beethoven compunha através de palavras?, pergunta
Thomas Mann
Ele o fazia no delírio da sofreguidão
na mansuetude das pausas interligantes
na contundência da gritante surdez
No meio das palavras profusas as
parcas notas nas linhas gráficas
o acompanhamento pianístico
a sonata para violoncelo em lá menor
as combinações tonais, os arranjos
ainda incriados pela humana verve
as palavras ao toque e no sopro espontâneo
a sonoridade paisagística das serras e vales
jardins e quintais da comunhão dos bens
a fuga dos temas no quinteto de cordas
o coro a seis ou oito vozes
a pintura a caligrafia orquestral
o anjo a dissertar, aceitar os pecados
o viés e o revés lado a lado
a escala cromática os solfejos os movimentos
a harmonia cósmica de Pitágoras agora
desfolhada em consecutivas orações e impropérios
conciliadas e repentinas orações e impropérios
as faíscas a bafejar as têmporas a chamuscar
os cabelos de apressadas cores
as vozes entrelaçadas dos bemóis e sustenidos
os acordes e acordos solos e duetos
(no vai e vem do eu tu ele o mundo)
o avanço solitário do trombone de vara
na rua da mais escura solidão
o azougue de chofre na retumbância do abandono
os ditongos as exclamações as reticências
a prosa enfim rimada e metrificada
na frase maior que a pauta
os enfeites do quarto de dormir e de acordar
lá onde paira de vez em quando
o empíreo a reproduzir-se vagamente
lá onde a parte do insondável adentra
mais e mais
nas confluências instrumentais dos traços caligráficos
das penas molhadas no coração e no cérebro
do fulminado e fulminante Ludwig van Beethoven
uma águia olhando para o sol de William Shakespeare
ali e agora onde
a luz dança na cor que se amontoa em outras cores
de Francisco de Goya y Lucientes
- é o ardor o embargo a íntima ovação
Do estatelado colhedor.

41 - OS SEIOS DE SUSAN SARANDON

lânguidos solertes entornados fofamente
na delgada tessitura de ondas e marés montantes
o lírico impacto
os numes tutelares da mãe e filha
da esposa amada e amante
bem ali diante da objetiva emocional
carnais de libido florais de bach
únicos no enlevo do momento
como se só ela os tivessem
na mesma proporção da beleza sensual
como assim ficaram na lembrança sensual
únicos como se apenas ela os tivessem
no transido momento tesional
ancovas dos arrepios arredondados
marombas sutis, as duas vozes da saudade
contrapontos antes durante e depois
os dois tons do afeto mais próximo
os dois olhos labiais labiosos labiados
lânguidos e derramados
na inteiriça pétala do desejo
no onanismo bíblico do desejo
ambos lânguidos e derramados.

40 - AS SEMELHANÇAS, AS DIFERENÇAS

Um rosto sempre lembra outro rosto
Daí a nossa simpatia ou antipatia
espontânea e instantânea.
Isso é comum em minha velha cinefilia:
quando vejo uma Adelina que me lembra Laraine Day
quando vejo uma Anália que me lembra Paullete Goddard
ah é luz verde no sinal de trânsito
está tudo bem, tudo bom!
Mas se quem vejo me lembra Bette Davis
depois dos 40, nos papéis de megera;
ou Jack Pallance nos papéis de bandidão,
ah é luz vermelha interceptante,
é o bloqueio das afeições!
Sempre creio que a fiança das semelhanças
é mais garantida,
desde que haja o crédito e não o débito
das diferenças:
a irmã ou a prima,
mesmo que por parte de Adão e Eva,
é melhor, muito melhor
do que a cópia em laboratório.

39 – MAR E ILHA

O mar da antiga Ilia
banha teus flancos, metáfora noturna
dentro do cinema
na porta de sua casa
macieira de anáfega
magnólia pumilia
maqueira de palmeira meriti.

Mar e ilha de seda e pérola.

Ela guardava as cores no bolso
quando tirava eram luzes
como num filme de delírios.
As linhas azuis fremem
Fazem duas juritis no rosto
As linhas azuis escrevem
Um novo sistema de carícias.

38 - PERDOAI

Ela vem da fonte com as águas todas
e deixa a fonte com todas as águas.
Assim a poesia entrega seus poemas
uma vez na vida e outra na morte.
Perdoai-me.

37 - A LICENÇA POÉTICA

A noite não é o funeral nem o sepulcro do dia,
é a parte azulada da vida vermelha.
Longe dali a sanidade açucarada, a face angelical
Da vexatória juventude.
Perto dali a boca no lugar do amor,
as escamas dos lábios e os interstícios
úmidos e pregueados,
a justaposição molhada e vermelha
(as secreções estancadas por enquanto?),
os estrépitos cadenciados dos fulgores
a forja das emoções subindo e descendo
sobre o braseiro da mais recente paixão.

Depois de dois dedos de prosa
ah já vinha
o prazer merecido depois de tanta sofrida beleza
ah já chegava
o prazer merecido depois de tanto sofrer a beleza.

Se a palavra estiver do lado que o sol bate,
é mais visível.
Se surgir do lado oposto ao da lua cheia,
é mais audível.
O amor não tem nada a ver com as outras pessoas,
Só com nós dois no momento dele.
A amplitude escorrega do contexto
A vida social é esparrodada, violenta
Os amantes precisam comer-se um ao outro,
de vez em quando
na bitaca do sossego.
Não quero falar (para não dissipar)
do instante em que ela tirou a roupa
(foi isso mesmo que ela fez?).

36 – OS BRANCOS VERSOS DA PROSA

é muito simples versificar a prosa
segurar os fios de cabelos como linhas de palavras
desnudar a noite em seus melindres
tomar o fôlego das frases nos períodos
brandir os versos no alto do silêncio
ir com eles na correria, na tropelia das ruas
de si mesmo
e com eles (alas de casas formando ruas)
justificar os grandes e pequenos crimes,
de outro modo inconfessáveis.

35 – A IMPRENSA DE DIVINÓPOLIS

Homens teimosos, de palavra fácil, arremessam dardos,
plantam os jornais no chão às vezes sáfaro às vezes fértil
da cidade que se espreguiça nos horizontes sertanejos.

Nomes satíricos e falazes (A Sogra, A Gazeta Sanitária),
bolados certamente por filhos mórbidos da vida custosa,
que sabiam do amargo salutar de toda face humana.

Procuram quem está na berlinda?
Brilham no escuro, escurecem na claridade.
Sabem que a floração dos escaninhos do poder
influi na tremedeira do medo alvejado.

Carregam os nomes de Sentinela e de O Clarão,
recolhidos nas dobras de uma bandeira
hasteada aos ventos contraditórios do município.
Assim cumprem um destino, adubam os campos,

enchem de perguntas os terrenos baldios.
Os nomes portadores de lírios como Diadorim,
Bilhete Azul, Arrebol, colecionam incerteza,
escrutinam os fazeres e as omissões cotidianas.

Caramba! Às vezes procuram a flor e encontram a ferida.
Tecem comentários enrubescidos,pisam na bola.
Às vezes se vendem aos poderosos? Ah, isso só aconteceu
quando os poderosos sentiram a necessidade de comprar!
Às vezes conseguem interceptar o malfeitor de colarinho
branco (sujo de sangue dos leitores?) em seus caminhos
e caminhões de roubos e contrabandos,
quase sempre provando, aprovando ou reprovando
o letal gosto d vida moribunda.
Às vezes, cansados de dar tiros em tico-ticos,
acertam os cabeções do crime organizado
(antes de redigiremos os próprios epitáfios, antes
de mudarem seus ramos de negócios).

34 – A CARGA HEREDITÁRIA (a propósito dos 500 anos do Descobrimento)

Quando pensar na História do Brasil
não pense como descendente do colonizador
não assuma nem negligencie o sentimento de culpa
Depois de tanto tempo é possível que Deus já tenha
lavado seu sangue, arejado sua psique
Por que se martirizar na penitência
daquela sangria desatada de um paraíso
logo-logo transformado em inferno?
Por que perpertuar a violência?

Tenha consciência, ó filho mórbido da vida
é mais salutar assumir a chaga do colonizado,
ser pentaneto do índio sem orelhas e sem bagos
ser tataraneto do afro na senzala no pelourinho na canga
Tenha consciência da realidade na travessia do milênio,
respire fundo, relaxe e olhe no espelho:
não vê nele, renascido das cinzas do lixo da História
o verdadeiro brasileiro?

33 - QUEM NÃO COMPARECE AO ENCONTRO DAS DUAS ALMAS?

A literatura brasileira
está ferida mortalmente em sua fluência
por duas lâminas afiadas:
- o pragmatismo da mídia
- o corporativismo universitário.
É melhor dizer logo:
ou você tenha luz própria
(seja um cara famoso e rentável)
ou tenha livre trânsito nas cátedras e academias
e
possa dar e receber bolsas à mão-cheia.
Caso contrário
seu livro não sairá da gaveta,
seus poemas envelhecerão
no ineditismo.

32 - BRUNA LOMBARDI

Quando irrompes da linguagem animal
- olhos líricos e coxas épicas –
sobre o fundo de canas e taquaras,
avivando a cotia e a maitaca,
transcendes a imagem, transcendes.

Musa de um Olimpo assaz reciclado
ou a própria Volúpia, mãe de Eros
- assim podes cantar os prazeres
em carne e osso e borboleta
- as dores mais doces e humanas.

E apaziguar a luxúria dos diabos
e aguçar a sensualidade dos anjos.

3l – PARÁFRASE DO SONETO 27, DE SHAKESPEARE (*).

Exaurido pelo dia a noite me alcança
no leito de alívio, na sombra do horto
-mas logo na mente uma jornada avança,
outra se inicia, finda a lida do corpo.

Assim na mente as premissas debandadas
a procurar-te vão, em romaria vão,
mantendo abertas as pálpebras cansadas
a fitarem o que o cego vê na escuridão.

Salvo que de minha alma a doce miragem
exibe teu vulto aos meus olhos sem calma,
o qual, como jóia suspensa na voragem

faz bela a noite que chega mais cedo
- assim de dia o corpo, de noite a alma,
No teu ou no meu proveito, não têm sossego.

(*) Do livro “Poemas Famosos da Língua Inglesa”, traduzido por Oswaldino Marques, editora Civilização Brasileira, RJ, l956.

30 - AMA-ME! (*)

Você aí, a passar na contramão: salva-me, ama-me ao menos por um instante! ama-me que estou perdido dentro de mim, sou uma tristeza na rua e nas entranhas, sou um trapo do que sobrou de mim. Ama-me mas seja realista e amena de ânimo, condolente, sabendo que ninguém me quer. Tenha os olhos fortes e doces, Para ver de perto meu coração. Ama meu cálice amargo Penetra-me além do rosto Ama-me Sou um lugar desmatado e erodido.

(*) Paráfrase do poema “Canção”, de Louise Bogan, tradução de Abgar Renault, publicado no livro “Poesia dos Estados Unidos”, de Oswaldino Marques, Edições Ouro, RJ, l956.

29 - UM E OUTRO (*)

É no sonho que ouço o chamado
(o grito simbólico de meu nome).
Num instante pulo da cama em silêncio,
Para não acordar o marido que ressona.

Encontro o chamador no quarto contíguo.
E agarrados formamos outro casal
Na escassa luz da madrugada.

Sua boca voraz me esvasia e me enche.
Como é bom ficarmos assim na cama,
O longo tempo a brilhara no espaço.
As gotas de leite escorrem no seu rosto,
O meu corpo flui e boceja na entrega.

Novamente a dormir no paraíso
(na área vívida das pétalas momentâneas),
Ele já dispensa minha companhia.
Então levanto-me diante da outra porta,
Retorno a meu ninho anterior
Para reaquecer-me no corpo de outro homem

(*) Paráfrase de um lembrado poema de Jill Hofman, poeta norte-americana, lido algures.

27 - A NUDEZ ACENTUADA PELAS VESTES

As mulheres
Os olhos verdes entre cipós igualmente verdes
Os cabelos dourados acima das roseiras podadas
Elas dizem tanto sem ao menos abrir a boca!
E por mais que se despem nos teatros e filmes
e nas chamadas revistas masculinas,
por mais que titilam nas escorrências,
algo delas ainda nos atordoa
(freudiano escândalo interior de nossa acanhada pessoa?)
na bela violência (por que estou a dizer violência?)
de umas nádegas nuas contra a parede de nossos olhos
míopes,
que vão ao sexo delas como uma língua
ou uma mão cheia de dedos.
Relutamos em aceitar a enternecida piedade
(tataranha?)
diante do par de coxas ligado pela fonte
do abismo das virtudes.
Refutamos a visão alumbrada dos seios elementais
(eu ia dizer alimentais?) e mesmo assim
olhamos novamente
para confirmar o enleio transversal do alumbramento.

O poema não é uma ressonância de reco-reco,
é o poeta no coração do reco-reco
não é um falatório de súplicas e lamentos,
é a esperança,
a indócil contigüidade dos afetos conflitantes
(dramática como o desforço inercial de um
Estômago vazio).
É assim que o passarinho surrealista canta nos dedos
De Paul Eluard e de André Breton.
Não há como discordar:
as mulheres, mesmo vestidas dos pés à cabeça,
andam nuas pelas ruas cotidianas,
aos sons do canto coral dos florais de Bach
- e perto delas assim vestidas e despidas
a própria lua nova é muito velha.

28 - OBRIGADO, DRUMMOND!

Nos quarenta mil anos de arte moderna
procurávamos no mineral país de Itabira
a imagem retroativa e persistente
da folha verde dentro da pedra madura.
Procurávamos com as pernas as mãos a cabeça
as excitações,os combustíveis para novas procuras
de novas excitações.

Sabendo que é na prática do dia-a-dia
que reunimos os elementos dos sonhos,
sondávamos as grutas do Levante Espanhol, da Lagoa Santa,
em busca do papiro das ansiedades, da tábua das leis
(o livro-messe, palimpsético, que transborda da estante,
Esparrama na casa, inunda a rua).
Insones e obstinados, procurávamos em vão.

Ainda hoje a sede da vida está nos cabelos, nos louros cabelos da fenícia Dido?
Não varre as almas para fora, ela me dizia,
ela , a drummondiana poesia.
Os arraiais circundam as distâncias
As sombras são os silêncios do sol lá fora.
Assim os mundos arredondam
Os arraiais universalisam:
Não varra as almas para fora, ela dizia.
O amora é feito de música, tem a resposta
antes da provocação:
dois dedos de doçura
e
oito dedos de amargura.

Mas por mais que os sacerdotes escondem:
os erros de Deus aparecem nas entrelinhas,
e quem nos penaliza sequer imagina
se podemos suportar tamanho sofrimento!
Quem chega primeiro à base do instinto
(vê que a rua projeta vários filmes ao mesmo tempo)
ganha um doce metafísico,
essa farta e mansa chuva de versos
que semeia adeuses e caminhos.
Obrigado, Drummond!

25 - GENEALOGIA

O amargo assédio das lágrimas .
A desventura em forma de depressão será uma doença
congênita?
Não, nada disso!, tudo não passa de vida errada,
de mundo errado
e de sofrimento conseqüente.

A fina película de vida airada que cobre a terra
está se afinando cada vez mais?
Os lugares da infância não cansam de chamar:
sentem saudades de nós?
Bem sei que se me aprofundar no horror
posso encontrar o maravilhoso bem escondinho lá
na tessitura dos senões e dos engodos
uma simples palavra que se escreve ou que se lê
é dramática,quase trágica
(a palavra que chora por dentro
no silêncio da dor reprimida).

Recolhi e colecionei as muitas dores
E os poucos prazeres dos antepassados,
a reportar ao trisavô em l798 até chegar aos trinetos
na virada do segundo milênio.
Só eu estive nos cartórios e paróquias, a manusear,
amarfanhar , empilhar as fartas dores
e s escassas venturas
ao longo dos anos e dos lugares
através do sangue dos nomes dos sobrenomes
até chegar às lágrimas que hoje inundam
o quarto a casa a rua a minha pessoa.

As lágrimas que amortalham e sepultam meus pedidos
e oferendas
aos que me precederam
no mesmo banho de lágrimas
de uma família humana que é a miniatura da ampliada
FAMÍLIA HUMANA.

26 – OS VAZIOS CINTILANTES

Falta a luz ou falta quem acende a luz?
é o Padre Zezinho, respondedor, que pergunta
a própria realidade estremece
acende e apaga nas vielas, quer saber
se falta quem sonha ou se faltam os sonhos
no coração.

Ainda subsiste em nós os resíduos da divindade?
onde?
nos bolsos desaparecidos do corpo?
nas pálidas reflexões da alma?
o passado avança no futuro –
os ritos africanos viraram feitiço no Brasil?
a própria fé a serviço da violência em todo mundo?
a nau dos insensatos!
o ergástulo dos excluídos!
a dessacralização da natureza!
é assim que se perde sem ver o amora convivial?

Vamos fazer dos olhos uma arma?
cantemos em voz baixa a metáfora
dos vazios cintilantes –
não temos noites a perder no derrame dos insetos -
a vida é uma criança:
gosta mas tem medo.

O ENGENHOSO FIDALGO

Como os velhos senhores dos arraiais mineiros que não comem nada amanhecido que pedem água à mulher na janela da casa não pela sede da água mas pela fome na mulher, Ele reassume a juventude, ainda que tardia Possuído de nova força e altiva lucidez. Pertinaz enamorado das virtudes Escanchado no trotão cochilante Ele, Tiradentes aqui, Dom Quixote lá Socorre os desvalidos e os injustiçados A investir contra os moinhos de ferro em brasa Às vezes moído de pancadas,os miolos minguados Mas nunca rendido aos vilões contumazes. Dom Quixote das manchas espanholas Tiradentes dos prados e montes e rio Um e outro, lá e aqui Afrontadores de perigos, amparo dos inocentes A repetirem a saga andante das proezas A relavrarem as terra já exauridas: Nenhum deles poupa a vida para ganhá-la (como Jesus em plagas mais distantes): Uma vez recalcados os revezes, alto lá! Lá no alto, encantados, a cantar a luta Do sonho que um dia será realidade.

23 - FELIZES, OS NORMAIS (*)

Só os normais, estranhos seres, são felizes
Não sofreram mãe demente, pai alcólatra, filho transviado
Não amargaram a casa dos outros
Não choraram uma doença incurável.

Esbanjando roupas e sapatos, eles
Vivem os inumeráveis rostos da alegria
Atravessam crises e epidemias incólumes
Eles que nasceram com a bunda para a lua.

Eles de carro-esporte e elas de fio-dental
São amados e copiados dos pés à cabeça:
Altos-funcionários, se querem um emprego,
Elegantes-pleibóis, se não querem.
São felizes como os estrumes e os chafarizes.

Que assim seja até não mais poder!
Mas que não estorvem os criadores de moradias
Os faladores de sonhos e sinfonias
Mas que não barrem a passagem dos que são mais loucos
Do que as mães, mais bêbados do que os pais
E mais transviados do que os filhos.
E que a esses réprobos devorados de paixões
Deixem ao menos um lugar no inferno.
É o quanto basta.

(*) Paráfrase de um poema de Roberto Fernandez Retamar, tradução de Marco Antônio Guimarães, publicado no jornal literário AGORA, emDivinópolis, MG, l968.

22 - QUANDO ME APROFUNDO NA CONQUISTADA FAMA (*)

Quando mergulho na história dos heróis
(guerreiros e conquistadores),
na grandeza de suas ações,
libertando povos, dominando nações
- não invejo Alexandre nem Júlio César.

Quando estudo a saga dos pensadores
(escritores e filósofos),
Na beleza de suas obras,
criando luzes para extinguirem as trevas
- não invejo Shakespeare nem Platão.

Mas quando ouço falar de dois amantes,
da felicidade conjugal deles,
de como através de vicissitudes e perigos,
de obstáculos e rotinas,
ao longo do espinhoso tempo,
atravessaram juntos a juventude, a maturidade
e depois os novos anos da velhice´
sempre juntos e leais,
“sem vacilações e afeiçoados se conservaram”
Ao longo do espinhoso tempo
- aí, sim, fico perturbado.
Até saio de perto para chorar,
Para chorar de inveja.

(*) Paráfrase de um poema de Walt Wiltman, constante no livro “Folhas de Relva”, tradução de Geir Campos, Editora Civilização Brasileira, RJ, l964.

2l - SÓ (*)

Menino diferente que eu era
não conseguia ver as coisas como os outros viam,
não podia tirar minhas conclusões das fontes
que os outros tiravam as deles.
Eram outras as origens de minhas tristezas,
outro era o canto que jamais destrancaria
dos porões e sótãos de minha penitência.
Os passados sofrimentos não passaram,
não passam nem passarão,
estarão sempre nas próximas moitas.

O que amei, amei sozinho.
A carga de sofrimento que carregava
só podia ser descarregada na sepultura?
Assim na infância e na juventude
(e na maturidade que não veio)
Ergueu-se no bem e no mal dos abismos
O cadeado de mistérios,
que um dia abrirá, apesar dos pesares,
libertando esta pessoa em forma de nuvem
que só só só se alterará
no amplo azul, como um demônio
a revelar que mesmo depois da morte
minha alma estará dentro de mim
no triste e solene sono no leito de vermes
- e assim, pois
antes que o pó ao pó retorne
ali estarei em paz – e as seguintes horas corrosivas
serão minha exclusiva companhia.

(*) escrito ao ler a antologia de Edgar Allan Poe, em tradução de Oscar Mendes e Milton Amado, edição Nova Aguilar, RJ, 2001.

20 - O SOM DE NEGROS EM CUBA (*)

Quando chegar uma das luas de teu olhar
ao som dos nativos de Cuba no Caribe
irei a teus lábios
escalando teu corpo de formas emboscadas.
Quando os pingos da água na folha de inhame
forem rosas de maio de doze pétalas cada
irei a teus lábios.
Irei a teus lábios
Pelos cinco caminhos da beleza de teu rosto:
os olhos, fonte de auréolas
o nariz, as abertas janelas
os lábios que comprimem e reviram
os dentes imprecisos e presentes
a língua, pétala clitórica, fita de palavras
imprevisíveis.
Irei a teus lábios
sempre digo que irei a teus lábios,
ó lenitivo das horas montanhosas!
ó manacá na serra das hortênsias!
Sempre a ler a caligrafia dos poros e rugas
irei a teus lábios
a seguir as incisões da água e do vento na pedra
(esse livro de folhas coladas)
Irei a teus lábios.
Sempre digo que irei a teus lábios
no calor temperado de folhas verdes
sedento das verdes águas e dos carinhos.

(*) Paráfrase do poema de Federico Garcia Lorca, tradução de Afonso Félix de Souza,em “Antologia Poética”, editora Leitura S.A., RJ, l966.

19 – PARA ANA HATHERLY, CORDIALMENTE

“O sangue é uma rosa líquida
que a si própria se persegue
Nunca chega ao fim
só pára de correr”.
(Ana Hatherly, em FIBRILAÇÕES).

O coração
é uma dorzinha no peito
oriunda de um afago ou de um machucado?
O que adorna a vida em todo tempo
não é o preenchimento dos vazios
é a querida e maravilhosa
dorzinha no coração,
que só ela salva o mundo da postergada
danação.

O coração
não é uma mera víscera:
é o olhar de quem viu
o passarinho verde
(impossível e tão visível).
É algo quente e doído
(nem libido nem cérebro)
é o amor sempre voltando.

Quando o amante quer o coração
da amada,
o que ele na verdade quer
é se bonificar.

18 – ODE A UM VASO GREGO (*)

Noiva ou filha do silêncio, recostada
no velho tempo renovado, a narrar
a tecer os contos em braçadas de versos
colhidos em lendas envoltas na folhagem
encarnados nas palavras de deuses nos vales da Arcádia
e de mortais nas fraldas das mineiras montanhas...
Mas quem são aqueles moços? e as moças relutantes?
Por que a invisível perseguição de uns
e o denodado esforço para escapara, de outros?
O que cantam as flautas e os pandeiros?
Por que tudo brilha tanto nesse transe?

As melodias encantam. E mais ainda as outras
que não ouvimos, além da flauta, tocadas
não para o ouvido corpóreo mas para o da alma.
Sob o galho de amora, que não pára de enflorar
um dos poetas não pára de cantara...
Ao lado o amante não consegue beijar
os lábios da amada, tão perto dele...
Que pena, rapaz, mas não te amofines:
ela te espera o tempo todo e ama-la-ás
sempre e sempre ela será bela como agora.

Felizes os ramos que jamais perderão as folhas
plantados serenamente no coração da primavera,
mais afortunado ainda é aquele flautista
a tocar suas inéditas canções de amor,
do amor venturoso que arde sem consumir-se,
que sobrepaira à mornidão cotidiana, a que
amolece o triste coração entediado e deixa
nosso rosto em brasa, a língua ressequida.

E quem são os demais, adiante, rumo ao sacrifício?
Ó sacerdote dos arcanos, a que sombrio altar levas
a pobre novilha a mugir para os altos da fé,
com os flancos sedosos cobertos de atavios?
Qual é o nome desse pacato arraial,
que erguido no alto da campina
(tendo de um lado o raio e do outro o mar),
esvasiou-se dos moradores na santificada manhâ?
ah lugarzinho querido, de ruas silenciosas,
nenhum morador que sabe porque está deserto,
nenhum retornará para dizer porque estás deserto!

É neste vasos colhido nos escombros de ouro
(de perfeito equilíbrio nas formas capitosas),
Que os homens e as mulheres rendilham a imagem
Dos pés calcando a relva de ramos trançados.
É neste vaso que a forma viva dilacera
nosso senso e gosto de eternidade...
Quando o tempo consumir os vivos de hoje,
Tu sobreviverás aos corrosivos tormentos,
Através da arte, nossa amiga, a dizer
que a beleza é verdade e que a verdade é beleza
- é tudo que sabe na terra
- é tudo que precisamos saber.

(*) Paráfrase de um poema de John Keats, tradução de Oswaldino Marques, em “Poemas Famosos da Língua Inglesa”, Editora Civilização Brasileira, RJ, l956.

17 – NUM CANTEIRO DE FLORES (*)

Esse lugar aí onde repousas
a dois passos do bosque escuro
onde o verde vivo da serpente assustada
é ouro vivo nas mãos da fada.
As trilhas que a alma segue à luz pendente
o pássaro arcaico das quimeras
tantos enfeites no chão trançado de sombras
Esse lugar sagrado, onde repousas,
tornou-se mais belo com o passar do tempo,
que até sofro em presumir, ái de mim!
que alguma parte de teu apaixonado ser
ficou infiel a mim aí
nesse lugar debaixo da relva, onde repousas.
Ou será que não estás mais aí e sim
num lugar distante, e já me esqueceu?
Ou alguém ao lado de teu coração te afagas aí?
E então? Por Deus, e então?
Uma sombra de folha beija teus lábios?
O raio de sol que penetra o seio da terra
Aquece teus pés e tuas mãos,
Mantém em serenidade teus meigos caprichos?
Os brincos de flores silvestres e o pálio
de auras e aragens e aromas bafejam o cordel
de teus meigos anseios?
Ou será que outro moço aí a teu lado tomou
o meu lugar e ama-te aí mais do que eu aqui?
Aí embaixo (como vou saber?) o intrometido
Não estará a enreda-la de palavras afetivas
Mais plausíveis do que as minhas?
Pobre de mim aqui, a pensar feridas e tristezas
Aqui neste lugar de sombras onde estou,
sob o qual docemente repousas.

As luzes que minha alma procura
estão nos olhos agora cerrados,
estão agora definitivamente lacrados
nesse lugar aí debaixo da relva?
As abstrações ardentes de teu corpo imortal
ornaram as paredes do jazigo, dilatando-as,
e a orquídea que espelha a tua imagem
pode conceber outra fé em teu amor?
E a brisa primaveril que vem do rio
pode arrebatar, parte por parte, minha lembrança
dos olhos de teu meigo afeto?
Ah, esse lugar aí debaixo da relva!
há muito ficou mais belo e afortunado,
tanto que me faz pensar, ái de mim,
que alguma parte de teu apaixonado ser
me ficou infiel aí
nesse lugar onde repousas.

(*) Paráfrase de um texto em prosa de Marie de France (ll54-ll89), citado por Will Durant, em sua História da Civilização (l2 volumes), traduzido por Monteiro Lobato, edição da Companhia Editora Nacional, SP, l955.

16 - A ARTE DE PERDER (*)

Perder é uma arte que temos de aprender: o que se há de fazer? já nascemos com a índole da perda! Perde-se rios de coisas, todo dia. As palavras que não dizemos na hora certa, o beijo que deixamos para depois. Aceitamos de bom grado o risco De perder a chave e a hora – muito mais que isso é a juventude que se foi. As coisas se perdem nas incertezas: O olhara de quem vai na contramão O lugar onde vamos passara as férias. Uma vez perdi o binóculo da infância, depois a casa e o quintal da avó (o porão misterioso, a mangueira assombrosa). Perdi dois seios bonitos na varanda, Depois a sequência do flerte arraigado Do amor que era mais que amor. A você, quantas vezes perdi, sem jamais ganhar? Quantas vezes perdi?! 

(*) Paráfrase do poema “Uma Arte”, de Elizabeth Bishop, em Poemas do Brasil, de Paulo Henriques Brito, Companhia das Letras, SP, l999.

15 - A IMPOSSÍVEL ESCOLHA (*).

Veio, com unhas e dentes, uma voz.
Seguramente de Deus ou do Diabo.
Que me disse: TEM QUE ESCOLHER!
Isso, e assim, me disse.

Mas à voz autoritária respondi:
NÃO ESCOLHO, SENHOR, NÃO ESCOLHO
Isso, e assim, respondi.
Tenho uma fome insaciável
Que reclama pão e metafísica
Que me leva ao alto da montanha
Para defender as moscas de luz.

QUERO TUDO, eu disse.
Quero o verso, quero o filho.
A Amazônia que não faz mal a ninguém:
Quero acima de qualquer ameaça.

Assim eu disse, claramente
ao Diabo, a Deus:
AINDA QUE ME PARTAM EM QUATRO,
EU NÃO ESCOLHO!

(*) Paráfrase de um poema de Humberto Constantin, poeta argentino.

14 - AS NEVES DE ANTANHO (*)

Quem me dirá em que país verde e amarelo a balada de François Villon ainda faz suas perguntas? em que lugar da terra aquela moça agora se esconde, ela que jogava as tardes em cima de mim? E onde estão as matas e os bichos de outrora? os ecos propalantes dos vales e redondezas? O casal de lobos debaixc do pé de jacarandá? e os luares de outrora? O verde mais antigo? as inventoras de albores e crepúsculos e noturnos? Onde estão as senhorinhas de antigamente? Onde a doce balada fala do amor perdido, depois de desestrelar o céu de tantas naves? em que ninho de abril a rolinha agora se exila? De onde o amor telefona sem nunca mais estar lá? de onde ele manda as palavras dentro de uma goiaba? Onde estão as moças da roça, agora tão sumidas? Onde estão as chuvas miúdas daqueles tempos? as tanajuras, os vagalumes, os lobisomes? A moça que beliscava minha alma visitou-me na reles lembrança nublada de outro dia? Onde estão o ar o cheiro a cor daquelas tardes tão repentinas e demoradas? E as neves que vinham nos sonhos, onde estão? 

(*) François Villon (l43l-l463) é o autor da Balada das Neves de Antanho, que li uma vez e jamais esqueci, a ponto de tentar a paráfrase acima.

13 - O EPITÁFIO PRECOCE DE VIVIAN CALLEJAS BAHIA

Mais uma vez
a piedade leva uma bala de fogo da violência.
Mais uma vez
a poesia perde o coração nos estilhaços da política

Ela adornava as virtudes humanas
cursava a estratégia de defesa da cidadania
lecionava a história da beleza
que ela própria era.
Ela que se perenizou na infância
Dos rudes e belos horizontes.

O delegado afirma que no latrocínio
Nada liga o criminoso à vítima.
Ela era o adorno de toda virtude
Um doce pássaro da juventude.
E eles? Filhos das unhas e dos ferrões
No mundo contundente, frio e metálico.
Lá estão nos retratos falados
Atrás das grades
Ou onde quer que estejam: o lixo a queimar no fogo que não se apaga.

12 - HUIDOBRO E HENRIQUETA

Assim falava Huidobro
poeta chileno da cordilheira e do mar:
não é apenas a natureza,
também tenho arvores rios montanhas estrelas.
Enquanto ele falava o poema se fazia
Em sua voz a queimar o vento litorâneo.

Foi assim que Henriqueta Lisboa
Nossa cantora das montanhas chuvosas
Captou dele as fecundas indicações
de estrelas domésticas
dos ossos azuis das pedras
dos vidros delirantes do céu.

Ele ou Ela?
Quem dança melhormente?
Quem é o poeta?
Quem é a poesia?

11 - À MEMÓRIA DE SEBASTIÃO BENFICA MILAGRE

A beleza é o prazer dos fazeres e dos feitios
é a sensação das idéias e dos ardores
A poesia é ver de perto o que está longe
o aqui e o ali nos tempos e lugares
Alguém atônito apalpa os negrumes
a solidão é a cidade dos amigos
É assim que de um momento para outro
o maravilhoso sobe na goiabeira
os tigres descolam-se dos quadros na parede
dando lugar, ali, à revoada dos passarinhos
Quantos poetas nas palavras de Sebastião Milagre
vão às esquinas procurar o que não perderam?
quantos poemas conversam na saudade das pessoas
que vieram da roça? Às vezes rezam no cemitério
depois cantam nas vozes mais distantes
depois voltam para as casas verdes da infância
e são novamente imbuídos de luz e energia...
Quantos poetas na poesia dele!
Quantos poemas na sede e na água!

As doçuras outrora assíduas repontam dos medos
e sombras, como diria Salvatore Quasimodo
no relance de suave mulher envolta
em flores fugidias.
Sempre a caminhar para o cemitério,
que é o nosso destino, nosso desterro,
ele entra na poesia que o ampara
e que lembra os quadros de Wu Tao-Tzu
nos quais os cavalos galopam para os horizontes
as folhas movem-se face à nossa respiração
o dragão voa para o céu, que vem a seu encontro:
assim ele caminha para dentro do poema
que acabou de escrever
como o pintor que entra para dentro do quadro
que acabou de pintar:
assim tanto um como o outro jamais serão revistos
nos lugares que tanto vivificaram.

10 - PARÁFRASE DOS PROVÉRBIOS (*)

Seis são as coisas que o Senhor agradece antes são sete as que comovem sua alma: o tatu que tanto gosta do buraco antigo os lotes de chuva alternando os oásis os cabelos cheios de dúvidas no lirismo do dia o desenho da lesma na areia dos caminhos as cores nos bolsos, que logo viram luzes as bolhas dos mistérios que chovem nas pedras a alma que é corpo na pessoa e no pássaro. Seis são as coisas que ao Senhor aborrece antes são sete as que sua alma abomina: a pobreza material, abusiva e arcaica os pássaros sem asas que fincam as garras o governo nacional que nunca teve juízo os pés que correm na direção do mal a violência das ruas que entra nas casas os deveres sem direitos dos excluídos sociais o caminho que volta, como um chicote. 

(*) Embasado no Capitulo 6, versículos l6 a l9, dos Provérbios da Bíblia Sagrada

9 - A LEMBRANÇA DE WILHELM REICH

Quando se chega ao campo ou à mata
O que se vê mais depressa
É a disseminação da libido em todos os sentidos
A longa ausência de neuroses
E de fisionomias cansadas
Nos seres e nas coisas.

Nenhuma árvore sofre a taxa de juros
Nenhum animal remói a culpa
Não há a preocupação do dinheiro
Tudo
É o próprio amor a céu aberto
No ar nos galhos nas folhas
Nos troncos no chão na relva
Nas águas verticais e horizontais.

Os vegetais em lento sussurro verde
Os paus vivos digerindo o sal da terra
As folhas abertas como flores
As capivaras os pacus os sanhaços
Tudo
Glorifica a função do orgasmo.

8 - A ÁRVORE DOS SONHOS (*).

Um dia a árvore dos sonhos inopinados
desabou na cabeça do escultor GTO,
que logo começou a vazar
o ouro das dívidas e das imaginações:
a dança dos ícones nas gravuras parietais
a agoniada prateira dos ex-votos
o balaio das miniaturas e das ampliações
a escalação dos totens, manipansos e penitentes
a montanha devocional das tribos indígenas
as efígies serôdias de Assubarnipal e de Arariboia
os perfis enfiados dos heróis da história-pátria
os ritos de passagem dos velhos arraiais
a acrobática peleja grupal dos roceiros.

As entidades espirituais escorregam de suas mãos
Em sombria, quase opaca luz dos transes
que anima os traços e relevos da matéria-prima
Assim
da fratura dos troncos avermelhados saltam
os guerreiros corporais nas rodas e labirintos
as etnias as classes as mandalas e oroboros
os símbolos imemoriais de nossa caminhada
É assim que ele tenta regressar à pureza
Que o quer, lá na frente.

E lá um dia os galhos e ramos da árvore
Atávica
Brotam em suas mãos primitivas e criadoras
Assim ele pode sacudir a sina (e para não endoidecer
nas horas traumáticas do dia-a-dia ), assim ele
expulsa os demônios do corpo!
Assim ele mergulha na pureza para saber
Que não existe erro na face da terra.

(*)Este poema dá o título e faz a abertura de um filme de Carlos Augusto Calil e Lauro Escorel, em l978.

7 – OS TRÊS NOMES DO GATO

Dar nome aos gatos não é tarefa fácil nem fútil.
Muitas vezes quando digo que o gato deve ter
TRÊS NOMES DIFERENTES,
olham-me de novo, julgam-me biruta.
Mas assim é, por mais que estranhem e gozem.
Primeiro o nome corrente, de uso da família,
que pode ser Poetinha, Alípio ou Conceição.
Depois o escolhido de pessoas refinadas
(extravagantes ou mesmo sóbrias),
como Menelau, Polonaise ou Pixinguinha.
Por último o mais íntimo e solitário,
que ele mais necessita para manter o orgulho,
esticar os bigodes, enrodilhar-se na cadeira
ou pular o muro como num vôo retilíneo,
que pode ser Diadorim, Caracóia ou Ana Lívia Plurabelle,
nome
que nenhum outro gato ostenta.

Mas além desses e acima de tudo e de todos
Há um nome especial a preferir
- e esse ninguém nunca saberá.
É o nome que nenhuma pesquisa pode descobrir,
e que só o próprio gato sabe,
e que nunca dirá a ninguém.
Assim
Se você ver um gato em profunda meditação,
Os olhos abertos mas cegos, as unhas em inocente repouso,
a razão é sempre a mesma:
sua mente está ocupada na contemplação de seu profundo
e inescrutável e singular NOME.

(*) Paráfrase (ou adaptação) de um poema de T.S. Eliot.

6- CLARICE LISPECTOR, DOIS PONTOS (*).

Clarice Lispector:
a perícia no deslinde dos paradoxos
a facilidde no fluir da assimetria
ela tinha uma vida bonita de se ver
pela janela dos anos interiores
ela escrevia bonito
porque era uma pessoa bonita de se ver:
numa raiz embelezada só podia crescer
e despontar as flores e as frutas
da prodigalidade.
Eis aí, morro abaixo,
alguns minutos pinçados aqui e ali
das horas de suas enigmáticas estrelas
em constante rodízio:
“cada coisa é uma palavra
E quando não se a tem, inventa-se-a.
Que não se lamentem os mortos:
eles sabem o que fazem.
A escuridão salpicada de ruídos molhados e bruscos.
Esse vosso Deus que nos mandou inventar.
Só sou verdadeiro quando estou sozinho.
Ela mal se conhece, nem cresceu de todo,
apenas emergiu da infância.
Quando era pequeno pensava que de um momento para outro
cairia para fora do mundo.
A piedade é minha forma de amar.
Que os mortos me ajudem a suportar o quase insuportável,
já que de nda me valem os vivos.
O pecado me atrai,
o que é proibido me fascina.
O silêncio que crio em mim é a resposta
a meu mistério.
Se não fosse a sempre novidade de escrever
Eu me morreria simbolicamente todos os dias.

(*) – Poemontagem do texto em prosa A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, Francisco Alves Editoras,RJ, l993.

5 - DEPOIS DE LER T. S. ELIOT

Parece Depois de certo tempo da velhice Que o passado assume outra forma de ser, Deixa de ser uma simples seqüência. Deixo que falem por mim as aves do terreiro, Assim eu pensava toda vez que chegava À casa de minha mãe, na roça, diante Da pergunta dela: “Por que está tão calado?” Até quando o ser humano agüenta o peso realista da violência social que o assalta nos dias de purgação, sem endoidecer? “vai e vai”, diz o pássaro. Mas o ser humano Não aguenta tanto realismo.

4 - UMA, DUAS, TRÊS ESTRELAS (*).

Barbara Stanwick (nunca o amor foi tão alegre).
Ainda bem não tinha começado a sorrir
e já sorria desde o outro dia
e quando acaso o riso findar,
ele recomeça na próxima cena.
“Deixa que o amor que já foi chama
permaneça na brasa”, ela diz, sorrindo,
sem capitular.

Deanna Durbin é o quindim da iaiá
ela agora(cinqüenta anos depois)
é a mesma namoradinha da américa.
Em mim porém ela terá mudado?
Eu sim, sei que mudei.
Ela agora está mais branca que morena?
mais loura que branca?
mais ruiva que loura?
Ah mas ela conserva uma certa negritude (magnitude?)
A luz sobre todas as outras cores.
Ah Deanna querida, quanto tempo não te via!
Dê cá o abraço
da recuperação do tempo perdido.

Foi bem ali, num verso da canção
que o amor ergueu sua linda face,
bem ali na linda face de Dorothy Lamour
bem ali, horas depois
ela cospe na cara do bandidão da fita.
Uma graça de contradição:
Uma cuspida na cara, vinda da boca dela,
Não era o que qualquer cinéfilo queria?

(*) Atrizes do cinema de Hollywood, que brilharam nas telas dos cinemas de todo o mundo nas décadas de 40 e de 50 do século 20).

3 – COMO DIRIA VINICIUS DE MORAIS

Na tarde feminina ela passa, a carregar
as cores, os sonhos, a libido,
a nova diva dos novos tempos,
tão à vontade!
Eva ontem, Ave hoje – bem haja, pois.

Mulher feia hoje em dia?
Nem ver!
O olhar que avança e recua, a doçura
da cabeça metida no infinito da manhã
da praia mais complexa, da rua mais simples.

As bonitas de ontem que me perdoem,
mas hoje não existe mulher feia.
Existe a que, isoladamente, não cuida
da pele e dos cabelos, da floração
de suas orquídeas do vitalício regalo
do prelúdio e do complemento, da comunhão.

Sexo frágil? Nunca mais!
colegas em tudo, mesmo na boa hora
de queimar incenso no altar de Eros.
Os grãos de pólen transpiram
mimos de vênus nos olhos e nos lábios.

2 – OS ENCANTOS DO TERROR

Notas de Um Leitor de Edgar Allan Poe (*).

O espírito cósmico paira
(é todo um sussurro de luz),
baixa e sobe e torna a pairar
ao sabor dos ares mansos e bravios
encarnando e desencarnando
nos seres vivos (vale dizer na vida planetária)
insuflando e amortecendo
na parte física da alma as meditações
: daí é que vem o peso mortal
Sobre os sonhos as árvores os telhados os gatos
Sobre a folgança lilás do sol sem nuvens
Do entardecer sobre o rio e suas matas ciliares.

A lua que vai pelos caminhos da noite
afasta-se dos ocasionais torpedos e ribombos
as vozes da ventania não encontram respostas
na montanha estufada
As folhas que crescem na palma da pedra
Os temores que brotam na sola dos pés...
E se a massa de éter que vem pela janela
pegasse fogo de repente?
Quem não pode despreender-se dos laços sociais
e ficar sozinho algum tempo?

Os círculos menores dentro dos maiores
: assim começa e prossegue a dança
do infinitamente grande dentro do infinitamente pequeno.
Desde sempre e para sempre lá estará
bem no centro de um e de outro o poeta
Edgar Allan Poe
nas escarpas das risonhas montanhas
nas veredas dos vales sombrios,
a contemplar a solidão e a natureza,
a contemplar-se.

E assim foi traçado o jardim sobre o corpo
Da jovem que dormia na areia...:
entre a água e a relva
o céu a florir, o rio a fluir:
assim como quem ama a vida
(só quem ama a vida pode ver
Os detalhes desse jardim).

(*) Deus (Baudelaire, em seu artigo sobre Poe, emprega a palavra Natureza em vez da palavra Deus) mostra-se muito enérgico e rigoroso com quem deseja extrair grandes e belas coisas. Foi assim com tanta gente ao longo do tempo, mas referentemente a Poe não deixou por menos: fez com que ele vivesse (sofresse) na primeira metade do séculos l9 justamente nos Estados Unidos da América do Norte, o país das astúcias do pragmatismo e das farpas do arrivismo.

O poema acima foi inspirado na leitura do livro “Edgar Allan Poe- Ficção Completa – Poesia e Ensaios”, tradução de Oscar Mendes e Miltom Amado – Editora Nova Aguilar, RJ, 200l).

1 - AS MÃOS DE DOSTOIEVSKI

A estrofe cintila quando fala, toda vermelha
Em toda casa repercute seu gorjeio
Depois a luz irrompe nas folhas do livro
Na abertura, a sombra que se fecha, cruzada
A piedade chove na narrativa linear
O amor sofre a descrição dos lábios
Assim ele ensina mais uma vez
Que a alma do homem é a mulher.

A noite inteira leio as mãos
De Fiédor Mikháilovitch Dostoievski.

Ser um pouco infeliz não faz mal
O gênio faz do tédio uma graça
Do escuro saem as auroras em bandos
A flor regada no sereno espeta as pétalas
No mastro de cocanha
Depois os raios cegam os relâmpagos
Como suportar as lágrimas do livro
Enquanto o riso tarda e não vem?

POEMAS E PARÁFRASES

segunda-feira, agosto 22, 2005

DELEITE

Ao ver no ar as pombinhas brancas

Lembro das palhadas de minha roça

Das tamboeiras remoídas, das codornas à meia-altura

Atrações que nem de longe se comparam à belezura

Da calcinha branca de Cyd Charisse

Quando ela roda a fortuna e assim sim

Puxa a dança dos paradigmas no jardim.



Nem o ar carregado da chuva temporã

O bau estufado de ouro e lembranças

O baralho de amores da sorte grande

Nada equivale ao relampiar da visão entre dois acordes

(as pernas celebram os êxitos mentais)

da calcinha branca de Cyd Charisse

que encobre os melindres, os repuxos, as curvas

que cobrem de amor o martírio dos homens

em cada avanço de luz na fruta delineada.


Nem a viagem pelas inseguras regiões da paixão

O favo de mel dos bons sentimentos

os artificios da rotação planetária

o pote a guardar o incenso do altar de eros

nem isso nem muito mais se comparam

feitura delicada e espalmadinha

da rósea calcinha branca de Cyd Charisse.


Quando ela roda a fortuna e assim sim

Puxa dança dos paradigmas no jardim.

PESSOAS CARISMÁTICAS

Uma famosa quiromante de Paris na década de 20, tomando a mão de Proust (fina, branca e imaterial como a descrevem os que de perto conheceram o escritor), disse-lhe: “Eu nada posso dizer, o senhor é que poderá descrever minha vida e o meu caráter”.

Nietsche também era assim portador de uma luz especial. Uma vez na feira impressionou-se com a velhinha verdureira, que não o conhecia nem jamais ouvira falar em filosofia, escolhendo no balaio os cachos mais bonitos e suculentos de uvas que ele ia comprar dela, mesmo sem escolher.

Na verdade os seres vivos, mesmo os da mesma espécie, não são exatamente iguais, sempre há um gato mais bonito do que outro , um cão mais inteligente na família, um pássaro mais cantador. O futebol é pródigo de jogadores excepcionais, selecionados em cada time. Lembro-me de ver Tostão correndo com a bola nos pés para dentro da área adversária e de repente a bola estava aninhada na rede, sem que percebesse o momento em que ele chutara: como se o chute fosse apenas mais uma passada na direção do gol. E o Ronaldo, o melhor do mundo? Se um monte de jogadores vai na bola no ar ou no chão só a cabeça ou os pés dele alcançam-na em cheio. E o nosso querido Alex do ex-Cruzeiro, que parece ter olhos na nuca, pois mesmo sem olhar ele sabe onde a bola está e onde vai mandá-la.

Um personagem de Edgar Allan Poe acompanhava o pensamento de uma pessoa depois que essa pessoa dissesse algumas palavras e calasse. Mas o Poe é um caso à parte (sobrehumano?). Charles Chaplin, outro dos luminares do século 20, cineasta fabuloso, músico, poeta, humorista de fama mundial, amado e aplaudido por crianças, adultos e idosos, foi maravilhoso em quase tudo, menos num particular que manchou um pouco sua biografia. Mas isso é facilmente debitável à parte de carne frágil da natureza humana e à chamada licença poética por tantos cometida constantemente: talvez ninguém tenha dito, mas eu digo: ele foi, além de todas as maravilhas de sua pessoa, um conquistador barato de mulheres caríssimas. Seu sogro, Eugene O’Neil, outro gênio da dramaturgia moderna, odiava esse lado pegajoso dele, o de ferir as pessoas próximas, mesmo brindando toda a humanidade através de sua arte excepcional.

GRÃOS DE PÓLEN 0

Amar é dar o que não temos a quem não quer, Lacan? Lacan Lacan, Você também acha que é preciso exercitar a imprecisão, excluir o óbvio, navegar em águas mais turvas? Todo poeta é uma espécie de narcisista cego? Só o belo enxerga a beleza nas névoas da obviedade, sem se limitar nas cercanias, de olhos sempre abertos? O filme a rolar na memória, teimosamente: A memória é um filme interminável, um lugar onde o invisivel não se faz de rogado para mostrar-se, amplamente? o lugar engalanado e/ou despido. Aquele fotógrafo cego que a mulher dos sonhos na lua, as flores da realidade na lua... sei de mim que nunca ví o mar pela primeira vez, como todo mineiro que se preza, estive uma vez na praia de copacabana, mas estava atordoado, só via o que estava dentro de mim (vísceras em fogo)... e quando o ver pela última vez, estarei apaziguado, em boas condições de vê-lo inteiramente?

A FLOR DA MONTANHA DE JOYCE

Quando ela vem onde espero
é o céu que na terra se funde
é o dentinho de leite
a ruguinha na fronte
a mecha de cabelos nas costas
o cheiro suado do amor
o cheiro suado do amor.

Se morde ou lambe os beiços
se coça bunda sem adereços
não sei o que acontece
nas campinas da infância
nos ocasos posteriores
na instância da pressão alta.

Beijaria suas axilas e virilhas
suas maminhas
seus grandes e pequenos lábios de mel
aspirando
todos os perfumes da súbita primavera.
Beijaria, sim, sua bunda
beijaria , sim, esse seu outro rosto
a redondidade sedosa escorregadia
beirando os róseos lados do declive sem fundura
a redondidade um tanto ou quanto autônoma
como se furtivamente desmendasse
do resto do corpo, agora empertigado.

A linha de luz nos pés dinâmicos
o volume de oferendas nas mãos
as palavras
audíveis e legíveis do olhar
a lícita a tácita revelação
repentina e prolongada
do início e o fim de um esclarecimento
interligado a rutilantes obscuridades
sentimentais....

TUDO DE BOM MESMO

eu me desejo e te desejo oh
ó lúbrica flor da montanha
da ínvia dublin de james joyce
a verve a vulva a cútis
o inexplicável cheiro da libido
a espiritual carnalidade do fervor
as tronqueiras do caminho, as ramificações
os planaltos e planícies as esfericidades
as peripécias
nos contornos e arredores a sede
antes de entrar nas bacias e baias
nos remansos e correntesas
tudo de bom numa pessoa
os mundos e fundos da posse
instantânea e permanente do imorredouro
deleite
ave vênus calíope iracema
dos grandes e pequenos lábios de mel
ave maria ali bem de perto
cheia de graça, que me perdoe
se abro a janela oculta (proibida?)
para jorrar tua luz na minha obscuridade
e assim momentaneamente para o resto da vida
ver e ter o paraíso

O HOMEM COM A ENXADA

Assim eu via o homem com a enxada no eito,
naqueles tempos, naquelas palavras de Edwin Markhan (*):
vergado aos tonéis do tempo, ele se vale
da ferramenta que é seu corpo e fita,
desencantado, o vazio circundante.
A velhice prematura mudou seu rosto,
Que ainda sofre as devastações dos maus tratos.
Quem foi que sufocou sua indignação,
que máquina o amansou no roçado da fazenda?
quem assim descoloriu seus olhos?
quem apagou o clarão de sua mente?

É este o ser que Deus criou para espelhar a beleza
de Sua imagem, a verdade de Sua semelhança?,
para proteger os elementos da natureza
e no caminho das estrelas aventurar-se?
É esta a criatura destinada a captar o tempo
e esgota-lo, sem esgotar-se?
É este o sonho de Deus,
que virou o pesadelo de Deus?

Da sacada ao último vórtice do inferno
não há visão mais terrível do que esta
mais prenhe de denúncias contra o erro
mais prenhe de presságios contra o abuso
mais prenhe de ameaças contra o mundo inteiro.

Um abismo se abre entre ele e Platão.
O que vale o frêmito das plêiades em face
do seu labor inócuo e escravo?
E mesmo o rasgo alucinado da aurora
e a poética gestação das rosas?

Por esse vulto sem aura os tempos repressivos
espionam. E, esquálido a lutar no eito infinito,
ele é o exemplo vivo das vivas distorções.
Por seus lábios murchos e descorados
toda a humanidade traída e deserdada
clama surdamente aos juízes da terra,
num clamor com o timbre da profecia.

Ó empresários e políticos de toda parte:
o fruto de vossa gestão é esse ser encarquilhado,
quase monstruoso ao despedaçar-se?
Quando devolvereis a ele a humanidade,
a seus olhos a luz, a seu espírito a substância?
Quando a música entrará de novo em seus poros
e os sonhos em seus desejos, desagravando
as infâmias, as perfídias, as desgraças?

Ò tecnocratas desumanos do planeta:
como o futuro se dará comesse homem,
quando com ele, num crepúsculo, defrontar?
Que respostas terá para suas perguntas, quando
a revolta se tornar um ciclone abrangente?
O que estará reservado aos privilegiados de hoje
(os mesmos que o reduziram à última baixeza),
quando esse pobre homem combalido,
rompendo o mutismo secular de tantos outros,
replicar bem alto e forte?

(*) - Edwin Markhan (l852-l940), poeta norte-americano, escreveu o poema “O Homem com a Enxada”, depois de ver o quadro mundialmente famoso de Lillet. O texto acima é uma tradução livre, calcada (em termos de paráfrase), numa tradução de Oswaldino Marques, publicada na edição bilíngüe de “Poemas Famosos da Língua Inglesa”, Editora CivilizaçãoBrasileira, Rio de Janeiro, l956.

O DIA DAS MÃES

À Elaine Guimarães Teixeira e Elaine Guimarães Coimbra.

Primeiro, até quando me lembro
Veio Isis, dama dona deusa
E com ela o Egito tem seu encanto até hoje
Apesar dos faraós e dos desertos.
Depois, agora digo como testemunha ocular
Vieram as gregas e troianas, madressilvas madrigais
O lado feminino que pontificava no escuro
Que brilhava na demanda das atribuições....
A primeira mãe, antes de mais nada era a Noite
A deusa das trevas, a filha do Caos
Que logo arrumou as coisas e os seres
E com o nome de Eulália passou a ser
A Mãe do Bom Conselho e depois surgiu
A Terra, mãe de todos os seres, de nome Cibele.

Assim rezam as epopéias e os idílios da mitologia:
Um deus imponente aqui
Uma deusa diademada ali.
E das deusas de anteontem chegaram as de ontem e de hoje:
De carne e osso
De bilis e alma, libido e fulgor lilás
Aí então é que surge
O novo nome do amor, agora humano:
O drama no palco e no bastidor e a temporalidade
De outras cenas menos amenas:
O destino de Jocasta, a coragem de Antígona
O ciúme de Dejanira, a sedução de Helena
O adultério de Clitenestra, a morte de Efigênia
A vida de Penélope... e Hecuba e seus cinquenta filhos troianos?
A viuvez de Andrômaca...
e a rainha Ônfale que embonecava Hercules?
As sacerdotisas sibilas, a fada madrinha
A maga de todas as horas e lugares
A sombra familiar da caseira folhagem
A beleza em suma, em pessoa
As periantadas estações do ano bom
A Mâe de Jesus
A Nossa Mâe.
A Iara ah iara das águas mais puras
A deusa mesmo ali na outra encosta
A deusa mesmo ali na outra encosta
A nossa bela e sofrida mãe indígena
A nossa matrilinhagem amerindia
Manancial de nosso espólio genético
Ontem deusas hoje simplesmente divinas
Hoje completamente mulheres
A fonte magnânima desvelada
A sereia mesmo ali, quase ao alcance das mãos
A Madre de Deus e dos Filhos de Deus
A matrona mandona
A dar a luz que recebeu de outro mundo....
De minha parte, a resvalar na Genealogia
Ora pois, cito os nomes queridos:
ROSA ANGÉLICA DA LUZ
Mãe de minha tetravó
ANA JOAQUINA CÂNDIDA DE CASTRO
Mãe de meu trisavô
JOSEPHA MARIA DE JESUS SOUZA PINTO
Mâe de meu bisavô
MARIA ARCÂNGELA TAVARES
Mâe de meu avô
MARIA TEREZA DE JESUS BARRETO
Mâe de meu pai
ISOLINA GONÇALVES GUIMARÂES
Minha Mâe
INÊS BELÉM BARRETO
Maê de meus filhos.

Ora pois, pois é, estava dizendo:
A sobrevivência e a perpetuação das espécies
São obras e graças da parte feminina
De todos os seres vivos.
0IA DE JESUS SOUZA PINTO
A deusa mesmo ali na outra encosta

DIAMANTINA

Edificada sobre a rocha preciosa a cidade chega aos poucos de longe As crateras lunares aqui despenhadas dão a ilusão de ótica do sim e do não como certas palavras de certos olhos O frio impessoal dos horizontes: cada arrojo é uma vontade diáfana cada casa é uma miniatura de igreja Os olhos abertos da paixão, esculpidos nos beijos apenas aproximados Os olhos verdes e amarelos, esculpidos nos adeuses de cada esquina fatalista Luas e mais luas pousadas nos galhos das pedras apontam seus brilhos e grupiaras A manhã que agora estala nas paredes estava aqui e ali desde o outro dia E o que vem depois já está na lembrança.

DESENCANTO (1946),

de David Lean (roteiro de Noel Coward), com Célia Johnson e Trevor Howard.
Não é só o amor que importa, mas também a auto-estima e a decência... Se isso ocorre, ocorre como o início do fim do amor. Isso para que ele não se torne algo sórdido, amargo e culpável por outras misérias e aborrecimentos. Os dois, Célia e Trevor, ambos de meia-idade, um tanto amarfanhados na vida corriqueira em monótono desalhinho. O jeito é mesmo partir ou ficar e esquecer. E depois lembrar os momentos felizes que voltam na memória e não mais nas atividades presentes e futuras. O desencanto é um sinal dos tempos de cada vida. O filme é isso, muito isso. Uma história de amor e desamor, igual à tantas outras, que não são assim contadas por uma mulher enquanto o marido faz as palavras cruzadas numa revista.

CONCEIÇÃO DO MATO DENTRO

As nuvens são mares suspensos
as procelas são outros mares, de outros lugares
A igreja despenca do Morro do Pilar
sobe ao céu no Largo do Santuário:
tão bem terra-a-terra nas alturas!
Alphonsus Guimarães é um poema de si mesmo?


A luz nasce dos escuros contrariados
A rua tem a música da pessoa que anda nela!
Tem o ponto de vista das serras circulares
Tem o descortínio das aberturas sinfônicas
Os batimentos cardíacos das simetrias bifurcadas
Todo aquém dos limites, além dos contornos.
Joaquim Soares Ramos é um poema drummondiano?


Os moinhos de água esfarilham milho e ouro
nos espigões amaciados por troncos de braunas
A vida e a morte trocam de lugares
na Serra do Cipó, no Pico do Itambé?
Alguém fala por mim do lado de lá
como se me conhecesse de outras plagas e de outras eras?
O bem e o mal perderam seus valores?
Nas ruas mentais as casas são ninhos?
José Aparecido de Oliveira é um poeta na política?

ALGOZES E VÍTIMAS

A Incansável Violência

Alguém dizia, outro dia, que a nossa cidade estaria mudando de nome para espanha, significando o lugar onde se apanha tudo que se vê. Os dados estatísticos devem ser alarmantes, e não apenas os estatísticos: basta andar pelas ruas para se correr os perigos do assalto, da agressão, das unhas e dentes da violência de ação e de situação. Nem é preciso ir longe para presenciar: basta considerar as incidências no bairro, na rua, no quarteirão. Todo mundo está enlouquecendo? Chegamos ao ponto crucial previsto por Bernanos da possessão do mundo? Deus que nos livre e guarde. O Vereador Edson Souza, um batalhador incansável a favor do bem estar social da população, promoveu uma reunião para discutir, examinar e remediar a peste do incessante recrudescimento da violência na cidade, onde até os câes de rua avançam gratuitamente nos transeuntes, e os moradores sofrem a iminência da agressividade do público e notório e impune desrespeito aos seus bens físicos e morais. È uma espécie de retaliação dos excluídos associada à desmoralização pura e simples das pessoas descorçoadas e desenraizadas? E aí, o que fazer? Foi pena não poder comparecer à reunião promovida pelo Vereador Edson. Precisava saber o que as pessoas pensam a respeito do porque da violência , o como e quando erradicá-la. A questão é difícil, mas às vezes de onde nem se espera é que vem uma solução pragmática e não simplesmente utópica como as teóricas que inutilmente acalentamos anos a fio. Não pude comparecer, mas penso que diria, na oportunidade, o que escrevo aqui, que é preciso promover uma campanha de alerta geral nas 24 horas de cada dia através do engajamento comunitário, principalmente das pessoas-alvos, contra os facínoras que instauram o terror para refestelarem e à vontade agredirem, roubarem, contundirem e matarem sem dó nem piedade, visando unicamente a obtenção forçada dos bens pecuniários (caros e até intérditos à maioria indefesa das vítimas reais e potenciais). Essa mobilização teria que fundamentar-se na conscientização da instabilidade social, da insegurança, do medo de viver hoje em dia das pessoas pacíficas e inofensivas. Conscientização no sentido de debitar esse medo quase pânico que assola os redutos residenciais de toda parte aos verdadeiros responsáveis pela situação criada: os potentados da classe dirigente, ou seja, os empresários e os políticos gananciosos. Quem a não eles tem o poder de instaurarem esse clima de guerrilha cotidiana? A ganância de uns, a corrupção de outros, farelos do mesmo saco no lauto e diarréico repasto de grande parte desses atuais chefes de uma humanidade horrorizada. Mas como ficar livres desses artífices e promotores de tanto holocausto, de tanta hecatombe, do apocalipse que parece já ter chegado? Eis a questão mais crucial. Adendo: Papa João Paulo II:A santa imagem dele realça o valor do patriotismo que não leva ao nacionalismo reacionário, mas sim do patriotismo que começa no amor da pessoa, deriva para a família, a sociedade, a nacionalidade, a humanidade (universalidade). Mas ele não pregava a generosidade excessiva (que pudesse, por exemplo perdoar a pedofilia) que leva à perda do pudor, mas sim aquela que repugna o egoismo excludente e violento. A piedade em todos os níveis da latitude e da longitude leva à poesia, enquanto que a política, dissociada da piedade, só pode levar à violência de ação e de situação, uma mais cruel, a outra mais gananciosa, ambas letais para a alma e o corpo das criaturas sob a face da terra. O espetáculo significativo na Praça de São Pedro, durante a agonia, as exéquias e a missa em sufrágio pela alma dele: nenhuma cara feia na multidão, nenhum dedo em riste, nenhum empurrão, todo mundo seguramente plantado em sua circunstância, amadurecendo em si os frutos da boa convivência dos seres humanos conscientizados da verdade e da beleza do testamento cristão do benévolo amora de uns aos outros em todos os círculos e quadrantes da humanidade. Exemplo edificante para nós outros, habitantes das partes planetárias mais deflagradas pelo interminável tsumani da coerção, do repúdio, da odiosa causa das hecatombes, dos holocaustos e do apocalipse em andamento nas vias sangrentas da transitoriedade caótica dos degradados, filhos de Adão e de Eva.

A DOCE GUERRA DOS OLHARES

a doce guerra dos olhares femininos
é uma forma de paz social
eles são deliciosamente verdes quando passam
esticados e fúlgidos
negros no semblante consentido
a algo que entristece a portadora
castanhos sempre lindos
ou azuis mais ainda
quando passam e quase me levam
dentro de suas vestes em fogo
e há também o recatado, de viés
que não sabe o que dizer
(a procura de amor?)
e há o inquisitivo a presenciar
a exigir logo-logo a resposta
de persuasivas perguntas
e o meramente insinuante
longe-quase-perto,
que se aproxima
ao distanciar? E os nomes de cada um?
são os mesmos de sua dona?
todos bíblicos e nenhum jurídico?
os de Ester já passaram ou vão passar
ao largo de minhas expectativas?
os de Maria assás ressabiados?
Os de Judite impositivos, requerentes?
e de Sara inebriantes? os de Débora?
e os mitólógicos de Calíope, de Afrodite?
e os meramente humanos e não obstante
completamente divinos?
eles me cercam para agredir e abençoar?
absorvem , atravessam, anulam
momentaneamente...
Que resposta devo dar a uns e outros?
sou apenas um alguém sequioso e pasmado
que não sabe o que fazer
nesta festiva chuva de olhares
abençoadores...
...e aquele que vem de longe,
que é apenas e sobretudo ele mesmo
no vácuo do tempo-espaço, que fulge
mesmo na dormência e na distância:
é o que há de melhor no mundo?

A FAZENDA DA MATA

Ao Jota Dângelo.

A estrada de terra, ladeada de sucupiras e jatobás
Na curva a sombra úmida dos muros inamovíveis
Aos poucos o sol dissolve o verde circundante
Chovia fino e logo chegamos ao pátio da Fazenda
As flores recebem os jornalistas sequiosos
(ser um pouco infeliz não faz mal a ninguém)
O vento fazia das folhas um quintal de clorofilas
As mãos abstratas acariciam as crinas da encosta
Aqui e ali esculpem signos e promessas no rendado
de relvas e de pedras decorativas
A orquídea pendente abençoa as pessoas
O próprio ar da tarde é mais afetuoso.

O sonho de tudo nas suas conformidades
está nas espigas do paiol, condensadas
As ações viáveis partem daqui, agora?
Os poentes são nascentes de orvalho?
O pássaro é a flauta metafísica de uma política
mais poética?
Assim, pois, cúmplices da esperança
batemos a foto de Tancredo e Risoleta:
ele, uma bandeira de vida saudável
ela, o ponto de vista e de apoio.

Logo depois a tarde fechava os flancos
A chuva era farta e mansa e fecunda
e bela e veraz na sementeira vivaz
da Fazenda da Mata, a duas pedras de toque
a dois passos da cidade de Cláudio.

sábado, agosto 20, 2005

O ALMEJADO INESQUECÍVEL

Qualquer coisa impressionante, pessoa bonita, fato importante, reclama letra e música para sua expressão. Melhor dizendo: o que precisa ser enfatizado exige o recurso do verso declamado, cantado ou pelo menos escrito. É por isso que todo adolescente, feminino e masculino, tem seu caderno de anotações e lembranças dentro da pasta de seu material escolar. Na pausa dos bulicios e entrevistas e reuniões, ele olha para os lado e não tendo ninguém nas imediações, ele passa a cometer suas auto-confidências, em forma de frases poéticas ou de versos às vezes prosáicos, mas insuflados de intenções de traduzir o sentimentalismo que o rói por dentro e que só a poesia da música ou do poema pode exprimir e desafogar.
A Música Sem Tocar.
Requisitada pela precisão do desejo, a música ainda original e inédita, vem de fora para dentro nos arcanos das inconcebidas efusões, e lá bem na medula do fundo começa a esvair sem ganhar corpo e consistência, a reclamar o arquivamento na memória mas não sem antes extravasar-se nos versos da expressão. Aí só o receptor cuidadoso e equilibrado, paciente guardião das excentricidades, só ele saberá manter a absorção e quem sabe domá-la, sistematizá-la numa composição pronta para bater as asas nos céus de outras pessoas, materializá-la em eflúvios ao mesmo tempo concretos e intangíveis.

O Cinéfilo
Às vezes fico a rememorar minha adolescência em Belo Horizonte.... A tentação noturna do cinema me viciava? Apegado de tal modo ao escurinho das telas de projeção que não conseguia mais viver sem os outros mundos e as outras vidas, fazendo de conta que tudo aquilo participava dos círculos e quadrantes cada vez mais familiares? De posse de fantasiosas experiências, eu me abstraia, arrebanhava novas feições e sentimentos e assim quase involuntariamnte me estonteava, inventariava novas heranças? Era assim que aprendia a viver a vida dos outros ou apenas embaralhava o carteado de uma infinita e indevida algaravia? Tantos modos de ser, tantas expressões concomitantes! Tudo tão humano e a fazer de mim o ser múltiplo, onímoda, onisciente, inconsciente, espavorido, fragmentado no redemoinho? Estava, ainda creio, arrebanhando adesões, consonâncias, acréscimos, ampliação de retratos, diversidade de empenhos e funçõess, ficando mais rico de citações, angústias, hilariedades, mas.... Mas o eumesmismo de mais tarde viria cobrar tanta dispersão, tantas adesões desconjuntadas? O que seria de mm se depois, transferido de mim, não conseguisse mais encontrar-me no emaranhado das dispersivas, diversificadas personas? Era tudo uma brincadeira muito séria? Mas não é assim mesmo o apego ao que se ama denodadamente? O que mais queria era entrar na redoma do filme, refestelar na poltrona,ouvir um pouco de música ver a minha vida nas outras pessoas, nos outros lugares.

O Almejado Inesquecível.
Tatear as sardas, beijar o nariz
Folhear o livro rabiscado pelas crianças da mesma infância
O olhar de Janet Leigh fixado na estrada noturna
Que então éramos
As luas potenciais de um segredo
Um caso de amor jamais contado
O meigo beijo na virgem nuca de cabelos revirados
O furúnculo brotando de uma das nádegas de Marilyn Monroe
A viva lembrança de Patricia Neal no bar e restaurante coroa
O sexo passando noite e dia na janela dos anos:
Se não passasse, ah, me mataria.

BANHO DE CIVILIZAÇÃO (*)

Voltei de São Paulo com as mãos doendo de tanto bater palmas nos sucessivos espetáculos públicos da melhor qualidade artística possível. Também não é para menos. São Paulo é a quarta maior cidade do mundo e possui uma estrutura de funcionalidade urbana exemplar, apesar do número excessivo de veículos motorizados, que tira a liberdade de locomoção dos pedestres. Ruas e avenidas bem projetadas e construídas, limpas e bem cuidadas e por assim dizer humanizadas, pois cercadas de arborização, áreas livres, passeios espaçosos, tudo beneficiado pela competente infra-estrutura respeitada e secundada pelo carinho do auto-benefício dos moradores. Os prédios chegam a ser bonitos - e é um prazer quase festivo passeiar a pé ou de carro pelas ruas e bairros da zona sul e adjacências (Jardins, Moema, Itaim, Ibirapuera), dando-nos a confortável impressão de que estamos em casa. Mas o ponto alto (além dos restaurantes e casas noturnas de primeiro mundo, por assim dizer) é a programação cultural de todos os cantos e recantos metropolitanos, repletos de salas de leitura, teatros, museus, cinemas, auditórios, livrarias, e até os templos católicos onde a fé cristâ irmana-se à beleza dos cantos gregorianos (no Mosteiro de São Bento) e à Comunhão Reparadora dos Arautos dos Evangelhos (na Catedral da Sé). O afâ intelectual das pessoas mais exigentes é contemplada com o que há de mais fino e puro para deleitar a cupidez mental e enlevar a vulnerabilidade sensitiva. Ciceroniados pela filha Ana Paula, que desde a infância cultiva o interesse e o bom gosto da arte e da cultura, eu e Inês lavamos a alma diversas vezes no banho de civilização de uma cidade que no passar dos séculos mais se aprimora nas instituições, apesar dos percalços administrativos da política brasileira. O Concerto da Orquestra Sinfônica na Sala São Paulo, deixou perplexo e até acabrunhado, no bom sentido. A concorrência das partes - os instrumentos de sopro, de cordas e de percussão, escreviam em meus sentidos alertados os nomes de uma nova coleção antológica de poemas - e mesmo no escuro da platéia fui rabiscando em vâs tentativas de versificação as palavras que fluiam da execução do Concerto em Lá Menor de Schumann: a palavra que exorbita da partitura reluz na pauta e canta no solfejo grita nas claves, fere a grafia selecionada no silêncio promovido a som compulsivo os olhos nos ouvidos os ouvidos nos olhos a possessão dos sentidos no estar do ser no almejado inesquecível do amor de alguma coisa inexprimível que dá mais vida à vida que recolhe para entornar reflui para absorver transtorna para retornar ah! a malícia arraigada é uma delícia delineada e finalmente exposta na tramitação de uma idéia da alma agora na ponta dos dedos do pianista Vimos depois "O Fantasma da Ópera" no mesmo teatro que no ano passado vimos "Os Miseráveis", também um super-espetáculo de efeitos especiais e de recursos visuais inimagináveis por quem sempre via o palco imóvel diante de um pano de fundo sem vida própria. Ambas as encenações lembram ao cinéfilo de muitas décadas a surpresa antiga causada pelos artifícios do cinemascope e da terceira dimensão e da hoje chamada computação gráfica. Do começo ao fim do desenrolar, a peça é uma espécie de filme ao vivo e em cores, de montagem e decupagem instantâneas: o cenário abre, fecha,bifurca, expande, aprofunda, adquire aspectos e formatos dinâmicos, é às vezes ao mesmo tempo, um camarim da estrela, os bastidores dos figurantes, o fosso da orquestra, os escaninhos das intrigas, a alcova dos amantes, os jardins dos idilios, os tetos dos lustres macabros, os nichos de monstros e abismos. De tudo fica a impressão que a tecnologia é o personagem principal do enredo, é a diretriz, o conceito e a imagem, o formalismo e a trama romanesca. Algo que realmente impressiona, teatralmente, pela novidade. Outra atração irresistiível é a beleza verde e fulgurante do Parque Ibirapuera, com as repentinas longidões de seus gramados e arvoredos e pistas de caminhadas e ciclismo e os lagos, os quiosques, os monumentos arquitetônicos e sobretudo as alas e moitas de árvores assim apresentadas como os seres vivos que realmente são, produzindo o jogo fantástico dos reverberos de sombras e luzes nas amplas extensões de tanta recreação agraciada de clorofila e ares oxigenados. Vimos lá a inefável exposição Andy Warhol Motion Pictures no MAM (Museu de Arte Moderna), que eu conhecia de longe . Nela estão os ícones norte-americanos saidos de sua câmera de l6 mm na série de filmes mudos da década de 60: Sleep, Eat, Kiss, Blow Job, com algumas de suas mais lindas mulheres: Jane Holzer, Donyale Luna, Edie Sedgwich, Susan Sontag (quem diria que ela depois seria a grande intelectual de nosso tempo!), Cathy, Kyoko Kishida e Ivy Nicholson, todas primando suas qualidades encantatórias em simples expressões faciais em muitos minutos repetitivos o dia todo em telões espalhados nos amplos salões diante do deleite dos expectadores, que talvez nunca tivessem reparado como o rosto carrega tantas feições, tantas mensagens, tantos poemas. E depois, numa incrível manhâ de quinta-feira, o espetáculo de portas abertas no majestoso Teatro Municipal chamado CENA ABERTA, A Tragédia na Ópera, com explêndidas árias selecionadas de ORFEU, de Gluck, A Dança das Fúrias, com o Coral Paulistano; O Coro das Feiticeiras, de MACBETH, de Verdi, com o Coral Lírico; O Final do Ato III de ROMEU E JULIETA, de Gounod, com os cantores líricos do mesmo Coral Lirico; a ária Ah, Piu Non Ragiorno, de RIGOLETTO, de Verdi, com os cantores líricos do Coral Paulistano; o Ecoute, Compagnon, de CARMEN, de Bizet, com os os cantores líricos Laura Amberi, Adriana Magalhães, Heloisa Junqueira, Valter Felipe, Eduardo Goes e Sandro Bodilon; e para concluir o final da ópera TANHAUSER, de Wagner, com os liricos Rubens Medina, Márcio Martins e Magali Litieri. Tudo sob a batuta de Mario Zaccaro e a direção cênica de Vivien Buckup. Uma verdadeira manhâ de primavera paulistana. No Teatro Alfa, a estréia mundial da coreografia ONCOTÔ (caipirismo mineireiro que quer dizer "Onde é que estou?") do grupo mineiro (de projeção mundial) CORPO, acrescido de LECUONA (série de quadros calcados nas canções de Ernesto Lecuona). Espetáculo desnorteante, embevecedor, transbordante de plasticidade, sensualidade e de coletiva coordenação motora (estética a incrível sintonia - mobilidade automática?- dos bailarinos em pares e grupos, sem o menor deslise ou errinho, assim ao vivo em tantas emaranhadas, ágeis, ciclópicas, entrelaçadas evoluções). E mais uma vez as mãos ficaram sentidas de tanto aplaudirem a Família Pederneira e os bailarinos(as) emplumados na sensualidade onírica de imemoriais deidades, bailando maciamente ao longo do tempo e ainda agora mesmo. A apoteose da temporada estava reservada para a última noite com a performance de Maria Bethânia, a nossa deusa musical de tantos anos seguidos de sucessos e mais sucessos. Eu que sempre colecionei seus discos e decorei suas específicas interpretações e que inexplicavelmente nunca a tinha visto ao vivo..., tive que preparar meu coração para vê-la assim cada vez mais jovem e bela como sempre a imaginava, portadora da mesma voz encarnada que um dia tentei descrever num dos contos do livro "Aço Frio de Um Punhal". O repertório do show na casa de espetáculos da Avenida Jamaris (a dois quarteirões do apartamento de minha filha) é de composições de Vinicius de Morais e seus parceiros Chico Buarque, Toquinho, Jobim, Adoniram, Baden Powell, Carlos Lyra, uma torrente de fluídos, a tocante revelação em cada entonação suspirosa e flamante, uma esteira emocional. Ela surge discretamente, pequena e igualável no palco, mas aos poucos vai engrandecendo, criando asas e pernas e braços além da cabeleira enluarada, e vai às grimpas de si mesma e logo toma conta do palco e da platéia e da orquestra e de tudo mais naquele ambiente repentinamente ampliado e luminoso. E num átimo não é mais a moça pequena e modesta, mas sim a mulher imensamente bonita e fascinante e faceira e maravilhosa, o amor de toda a gente, a interprete de todos os sonhos de amor, a flor de todos os sentimentos de amor. E encanta cantando o repertório anunciado e, cúmplice da platéia, acrescenta canções igualmente empolgantes de Noel Rosa , Ary Barroso, Dorival Caymi, Gonzaguinha e outros luminares do cancioneiro nosso de cada dia da bela e sonhada eternidade das maravilhas, da cantora maravilhosa que sempre é e será.

(*) Texto publicado na edição de 20/08/05, no jornal Magazine, Divinópolis (MG).