Assim eu via o homem com a enxada no eito,
naqueles tempos, naquelas palavras de Edwin Markhan (*):
vergado aos tonéis do tempo, ele se vale
da ferramenta que é seu corpo e fita,
desencantado, o vazio circundante.
A velhice prematura mudou seu rosto,
Que ainda sofre as devastações dos maus tratos.
Quem foi que sufocou sua indignação,
que máquina o amansou no roçado da fazenda?
quem assim descoloriu seus olhos?
quem apagou o clarão de sua mente?
É este o ser que Deus criou para espelhar a beleza
de Sua imagem, a verdade de Sua semelhança?,
para proteger os elementos da natureza
e no caminho das estrelas aventurar-se?
É esta a criatura destinada a captar o tempo
e esgota-lo, sem esgotar-se?
É este o sonho de Deus,
que virou o pesadelo de Deus?
Da sacada ao último vórtice do inferno
não há visão mais terrível do que esta
mais prenhe de denúncias contra o erro
mais prenhe de presságios contra o abuso
mais prenhe de ameaças contra o mundo inteiro.
Um abismo se abre entre ele e Platão.
O que vale o frêmito das plêiades em face
do seu labor inócuo e escravo?
E mesmo o rasgo alucinado da aurora
e a poética gestação das rosas?
Por esse vulto sem aura os tempos repressivos
espionam. E, esquálido a lutar no eito infinito,
ele é o exemplo vivo das vivas distorções.
Por seus lábios murchos e descorados
toda a humanidade traída e deserdada
clama surdamente aos juízes da terra,
num clamor com o timbre da profecia.
Ó empresários e políticos de toda parte:
o fruto de vossa gestão é esse ser encarquilhado,
quase monstruoso ao despedaçar-se?
Quando devolvereis a ele a humanidade,
a seus olhos a luz, a seu espírito a substância?
Quando a música entrará de novo em seus poros
e os sonhos em seus desejos, desagravando
as infâmias, as perfídias, as desgraças?
Ò tecnocratas desumanos do planeta:
como o futuro se dará comesse homem,
quando com ele, num crepúsculo, defrontar?
Que respostas terá para suas perguntas, quando
a revolta se tornar um ciclone abrangente?
O que estará reservado aos privilegiados de hoje
(os mesmos que o reduziram à última baixeza),
quando esse pobre homem combalido,
rompendo o mutismo secular de tantos outros,
replicar bem alto e forte?
(*) - Edwin Markhan (l852-l940), poeta norte-americano, escreveu o poema “O Homem com a Enxada”, depois de ver o quadro mundialmente famoso de Lillet. O texto acima é uma tradução livre, calcada (em termos de paráfrase), numa tradução de Oswaldino Marques, publicada na edição bilíngüe de “Poemas Famosos da Língua Inglesa”, Editora CivilizaçãoBrasileira, Rio de Janeiro, l956.